Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3138/16.9T8FNC.L1-6
Relator: ANA PAULA A. A. CARVALHO
Descritores: ÓNUS DE PROVA
REGRAS DE REPARTIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I Quem tem de provar a ausência de causa justificativa é aquele que efectuou a prestação (in casu, os AA.) e não o beneficiário da mesma (in casu, os RR.), pois a formulação do artigo 473º do C. Civil e as regras de distribuição do ónus da prova não consentem tal interpretação.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


JB e MB intentaram acção declarativa contra AB e cônjuge AC, alegando, em suma, que o A. emprestou a quantia de 11.000 aos RR., quantia essa que não foi paga.

Concluem pedindo a condenação dos réus no seguinte:
a)- seja declarado nulo, por falta de forma, o contrato verbal de empréstimo descrito nos supra referidos articulados e os réus condenados a restituírem aos autores a aludida quantia de €11.000 (onze mil euros), acrescidos dos juros, à taxa legal, a contar a partir da sua citação, até integral pagamento;
b)- caso assim não se entenda, então que sejam os réus condenados a restituírem, no todo ou em parte, a quantia mutuada com que, sem qualquer causa justificativa, se locupletaram, nem que seja segundo as regras do enriquecimento sem causa, acrescidos dos juros, à taxa legal, a contar da sua citação até integral pagamento.

Na contestação, os réus alegam, em síntese, que o valor de 11.000 euros que lhes foi entregue pelos AA. se reportava à restituição parcial da quantia de 26.500 euros que, por seu vez, os RR. haviam emprestado aos AA. Concluíram, peticionado a respectiva absolvição do pedido e deduzindo reconvenção nos seguintes termos:
- Em consequência, condenar-se os Autores solidariamente a restituir aos Réus o valor total de dezasseis mil e quinhentos euros (€ 16.500,00), a título de mútuo, acrescido de juros de mora a contar da sua notificação e até integral pagamento.
- Condenar solidariamente os Autores a pagar uma indemnização aos Réus em montante nunca inferior a cinco mil euros (€ 5.000,00).”

Os AA. contestaram a reconvenção, negando que os RR. lhes tivessem emprestado qualquer quantia.

Foi elaborado o despacho a que alude os aludem os artigos 595º e 596º do C.P.C., não tendo sido admitido o segundo pedido reconvencional.

Realizou-se a audiência final e foi proferida a sentença que julgou a acção improcedente por não provada e absolveu os réus do pedido, bem como julgou improcedente por não provada a reconvenção e absolveu os reconvindos do pedido.
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Não se conformando, os autores apresentam recurso de apelação, pugnando pela revogação da sentença “a quo” e sua substituição por acórdão que julgue procedentes os pedidos nos termos formulados pelos autores.

Os apelantes formulam as seguintes conclusões das alegações de recurso:

