Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5986/18.6T8LRS.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANO PATRIMONIAL FUTURO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I–Na decisão da matéria de facto, ante as perícias realizadas, o juiz poderá, no confronto com outros meios de prova, atribuir-lhes uma maior credibilidade, face à especial preparação técnica ou científica dos peritos, sendo certo que se existirem razões para desvalorizar a prova pericial, o tribunal também é livre de o fazer, justificando isso mesmo.

II–Existindo prova testemunhal convincente nesse sentido, deve ser dado como provado que a Autora necessitará no futuro de ajuda médica e medicamentosa e terá ainda de realizar sessões anuais de fisioterapia, como forma de atenuar os fenómenos dolorosos e influenciar o prognóstico positivamente e evitar o agravamento futuro, pese embora nada conste nesse sentido nos relatórios periciais, já que o quesito que parecia aludir a tal facto e ao qual foi respondido “prejudicado” se reportava à necessidade de acompanhamento em “consequência das intervenções cirúrgicas a realizar”, que os peritos consideraram não serem previsíveis.

III–Considerando que a Autora seguia como passageira no veículo sinistrado - que circulava numa autoestrada e cujo condutor, sob o efeito de substâncias psicotrópicas, conduzia a uma velocidade consideravelmente superior ao limite máximo permitido -, tendo sido projetada na sequência do despiste ocorrido, quando, momentos antes, havia retirado o cinto de segurança para aceder ao seu telemóvel, é de equacionar a aplicação do disposto no art. 570.º, n.º 1, do CC, não se mostrando a conduta daquela justificada ou desculpável.

IV–Ao invés, tendo a Autora perfeita consciência de que seguia sem cinto (por ela própria o ter retirado), o que fez sem nenhum sentido de oportunidade e por um motivo que não pode deixar de ser considerado fútil, incorreu na prática de uma contraordenação estradal, prevista e punida, pelo art. 82.º, n.ºs 1 e 6, do Código da Estrada, na versão em vigor, sendo ajustado reduzir o montante indemnizatório total, a pagar pela Ré seguradora, em 25%.

V–Provando-se que a Autora, com 23 anos de idade, ficou afetada de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14,8 pontos, sendo as lesões sofridas e as sequelas que apresenta compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicando esforços suplementares, é equitativamente ajustado quantificar o dano biológico em 50.000 €, fixando-se a respetiva parcela indemnizatória, face à aludida redução (25%), em 37.500 €.

VI–Não resultando dos factos provados como previsível que as sequelas descritas e os “esforços acrescidos” terão uma repercussão permanente na capacidade de a Autora exercer a sua profissão habitual, não se prefigurando como provável no contexto fáctico apurado uma futura perda de rendimentos, não há lugar à atribuição de verba indemnizatória a título de danos patrimoniais futuros decorrentes do referido défice funcional permanente.

VII–Mostra-se equitativamente adequada e conforme aos padrões jurisprudenciais a quantificação dos danos não patrimoniais em 30.000 € (fixando-se em 22.500,00 € a respetiva parcela indemnizatória, atenta a aludida redução de 25%), considerando as múltiplas lesões sofridas e os tratamentos a que a Autora foi sujeita, com o quantum doloris de grau 5 numa escala crescente de 7, e o dano estético que as cicatrizes deixaram (grau 3), as dores que mantem, sobretudo em certas atividades, como dançar ou a permanência de longos períodos em pé.

VIII–Face ao facto referido em II, com a necessidade de consultas médicas da especialidade (por certo de ortopedia e/ou fisiatria), de fisioterapia e de medicação, é de prever que será necessário à Autora suportar as respetivas despesas, sendo um facto notório que não está assegurada, no nosso país, salvo em casos especiais, o acesso gratuito a cuidados médicos e medicamentosos. Logo, estamos perante um dano futuro previsível, mas indeterminável, cabendo à Autora em ulterior incidente de liquidação alegar e provar os factos indispensáveis a esse respeito (cf. artigos 564.º, n.º 2, do CC e 358.º, n.º 2, do CPC).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados


I–RELATÓRIO:



MS interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou parcialmente procedente a ação declarativa de condenação que, sob a forma de processo comum, intentou contra “N Seguros”, entretanto incorporada na LUSITANIA, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A..

Na Petição Inicial, apresentada em 04-06-2018, a Autora pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de 211.900,25 €, acrescida de juros de mora, “em dobro à taxa aplicável”, vencidos desde a data da citação e vincendos sobre a quantia de 7.000 € e o montante que vier a ser fixado na decisão judicial, relegando-se para liquidação de sentença o valor que futuramente terá de custear “com intervenções cirúrgicas, com acompanhamento/tratamento médico, ajuda medicamentosa, nomeadamente medicação analgésica, sessões de fisioterapia, até ao final da vida, bem como os danos patrimoniais e não patrimoniais em consequência das intervenções cirúrgicas”.

Alegou, para tanto e em síntese, que:
No dia 24-12-2015, pelas 3h20m, ao Km 0,1 da Auto estrada A1, quando seguia transportada no veículo ligeiro de passageiros ...-...-..., propriedade de JO e conduzido por DO, ocorreu um acidente de viação que se deveu a culpa deste último porque, seguindo em excesso de velocidade, perdeu o controlo do veículo, que entrou em despiste, embateu num muro e capotou várias vezes;
A Autora foi projetada do veículo e sofreu múltiplas lesões que lhe determinaram internamento hospitalar, sujeição a intervenções cirúrgicas, longo e difícil período de recuperação, nomeadamente com recurso a dolorosos tratamentos de fisioterapia, esteve limitada na sua autonomia e por isso careceu de auxílio de terceira pessoa;
A Autora ficou com sequelas, concretamente uma incapacidade permanente geral de 23 pontos, que implica esforços acrescidos no exercício da sua atividade profissional e provável dano futuro, bem como um dano biológico a ressarcir, este no valor de 30.000 €;
A Autora sofreu dores (quantum doloris de grau 6), angústias e padecimentos de várias índoles, ainda dano estético (grau 3), prejuízo de afirmação pessoal (grau 3) e prejuízo sexual (grau 2), justificando estes danos não patrimoniais uma indemnização no valor de 50.000 €;
A Autora deixou de receber o salário que perspetivara auferir (no valor de 700 € mensais), estimando, em virtude da IPP de 23 pontos de que ficou portadora e dada a idade que então tinha e a idade média de vida ativa das mulheres (82 anos), o dano patrimonial futuro em 118.875 €;
Os períodos de incapacidade para o trabalho que para si resultaram do acidente acarretaram-lhe danos patrimoniais relacionados com a impossibilidade de abrir ao público um estabelecimento de café que instalara e cuja abertura estava prevista para poucos dias depois do acidente, obrigando-a a despesas com o salário da mãe (no total de 3.600 €), que no seu lugar se viu na contingência de abrir o estabelecimento;
Mais teve variadas despesas, nomeadamente com a contratação de pessoa que a auxiliou nas tarefas básicas do dia-a-dia (durante 6 meses a 500 €/mês, no total de 3.000 €), bem como em deslocações para consultas e tratamentos (37,05 € em táxi, 70,03 € em combustível de veículos de amigos e 25,00 € em viatura dos bombeiros), medicamentos (135,10 €), cadeira de rodas e andarilho (76,91 €), canadianas (23,73 €), fisioterapia (5.948 € em clínica), roupa para substituir a que ficou danificada (52,95 €), um tapete para a banheira (5,00 €), fraldas (11,99 €), equipamento para a prática de fisioterapia e hidroginástica (39,49 €);
Acresce o dano futuro atinente a novas intervenções cirúrgicas de que necessitará, as quais importarão períodos de incapacidade total para o trabalho com inerentes perdas salariais, bem como tratamentos subsequentes, incluindo fisioterapia, assistência médica de várias especialidades e ajudas medicamentosas;
À data do acidente, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo …-…-… encontrava-se transferida para a Ré seguradora, cujos serviços clínicos acompanharam a Autora, tendo-lhe dado alta clínica em 27-02-2017;
Em 27-03-2018, a Ré apresentou como proposta de ressarcimento dos danos a quantia de 7.000,00 €, que a Autora entende ser insuficiente em vista dos danos por si sofridos, pelo que é aplicável a taxa de juros no dobro da taxa devida para o caso, por força do estabelecido no art. 38.º, n.º 3, do DL n.º 291/2007.

A Ré apresentou Contestação, em que se defendeu, alegando, em síntese, que:
Apesar do contributo do condutor do veículo seguro para a ocorrência do acidente, a maior parte das lesões e sequelas sofridas pela Autora foram resultado da projeção desta para o exterior do veículo por a mesma não se fazer transportar com o cinto de segurança colocado, tanto mais que o único ocupante que seguia com esse cinto colocado apenas sofreu ferimentos ligeiros, enquanto os ocupantes do veículo que, como a Autora, não usavam cinto de segurança foram projetados para o exterior da viatura em despiste e capotamento;
A Ré garantiu à Autora todos os tratamentos necessários à sua cura clínica, tendo assumido o pagamento integral do acompanhamento clínico e despesas relativas à sua reabilitação;
Considerando que a Autora, com a sua conduta omissiva, contribuiu decisivamente para o agravamento das lesões sofridas com o acidente e respetivas sequelas em percentagem correspondente a 75%, a Ré assumiu o pagamento correspondente a 25% da indemnização final;
Não se verificaram todos os factos descritos, em particular no tocante aos danos invocados, sendo ainda excessivos os montantes peticionados;
A Ré respeitou as regras de conduta impostas às Seguradoras na regularização de sinistros, não sendo devidos juros ao dobro da taxa legalmente aplicável.
Realizou-se audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova.
Foi realizada uma primeira perícia pelo INML (cf. despacho de 03-04-2019 e relatórios juntos aos autos em 09-07-2019 e 30-07-2019) e, no seguimento do requerido pela Autora, uma segunda perícia médico-legal (cf. despacho de 09-10-2019), esta última, também pelo INML, conforme relatório junto aos autos a 10-07-2020, mais precisamente os dois relatórios da perícia de avaliação do dano corporal elaborados pelo Dr. PV (o último em junho de 2020) e o relatório da perícia psicológica elaborado pelo Dr. RC (psicólogo, em maio de 2020).

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, em quatro sessões, no decurso da qual foram prestados esclarecimentos pelo Sr. Perito médico, bem como depoimentos testemunhais e foi ainda ouvida a Autora em declarações de parte.

Após, foi proferida a Sentença (recorrida), cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, o Tribunal julga a acção parcialmente procedente e, em consequência, tendo em consideração a concorrência de facto culposo da A. para a produção e/ou agravamento dos danos, condena a R. a pagar à A.:
- a quantia de € 3.095,60, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros á taxa civil desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- a quantia de € 12.500,00, a título de indemnização pelo dano biológico, acrescida de juros á taxa civil desde a prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento;
- a quantia de € 15.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros á taxa civil desde a prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento;
- sanção acobertada pelo DL nº 291/2007, correspondente aos juros à taxa civil sobre € 5.500,00 desde a citação até à data da presente sentença.
O Tribunal absolve a R. do demais peticionado.
Custas por A. e R. na proporção de 85,8% para a A. e de 14,5% para a R..
Registe e notifique.”

Inconformada com esta decisão, veio a Autora interpor recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões (que reproduzimos, salvo destaques, sendo nosso o sublinhado):
1ª- A ora recorrente não pode conformar-se com a douta decisão proferida, quer quanto à divisão de responsabilidade na proporção de metade, ou seja, com a imputação de 50% de culpa, pelos danos por si sofridos, nem aceitar os danos rejeitados, quer os próprios montantes indemnizatórios fixados e danos considerados.
2ª- Considera que face a toda a prova produzida, documental, pericial e testemunhal, que a decisão de mérito, deve apontar antes, para a responsabilidade exclusiva do condutor do veículo automóvel seguro na recorrida;
3ª-E que os montantes indemnizatórios deverão quer, contemplar danos que não foram devidamente valorizados, quer o próprio quantum ser substancialmente aumentado, face às circunstâncias do caso concreto, equitativamente e tendo por base também o princípio da igualdade constitucionalmente previsto.
4ª- Tendo em conta a matéria de facto dada como assente nos pontos 1 a 16 e 101 a 103 que aqui se dá por integralmente reproduzida, e dada como assente pelo Tribunal “a quo”, fica claro que o acidente de viação em causa nos autos, resultou única e exclusivamente da conclusão que aliás é expressamente reconhecida na douta sentença, a pag..46 ao referir que: “De quanto antecede outra conclusão não é possível se não a de que a exclusiva responsabilidade pela produção do acidente é do condutor do veículo automóvel LI.”
5ª- Todavia, a decisão de mérito em causa, com base em alegadas presunções judiciais (pag.64 e 65) “(...) e ao conhecimento científico, que é do domínio público, que subjaz à obrigatoriedade do cinto de segurança , afirmar com segurança que na dinâmica do acidente a A. foi projectada para fora da viatura porque não tinha cinto de segurança colocado, e em resultado dessa projeção embateu no solo e sofreu múltiplas e graves lesões (...)” (…), acaba por atribuir à lesada, ora recorrente a “(...) redução a metade (...)” dos montantes indemnizatórios que fixou. Ora,
6ª- Não se podem aceitar tais presunções, não só, mas desde logo, atendendo à prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente, por duas testemunhas arroladas pela própria ré, ora recorrida, sendo uma, médico e outra, perito averiguador.