«A) Os fundamentos da ação declarativa referem-se, no essencial, ao empréstimo que o autor marido efetuou aos réus/reconvintes na quantia de €11.000, quantia esta que nunca lhes foi devolvida, tendo os autores peticionado a declaração de nulidade, por falta de forma, do contrato verbal de empréstimo e os réus condenados a restituírem aos autores a aludida quantia, tendo, subsidiariamente, requerido a condenação dos réus/reconvintes a restituírem, no todo ou em parte, a quantia mutuada com que, sem qualquer causa justificativa, se locupletaram e de acordo com as regras do enriquecimento sem causa.
B) Os reús/reconvintes, por sua vez, contestaram, tendo alegado que o valor de €11.000 que lhes foi entregue pelos autores se reportava à restituição de parte da quantia de €26.500 que haviam emprestado aos autores e concluíram peticionando a respetiva absolvição do pedido e deduzindo reconvenção, conforme consta em fls.23 dos autos, onde, no essencial, pedem a condenação dos autores a restituírem aos réus o valor total de €16.500, a título de mútuo, acrescido de juros de mora a contar da sua notificação e até integral pagamento.
C) Dos factos que alegaram, os réus/reconvintes nada provaram, nomeadamente que tivesse existido qualquer tipo de deslocação patrimonial deles para os autores.
D) O contrário provou-se: houve deslocação patrimonial no valor de €11.000 da conta bancária dos autores para a conta bancária dos réus/reconvintes, tendo a mesma quantia produzido um enriquecimento destes à custa daqueles, conforme factos provados nos pontos 3. e 4. da douta sentença “a quo”.
E) Se tal quantia foi descontada da conta bancária dos autores e em favor do aumento da conta bancária dos réus/reconvintes e tendo a tese articulada por estes naufragado por completo, conjugado com a análise dos documentos existentes nos autos, com o teor dos depoimentos das testemunhas dos autores, cuja apreciação adiante requerem, com as regras da experiência comum da vida, tudo analisado pela via das presunções definidas pelo artigo 349º do Código Civil, entendem os autores, salvo diferente e melhor opinião, que é possível inferir que tal quantia lhes foi entregue (aos réus/reconvintes) a título de empréstimo.
F) De facto, consta nos factos provados que o autor marido e o réu marido são irmãos, existindo a fls. 24 verso a fls.25 verso dos autos duas procurações outorgadas pelos réus nos anos 1994 e 1996, em que o autor marido foi seu procurador, com amplos poderes, tendo as mesmas só sido revogadas em 02/05/2013, conforme fls.26 dos autos.
G) Tais procurações demonstram a relação de plena confiança e de despreocupação que, durante décadas, existiu entre autores e réus e até certa data, que os autores balizaram no artigo 3º da petição inicial como tendo sido até meados do ano de 2012, o que não foi impugnado pelos réus/reconvintes, nomeadamente no seu artigo 43º da contestação/reconvenção, apesar de se tratarem de factos pessoais.
H) Aliás, consta nos factos provados que o réu marido, após o seu regresso à Região Autónoma da Madeira, foi trabalhar na empresa de construção civil do autor marido, seu irmão, após o que decidiu trabalhar, por conta própria e constituído uma empresa, tendo, em resultado da crise, emigrado para França, onde se encontra até a presente data, conforme consta nos pontos 1., 6. a 9. dos factos provados da douta sentença “a quo”.
I) Os autores, por sua vez, tudo fizeram para demonstrar que nunca tiveram problemas de ordem financeira, tendo feito questão em juntar, como juntaram, os extratos bancários das quantias que movimentaram e que remontam nomeadamente aos anos de 1993, 2000, 2001, finais de 2005 a finais de 2006 e do mês de Março do ano de 2012, que constam em fls.11 verso a fls.12 verso e fls.56 a fls.66 verso dos autos.
J) Estes últimos documentos encontram-se confirmados pelo Banco Santander Totta, S.A., conforme documento que consta em fls.133 como fazendo parte do arquivo histórico do extinto Banco Banif.
K) Ressalvado o devido respeito por diferente opinião, a sra. juiz “a quo” não decidiu da melhor forma a matéria de facto ao não ter dado por provado que as quantias entregues aos réus/reconvintes foram-no a título de empréstimo, quando tal resultou provado em audiência de discussão e julgamento, considerando os depoimentos das testemunhas dos autores IC; JJ e SP, cujos excertos constam transcritos nos pontos 23 a 34 destas alegações.
L) As testemunhas dos autores não foram na audiência de discussão e julgamento contraditadas, nos termos do artigo 521º do Código de Processo Civil, inexistindo qualquer circunstância que haja abalado a credibilidade dos seus depoimentos ou a sua falta de isenção.
M) Salvo o devido respeito, a referência que a sra. juiz “a quo” fez à eventual instrumentalização das testemunhas dos autores são atoardas, de cariz discricionário, que nada tem a ver com o princípio da livre apreciação da prova segundo a sua prudente convição, até porque fez constar na motivação da matéria de facto da douta sentença que não tem elementos que fundamentem tal juízo de valor, salientando-se que se limitou a referir a falta de espontaneidade das mesmas para desvalorizar, como desvalorizou, os seus depoimentos – veja-se a parte da douta sentença que consta em fls.140 verso dos autos.
N) Ressalvado o devido respeito por diferente opinião, a sra. juiz “a quo”, em violação do princípio da busca da verdade material, não atendeu a todas as provas produzidas, nomeadamente aos depoimentos das testemunhas dos autores, pelo que requerem a ampliação da matéria de facto efetivamente provada e ignorada pela sra. juiz “a quo”, tendo por referencia as gravações através do sistema Habilus Média Stúdio, conforme a ata da audiência de discussão e julgamento de 30/03/2017 (consta de fls.130 a fls.132 verso) e a retificação da matéria de facto provada, nos termos adiante melhor referidos.
O) Pese embora o Tribunal “a quo” não haja dado por provado que os autores, na qualidade de mutuantes, tenham emprestado aos réus/reconvintes pelo menos a aludida quantia de €10.000, a verdade é que, salvo diferente e melhor opinião, tal prova fez-se em audiência de discussão e julgamento.
P) Entendem os autores que a normalidade lógica, credível, é àquela que resulta dos depoimentos pouco habituados à sala do tribunal, às vezes com imprecisões, é certo, mas que são, no essencial, coincidentes, como o foram os depoimentos das testemunhas dos autores IC; JJ; SP: que presenciaram o pedido de empréstimo que o réu marido efetuou ao autor marido e à entrega por este do aludido cheque no valor de €10.000, comprovadamente descontado da conta bancária dos autores em favor do aumento da conta bancária dos réus.
Q) Salientam os autores que nos factos não provados e elencados na douta sentença “a quo” (fls.139 dos autos) não consta que as quantias aludidas nos pontos 3. e 4. dos factos provados não hajam sido entregues a título de empréstimo, tendo a sra juiz “a quo”, eventualmente de propósito, deixado esta questão em aberto.
R) De facto, os réus/reconvintes confessaram que as quantias aludidas nos pontos 3. e 4. dos factos provados da douta sentença “a quo” foram depositadas na conta bancária de ambos (usaram, por diversas vezes, a palavra réus, sempre no plural), aceite pelos autores no artigo 4º da réplica – veja-se parte final dos artigos 31º e 54º, ambos da contestação/reconvenção (fls.19 e seguintes) e 2ª parte do artigo 20º da resposta à réplica (fls.75).