7ª- Ambas as testemunhas, cuja razão de ciência se fundou no seu conhecimento profissional, portanto científico, e longa experiência no âmbito da sinistralidade rodoviária, confirmaram cada uma, na sua respetiva área de especialidade, três questões de suprema importância, a saber:
a)-Que os ocupantes de um veículo, mesmo usando cinto de segurança, podem sofrer a esmagadora maioria das lesões sofridas pela recorrente;
b)- Que é praticamente impossível estabelecer o nexo de causalidade entre a projeção do veículo e a gravidade das lesões sofridas e ainda;
c)- Que por vezes há acidentes em que o uso do cinto é a causa das lesões ou mesmo da morte, conforme resulta evidente dos seus depoimentos, supra transcritos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
8ª- O Dr. NFR, testemunha da Ré, Médico, com depoimento registado na gravação áudio 20210914152619_5836423_2871206 (a 14.09.2021-14:48) que se dá por reproduzido e o segundo depoimento da testemunha Sr. RM, Perito, com gravação áudio registada sob o nº 20210914154816_5836423_2871207 (14.09.2121- 14:48).
9ª- Estes depoimentos, nomeadamente através dos excertos transcritos que aqui se dão por reproduzido formam a convicção e prova segura de que no caso concreto, e em tantos outros, inclusive do próprio acidente pessoal que a última testemunha relatou espontaneamente, não ser certo, muito menos seguro, que o uso do cinto de segurança, evite lesões corporais ou morte e que a projeção seja a causadora das lesões corporais ou as agrave.
10ª- Assim e ao contrário da fundamentação utilizada pela douta sentença “a quo” ficou provado à saciedade, que no caso concreto, tendo em conta a dinâmica do acidente, o grau de destruição do veículo, do capotamento pelo menos por cerca de 80 metros de distância, era certo e seguro que os ocupantes, com cinto ou sem cinto, sofreriam lesões graves.
11ª- Prova que afastou qualquer evidência quanto à existência de nexo de causalidade entre a momentânea ausência de uso do cinto de segurança, por parte da ora recorrente e as lesões que veio a sofrer em consequência do acidente, ónus de prova que incumbia á recorrida, tendo sido antes produzida prova em contrário favorável á ora recorrente.
12ª- Com efeito, o facto assente no ponto 101. que a A. “Aquando do acidente (...) seguia sem cinto de segurança colocado, por o ter tirado para aceder ao telemóvel” significa que a recorrente colocou o cinto de segurança quando entrou no veículo e é só no instante descrito que o retira, por uma questão de necessidade atendível, pelo que mesmo a eventual ilicitude abstrata prevista no artº 82º nº 1 do Cód. Estrada, deve ser considerada justificada e em consequência, afastada a ilicitude, não devendo merecer qualquer censura, muito menos, na medida em que foi considerada pela sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, que se revela antes, injustificada e profundamente injusta.
13ª-Paralelamente, será de ter presente igualmente os pressupostos, quer do regime do seguro obrigatório, mas mais ainda, a ratio das Diretivas Comunitárias em matéria Automóvel, nomeadamente a 5ª Diretiva Automóvel, transposta para ordenamento jurídico nacional, sempre no sentido do reforço do sistema de proteção aos lesados por acidentes de viação.
14ª-Com a transposição da Directiva nº 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio visou proceder-se à atualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de proteção dos lesados por acidentes de viação, baseado nesse seguro.
15ª-Assim, desde logo o risco derivado da circulação automóvel, supera eventuais circunstâncias respeitantes aos ocupantes, sempre no sentido de não os desproteger face á objetivação de um acidente rodoviário e da imprescindível indemnização em caso de lesões corporais.
16ª-Mesmo quando se estabelece o nexo entre a falta de cinto de segurança e as lesões corporais, a ponderação dessa circunstância é sempre simbólica, não podendo, nem devendo apontar para uma desproporcionalidade entre a causa do acidente e as lesões, o que, repita-se não configura de todo o caso dos autos.

17ª-Mas, mesmo para a primeira hipótese, o Ac. da Rel. Porto, proferido no processo nº 13/3 T2AVR.P1, de 14/03/2016, com o nº documento “RP20160314424 veio entender o seguinte:
“(...) III- Se no momento do sinistro o lesado não levava cinto de segurança colocado, em consequência disso, foi projetado do veículo sofrendo lesões graves que lhe provocaram a morte, deve-lhe ser atribuída a percentagem de 10% de culpa para o agravamento dos danos nos termos estatuídos no artigo 570º, nº 1 do CCivil (...)”
18ª-Ora no caso dos autos, tendo havido produção de prova que permite concluir pela possibilidade das lesões corporais se produzirem mesmo não usando cinto de segurança, bem como, a impossibilidade de provar o nexo de causalidade e eventual agravamento das mesmas, após a projeção da lesada do veículo, deve ser revogada em absoluto, a decisão de reduzir em  metade”  a indemnização devida á ora recorrente e imputar a responsabilidade na totalidade sem limitações indemnizatórios a cargo da recorrida.
19ª-Em conformidade deve ser considerada toda a prova produzida, que no caso, foi completamente ignorada pelo Tribunal “a quo”.
20ª-O segundo ponto de discórdia da ora recorrente perante a sentença proferida reporta a alguns dos danos por si invocados e dados por não provados pelo Tribunal “a quo”, nomeadamente os indicados nos pontos A, B, C, D, E, F, J, K, L, M, N, O, P, Q, R e S.
21ª-No que respeita aos pontos A a F inclusive, que se consideram interdependentes e interligados, apela-se desde logo à profícua documentação clínica que atesta, sem margem para dúvidas, a gravidade das lesões corporais sofridas pela recorrente e o longo período de recuperação que enfrentou, com dependência de terceiros.
22ª- Veja-se nesse sentido, nos relatórios do INML, que no parâmetro – “Défice Funcional Temporário Total “conceito médico correspondente aos “períodos de internamento e/ ou de repouso absoluto” (…), foram pericialmente fixados “216 dias”.
23ª-Esta conclusão significa com toda a clareza, que para além do período de internamento, para iniciar a posterior recuperação, a recorrente atravessou longos períodos de repouso absoluto, inclusive com vista á devida recuperação das multifracturas que sofreu. Assim sendo, não se aceita, por redutor e enganador, o fundamento vertido na douta sentença, sentença, para não os considerar.
24ª-Acresce que tal prova pericial foi corroborada e complementada, como se disse, pela prova testemunhal, destacando-se entre outros, quer quanto a esta especifica matéria, quer à quanto à restante selecionada os depoimentos das testemunhas - MS; PR; JC; CS; VS; GC, os esclarecimentos do senhor perito médico e ainda as declarações de parte da A., ora recorrente.
25ª- A ora recorrente dá aqui por integralmente reproduzidos os depoimentos supra enunciados e supratranscritos e conclui no sentido de deverem ser dados como provados os pontos acima enunciados. De facto de toda a prova produzida nos autos, aditada à prova testemunhal supra evidenciada, resulta que ao contrário da valoração feita pelo Tribunal “a quo”, deveriam os pontos A, B, C, D, E, J, K, L, M, N, O até “a  solicitação desta”, P, primeira parte, Q, R, ser claramente dados como provados e matéria assente, o que ora se requer, com todas as devidas e legais consequências.
26ª-Mas quanto a esta questão há ainda a considerar as próprias declarações de parte da A. ora recorrente, que no seu modesto entender, permitem, igualmente sem dúvida, dar como provada a restante matéria. Também quanto ao seu depoimento, gravação áudio registada sob o nº20211029143859_5836423_2871206 se requer a V.Exas. a audição integral, quer para aferir da forma genuína e sincera com que declarou, quer por todo o depoimento ser relevante para a devida valoração do mesmo e prova do peticionado.
27ª-Conclui-se das declarações de parte da A. que as mesmas, permitem considerar provados para além dos pontos e matéria já referidos anteriormente, também os pontos N e S, com todas as devidas e legais consequências, nomeadamente a valoração e quantificação dos respetivos danos, quer de natureza patrimonial quer não patrimonial.
28ª-Quanto ao valor concreto dos danos emergentes da recorrente decorrentes do longo período de incapacidade temporária que absoluta quer relativa, há ainda que relembrar que apesar de poder não ter sido feita prova do valor exato do dano patrimonial, é certo que foram juntos aos autos os seus recibos de vencimento anteriores ao acidente relativos ao período de Setembro de 2013 a Outubro de 2015, bem como, as suas declarações de rendimentos para efeitos de IRS de 2016 e 2017, por requerimento com a referencia 39509808 de 20 de julho de 2021.
29ª-Tal prova documental, permite apurar e concluir objetivamente, quer o rendimento auferido pela recorrente antes do acidente, quer a sua inscrição fiscal, na categoria B destinada a “Profissionais, Comerciais e Industriais”, facto que se articula com toda a prova testemunhal, quanto ao projeto de montar o seu negócio em parceria com a mãe, no caso o café, que a mãe chegou a abrir, mas que a recorrente infelizmente ficou impedida de acompanhar.
30ª-Tal prova documental permite ainda ter a base de cálculo para a fixação dos danos patrimoniais futuros devidos à recorrente devendo tal prova ser considerada em toda a sua extensão e da mesma derivar todas as legais consequências.
31º-O terceiro grande ponto de discórdia da recorrente, é exatamente não aceitar a decisão da incapacidade, ou défice funcional permanente da qual a recorrente ficou vitaliciamente afetada logo aos 23 anos, de que “(...) não importa no caso qualquer perca de capacidade de ganho, devendo essa pretensão ser indeferida (...)”, decisão que não se pode aceitar.
32ª-A recorrente dá aqui por integralmente reproduzidos os pontos 18. a 98. dados como assentes pelo douto Tribunal “a quo” e considera que atento todo o acervo respetivo deve considerar-se que no caso concreto, em função do grau de incapacidade permanente fixado à recorrente, atualmente denominado défice permanente da Integridade físico-psíquicas de 14,8 pontos, com fixação expressa de implicar esforços suplementares para o exercício da atividade habitual é evidente que tal dano implica repercussão relevante na perda de capacidade de ganho que deve ser devidamente indemnizado.
33ª-Para além dos vários relatórios periciais e pareceres médicos das várias especialidades, fica provado que a recorrente, para além de tudo o que explicaram os profissionais de saúde, atestaram as testemunhas e ela própria, tem dores recorrentemente.
34ª-Basta então qualquer pessoa equacionar a hipótese de se trabalhar diariamente com dores, para se concluir mesmo de acordo com o critério do bonus pater familiae que a força de trabalho da recorrente em toda a sua potencialidade, vitalidade e eficiência, está obviamente comprometida à partida.
35ª-As suas hipóteses de concorrer no mercado de trabalho estão diminuídas. O seu sonho inicial de montar um negócio na restauração já teve de ficar para trás, por ter sido evidente a impossibilidade de permanecer nesse ramo de atividade, no qual já tinha formação e de que tanto gostava, portanto nem sequer é uma hipótese, é um facto!
36ª-Para realizar as mesmas tarefas o esforço contínuo que tem de aplicar para o mesmo resultado, é difícil, martirizante, penoso, angustiante, stressante, pelo que não há, como não considerar que se repercute efetivamente na sua capacidade de ganho e se reflete objetivamente no valor dos rendimentos que passou a poder conquistar com o seu trabalho.