S) Pelo referido, considerando a referida confissão, conjugado com as demais prova existente nos autos, requerem os autores, salvo sempre diferente e melhor opinião, que seja adicionado ao elenco dos factos provados, um novo facto com a seguinte redação:
“Os cheques aludidos nos pontos 3. e 4. dos factos provados foram depositados na conta bancária dos réus.”

T) Relativamente à identificação do cheque referido no ponto 4. dos factos provados, a mesma enferma de diversos lapsos de escrita, requerendo-se a respectiva retificação em conformidade com os documentos nº 6 e 7 juntos aquando da petição inicial (fls.13 a 14 dos autos), por forma que lá fique a constar a seguinte redação:
“O A. entregou ao R. um cheque ao portador sacado sobre o Banco X, da conta nº45307497492, com o nº20685322733, no valor de 1.000 euros, o qual foi, pelos réus, descontado, em 07.03.2012.”

U) Salvo o devido respeito, a sra juiz “a quo”, por erro de julgamento, não valorou os depoimentos das testemunhas dos autores que, de forma espontânea, unânime e elucidativa, disseram na audiência de discussão e julgamento que assistiram à entrega pelo autor marido do cheque com a quantia aludida no ponto 3. dos factos provados ao réu marido a título de empréstimo.

V) e de forma despreocupada, rápida e espontânea, conforme se constata pelos excertos que constam nos pontos 23 a 34 destas alegações, dado que existia, ao tempo, entre ambos os casais, uma boa relação familiar, de proximidade e de recíproca confiança.

W) Tal relação de confiança e de proximidade revelou-se, também, pelo facto do autor marido ter sido procurador dos réus/reconvintes desde 1994, tendo as duas procurações só sido revogadas pelos réus/reconvintes em 02/05/2013.

X) Essa relação de plena confiança e de proximidade quebrou-se em meados do ano de 2012, conforme referiram os autores no artigo 3º da petição inicial, facto este que foi, como é, do conhecimento pessoal dos réus e não impugnado na sua contestação/reconvenção, nomeadamente no seu artigo 43º da contestação/reconvenção (fls.21 verso dos autos).

Y) Pelo referido, considerando a referida relação de proximidade e de confiança que existiu entre ambos os casais, facto este que foi, como é, do seu conhecimento pessoal, referida pelos autores no artigo 3º da petição inicial, não impugnada pelos réus/reconvintes, nomeadamente no seu artigo 43º da contestação/reconvenção (fls.21 verso dos autos), requerem os autores, salvo sempre diferente e melhor opinião, que seja adicionado aos factos provados, um novo facto com a seguinte redação:
“Até meados do ano de 2012 o casal autor e o casal réu sempre tiveram uma boa relação familiar e de recíproca confiança.”
Z) Acresce que os autores tudo fizeram para demonstrar, como demonstraram, que sempre tiveram à ordem saldos na sua conta bancária mais do que suficientes para fazerem face a todos os pagamentos da sua responsabilidade, sem necessidade de contrair empréstimos junto de quem quer que seja, nomeadamente dos réus/reconvintes,
AA) conforme consta demonstrado, repita-se, através dos extratos bancários que constam de fls.11 verso a fls.12 verso dos autos e os extractos bancários de fls.56 a 66 dos autos, os quais foram confirmados pelo Banco T a fls.133 dos autos como fazendo parte do arquivo histórico do extinto banco Banif, o que, aliás, consta referido na motivação de facto da douta sentença (fls.139 verso dos autos).
BB) Se tal quantia foi descontada da conta bancária dos autores e em favor do aumento da conta bancária dos réus/reconvintes e tendo a tese articulada por estes naufragado por completo,
CC) conjugado com os factos provados discriminados na douta sentença “a quo”,
DD) com os aludidos documentos existentes nos autos,
EE) com o teor dos depoimentos que as aludidas testemunhas dos autores prestaram em audiência de discussão e julgamento, cuja excertos constam transcritos nos pontos 23 a 34 destas alegações,
FF) com a boa relação familiar e de recíproca confiança que, durante décadas, existiu entre autores e réus, nomeadamente ao tempo da entrega e desconto dos cheques,
GG) que o réu marido, após o seu regresso de Jersey, trabalhou na empresa de construção civil do autor (facto provado no ponto 7. da douta sentença “a quo”),
HH) posteriormente o réu decidiu trabalhar por conta própria, constituindo uma empresa (facto provado no ponto 8. da douta sentença “a quo”),
II) que a crise económica forçou-o a emigrar para França, onde se encontra até à presente data (facto provado no ponto 9. da douta sentença “a quo”),
JJ) tendo por referência a experiência do bónus pater familiae, ou do homem comum colocado nas mesmas circunstâncias em que se encontrava o autor marido aquando dos aludidos empréstimos (tendo saldo bancário recusava o empréstimo ao irmão com quem ao tempo se relacionava bem e em quem confiava?),
KK) permitem inferir, nem que seja pela via de presunção judicial, definida pelo artigo 349º do Código Civil, erroneamente ignorada pela sra. juiz “a quo”, pela certeza de que as aludidas quantias entregues pelo autor marido aos réus foram a título de empréstimo, ainda que nulo por vício de forma, de conhecimento oficioso, uma vez que não foi celebrado por documento escrito conforme prevê o artigo 1143º do Código Civil, mas cuja apreciação foi requerida pelos autores, com as inerentes consequências legais.

LL) Por tal, consideram os autores, em resultado do exposto, que deve ser adicionado um novo facto ao elenco dos factos provados, com a seguinte redação ou outra que o tribunal “ad quem” entenda:
“O réu marido, em finais de Janeiro do ano de 2006, pediu emprestado ao autor marido, que lhe emprestou, a quantia de €10.000, titulada pelo cheque identificado no ponto 3. dos factos provados, o qual foi descontado da conta bancária dos autores em 02/02/2006.”

MM) Caso o tribunal “ad quem” entenda que as aludidas quantias, no valor total de €11.000, não foram entregues a título de empréstimo – o que só por mera hipótese académica tal se admite - requerem os autores, supletivamente, que os réus/reconvintes sejam condenados, nos termos do artigo 473º do Código Civil, na sua restituição, no todo ou em parte, considerando que as mesmas foram-lhes entregues injustamente e sem qualquer causa justificativa, à custa da diminuição do património dos autores, segundo as regras do enriquecimento sem causa.
NN) Pelo referido, requerem que a sentença “a quo” seja revogada e substituída por acórdão que julgue procedentes os pedidos nos termos formulados pelos autores.
OO) Foram violados ou erroneamente interpretados, entre outros, o nº2 do artigo 5º; 413º; 1ª parte do nº2 e nº3 do 574º; nº4 e 5 do 607º, todos do Código de Processo Civil e os artigos 220º; 286º; nº1 do 289º; 294º; 349º; 473º e 1143º, todos do Código Civil.
Termos em que requerem que seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, revogada a sentença “a quo” e substituída por acórdão que julgue a ação procedente, por provada e os réus/reconvintes condenados nos termos peticionados.»

Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença e improcedência do recurso.
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Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar.
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Questões a decidir:

O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635º nº 4 do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).

Importa apreciar as seguintes questões:

a). Se devem ser aditados aos factos provados os seguintes factos:

“Os cheques aludidos nos pontos 3. e 4. dos factos provados foram depositados na conta bancária dos réus.”

 “Até meados do ano de 2012 o casal autor e o casal réu sempre tiveram uma boa relação familiar e de recíproca confiança.”

“O réu marido, em finais de Janeiro do ano de 2006, pediu emprestado ao autor marido, que lhe emprestou, a quantia de €10.000, titulada pelo cheque identificado no ponto 3. dos factos provados, o qual foi descontado da conta bancária dos autores em 02/02/2006.”

b). Se o facto provado nº 3 deve ser retificado do seguinte modo:

“O A. entregou ao R. um cheque ao portador sacado sobre o Banco X, da conta nº 45307497492, com o nº20685322733, no valor de 1.000 euros, o qual foi, pelos réus, descontado, em 07.03.2012.”

c). Caso o tribunal “ad quem” entenda que as aludidas quantias, no valor total de €11.000, não foram entregues a título de empréstimo, se os réus/reconvintes devem ser condenados, nos termos do artigo 473º do Código Civil, na sua restituição, no todo ou em parte?
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade provada e não provada consignada na sentença recorrida é a seguinte:

1. O A. e o R. são irmãos.
2. Os RR. casaram um com o outro no dia 15.02.1991, sem convenção antenupcial.
3. O A. entregou ao R. um cheque à ordem do R. sacado sobre o Banco M da conta n.º 00441933771, com o n.º5353308779, no valor de 10.000 euros, o qual foi, pelo R., descontado, em 02.02.2006.
4. O A. entregou ao R. um cheque ao portador sacado sobre o Banco M da conta n.º 45307497492, com o n.º5353308779, no valor de 1.0000 euros, o qual foi, pelo R., descontado, em 02.02.2006.
5. Os RR. estiveram emigrados em Jersey.
6. Em Outubro de 1999, o R. regressou à Região Autónoma da Madeira.
7. Depois de regressarem à Região Autónoma da Madeira, o R. começou por trabalhar na empresa de construção civil do A..
8. Posteriormente, o R. decidiu trabalhar por conta própria, constituindo uma empresa.
9. A crise económica forçou o R. a emigrar para França, onde se se encontra até à presente data.