37ª-A jurisprudência mais recente, vide a título de exemplo o douto Ac. STJ de 19.09.2019, P.2706/17 considera nomeadamente o seguinte:
“(...) Na jurisprudência, máxime do Supremo Tribunal de Justiça, está consolidado entendimento de que a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz essa incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e não patrimonial. E tem sido considerado que, no que aos primeiros respeita, os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem nula lesão do direto fundamental á saúde e à integridade física: por isso, não deve ser arbitrada uma indemnização que tenha em conta apenas aquela redução.”

38ª-E acrescenta o douto Ac. do S.T.J. de 26.01.2017. P.1862/13:
“Havendo uma incapacidade permanente, mesmo sem rebate profissional, sempre dele resultará uma afectação da dimensão anátomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível das actividades laborais, recreativas, sexuais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução de tais tarefas que de futuro irá levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo. E é neste agravamento de penosidade que radica o arbitramento de uma indemnização.”

39ª-Referenciar ainda o douto Ac. STJ de 22.06.2017, P.104/10.1, que expressamente considera que:
“A atribuição de indemnização pelo dano biológico ao substitui nem impede a atribuição pelo dano patrimonial futuro que pondere a incapacidade funcional do sinistrado”.
40ª-Assim sendo, tendo e conta igualmente o disposto no artº 8 nº 3 do Cod.  Civil, o princípio constitucional da igualdade, e ao contrário do decidido, considera a ora recorrente ter direito a ser ressarcida do evidente dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade da qual é portadora, aliás, com evidente previsão de agravamento com o decurso do tempo.
41ª-Considerando o défice de 14,8 pontos que acabou por ser fixado, os 23 anos de idade á data do acidente, um salário médio mensal que modestamente se calcula nos 700,00€ mensais, a idade média de via ativa das mulheres nos 82 anos, deve ser reconhecida à recorrente uma indemnização a este título no valor de € 71.723,45 (setenta e um mil setecentos e vinte e três euros e quarenta e cinco cêntimos).
42ª- No sentido de reforçar este direito, retomando a ratio da 5ª Diretiva Automóvel releva especialmente a actualização dos capitais mínimos do seguro obrigatório, através de um processo faseado que, atenta a realidade nacional, se pretendeu suave e progressivo, quer seja por um período de transição de cinco anos, quer pelos limites máximos de capital por sinistro. “(Preâmbulo do Dec. Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto) (…).
43ª-A atualização dos capitais mínimos obrigatórios de responsabilidade civil no seguro automóvel em Portugal, tem vindo a ocorrer desde 20.10.2007, sendo que atualmente e desde 01.06.2017, em virtude do disposto no artº 12º do Dec. Lei 291/ 2007 de 21 de agosto que estabelece a respetiva revisão de cinco em cinco anos a partir de 01.06.20.12, sob proposta da Comissão Europeia, em função do índice europeu de preços no consumidor, é de 6 070 000,00€ para acidentes com Danos Corporais e 1 220 000 para Danos Materiais.
44ª-No seculo XXI é já altura de prover condignamente pelos direitos dos lesados, motivo da natureza obrigatória do seguro e dos limites mínimos. Numa sociedade em mudança vertiginosa, em que os paradigmas, nomeadamente do mercado de emprego são hoje altamente competitivos, incertos e efémeros.
45ª-O ano de 2020 ficará marcado historicamente pela Pandemia do COVID 19 que veio acrescentar e acelerar fatores de incerteza enormes a nível de emprego, económico e financeiro, quer a nível nacional, quer a nível mundial, reforçando o medo e profundo receio em relação ao futuro que legitimamente se sente.
46ª-Se assim é para todos nós, mais ainda, para quem se viu antecipadamente coartado nas suas aptidões e capacidades físicas, emocionais e psicológicas.
47ª-Urge evoluir e de uma vez por todas considerar, sem receios, que as indemnizações devem ser consentâneas com as contingências da vida atual e com os limites mínimos dos capitais dos contratos de seguro obrigatórios, senão qual a finalidade da progressiva atualização? Seguramente para indemnizar convenientemente os lesados, vítimas dos mesmos, de modo que prossigam com a sua vida, com o mínimo de segurança, conforto e ajuda financeira que lhes permita enfrentar o futuro e as adversidades normais da vida.
48ª-O direito à integridade física, o direito á saúde, o direito á realização na vida profissional e pessoal, lúdica, artística, intelectual, enfim o direito a ser feliz, deve ser a razão de ser fundamental na fixação de uma indemnização.

49ª-No Ac. Relação de Lisboa, de 14.07.2018, no processo nº 1463/13.9TVLSB.L1 foram, entre outras, feitas as seguintes considerações:
“(...) E já começa a ser tempo de abandonar de vez posturas miserabilistas o ressarcimento dos danos e natureza corporal das vítimas de acidentes que não foram causados pelos próprios.
(...) Deste modo, o que surpreende é a tão diminuta valoração que é feita da saúde mental e até da autoestima dos seres humanos a até da sua vaidade pessoal – o direito que cada um tem a sentir-se bem na sua própria pele e a gostar de ter de si próprio uma boa imagem e de transmitir para os outros uma boa imagem pública. (...) cada ser humano é, insofismavelmente e sem margem para qualquer dúvida, uma criatura única e irrepetível.
E essa realidade indesmentível tem que ter concretização na vida de todos os dias em sociedade.
Logo tem de o ser nas decisões judiciais. (...)”
50ª-A reflexão e abordagem supra expendidas, servem igualmente para a ponderação da questão seguinte, da qual a ora recorrente igualmente discorda da douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo” e que respeita aos reduzidos montantes fixados, quer a título de dano biológico, quer a título dos danos não patrimoniais.
51ª-A ora recorrente continua a defender a justeza e adequação do pedido que fez a propósito do dano biológico autonomamente considerado no valor de € 30.000,00.

52ª-A título comparativo, veja-se a este propósito o recente Ac. Rel. Lisboa, de 27.01.2022 /P. 21292/15.5, que para um jovem de 17 anos, estudante com uma incapacidade de 23 ,2 pontos que fixou a seguinte indemnização:
“(...) I.-A responsabilidade civil extracontratual pressupõe a ocorrência de um facto voluntário, ilícito, culposo e danoso.
II.-O dano biológico expressa a ofensa à integridade físico-psíquica de uma pessoa, correspondendo ao défice funcional desta, o que se traduz em perdas de natureza patrimonial e de índole não patrimonial.
III.-Na estipulação do respetivo quantum indemnizatório importa seguir juízos de equidade, levando em conta o decidido pelos Tribunais Superiores em situações similares.
IV.-In casu, sendo o lesado um estudante de 17 anos e tendo ele ficado com uma IP de 23,266 pontos e tido dores de grau 5, dano estético de grau 3 e dano em atividades desportivas e de lazer de grau 3, afigura-se que o mesmo deve ser indemnizado nas quantias de €90.000,00 e €40.000,00 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, respetivamente. (... )”.
53ª-E faz ainda referência ainda a inúmeras decisões:
“(...) No que respeita a situações similares, na jurisprudência do nosso Supremo Tribunal apontam-se os seguintes casos, todos in http://www.dgsi.pt/jstj:
Acórdão de 04.06.2015, Processo n.º 1166/10.7TBVCD, P1.S1, lesada de 18 anos, com IP de 16,9 pontos, sujeita a tratamentos médicos, intervenções e internamentos por período de 4 anos, com repercussões estéticas, indemnização de €40.000,00,
Acórdão de 14.12.2017, Processo n.º 589/13.4TBFLG.P1.S1, lesada de 34 anos de idade, com IP de 20 pontos, sujeita a diversas intervenções cirúrgicas, um dano estético de grau 3, um quantum doloris de grau 5 e a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 3 (em escalas crescentes até 7), indemnização de €30.000,00,
Acórdão de 18.10.2018, Processo n.º 3643/13.9TBSTB.E1.S1, lesada de 29 anos, com IP de 26,698 pontos, um período de défice funcional temporário total de 30 dias, um período de défice funcional temporário parcial de 91 dias, um quantum doloris fixável no grau 6/7, um dano estético permanente fixável no grau 5/7 e uma repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 4/7, indemnização de €40.000,00,
Acórdão de 30.05.2019, Processo n.º 3710/12.6TJVNF.G1.S1, lesada de 17 anos, com IP de 14 pontos, dores de grau 5 numa escala de 1 a 7, cicatrizes que determinam dano estético de grau 3 numa escala de 1 a 7 e repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 1 numa escala de 1 a 7, indemnização de €25.000,00, (...)”.

54ª-E ainda, referenciar o Ac. Rel. Lisboa de 19.05.2020, Proc. nº 17598/16.4LSB.L1, 7ª secção, para lesado com um 1 ponto, por fratura do pé, foi fixada indemnização de danos não patrimoniais em 20.000,00€.
55ª-Atento o exposto e tendo sempre presente toda a matéria de facto dada como assente, todo o sofrimento a vários níveis passado, presente e futuro, considera igualmente a recorrente ser de fixar a título de danos não patrimoniais a peticionada quantia de € 50.000,00 por ser justa e adequada às circunstâncias do caso concreto.
56ª-Por último, pugna a ora recorrente pela condenação da recorrida nos danos futuros, decorrentes do agravamento do seu estado de saúde e todos os demais danos daí decorrentes a liquidar em execução de sentença.
57ª-De facto, da reanálise toda a prova, em especial, a pericial e testemunhal dos profissionais de saúde ouvidos, resulta evidente, que  a recorrente verá o seu estado de saúde agravar-se no futuro, terá a quase certa necessidade de intervenção a nível da anca, devido ao desgaste acelerado do colo do fémur, desenvolvimento de artroses precoces, dificuldades agravadas na hipótese de gravidez, constante necessidade de medicação analgésica, necessidade imperiosa de fisioterapia regular, a fim de tentar retardar tal degradação precoce do seu estado de saúde...enfim um inúmero leque de necessidades e danos quer patrimoniais quer não patrimoniais claramente previsíveis e que urge acautelar, sob pena da indemnização ser parcial e incompleta.
58ª-Visando a obrigação de indemnizar a reparação integral dos danos, devem também estes danos futuros, por previsíveis ser devidamente garantidos, mediante a condenação proposta, a liquidar em execução de sentença, nos termos do disposto no nº 2 do artº 564 do Cod. Civil que expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
59ª-Considera efetivamente a ora recorrente, que no âmbito da livre apreciação da prova, não será argumento para decidir em contrário, não terem sido previstos no relatório pericial do INML, já que, como se viu e decorreu da prova testemunhal, também não foram autonomizados, quer o prejuízo sexual, quer o das atividades desportivas e de lazer e o Exmº Sr. Perito acabou por os admitir em sede de audiência e julgamento no âmbito dos esclarecimentos prestados.
60ª-Mas os depoimentos do Dr. VS e do Dr. GC, supra referenciados, não deixam margem para dúvidas quanto á sua existência e previsibilidade, sendo, portanto, de os considerar e condenar a recorrida em conformidade.
61ª-A sentença, objeto do presente recurso, não fez a correta avaliação e valoração de toda a prova produzida nos autos e violou, nomeadamente o disposto no artº 8º, nº 3 do Cod. Civil, artº 562, artº 564 nºs 1 e 2 todos do Cod, Civil, não tendo aplicação ao caso concreto o disposto no artº 570, nº 1 do mesmo diploma.
62ª-Por todo o exposto, considera-se ser de reanalisar a prova produzida e concluir no sentido supra defendido pela recorrente e em conformidade revogar a sentença proferida substituindo-a por uma decisão de mérito que atribua a totalidade da responsabilidade ao condutor do veículo seguro na recorrida e ainda que,
62ª-Fixe os danos não considerados conforme já peticionado, reveja para valores superiores os montantes indemnizatórios a todos os títulos, quer quanto ao dano biológico, quer quanto aos danos não patrimoniais e,
63ª-Condene a recorrida nos danos futuros decorrentes do previsível agravamento do estado de saúde da recorrida e de todos os danos que derivam de tal realidade, patrimoniais e não patrimoniais a liquidar em execução de sentença.
Termina a Apelante requerendo que seja dado total provimento ao presente recurso e em conformidade revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por decisão que atenda todos os pedidos.