Factos Não Provados.

Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:
A. Os RR. prometeram, vezes sem conta, que iriam devolver os referidos 11.000 euros.
B. A quantia de 11.000 euros foi entregue aos RR. para fazerem face às despesas normais da vida familiar de ambos.
C. A quantia de 10.000 euros também se destinava a fazer face aos encargos com o exercício da actividade de empreiteiro e subempreiteiro do R. na área de construção civil e com os salários dos seus empregados.
D. Os AA. pediram aos RR. que lhes emprestassem 35000 contos no final do ano de 1992/início do ano de 1993 para comprarem um veículo automóvel de marca Mitsubihi Canter.
E. O A. utilizava o veículo referido em D. no seu trabalho.
F. Em Janeiro de 2001, os AA. pediram aos RR. a quantia de 10.000 euros para pagar os salários dos trabalhadores.
G. O A. não tinha dinheiro para pagar os salários dos trabalhadores.
H. Os AA. disseram que devolveriam as quantias referidas em D. e F. assim que pudessem.
I. Das quantias referidas em D. e F., os AA. restituíram 11.000 euros.
J. Os RR. interpelaram os AA. para devolverem as quantias referidas em D. e F..
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

a). Se devem ser aditados aos factos provados os seguintes factos:

a).a). “Os cheques aludidos nos pontos 3. e 4. dos factos provados foram depositados na conta bancária dos réus.”

b).b). “Até meados do ano de 2012 o casal autor e o casal réu sempre tiveram uma boa relação familiar e de recíproca confiança.”

c).c). “O réu marido, em finais de Janeiro do ano de 2006, pediu emprestado ao autor marido, que lhe emprestou, a quantia de €10.000, titulada pelo cheque identificado no ponto 3. dos factos provados, o qual foi descontado da conta bancária dos autores em 02/02/2006.”

No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»

Nesta sequência, para que a decisão sobre a matéria de facto seja alterada, haverá que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que foram considerados como assentes.

a).a). “Os cheques aludidos nos pontos 3. e 4. dos factos provados foram depositados na conta bancária dos réus.”

Nesta parte, os apelantes sustentam que «os réus/reconvintes confessaram que as quantias aludidas nos pontos 3. e 4. dos factos provados da douta sentença “a quo” foram depositadas na conta bancária de ambos (usaram, por diversas vezes, a palavra réus, sempre no plural), aceite pelos autores no artigo 4º da réplica – veja-se parte final dos artigos 31º e 54º, ambos da contestação/reconvenção (fls.19 e seguintes) e 2ª parte do artigo 20º da resposta à réplica (fls.75)».

A factualidade considerada provada na sentença recorrida é a seguinte:

«3. O A. entregou ao R. um cheque à ordem do R. sacado sobre o Banco M da conta n.º 00441933771, com o n.º5353308779, no valor de 10.000 euros, o qual foi, pelo R., descontado, em 02.02.2006.
4. O A. entregou ao R. um cheque ao portador sacado sobre o Banco M da conta n.º 45307497492, com o n.º5353308779, no valor de 1.0000 euros, o qual foi, pelo R., descontado, em 02.02.2006.»

E a fundamentação fática do tribunal de 1ª instância é a seguinte: «-cópias dos cheques de fls 11 e 13, extractos bancários de fls 11 verso e seguintes e 13 verso e 14, de cuja análise, em conjugação com a posição assumida pelas partes nos articulados (há acordo quanto à entrega dos cheques e ao seu desconto bancário) se concluiu que, efectivamente, os AA. entregaram dois cheques aos RR. no valor de 10.000 euros e 1.000 euros, os quais foram descontados, motivo pelo qual se considerou provados os factos 3. e 4.;»

Afigura-se que a formação da convicção é rigorosa e corresponde à análise crítica dos elementos probatórios, conjugados com a posição assumida no litígio e plasmada nos articulados apresentados pelas partes. Com todo o respeito pela opinião contrária, não se consegue descortinar qual a utilidade da alteração pretendida pelos recorrentes, uma vez que os réus se encontram casados sob o regime da comunhão de adquiridos e foram demandados em litisconsórcio necessário passivo pelos autores.

Não há, assim, fundamento para alterar a decisão fáctica, improcedendo a pretensão.

b).b). “Até meados do ano de 2012 o casal autor e o casal réu sempre tiveram uma boa relação familiar e de recíproca confiança.”

Sustentam os apelantes o aditamento deste facto (contido no artigo 3º da petição), porquanto tal «relação de confiança e de proximidade revelou-se, também, pelo facto do autor marido ter sido procurador dos réus/reconvintes desde 1994, tendo as duas procurações só sido revogadas pelos réus/reconvintes em 02/05/2013» e essa «relação de plena confiança e de proximidade quebrou-se em meados do ano de 2012, conforme referiram os autores no artigo 3º da petição inicial, facto este que foi, como é, do conhecimento pessoal dos réus e não impugnado na sua contestação/reconvenção, nomeadamente no seu artigo 43º da contestação/reconvenção (fls.21 verso dos autos)».

A fundamentação do tribunal recorrido consta do seguinte segmento:

«Mais se consigna que as restantes palavras ou frases vertidas nos articulados não se mostram incluídas quer nos factos provados quer nos factos não provados, foram excluídas por uma das seguintes razões: Ou porque não expressavam factos, mas sim conclusões; Ou por serem matéria de direito; Ou por serem uma mera repetição de factos já provados ou não provados; ou por corresponderem a uma versão oposta à dada como provada; ou por não terem relevância para a decisão da causa.»

Na verdade, embora a convicção formada seja explicitada de um modo global e genérico, afigura-se que é inteiramente lógica e consistente, sendo certo que nas alegações de recurso os apelantes não esclarecem qual a relevância do facto que pretendem aditar para a boa decisão da causa, à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito controvertida e que está definida no objeto do litígio: empréstimo dos AA. aos RR. no valor de 11.000 euros e respectivas características.

c).c). “O réu marido, em finais de Janeiro do ano de 2006, pediu emprestado ao autor marido, que lhe emprestou, a quantia de €10.000, titulada pelo cheque identificado no ponto 3. dos factos provados, o qual foi descontado da conta bancária dos autores em 02/02/2006.”

Os apelantes consideram que a demonstração deste facto resulta da ponderação dos elementos apontados nas conclusões AA) a JJ), nem que seja por via de presunção judicial definida pelo artigo 349º do Código Civil.

O tribunal recorrido fundamentou a decisão do seguinte modo:

« IC, JJ e SP, amigos e antigos trabalhadores do A., os quais descreveram, em suma, um episódio em que estavam um dia na garagem do A. e o R, apareceu e pediu dinheiro emprestado ao A. tendo este entregue um cheque de 10.000 euros. O depoimento destas testemunhas não é totalmente coincidente, ora Ilídio afirma que o A. falou com o R. à parte, mas afinal conseguiu ouvir a conversa e que o R. disse que precisava de dinheiro para pagar as contas; ora João Jesus diz que o R. não disse para que precisava do dinheiro e que conversou à frente deles pedindo 12.000 euros; ora SP sustenta que o R. pediu 12.000 euros à sua frente e o A. disse que só emprestava 10.000 euros e foi passar o cheque no escritório. As divergências são aparentemente de pormenor, mas a verdade é que face ao tempo decorrido (as testemunhas não conseguiram confirmar as datas, o que é natural, sendo que uma delas referiu que isto se passou há cerca de 10 anos), não pode o tribunal deixar de estranhar que as testemunhas se lembrem tão bem desse dia. Acresce que ao longo dos depoimentos, as testemunhas à medida que respondiam olharam várias vezes para o ilustre mandatário do A. (em especial SP) como que pedindo “aprovação”. Pese embora o tribunal não tenha elementos para concluir que as testemunhas foram de alguma forma instrumentalizadas, a verdade é que os depoimentos não foram prestados de forma que o tribunal considerasse efectivamente espontânea.»

Na perspectiva dos apelantes, os depoimentos destas testemunhas, conjugados com a circunstância de se considerar provado que o réu marido, após o seu regresso de Jersey, trabalhou na empresa de construção civil do autor, posteriormente o réu decidiu trabalhar por conta própria, constituindo uma empresa, e que a crise económica forçou-o a emigrar para França, onde se encontra até à presente data (factos provados 7, 8 e 9), bem como a demonstração de que - 3. O A. entregou ao R. um cheque à ordem do R. sacado sobre o Banco M da conta n.º 00441933771, com o n.º5353308779, no valor de 10.000 euros, o qual foi, pelo R., descontado, em 02.02.2006. – são suficientes para se inferir que o autor emprestou a aludida quantia monetária ao réu.

Após a audição dos depoimentos das testemunhas, cujos excertos essenciais são transcritos nas alegações de recurso, não se pode deixar de concordar com a apreciação crítica elaborada pelo tribunal recorrido. Na verdade, é feito um relato de uma situação presenciada há cerca de dez anos, o que suscita muitas dúvidas, sendo certo que na contestação os réus contextualizam o recebimento da quantia de dez mil euros precisamente na realidade inversa, isto é, que teria sido realizado a título de pagamento de um empréstimo feito pelos réus aos autores.

A prova deste tipo de realidade (empréstimo de quantia monetária) pode ser feita em tese através de testemunhos, mas terá de ser suficientemente consistente e credível, para se tornar minimamente segura, e dispensar a comprovação acrescida mediante outros elementos probatórios. No caso em apreço, os depoimentos não são por si suficientemente convincentes, e o tribunal recorrido valorou as dúvidas e contradições existentes, à luz das regras do ónus da prova e do princípio consagrado no artigo 414º do C.P.C., acabando por afastar qualquer uma das versões do seguinte modo:

«Todos os depoimentos foram pouco esclarecedores, prestados de forma pouco espontânea e criaram no tribunal sérias duvidas sobre a sua credibilidade, sendo que o tribunal também não dispõe de outros elementos que lhe permitam atribuir mais credibilidade a uns do que a outros, sendo que são contraditórios entre si.»