Foi apresentada alegação de resposta, em que a Ré-Apelada defende que seja negado provimento ao recurso, concluindo nos seguintes termos (omitimos algumas passagens que são meras citações e referência a passagens destacadas):

I.– O poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume, nunca, uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
II.– A expressão - “ponto da matéria de facto” - procura acentuar o carácter atomístico, setorial e delimitado que o recurso ou impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em regra deve revestir e, lendo-se as Alegações de Recurso, só se consegue entender a intenção da Recorrente: que o Tribunal da Relação, proceda a novo julgamento e julgue a causa novamente.
III.– “O controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal de Primeira Instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respetiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões expostas, está em melhor posição” (cfr Acórdão da Relação de Coimbra de 25 de maio de 2004; Ac da Relação do Porto de 19 de setembro de 2000; Ac do STJ de 21 de janeiro de 2003 e de 20 de maio de 2010, disponíveis em www.dgsi.pt).

IV.– Na verdade, “(…)” (Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 25 de novembro de 2003, Acórdão de 18 de agosto de 2004, Acórdão do STJ de 06 de junho de 2006 disponíveis em www.dgsi.pt).
V.–A Recorrida conforma-se, com o teor integral da Douta Sentença, nomeadamente, quanto à fundamentação de facto relativa à apreciação ao evento, do valor dos danos, motivação e fundamentação de direito.
VI.–A Autora Recorrente que o acidente de viação em causa nos autos e respetivas consequências, resultou única e exclusivamente da conduta do condutor do veículo seguro na Recorrida e discorda da proporção de responsabilidade que lhe foi atribuída pelo agravamento dos danos (50%), baseando a sua pretensão em excertos de depoimento de duas testemunhas que não presenciaram o acidente, nem estiveram no local imediatamente a seguir ao evento.
VII.–No que diz respeito à dinâmica do acidente, o douto tribunal a quo fundamentou os factos provados (...)
VIII.–A omissão do cinto de segurança por parte da Autora foi preponderante nas lesões e sequelas que veio a padecer.
IX.–Entende a Recorrida que a maioria das lesões e sequelas da Autora ficaram a dever-se ao facto de se fazer transportar, sem a utilização devida do cinto de segurança.
X.–A Autora, pelo seu comportamento omissivo, contribuiu, para o agravamento das suas lesões, sequelas e, consequentemente, danos.
XI.–Só os corpos (3!) que não tinham colocado o cinto de segurança foram projetados para o exterior da viatura, em despiste e capotamento, sofrendo ferimentos graves.
XII.–Estamos perante uma omissão de cuidado imputável à(s) vítima(s), reveladora da inobservância do cuidado e diligencia exigível a uma pessoa medianamente diligente e cuidadosa, colocada na mesma posição.
XIII.–A falta de uso do cinto de segurança, no caso concreto, não é a causa do ato ilícito, mas é um elemento factual preponderante do processo causal danoso.
XIV.–A omissão do cinto de segurança, no caso concreto, tendo em atenção a extensão das lesões e sequelas motivadas pela projeção em movimento do(s) corpo(s) do interior para o exterior da viatura, agravou, decisivamente, o dano causado pelo despiste do veículo seguro.
XV.–Existem estudos científicos sobre o impacto e projeções dos corpos que se fazem transportar sem uso de cinto de segurança, e que demonstram, em caso de capotamento, que as lesões e sequelas físicas são acentuadamente menores havendo utilização de cintos de segurança.
XVI.–Aliás, o caso concreto, é revelador disso mesmo: o ocupante que se fazia transportar com a utilização de cinto de segurança, apesar
do impacto e capotamento do veículo, teve apenas ligeiras lesões e sequelas.
XVII.–E mais, sendo o veículo apenas de duas portas (a porta do condutor e a porta do ocupante da frente) seria muito mais evidente a projeção do ocupante da frente, banco do lado direito (como aconteceu ao condutor) do que a projeção dos ocupantes do banco traseira (que foram projetados pelas janelas).
XVIII.–Os cintos de segurança são um recurso extremamente importante para a segurança do veículo e continuam a ser a ferramenta mais eficaz para prevenir ferimentos graves e projeção dos ocupantes e condutor de um veículo em caso de acidente, para o exterior, o que muitas vezes pode resultar em ferimentos graves (como se veio a constatar) e até mesmo fatais. Aliás, apenas desta forma se justifica a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança.
XIX.–Ora, por análise casuística e comparativa das lesões da Autora e demais intervenientes sem o cinto de segurança e as lesões ligeiras do único ocupante que se fazia transportar com o cinto de segurança, este facto é essencial e determinante. Não se trata de hipótese académica, ou suposição, existe um termo de comparação direto, de alguém interveniente no acidente e que sofreu ferimentos ligeiros. Sendo que a ocupante com ferimentos mais graves, TF, ocupava o lugar imediatamente atrás.
XX.–Ouvida a testemunha Dr. NFR, questionado em abstrato sobre as lesões que o uso do cinto de segurança pode ou não provocar, a testemunha referiu que as lesões se localizariam nas partes do corpo em contacto com o cinto, ou seja, fratura da clavícula (direita ou esquerda, dependendo do lugar do cinto de segurança), costelas, externo, traumatismo da coluna cervical e lombar.
XXI.–Admitiu ser possível fratura do úmero por embate lateral, fratura no tornozelo no caso do a vítima ser condutor (o que não foi o caso). O mesmo não se pode dizer sobre a fratura da sínfise púbica e da articulação sacro-ilíaca, sofrida pela Autora Recorrente que dificilmente seria provocada se a Autora Recorrente se mantivesse no interior do veículo, caso fizesse uso do cinto de segurança.
XXII.–Pelo supra exposto, entende a Recorrida que a decisão do douto tribunal a quo, no que diz respeito à divisão de responsabilidade na proporção 50% para a Recorrida e 50% para a Autora, por aplicação do disposto no art. 570º do Código Civil se deverá manter na íntegra, o que se requer a V. Exas.
XXIII.–Insurge-se a Autora Recorrente quanto aos factos não provados alíneas A, B, C, D, E, F, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, para o efeito sustenta a sua posição nas testemunhas que arrolou (familiares próximos, amiga JC fisioterapeuta VS e Dr. GC, autor de um dos Relatórios de Avaliação do Dano elaborado a título particular, a pedido da Autora e totalmente desfasado dos Relatórios Periciais elaborados pelo INML).
XXIV.–O douto tribunal a quo justificou amplamente na sentença a valoração que atribuiu ao depoimento dos familiares próximos da Autora: mãe – CS, Pai - MS e Padrasto- PR e a amiga JC. Foram depoimentos emotivos, por vezes exagerados face à proximidade com a Autora, muitas das vezes contraditórios entre si, ou sem correspondência com a demais prova, nomeadamente, a prova documental (ex. nota de alta e outra documentação clínica).
XXV.–Extrai-se da fundamentação e das conclusões que a Autora Recorrente, ao discordar da Decisão do Tribuna “a quo” pretende que o Tribunal da Relação de Lisboa, se substitua ao Tribunal de Primeira Instância, aprecie a prova possível que existe, de novo, e profira uma nova Decisão que vá ao encontro da sua pretensão.
XXVI.– Em geral, o Tribunal da Relação não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas - e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – das questões suscitadas, e que por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para o conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem de prejudicadas pela solução dada a outras (artigo 608º nº 2 ex vi do artigo 663º nº 2 do C.P.C).
XXVII.–É evidente que o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume, nunca, uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
XXVIII.–Sendo que o Tribunal a quo tem uma perceção muito mais apurada dos depoimentos, uma vez que a prova testemunhal se desenrola presencialmente, facto inultrapassável no âmbito de um Recurso.
XXIX.–No que diz respeito às consequências danosas que advieram para a Autora na sequência do acidente, a Recorrente entende, à semelhança do douto tribunal a quo, que deverão ser valorizadas as provas periciais, efetuadas pelo INML de modo totalmente independente, ao contrário dos Relatórios juntos pela Autora, elaborados a pedido da mesma.
XXX.–A Recorrente aceita as conclusões dos Relatórios Periciais efetuados pelo INML, discordando, contudo, com a atribuição da sequela psicológica atribuída na 2ª Perícia, influenciada pelo Relatório junto pela Autora. Pois como se disse, a Autora requereu a realização de segunda perícia e para justificar a sua discordância, juntou um novo Relatório de Avaliação do Dano Corporal, desta feita com atribuição de um défice de 26 pontos, dos quais, 7 dizem respeito a perturbação pós-traumática.
XXXI.–A Autora nunca teve acompanhamento psicológico/psiquiátrico, nem tal sequela consta do Relatório de Avaliação do Dano junto pela Autora com a Petição Inicial e que serviu de base para a elaboração da mesma.
XXXII.–Conforme referiu a testemunha Dr. NFR, a Autora Recorrente, não foi seguida nas especialidades de psicologia e psiquiatria porque não apresentava queixas ou patologias neste sentido. Ao contrário da outra ocupante TF, que teve acompanhamento psicológico e psiquiátrico, na sequência do evento.
XXXIII.–O Próprio perito do INML, na 2ª perícia atribuiu a sequela psiquiátrica pelo mínimo (4 pontos).
XXXIV.–Os Relatórios do INML não preveem para a Autora qualquer dano futuro, devendo-se manter igualmente a improcedência do pedido formulado pela Autora Recorrente a título de dano futuro a liquidar em execução de sentença.
XXXV.–À semelhança da douta sentença, entende a Recorrida que para efeitos de atribuição de indemnização por dano biológico e danos não patrimoniais, se deverão atender aos danos plasmados nos Relatórios Periciais do INML, o mesmo se dirá para o dano futuro alegado pela Autora Recorrente e do qual não logrou fazer prova.

XXXVI.–A Autora, no seu douto articulado, faz dois pedidos:
a)- O Artigo 84º - Dano patrimonial futuro – 118.875,00 euros;
b)- O artigo 102º - Dano Biológico – 30.000,00 euros;

XXXVII.–Ora, ao contrário do que defende no Recurso, estes dois tipos de danos não são cumulativos, tendo em conta o caso concreto, pois, não obstante ter ficado com um défice funcional permanente na sequência do evento, a Autora não ficou impedida de exercer a sua atividade profissional, tendo-lhe sido atribuído esforços acrescidos, cf. art. 64 dos factos provados, sem prejuízo de os esforços serem considerado na vertente patrimonial do dano biológico.
XXXVIII.–No que diz respeito aos montantes de indemnização fixados a título de dano biológico e danos não patrimoniais, entende igualmente a Recorrida que nada há a assinalar ao douto tribunal a quo, encontrando-se os mesmos em harmonia com a demais jurisprudência acima citada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

II–FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).

Identificamos as seguintes questões a decidir (pela ordem que nos parece mais lógica):
1.ª)-Se deve ser modificada a decisão da matéria de facto no tocante aos factos vertidos em A, B, C, D, E, F, J, K, L, M, N, O, P, Q, R e S;
2.ª)-Se não se verificou um agravamento dos danos sofridos pela Autora em virtude de facto culposo imputável à mesma, não se justificando a redução para metade dos montantes indemnizatórios;
3.ª)-Se deve ser aumentado o valor em que foi quantificado o dano biológico (de 25.000 € para 30.000 €);
4.ª)-Se o défice permanente da integridade físico-psíquica de 14,8 pontos também determinou a perda de capacidade de ganho por parte da Autora, justificando a atribuição de verba indemnizatória autónoma a título de dano patrimonial futuro no valor de 71.723,45 €;
5.ª)-Se o montante dos danos não patrimoniais é superior ao que foi fixado na sentença (devendo ser aumentado de 30.000 € para 50.000 €);
6.ª)-Se deve ser atribuída uma indemnização, em quantia a liquidar, pelos danos futuros decorrentes do previsível agravamento do estado de saúde da Autora.