Tal como já se realçou, a apreciação do julgador de primeira instância é construída com recurso à imediação e oralidade, que não é possível apreender na sua totalidade pelo tribunal «ad quem», o que não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida (…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).

Mas, no caso em apreço, a simples audição dos testemunhos suscita exactamente as mesmas dúvidas, e pelas mesmas razões, que o tribunal recorrido explicitou, sendo ainda certo que a prova na sua globalidade foi valorada por este segundo o mesmo critério, que se afigura inteiramente correto.

Não há, por consequência, fundamento para alterar a decisão, improcedendo a pretensão dos apelantes.


b). Se o facto provado nº 4 deve ser retificado do seguinte modo:

“O A. entregou ao R. um cheque ao portador sacado sobre o Banco X, da conta nº45307497492, com o nº20685322733, no valor de 1.000 euros, o qual foi, pelos réus, descontado, em 07.03.2012.”

Os apelantes pretendem a retificação deste ponto por enfermar de diversos lapsos de escrita em face dos documentos nº 6 e 7 juntos com a petição inicial (fls.13 a 14 dos autos). Assiste-lhes razão, pois o extracto bancário junto como documento 7 da petição comprova que o cheque foi descontado em 07.03.2012, e não em «02.02.2006», conforme consta da sentença, o que terá provavelmente ocorrido por lapso ou erro manifesto.

Consequentemente, rectifica-se o facto provado nº 4 no sentido pretendido pelos apelantes, que em nada influi na decisão.

c). Caso o tribunal “ad quem” entenda que as aludidas quantias, no valor total de €11.000, não foram entregues a título de empréstimo, se os réus/reconvintes devem ser condenados, nos termos do artigo 473º do Código Civil, na sua restituição, no todo ou em parte?

Nesta parte, os apelantes defendem que «os réus/reconvintes sejam condenados, nos termos do artigo 473º do Código Civil, na sua restituição, no todo ou em parte, considerando que as mesmas {quantias} foram-lhes entregues injustamente e sem qualquer causa justificativa, à custa da diminuição do património dos autores, segundo as regras do enriquecimento sem causa».

A sentença recorrida apreciou a questão, do seguinte  modo:

«Dispõe o artigo 473º do Código Civil que “1. Aquele que sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. 2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou." (sublinhado nosso).

Desde logo importa realçar que o enriquecimento sem causa constitui uma das fontes de obrigações, com natureza subsidiária, ou seja, quando não seja possível subsumir a obrigação a qualquer outro instituto legal. Significa isto que só pode o empobrecido recorrer a esta fonte quando a lei não lhe faculte outros meios de reacção e que, caso o empobrecido se socorra indevidamente desde instituto, tal implica a falta de um requisito legal.

Nos termos deste preceito, são pressupostos do funcionamento deste instituto os seguintes (vide, neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, p. 467 e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol.I., pag. 381 e seguintes e ainda Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26.10.2009 e 09.12.2010, do Tribunal da Relação de Coimbra 02.11.2010, entre outros, todos disponíveis em www.dgsi.pt):
a) a existência de um enriquecimento, o qual consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, podendo traduzir-se quer em aumento do activo patrimonial, quer na diminuição do passivo ou ainda na poupança de despesas. Este enriquecimento poderá decorrer de um negócio jurídico, de um acto jurídico não negocial ou até de um simples acto material.
b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem, isto é, tal vantagem patrimonial resulta numa desvantagem económica de um terceiro, sendo esse terceiro a solicitar a restituição. Trata-se de um nexo causal entre a vantagem patrimonial auferida por um e o sacrifício sofrido por outro.
c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento, quer originária quer superveniente, no sentido de que a vantagem patrimonial deveria pertencer a outra pessoa. O enriquecimento carecerá de causa justificativa quando não exista uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, que legitime o enriquecimento.

E nos termos do artigo 342º, nº1 do Código Civil, é sobre o autor, que se arrogue do título de empobrecido, que impende o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um dos pressupostos legais que integram o referido instituto. (vide, neste sentido, entre outros, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 02.11.2010.).

No caso concreto está em causa o comummente designado “enriquecimento por prestação”, sendo que, nesta situação, o requisito fundamental do enriquecimento sem causa é a realização de uma prestação, que se deve entender como uma atribuição finalisticamente orientada, sendo que a ausência de causa jurídica deve ser definida em sentido subjectivo, como a não obtenção do fim visado com a prestação.

Quem tem de provar a causa é aquele que efectuou a prestação (in casu, os AA.) e não o beneficiário da mesma (in casu, os RR.)e nestes termos, quando o empobrecido não consegue provar a causa que invoca (ultrapassado que está o chamado “entendimento clássico do enriquecimento sem causa” que permitia que se atribuísse ao empobrecido o mesmo que lhe seria devido se provasse a causa invocada), deverá concluir-se pela não verificação de tal pressuposto legal do instituto do enriquecimento sem causa.