Dos Factos

Na sentença recorrida foram considerados provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:

1-No dia 24 de dezembro de 2015, pelas 3h20m, ao km 0,1 da Autoestrada n.º 1 [AE n.º 1], no Concelho de Loures, ocorreu um acidente de viação, em que foi interveniente o veículo de matrícula …-…-…, propriedade de JO, e conduzido por DO.
2-No sentido em que seguia o veículo …-…-…, a AE n.º 1 e a Avenida que a antecede têm três vias de circulação, passando nessa zona a AE n.º 1 a ter 4 vias de circulação.
3-O veículo de matrícula …-…-… circulava na via de circulação central da Av. ... ... ..., comummente designada por 2ª Circular, em direção à AE n.º 1, a qual se inicia como continuação natural daquela Avenida.
4-Por alturas de ter passado a circular na AE n.º 1 (sentido Sul / Norte) o condutor do …-…-… repentinamente mudou para a via de circulação à esquerda e com essa manobra perdeu o controlo do veículo.
5-Embateu ligeiramente no separador central e entrou em despiste para a sua direita.
6-Indo embater no lancil existente à direita, o qual delimita e separa a via de acesso à AE n.º 1 provinda da Avenida ... ....
7-Nesse embate o …-…-… perdeu duas rodas e prosseguiu em despiste.
8-Galgou o talude que ali se encontra à direita, junto ao atual Regimento de Transportes [onde anteriormente se encontrava instalado o Regimento de Artilharia de Lisboa/RALIS, continuando a ser assim conhecido].
9-Capotou diversas vezes até que se imobilizou mais adiante na 2.ª via da direita (em zona em que a AE 1 já apresenta 4 vias de circulação).
10-Tendo ficado imobilizado a 87 metros do lancil em que anteriormente embatera.
11-O veículo de matrícula …-…-… circulava a velocidade que em concreto não foi possível apurar, mas superior a 120 Kms/hora.
12-No local do acidente existe sinalização vertical que proíbe a circulação a velocidade superior a 80 Kms/hora.
13-O condutor do veículo …-…-… submetido a exames toxicológicos, mediante de recolha de amostra de sangue, revelou encontrar-se sob o efeito de substâncias psicotrópicas.
14-A Autora seguia como passageira no …-…-…, sentada no banco traseiro atrás do condutor.
15-Em consequência dos vários capotamentos, a ora Autora foi projetada do interior do veículo.
16-A Autora ficou prostrada na faixa de rodagem, cerca de 3,20m à frente do local onde o veículo se imobilizou.
17-À data do acidente, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ...-...-... encontrava-se transferida para a R. “N Seguros, S.A.” através de contrato de seguro do Ramo Automóvel titulado pela apólice n.º ….
18-Em consequência do acidente a Autora sofreu lesões, foi assistida no local pela equipa médica do INEM, imobilizada em plano duro, foi-lhe colocado colar cervical, e foi transportada de ambulância para o Hospital de Santa Maria.
19-Às 05h10 do dia 24-12-2015 a Autora deu entrada no serviço de urgências do Hospital de Santa Maria politraumatizada, e no sentido de serem determinadas as lesões sofridas e extensão das mesmas, a Autora foi submetida a múltiplos exames complementares de diagnóstico.

20–Foi-lhe diagnosticado:
-traumatismo craneo-encefálico (TCE) com perda de conhecimento, sem alterações identificáveis na TAC craneo-encefálica,
- traumatismo ocular, com derrame,
- traumatismo da coluna lombo-sagrada, com fatura das apófises transversas esquerdas de L3, L4 e L5,
- fratura das apófises espinhosas de L3 e L4,
- fratura cominutiva da diáfise do úmero esquerdo,
- fratura de ambas as clavículas,
- fratura dos 4.º, 5.º e 6.º arcos costais direitos
- fratura cominutiva da asa do sacro direito,
- luxação anterior da coxo-femural direita com fratura do pilar anterior do acetábulo,
- hematoma do pé esquerdo
- hematoma pélvico extra peritoneal e pré-sagrado,
- fratura do maléolo peronial da tibiotársica á esquerda,
- pequenos focos de contusão pulmonar nos lobos superiores.

21–No contexto de urgência a Autora foi submetida a intervenção para redução da luxação anterior da coxo-femural direita com fratura do pilar anterior do acetábulo, para estabilização da bacia e do fémur.
22–Após recobro foi transferida para o Serviço de Medicina Intensiva, onde esteve internada até 28-12-2015.
23–Nesse período de internamento foram-lhe administrados diversos fármacos, foi-lhe colocado dispositivo anti-rotatório do membro inferior direito, realizada imobilização gessada braquiplamar do membro superior esquerdo e imobilizado o membro inferior esquerdo com tala gessada.
24–No dia 28 de dezembro a Autora foi transferida para o Hospital de Vila Franca de Xira, unidade hospitalar da área de residência, tendo ficado internada no Serviço de Unidade de Cuidados Intensivos.
25–No Hospital de Vila Franca de Xira, foi submetida a intervenção cirúrgica com redução e osteossíntese à fratura proximal do úmero esquerdo, à fratura da clavícula direita e à fratura do maléolo peroneal da tibiotársica esquerda.
26–O pós-operatório decorreu sem complicações e a Autora foi transferida para o serviço de ortopedia.
27–Durante o internamento no Hospital de Vila Franca de Xira a Autora realizou tratamentos de medicina física e de reabilitação, tendo iniciado deambulação em 26-01-2016, fazendo percursos curtos com apoio de andarilho.
28–No dia 29 de janeiro de 2016, a Autora teve alta hospitalar, com indicação de recolher ao domicílio e referenciada para a consulta externa.
29–À data da alta hospitalar a Autora já não tinha imobilização gessada, apresentava dores mínimas, mobilidade razoável, com capacidade de marcha.
30–Foi-lhe recomendada a manutenção da marcha com apoio de canadianas, e o uso de analgésicos em SOS.
31–No regresso a casa após a alta hospitalar a Autora sentia limitações para tratar da sua higiene pessoal, vestir-se, confecionar refeições.
32–Por isso a Autora necessitou do auxílio de terceira pessoa por cerca de 2 meses.
33–Essa ajuda foi-lhe prestada pela mãe, com a qual vivia, e por algumas pessoas a quem a mãe pediu esse apoio quando não podia prestá-lo.
34–Desde a alta hospitalar a Autora fez marcha com apoio de andarilho durante cerca de 2 meses e com canadianas até junho de 2016.
35–Logo após a alta hospitalar a Autora passou a realizar tratamentos de fisioterapia ministrados pela Clínica Alcant’rafisio, cuja fisiatra, Dr.ª ID, em 01-02-2016, prescreveu tratamentos diários de fisioterapia no domicílio, em sessões de duas horas, por período não inferior a 6 meses, inicialmente prescrevendo 25 sessões domiciliárias, e entendeu ser necessário cuidador permanente no domicílio e ajudas técnicas, nomeadamente cama articulada, cadeira de rodas, cadeira de banho, elevador de tampa de sanita e andarilho.
36–A Autora submeteu-se no seu domicílio a 24 sessões diárias de fisioterapia, com a duração de duas horas, consistindo as mesmas sobretudo em mobilização articular passiva, fortalecimento muscular e treino de equilíbrio e marcha.
37–A Autora foi novamente observada pela Dr.ª ID, no dia 25 de fevereiro de 2016, que lhe prescreveu a realização de mais 20 sessões, a que a Autora se submeteu já na clínica.
38–A Autora manteve seguimento no Hospital de Vila Franca de Xira, em consulta e em tratamentos de hidroterapia.
39–A partir de 01-03-2016 a Autora passou a ser seguida pelos serviços clínicos da Ré Seguradora nas especialidades de orto-traumatologia, medicina interna, neurocirurgia, oftalmologia, otorrinolaringologia, fisiatria, ginecologia, e consulta de dano.
40–No dia 1 de março de 2016, a Autora foi observada na especialidade de ortopedia e traumatologia pelos serviços clínicos da Ré no Hospital dos Lusíadas.
41–Na referida unidade hospitalar, foi submetida a diversos exames complementares de diagnóstico, nomeadamente RXs e ecografias.
42–Os serviços clínicos da Ré prescreveram-lhe tratamentos de reabilitação, designadamente fisioterapia e hidroterapia, pelo menos 70 sessões, que a Autora realizou em clínicas e piscina convencionadas com a mesma.
43–Além dos tratamentos efetuados nas clínicas convencionadas com a Ré, a Autora continuou a ser acompanhada com o conhecimento da Ré pela Médica Fisiatra Dr.ª ID, na Clínica Alcant’rafisio.
44–No dia 31 de março de 2016, a Dr.ª ID, prescreveu à Autora a realização de mais 20 sessões de fisioterapia, a que a mesma se submeteu na clínica.
45–No dia 27-06-2016, a Dr.ª ID prescreveu à Autora a realização de mais 15 sessões de fisioterapia, a que a mesma se submeteu na clínica.
46–No dia 1 de fevereiro de 2017 a Autora foi operada em regime de ambulatório, com alta hospitalar no próprio dia, no Hospital de Vila Franca de Xira, para extração de material de osteossíntese na clavícula direita e no maléolo externo esquerdo.
47–A Autora teve alta com bom prognóstico, com indicação para seguimento em consulta, para efetuar mudança de penso duas vezes por semana e retirar os pontos aproximadamente em 12 dias, com prescrição de analgésicos em caso de SOS.
48–A Autora efetuou mudanças de pensos nos dias 9 e 13 de fevereiro de 2017 na UCSP da Póvoa de Santa Iria, e nessa última data foram removidos os pontos.
49–No seguimento da intervenção cirúrgica a Autora foi seguida em ambulatório no Hospital de Vila Franca de Xira, pelo ortopedista Dr. QN.
50–Em consequência do acidente a Autora teve com intercorrência uma “alopecia areata" pós-traumática e um quadro de cefaleias e síndrome vertiginoso.
51–No dia 27 de fevereiro de 2017, a Autora foi observada pelos serviços clínicos da Ré, tendo-lhe sido dada alta definitiva.

52–Em consequência do acidente a Autora apresenta:

-No crânio, cicatriz hipocrómica, linear, no terço posterior esquerdo da região parietal, horizontal, com 2,5 cm de comprimento;
-No tórax, cicatriz acastanhada, linear, abrangendo a face anterior do ombro direito, estendendo-se até à face anterior do terço superior do tórax, oblíquo para baixo e para a esquerda, com 12 cm de comprimento;
-No membro superior direito, várias cicatrizes ligeiramente hipocrómicas, pouco visíveis, no dorso da mão, ocupando no conjunto uma área de 5x1,5cm; área ligeiramente hipocrómica, arredondada, mediando 1cm de diâmetro;
-No membro superior esquerdo, três cicatrizes acastanhadas, lineares, com vestígios de sutura, a primeira localizada à extremidade externa do ombro, horizontal, com 3 cm de comprimento, a segunda na face anterior do terço superior do braço, vertical, com 2 cm de comprimento, e a terceira na face anterior do terço inferior do braço, com 3 cm de comprimento;
-No membro inferior esquerdo, cicatriz nacarada, linear, na face externa do tornozelo, vertical, com 8 cm de comprimento.

53–Em consequência do acidente a Autora mantém dores na coluna dorso-lombar que lhe causam algumas dificuldades na vida sexual.
54–E tem também dores na lombo-sagrada que se agravam com os esforços e mudanças climatéricas.
55–As dores que sente agravam-se para o final do dia, após o dia de trabalho.
56–A consolidação médico-legal das lesões sofridas pela Autora em resultado do acidente é fixável em 27-02-2017.
57–A Autora teve défice funcional temporário total de 216 dias, entre 24-12-2015 e 26-07-2016.
58–A Autora teve défice funcional temporário parcial de 216 dias entre 27-07-2016 e 27-02-2017.
59–A Autora sofreu período de repercussão temporária na atividade profissional total de 24-12-2015 a 26-07-2016, num total de 216 dias.
60–A Autora sofreu período de repercussão temporária na atividade profissional parcial de 27-07-2016 a 27-02-2017, num total de 216 dias.
61–A Autora sofreu um quantum doloris de grau 5 numa escala crescente de 7.
62–A Autora está afetada de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14,8 pontos.
63–O Autora sofre um dano estético permanente de grau 3 numa escala crescente de 7.
64–As lesões sofridas e as sequelas que a Autora apresenta são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares.
65–A Autora nasceu a 22 de maio de 1992.
66–A Autora tinha regressado a Portugal em novembro de 2015, depois de ter estado dois anos a trabalhar em Inglaterra, no ramo da restauração, como empregada de mesa.
67–O regresso a Portugal deveu-se ao facto de a Autora pretender ajudar a sua mãe a abrir um negócio no ramo da restauração, nomeadamente um café.
68–Em transporte de táxi a consultas e tratamentos, a Autora despendeu pelo menos o valor de 37,05 €.
69–Para deslocações a consultas e tratamentos, a Autora teve de recorrer algumas vezes a transporte de familiares, tendo para o efeito pago o valor do combustível, num total de 70,03 €.
70–No dia da alta hospitalar do Hospital de Vila Franca de Xira, 29 de janeiro de 2016, a Autora foi transportada pelos Bombeiros da Póvoa de Santa Iria para a sua residência, tendo despendido o valor 25,00 €.
71–Em consequência das lesões e sequelas decorrentes do acidente,a Autora despendeu em medicamentos o valor de 99,60 €.
72–A Autora despendeu em tratamentos e consultas na Clínica Alcant’rafisio o valor total de 5.948,00 €, do qual o montante de 128,00 € respeita a 4 sessões de fisioterapia realizados na clínica em agosto e setembro de 2017 sem prescrição da médica Fisiatra.
73–Em aluguer de andarilho, nos meses de janeiro e fevereiro de 2016, a Autora despendeu o valor de 28,26 €.
74–Com o aluguer de umas canadianas, a Autora despendeu o valor de 23,73 €.
75–Na compra de roupa, para substituir a que ficou danificada em consequência do acidente, a Autora despendeu o valor de 42,96 €.
76–Na compra de um tapete para a banheira, a Autora despendeu o valor de 5,00 €.
77–Na compra de material desportivo para fazer fisioterapia e hidroterapia, a Autora despendeu o valor de 39,49 €.
78–A Autora era uma pessoa ativa, dinâmica, sem qualquer limitação física.
79–Em consequência do acidente, das lesões sofridas e das sequelas de que ficou portadora, a sua vida alterou-se profissional, pessoal e socialmente.
80–A Autora passou a ser uma pessoa mais reservada, deixando de se expor tanto publicamente como antes fazia, evitando ir a festas e convívios.
81–Antes do acidente, a Autora gostava de sair à noite com os amigos, ir a discotecas e dançar, o que deixou de fazer pelo facto de não conseguir dançar muito tempo pelas dores que começa a sentir.
82–Não consegue estar longos períodos de pé, tendo de se sentar para poder descansar.
83–A Autora anteriormente ao acidente não tinha qualquer cicatriz no corpo.
84–As cicatrizes que hoje tem desgostam-na.
85–Por não gostar de mostrar as cicatrizes e por se sentir observada, a Autora evita ir à praia para não ter de expor o corpo.
86–Usa sempre calças, para não exibir a cicatriz que apresenta na perna esquerda, ao nível do tornozelo.
87–Usa sempre roupa com mangas para não mostrar a cicatriz que apresenta na zona do úmero e a na zona da clavícula.
88–A Autora anteriormente ao acidente gostava de andar de saia e saltos altos, o que deixou de fazer por causa da cicatriz no tornozelo.
89–A atividade da restauração exige a permanência por longos períodos de pé, o transporte de bandejas, e que se caminhe bastante.
90–A Autora deixou de trabalhar na restauração, tendo passado a trabalhar numa loja de roupa.
91–A Autora sente-se limitada fisicamente, o que lhe causa revolta, amargura, tristeza, ansiedade.
92–As três intervenções cirúrgicas a que se submeteu causaram à Autora receio e ansiedade quanto à sua recuperação.
93–Durante o internamento hospitalar, nos pós-operatórios e em muitos tratamentos de fisioterapia, a Autora teve muitas dores.
94–Para a recuperação das lesões e sequelas resultantes do acidente a Autora realizou 149 sessões de tratamentos de fisioterapia e hidroginástica.
95–A Autora deslocou-se a 22 consultas no Hospital dos Lusíadas em Lisboa, para ser acompanhada pelos serviços clínicos da Ré.
96–As deslocações para tratamentos e consultas, inclusive nos serviços clínicos da Ré, implicaram para a Autora muitos incómodos e aborrecimentos.
97–E enquanto precisou de auxílio de terceiros para realizar tarefas básicas da sua vida diária, tais como tomar banho e restante higiene pessoal, sentiu-se totalmente dependente e sem qualquer autonomia.
98–Em 27-02-2017 a Autora foi submetida a uma avaliação de dano corporal pelos serviços clínicos da Ré, cujo Relatório data de 16-03-2017, tendo-lhe sido atribuída uma Incapacidade Permanente Geral de 12 pontos, o “quantum doloris" de grau 5 e Dano Estético de grau 3.
99–Em 23-02-2016 a Ré enviou à Autora carta pela qual lhe comunicava ter apurado no âmbito da averiguação do acidente que a mesma não levava cinto de segurança colocado, o que não é imputável ao condutor do veículo, estando na origem da projeção para o exterior do veículo e sendo causa do agravamento dos danos, pelo que concluía por uma repartição de responsabilidade de 25% para o condutor e de 75% para a Autora sinistrada. Mais a informando de que, a título excecional, assumiria a 100% a assistência médica e todos os tratamentos necessários para garantir a total recuperação.
100–E em 27-03-2018 a Ré apresentou à Autora como proposta de ressarcimento dos danos a quantia de 7.000,00 €, já deduzidos os montantes relacionados com o acidente e entretanto liquidados pela Ré.
*

101–Aquando do acidente a Autora seguia do lado esquerdo do banco traseiro do veículo ...-...-... sem cinto de segurança colocado, por o ter tirado para aceder ao telemóvel.
102–Dos quatro ocupantes do veículo ...-...-... apenas o passageiro que seguia no banco dianteiro ao lado do condutor, seguia com cinto de segurança colocado.
103–A Autora, a outra passageira que seguia junto dela no banco traseiro, e o condutor do veículo ...-...-... foram projetados para o exterior do veículo durante o acidente e os três ficaram politraumatizados.
104–O passageiro que seguia no banco dianteiro ao lado do condutor com cinto de segurança colocado, permaneceu no interior do veículo durante o acidente.
105–Quando o veículo se imobilizou saiu dele pelo seu pé.
106–Ficou com ferimento ligeiros e após observação hospitalar teve alta no dia seguinte.

1.ª questão – Da modificação da decisão da matéria de facto

A Autora-Apelante defende que devem ser dados como provados os factos vertidos em A, B, C, D, E, F, J, K, L, M, N, O (até “a solicitação desta”) P (1.ª parte), Q, R e S do elenco dos factos não provados.
Para tanto aduz uma argumentação algo confusa, não identificando de forma cabal alguns dos meios probatórios (sendo vaga a mera referência a uma “profícua documentação clínica”), nem indicando de forma clara, quanto a alguns dos concretos meios probatórios invocados, quais os pontos da matéria de facto impugnados a que respeitam. Fez-se, pois, um esforço interpretativo da alegação recursória, verificando designadamente que, quanto aos pontos A a F, a Apelante invoca os relatórios do INML, bem como prova testemunhal, destacando, quer quanto a esta específica matéria, quer quanto à restante - que mais adiante precisa serem os factos vertidos em J, K, L, M, N, O (até “a solicitação desta”), P (1.ª parte), Q e R - os depoimentos das testemunhas que indica (MS; PR; JC; CS; VS; GC), os esclarecimentos do Perito médico e ainda as declarações de parte da Autora, acrescentando que tais declarações bastariam para dar como provada a restante matéria, designadamente os factos vertidos em N e S.
Passamos a apreciar as questões suscitadas, pela ordem que nos parece preferível, mormente face à motivação da sentença recorrida.

Factos A, B, C, D, E e F

Foi considerado não provado:

A-Que à data da alta hospitalar a Autora não conseguisse fazer marcha, nomeadamente com apoio, apenas se deslocando de cadeira de rodas.
B-Que quando teve alta hospitalar a Autora esteve acamada no seu domicílio cerca de um mês, apenas se levantando para tratar da sua higiene pessoal e fazer as necessidades fisiológicas.
C-Que em consequência das lesões sofridas e da limitação da sua autonomia, a Autora necessitou da ajuda permanente de terceira pessoa, no período compreendido entre a alta hospitalar, 29-01-2016, e julho de 2016.
D-Nem que tenha necessitado de ajuda de terceira pessoa durante seis horas diárias.
E-Nem que pelo auxílio de terceira pessoa a Autora tenha pago a alguém o valor mensal de 500,00 €.
F-Que a condição física da Autora a tenha obrigado a usar fraldas, e por isso tenha nesse produto despendido 11,99 €.