Com efeito, o conceito de enriquecimento sem causa o seu entendimento consolidada e resultante de evolução doutrinária, assenta na ideia de que a restituição da prestação efectuada depende da incidência dos acontecimentos concretos na causa que presidiu a essa prestação.

Conforme se sustenta no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 17.09.2013, disponível em www.dsgi.pt “De facto, considerando-se que a antecipação argumentativa de que existiu uma causa para a realização da prestação, mas que esta se não verificou – rectius, que já não se verificava ou que se frustrou –, desencadeará, se provada, a obrigação de restituir o enriquecimento, por verificação da facti species interpretativa do artigo 473º do CC, já o mesmo não sucede quando a ausência dessa causa, e é o que aqui se passa, decorre de um non liquet da parte sobre a qual recai o ónus da alegação e da demonstração da existência dessa mesma causa. Neste último caso, a consequência de não se provar (ou de não se ter alegado) a causa de uma prestação não é a restituição desta por falta de causa, será, em princípio, no quadro da já mencionada “teoria das normas” (v. nota 7 supra), o accionar das chamadas “regras de decisão” – no caso, os artigos 342º, nº 1 e 516º, respectivamente do CC e CPC – próprias desse non liquet”.

Ora, no caso concreto, os AA. alegaram expressamente que a causa para a prestação foi a existência de um contrato de mútuo, causa essa que não provou. E não provando tal causa, seria sempre indiferente se os RR. provassem ou não a sua tese (para efeitos da acção principal), “porque a regra de decisão aplicável, o artigo 342º, nº 1 do CC, postula, face à incerteza, a decisão contrária àquele que invocou um determinado direito (aqui o direito a reaver, por via da nulidade do mútuo, o que entregou aos demandados) e não alcançou a prova dos factos constitutivos desse direito invocado” (acórdão supra citado).

Com efeito, o instituto de enriquecimento sem causa pressupõe a prova da existência de uma causa justificativa para a deslocação patrimonial do sujeito A. para o sujeito B., sendo que a obrigação de restituir assenta na efectiva inexistência, não verificação ou posterior desaparecimento da concreta “causa justificativa” que presidiu a essa prestação.

Ora, no caso concreto os AA. falharam em provar a sua tese da celebração do contrato mútuo e portanto falharam na prova da causa de atribuição e na sua afinal inexistência, não verificação ou desaparecimento.

Relembre-se que os AA. desenharam a relação material controvertida sempre no pressuposto da existência de um contrato de mútuo nunca aventando outra hipótese que não essa, mesmo quando, subsidiariamente se escudam no instituto do enriquecimento sem causa. Pura e simplesmente, os AA. sustentam que empresaram aquela quantia aos RR. e que se tal empréstimo for considerado nulo por vício de forma, que seja aquela quantia restituída por força da nulidade e, se assim não se entender, que, o seja ao abrigo do enriquecimento sem causa.

Ora, numa situação destas, a invocação de ter existido um mútuo sem que se tenha logrado prová-lo implica a absolvição do pedido, não fazendo sentido determinar a restituição do que foi prestado aos alegados mutuários com base no suposto enriquecimento sem causa destes.»

Na verdade, e tal como se desenvolve no Acórdão desta Relação de 04.06.2009 (com resenha jurisprudencial), a resposta negativa a um ponto da matéria de facto apenas significa que essa matéria ficou por provar e não que  tenha ficado provado o facto contrário. Assim, por exemplo, se a autora alegou um mútuo, a que o réu contrapôs uma doação, a circunstância de não se ter provado nenhuma das teses em confronto - mas apenas o recebimento das quantias - não acarreta para o «enriquecido» a obrigação de restituição. A formulação do artigo 473º do C.C. e as regras de distribuição do ónus da prova não consentem tal interpretação, pois o legislador não estabeleceu uma presunção de que a causa não existe, quando se verifica o enriquecimento, fazendo impender sobre o réu a prova de que existe uma causa. Não o tendo feito, é incumbência daquele que pretende a restituição provar a ausência de causa, não bastando para o efeito o mero decaimento na prova do contrato invocado.

Na situação vertente, não se provou nenhuma das versões alegadas, quer pelos autores na petição, como pelos réus na reconvenção. E também não se demonstrou a «ausência de causa justificativa», para a deslocação patrimonial ocorrida. Assim sendo, falece a pretensão dos autores e apelantes em obter a condenação dos réus na restituição das quantias monetárias.
*

DECISÃO.

Em face do exposto, acorda-se em rectificar o ponto 4 dos factos provados no sentido pretendido, julgar a apelação improcedente e manter a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante.



Lisboa, 15.02.2018,



(Ana Paula Albarran Carvalho)
(Maria Manuela Gomes)
(Teresa Soares)