Na motivação da decisão de facto explanada na sentença, na parte que ora importa, justifica-se o assim decidido nos seguintes termos:
«Quanto aos factos sobre os quais versam os pontos 31, 32 e 33 e A a F, o pai da A. disse que quando a visitava ela estava imobilizada/acamada e dependente da ajuda de 3ºs, embora não conseguindo definir o período temporal em que tal ocorreu, e que era a mãe que lhe dava apoio porque viviam juntas e a mãe tinha um negócio perto de casa e isso permitia a prestação dessa ajuda. Já o companheiro da mãe disse que a A. precisava de ajuda para tudo, até para se limpar, lavar, tudo; e que tiveram uma pessoa a ajudar vários meses, cerca de 6 meses. A mãe disse que a A. precisava de ajuda permanente, e como a mãe teve de abrir o negócio sozinha precisou de quem desse esse apoio, tendo-o solicitado a variadas pessoas, dizendo que foi por um período de 5-6 meses, embora também tenha referido que nos períodos mais calmos do café ia a casa ver como estavam as coisas, e que quando estava o terapeuta podia não estar mais ninguém. Por sua vez, a amiga JC disse que das várias vezes em que a visitou em casa a A. estava sempre deitada, para ir wc ia com ajuda e muita calma, que esteve totalmente dependente bastantes meses, sem conseguir definir quantos. E a A., por seu turno, afirmou ter estado dependente de ajuda de terceira pessoa para tudo por 6 ou 7 meses.
Mas a prova documental existente nos autos não o corrobora.
Não se pretende apoucar o sofrimento da A. nem o impacto que a sua convalescença no domicílio teve nos seus familiares próximos e amigos, e que aos olhos daquela e destes teve a dimensão, inevitavelmente subjectiva, que nos transmitiram (cfr. depoimentos da mãe, pai, companheiro da mãe, amiga, e declarações da própria), mas a análise objectiva dos elementos disponíveis revela-nos uma convalescença muito menos drástica do que a narrativa apresentada.
A resposta àqueles factos tem como ponto de partida a informação constante da nota de alta definitiva, com destino ao domicílio, emitida pelo Hospital de Vila Franca de Xira em 29/01/2016 (doc. de fls. 133-134), da qual expressamente consta que a A. tinha iniciado deambulação em 26/01/2016, fazendo percursos curtos com apoio de andarilho, à data da alta hospitalar já não tinha imobilização gessada, apresentava dores mínimas, mobilidade razoável, com capacidade de marcha, e foi-lhe recomendada a manutenção da marcha com apoio de canadianas (como ficou a constar dos factos 27, 29 e 30); informação e avaliação clínica essa incompatível com a alegada incapacidade de àquela data fazer marcha e de apenas se deslocar em cadeira de rodas, assim como é incompatível com a alegada necessidade de ter estado acamada no domicílio cerca de um mês, apenas se levantando para tratar da sua higiene pessoal e fazer as necessidades fisiológicas e, inerentemente, incompatível com a alegada necessidade de auxílio permanente de terceira pessoa.
Aliás a alegação da A. encerra em si incongruências: por um lado afirma que quando teve alta hospitalar permaneceu cerca de um mês acamada, apenas se levantando para tratar da sua higiene pessoal e fazer as necessidades fisiológicas (cfr. artº 124º da p.i), contudo reclama o valor por compra de fraldas, e de outra banda afirma também que à data da alta se deslocava de cadeira de rodas, não sendo assim compreensível para que precisaria desta: usá-la-ia apenas para ir à casa-de-banho? E se apenas se conseguisse deslocar de cadeira de rodas o que a levaria a concomitantemente com o seu aluguer alugar também um andarilho (cfr. facto 89º da p.i. e docs. de fls. 39vº a 40vº)? De outra banda, refere a realização de sessões diárias de fisioterapia, no domicílio é certo, mas cujos exercícios não eram realizados na cama (cfr. depoimento do fisioterapeuta VS).
Naturalmente não nos custa a admitir que depois do acidente que lhe causou as lesões descritas no facto 20, depois de um mês de internamento, com variados tratamentos e intervenções, a A. se sentisse combalida, limitada na mobilidade, quer dos membros superiores quer inferiores, e sentisse a necessidade de longos períodos de descanso - e por isso nas visitas que lhe fizeram o pai e a amiga JC a vissem, como mencionaram, deitada na cama ou no sofá - e que lhe fosse mais cómodo e confortável nalgumas deslocações usar cadeira de rodas, mas tal não é sinónimo de que a A. efectivamente tivesse de estar acamada e não conseguisse fazer marcha, nomeadamente com o apoio de canadianas, que ademais lhe foi clinicamente recomendado aquando da alta, sendo certo que se não conseguisse fazer marcha com apoio não se justificaria o aluguer do andarilho que logo em Janeiro 2016 contratou simultaneamente com o aluguer da cadeira de rodas (cfr. doc. de fls. 39vº).
Sendo patente que a A. tinha alguma mobilidade, com capacidade de marcha com apoio, não se pode concluir que ficou atida à cama e precisou de usar fraldas (cujo pagamento reclama), nem que estava de todo impossibilitada de realizar tarefas pessoais básicas e essenciais e por isso carecida permanentemente, como alegado, de ajuda de terceira pessoa.
Recordamos que a nota de alta é expressa quanto a que a essa data a A. apresentava dores mínimas (por isso o uso de analgésicos foi apenas recomendado em sos), mobilidade razoável, com capacidade de marcha em apoio e que lhe foi recomendada a manutenção da marcha com apoio de canadianas (cfr. nota de alta fls. 133); e essa mobilidade razoável, com o auxílio das canadianas, permitir-lhe-ia, admitimos que com esforço e limitações, realizar pequenas e rápidas tarefas pessoais, embora se admita, atentas as lesões sofridas e as partes do corpo atingidas, que inicialmente precisasse de ajuda para as concretas tarefas de tomar banho e vestir, que não pudesse permanecer muito tempo de pé e isso condicionasse a confecção de refeições, mas tal não importa a necessidade permanente de ajuda de terceiros, nem por um alargado período horário, e por isso as ajudas de que a A. carecia eram-lhe essencialmente prestadas pela mãe, com quem vivia (como resulta do depoimento do pai), e ocasionalmente por pessoas a quem a mãe o solicitava (como resulta do depoimento da mãe).
Se atentarmos também no processo de acompanhamento clínico da A. pelos serviços médicos da R. (doc. de fls. 102 ss.) vemos que logo em 01/03/2016, data em que ali foi observada pela primeira vez, 2 meses e cinco dias depois do acidente, a A. fazia marcha com canadianas, pelo que, mesmo que desse modo se locomovesse com algum esforço, a mobilidade assim possível permitir-lhe-ia também mobilidade em casa e autonomia para as tarefas pessoais elementares, e já não careceria de apoio de terceiros, a não ser para se fazer transportar. Por outro lado, logo nessa primeira consulta nos serviços clínicos da R. a A. fez-se transportar, ida e volta, de táxi, o que, mesmo com as canadianas e os incómodos inerentes, revela autonomia pessoal suficiente para tratar da sua higiene e de todos as suas necessidades básicas, não sendo compatível com a necessidade permanente de ajuda de 3ª pessoa.
Acresce que por essa altura já a A. se deslocava às Telheiras para a realização das sessões de fisioterapia na clínica, porquanto as 20 sessões que a Fisiatra lhe prescreveu em 25/02/2016 já foram realizadas na clínica, como se extrai da análise comparativa dessa prescrição (doc. de fls. 24) e da prescrição anterior (doc. de fls. 23) e da análise comparativa das facturas/recibo de fls. 41 e seguintes, que patenteiam que apenas as 24 primeiras sessões realizadas o foram no domicílio. Sabendo-se que as sessões na clínica ainda eram inicialmente de frequência diária passando depois a ser 2 a 3 vezes por semana (cfr. especialmente depoimento do fisioterapeuta VS), ressalta que desde finais de Fevereiro, princípios de Março de 2016, a A. não estava em casa muitos dias por semana pois deslocava-se para aqueles tratamentos, o que em si revela a desnecessidade do alegado apoio de terceira pessoa até Julho de 2016, e ainda menos de natureza permanente.
Vê-se também daquele documento de fls. 102 ss. que, deixando de haver menção ao uso de auxiliares à locomoção (canadianas), na consulta de 09/05/2016 é expressamente assinalado “apoio 3ª pessoa: Não”. Portanto é seguro que nessa altura a A. não tinha qualquer apoio de 3ª pessoa.
Assim, compaginando o que sobressai dos documentos referenciados com o relato das testemunhas e declarações da A., como se vê empolado (naturalmente pela vivência traumática que o acidente e a subsequente condição de saúde da A. significou não só para esta como para aquelas), conclui-se que a A. tenha precisado de ajuda de terceiros, não permanente, até cerca de 01/03/2016, i.é cerca de 2 meses, e que a mesma lhe foi essencialmente prestada pela mãe.
Para além de tudo quanto já se disse acerca da (des)necessidade permanente de auxilio de terceira pessoa, e em vista do valor alegadamente pago por esse apoio, a A. em declarações disse que pagava à Sra que lhe prestou esse serviço cerca de 500/mês, mas já a sua mãe disse ter sido ela própria a pagar, gratificando, em valor que não conseguiu precisar e que desvalorizou, as várias pessoas de que se socorreu para esse auxilio. Não há, por isso, como dar por provado que a A. tenha realizado a despesa e concretamente no valor invocado.

E pelas antecedentes ordens de razões resultaram provados os factos 31, 32 e 33 e não provados os factos A, B, C, D, E e F.»

Apreciando.

Encontram-se provados vários factos que, globalmente considerados, evidenciam uma realidade algo distinta daquela que a Autora insiste em retratar (cf. pontos 28. a 36. - não questionados no presente recurso). Assim, está provado que: a Autora teve alta hospitalar no dia 29 de janeiro de 2016, com indicação de recolher ao domicílio, já não tendo imobilização gessada, apresentava dores mínimas, mobilidade razoável, com capacidade de marcha, tendo-lhe sido recomendada a manutenção da marcha com apoio de canadianas, e o uso de analgésicos em SOS, sentindo a Autora, na altura do regresso, limitações para tratar da sua higiene pessoal, vestir-se, confecionar refeições; Mais está provado que, por isso, a Autora necessitou do auxílio de terceira pessoa por cerca de 2 meses; ajuda que lhe foi prestada pela mãe, com a qual vivia, e por algumas pessoas a quem a mãe pediu esse apoio quando não podia prestá-lo; desde a alta hospitalar a Autora fez marcha com apoio de andarilho durante cerca de 2 meses e com canadianas até junho de 2016; logo após a alta hospitalar a Autora passou a realizar tratamentos de fisioterapia ministrados pela Clínica Alcant’rafisio, cuja fisiatra, Dr.ª ID, em 01-02-2016, prescreveu tratamentos diários de fisioterapia no domicílio, em sessões de duas horas, por período não inferior a 6 meses, inicialmente prescrevendo 25 sessões domiciliárias, e entendeu ser necessário cuidador permanente no domicílio e ajudas técnicas, nomeadamente cama articulada, cadeira de rodas, cadeira de banho, elevador de tampa de sanita e andarilho; a Autora submeteu-se no seu domicílio a 24 sessões diárias de fisioterapia, com a duração de duas horas, consistindo as mesmas sobretudo em mobilização articular passiva, fortalecimento muscular e treino de equilíbrio e marcha.

A prova documental da generalidade destes factos é abundante, conforme bem referiu o Tribunal a quo, na motivação da sentença, sendo evidente a incompatibilidade dos mesmos com alguns dos factos que a Autora pretende ver provados. Com efeito, se, à data da alta hospitalar e durante cerca de um mês, a Autora não conseguisse fazer marcha alguma, mesmo com apoio, apenas se deslocando de cadeira de rodas, e estivesse acamada, ao ponto de necessitar da ajuda permanente de terceira pessoa, certamente não lhe teria sido dada alta nos termos em que o foi, com indicação para se deslocar com apoio de canadianas e fazer as sessões de fisioterapia, como efetivamente fez, nos termos descritos pela Autora e várias testemunhas, em particular VS dos Santos, o fisioterapeuta que a acompanhou durante meses. Isto mesmo é salientado – e bem – na sentença recorrida.

Sem pretender menosprezar a aflição e o desgosto vivenciado pela família da Autora, a verdade é que os depoimentos prestados pelas testemunhas MS e CS (pais da Autora) e PR (companheiro da mãe da Autora) são - conforme também é salientado na sentença recorrida - marcados por uma compreensível carga subjetiva; além disso, registaram-se algumas contradições nesses depoimentos, bem como entre o que as testemunhas disseram e as declarações da Autora, o que já é menos compreensível, isso mesmo tendo sido salientado pelo Tribunal recorrido, em particular quanto à necessidade de ajuda por uma pessoa remunerada (pessoa cujo nome ou nomes, sublinhe-se, nunca foram referenciados); assim, segundo a Autora, teve uma senhora a ajudar em casa durante 5 a 7 meses; já PR referiu que a Autora estava a residir na casa dele (e da companheira, mãe da Autora) e que era ele quem ficava com a Autora nas folgas (referiu que trabalhava como comissário de bordo de uma companhia aérea), tendo apenas uma “vaga ideia” da pessoa contratada para cuidar dela (parecendo-nos, por tudo o que disse, que o seu ordenado era então a principal fonte de rendimentos do agregado familiar, sendo ele o responsável por assegurar o sustento da Autora); já a testemunha CS referiu que, quando não o podia fazer (por estar a trabalhar no café que abriu a 8 ou 9 de janeiro), recorreu a várias pessoas (“a toda a gente”) para cuidarem da filha e que as “gratificou”.

Por tudo isto, não ficámos convencidos quanto à verificação dos factos vertidos em A, B, C, D e E, improcedendo as conclusões da alegação de recurso a este respeito.

Porém, quanto ao facto referido em F, não podemos acompanhar inteiramente as considerações feitas na sentença. Com efeito, a Autora juntou aos autos com a Petição Inicial um recibo datado de 30 de janeiro de 2016 (dia seguinte ao da alta hospitalar) comprovativo da compra de um pacote de fraldas (20 unidades) de marca “Lindor”. Recordamos estar provado que a Autora sentiu, na altura do regresso, limitações para tratar da sua higiene pessoal e necessitou do auxílio de terceira pessoa por cerca de 2 meses. Além disso, nas suas declarações de parte referiu, de forma que nos mereceu credibilidade, que chegou a usar fraldas à noite, pois receava então levantar-se sozinha para ir à casa de banho, o que nos parece compreensível, face às caraterísticas do internamento hospitalar a que tinha estado sujeita (incluindo a sua duração) e ao défice funcional temporário total que então a afetava, conforme descrito nos relatórios periciais. Ou seja, pese embora a condição física da Autora não a impedisse de utilizar a casa de banho, é perfeitamente plausível que, atendendo às suas limitações físicas, tenha, nos primeiros tempos após a alta hospitalar, de modo a dispensar o auxílio de terceira pessoa (muito provavelmente a mãe, que teria de acordar para o efeito), feito uso de fralda durante o período da noite.

Não há, é certo, prova de que tenha sido a Autora a custear a compra do referido pacote, até se nos afigurando, face aos depoimentos prestados pelas testemunhas PR e CS, que tenham sido estes, na economia do agregado familiar, a suportar tal despesa. De qualquer modo, face ao objeto do recurso, até se nos afigura ser irrelevante esse aspeto (cf. ac. da Relação de Lisboa de 27-11-2018, proferido no proc. n.º 1660/14.0T8OER-E.L1, e os acórdãos aí citados, bem como ac. da Relação do Porto de 07-05-2012, no proc. n.º 2317/09.0TBVLG.P1, ac. da Relação de Coimbra de 12-06- 2012, no proc. 4541/08.3TBLRA.C1, ac. do STJ de 17-05-2017, no proc. n.º 4111/13.4TBBRG.G1.S1, ac. do STJ de 14-10-2021, no proc. 5985/13.4TBMAI.P1.S1, e ac. da Relação de Lisboa de 24-09-2020, no proc. n.º 35708/19.8YIPRT.L1, disponíveis em www.dgs.pt).

Assim, queda inalterada a 2.ª parte da al. F (que a Autora tenha despendido 11,99 € em fraldas), mas o facto vertido na 1.ª parte, será, com as precisões resultantes da prova produzida, aditado ao elenco dos factos provados, como ponto 76-A (face à ordem pela qual os factos foram alegados na Petição Inicial), tendo o seguinte teor:

Após a alta hospitalar (referida em 28) e durante não mais de 20 dias, a condição física da Autora determinou o uso de fraldas durante o período da noite.

Facto R

Foi considerado não provado: Que a Autora praticava atividade desportiva com regularidade, designadamente que frequentasse o ginásio habitualmente [por conseguinte prejudicado que, devido ao acidente, tenha deixado de poder praticar atividades desportivas com a mesma regularidade e intensidade].
Na motivação da sentença referiu-se expressamente que “o mesmo não se teve por provado porquanto o que resultou da conjugação dos depoimentos da mãe, da amiga JC e das declarações de parte da A. e, complementarmente, do depoimento do companheiro da mãe, é que a A. pontualmente, nomeadamente em épocas de férias, fazia algumas caminhadas e nadava, especialmente por lazer. Nada na prova revelando que era praticante regular e assídua de qualquer actividade desportiva, fosse em ginásio ou noutros moldes.”

Apreciando.

É manifesto que não foi produzida prova convincente a respeito da prática desportiva regular por parte da Autora. É certo que esta declarou que “gostava” de caminhadas, de passear, de ténis, de mergulho, de acampar, mas apenas se referiu a estas atividades de forma vaga e genérica, não revelando a sua prática habitual, mesmo com uma regularidade mínima; a sua mãe afirmou que faziam caminhadas nas férias e a testemunha PR referiu o gosto que a Autora tinha por nadar (parecendo-nos que se estava a referir a idas à praia), tendo dado conta de uma (única) experiência de mergulho; de salientar que a Autora não juntou prova documental da frequência de ginásio, sendo certo que não teria dificuldade em obter um qualquer documento comprovativo do facto em apreço.
Improcedem, pois, as conclusões da alegação de recurso neste particular.

Factos J, K, L e M

Na sentença foram considerados não provados os seguintes factos:
J-Que a Autora terá no futuro de ser submetida a uma intervenção cirúrgica para colocação de prótese na cabeça do fémur.
K-Que a Autora necessitará no futuro de ajuda médica e medicamentosa.
L-Que a Autora terá ainda de realizar sessões anuais de fisioterapia, como forma de atenuar os fenómenos dolorosos e influenciar o prognóstico positivamente e evitar o agravamento futuro.
M-Que a Autora tenha ficado com um Prejuízo de Afirmação Pessoal, nem com Prejuízo Sexual autonomamente valorizáveis.

Na sentença motivou-se o assim decidido nos seguintes termos: “(P)ara os factos provados 52 a 64 e não provados H a M atendeu-se aos esclarecimentos prestados em audiência pelo Sr. perito médico e ponderaram-se as perícias do INML [1ª perícia: Relatório Preliminar a fls. 212 ss., Relatório Final a fls. 222-226 ss.. 2ª perícia: Relatório Preliminar a fls. 253-258, Relatório pericial da especialidade de psicologia forense (solicitado como exame complementar pelo INML) a fls. 259-263vº, e Relatório Final a fls. 270-275], tendo-se relevado especialmente a 2ª perícia quanto à avaliação/valorização do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.”

Vejamos.

De referir que, conforme expressamente previsto no art. 388.º do CC, “A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.” E que o art. 389.º do CC estabelece que “A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal.” O juiz poderá, pois, no confronto com outros meios de prova, atribuir-lhe uma maior credibilidade, face à especial preparação técnica ou científica do perito, sendo certo que, se existirem razões para desvalorizar a prova pericial, o tribunal também é livre de o fazer, justificando isso mesmo. Nesta linha de pensamento, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 23-06-2021, no proc. n.º 199/07.5TTVCT-E.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança da seguinte passagem do respetivo sumário: “A prova pericial está sujeita à livre apreciação pelas instâncias, cabendo a estas, no âmbito dos seus poderes para julgar a matéria de facto, fixar livremente a força probatória da prova pericial, nos termos dos artigos 389º do Código Civil e 489º do Código de Processo Civil.”

Nas palavras de Luís Filipe Pires de Sousa, in “A valoração da prova pericial”, na Revista Portuguesa do Dano Corporal Dez. 2016, Ano XXV, n.º 27, disponível em https://digitalis-dsp.uc.pt, a principal tarefa do perito é interpretar e comunicar o resultado da perícia, cabendo ao juiz a tarefa de avaliação da veracidade das hipóteses em confronto, a qual tem de assentar no que dizem os dados científicos mas também no que resulta das restantes provas produzidas, pautando «a sua decisão pelo conjunto da prova produzida e norteado pelo princípio da livre apreciação da prova. Ou seja, o juiz é que determina o que há que crer sobre a hipótese em apreciação à luz da prova pericial e também do resto das provas disponíveis no processo. Neste preciso sentido, o juiz valora a prova e não é propriamente o perito dos peritos.”

Lembramos ainda que, conforme expressamente previsto no art. 489.º do CPC, a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal.

Nos presentes autos foram realizadas duas perícias que tiveram por objeto, além do mais, a matéria vertida nos seguintes quesitos (formulados pela Autora na Petição Inicial):

5º- É provável a existência de um dano futuro?
(…) 10º- Na escala valorativa de 1 a 7, qual a valoração do prejuízo de afirmação pessoal?
11º- Na mesma escala valorativa, qual a valoração do prejuízo sexual?
(…) 14º- A A. em consequência da luxação anterior do coxo femural direita com fractura do pilar anterior do acetabulo, terá no futuro de ser submetida a intervenção cirúrgica para colocação de prótese na cabeça do fémur?
15º- A ter de ser submetida a futuras intervenções cirúrgicas [além da referida no quesito 14.º, as que haviam sido indicadas nos quesitos 12.º e 13.º, correspondentes aos factos descritos em H (Que a Autora terá ainda no futuro de ser submetida a uma intervenção cirúrgica para extração do material de osteossíntese no membro superior esquerdo) e  I (Que a Autora no futuro terá de ser submetida a cirurgia plástica para reparação de cicatrizes com aspeto queloide)], as mesmas importarão para a A. períodos de Incapacidade Total Absoluta e Incapacidade Temporária Parcial?
16º- Em consequência das intervenções cirúrgicas a realizar, a A. terá de ter acompanhamento médico, medicamentoso, fisioterapia e reabilitação?
Atentámos nos relatórios de ambas as perícias, em particular nos relatórios finais, sendo de salientar que: na 1.ª perícia, aos quesitos 5.º, 10.º e 11.º, foi respondido “Não há lugar”, resposta coincidente com a que veio a ser dada na 2.ª perícia, de não ser previsível a existência de danos valorizáveis nesses pontos; ao quesito 14.º foi respondido “Não é previsível actualmente tal hipótese” e, na 2.ª perícia, ”De momento essa necessidade futura não se poderá prever”; aos quesitos 15.º e 16.º (e considerando as respostas negativas dadas aos quesitos 12.º e 13.º) foi respondido “Prejudicado” e, na 2.ª perícia, ”Prejudicados pelos anteriores”.

É verdade que a testemunha VS, fisioterapeuta, defendeu ser provável a necessidade de nova intervenção cirúrgica relacionada com o problema da cabeça do fémur/anca direita; porém, a testemunha GC, médico que elaborou o documento (intitulado “parece médico legal”) junto pela Autora com o requerimento de 10-09-2019, não se mostrou seguro da necessidade de futura cirúrgica; não vemos, pois, razão, para divergir da conclusão das perícias no tocante ao facto vertido em J.

Já quanto aos factos vertidos em K e L, importa salientar que não coincidem com a formulação do quesito 16.º, sendo certo que as respostas dadas a este quesito, em ambas as perícias, se deveram à circunstância de o mesmo se reportar à necessidade de acompanhamento em “consequência das intervenções cirúrgicas a realizar”.

Conforme resulta das perícias realizadas, a Autora ficou com um défice funcional decorrente das sequelas, as quais não a afetando em termos de autonomia e independência, “são causa de sofrimento físico, limitando-o(a) em termos funcionais”. Mais se refere no relatório final da 2.ª perícia que a Autora se queixa de “subjectivos dolorosos lombosagrada que se agravam com os esforços e mudanças climatéricas”.

Aliás, não podemos olvidar que se encontram provados os seguintes factos: Em consequência do acidente a Autora mantém dores na coluna dorso-lombar que lhe causam algumas dificuldades na vida sexual; tem também dores na lombo-sagrada que se agravam com os esforços e mudanças climatéricas; as dores que sente agravam-se para o final do dia, após o dia de trabalho, e ao dançar (cf. pontos 53, 54, 55 e 81).

As testemunhas PR e CS também deram conta das queixas da Autora, referindo designadamente o desconforto sentido perante oscilações de temperatura. Por outro lado, as testemunhas VS e GC afirmaram, nos seus depoimentos, existir necessidade de futuro acompanhamento médico da Autora e sujeição a tratamentos de fisioterapia, tendo mesmo a testemunha GC recomendado, no seu “parecer” a realização de uma consulta médica anual e de 10 sessões anuais de fisioterapia.

Por tudo isto, consideramos ser muito provável que, conforme descrito em K e L, a Autora venha a necessitar no futuro de ajuda médica e medicamentosa e de realizar sessões anuais de fisioterapia, como forma de atenuar os fenómenos dolorosos e influenciar o prognóstico positivamente e evitar o agravamento futuro.

Já quanto à matéria vertida em M, parece-nos que, em bom rigor, não corresponde factos naturalísticos propriamente ditos saber se Autora ficou com um Prejuízo de Afirmação Pessoal e/ou Prejuízo Sexual autonomamente valorizáveis”. Trata-se de matéria que nos remete para uma tipologia ou classificação de dano, que é comum ser utilizada no âmbito da perícia médico-legal e nortear o enquadramento jurídico dos danos e sua quantificação, incluindo a formulação dos pedidos.

Ora, perante a resposta a questões (supostamente) de “facto”, a jurisprudência tem vindo a entender que tudo se passa como se fosse de considerar não escrita. Nesta linha, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 07-10-2013, proferido no proc. n.º 488/08.1TBVPA.P1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do respetivo sumário: “Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 1.09.2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos. Neste sentido, a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado. E o acórdão do STJ de 07-05-2014, proferido no proc. n.º 39/12.3T4AGD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, citando-se parte do respetivo sumário: I- Compete ao Supremo Tribunal de Justiça, por tal constituir matéria jurídica, apreciar se determinada asserção – tida como “facto” provado – consubstancia na realidade uma questão de direito ou um juízo de natureza conclusiva/valorativa, caso em que, sendo objeto de disputa das partes, deverá ser julgada não escrita.” Numa outra perspetiva, com resultado equivalente, veja-se de Paulo Ramos de Faria, no seu artigo “Escrito ou não escrito, eis a questão! (A inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto)”, publicado na Revista JulgarOnline, novembro de 2017, em que o autor explica a razão de ser do preceito constante do art. 646.º, n.º 4, do anterior Código de Processo Civil, concluindo que “é manifestamente errada a inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto. Sinalizado o erro, tais proposições devem ser tidas por imprestáveis, inúteis ou irrelevantes – vale qualquer predicação que evidencie a sua inidoneidade para, no lugar de um facto, servir de premissa ao silogismo judiciário –, mas nunca por inexistentes ou não escritas.”

Concede-se apenas que seria possível considerar provada a factualidade que, a este propósito, estivesse descrita no relatório de avaliação do dano corporal. Atentámos, por isso, como aliás o fez o Tribunal recorrido, nos relatórios periciais, sendo fora de dúvida que, nos relatórios de ambas as perícias, não constam autonomizados os aludidos prejuízo de afirmação de afirmação pessoal e prejuízo sexual.

O Sr. Perito médico que realizou a 2.ª perícia, Dr. PV, explicou de forma cabal, no decurso da audiência de julgamento, a razão disso, não se podendo ver nos esclarecimentos prestados uma alteração de posição a este respeito, pese embora a forma algo sugestiva (com questões colocadas em termos hipotéticos) como foi questionado pelo mandatário da Autora; em particular, referiu aquele Sr. Perito que não foi considerado um prejuízo de afirmação pessoal na medida em que não havia notícia, por exemplo, de prática de atividade desportiva regular por parte da Autora antes do acidente; quando, em resposta à questão colocada, indicou um possível prejuízo de afirmação pessoal de grau 2, foi dizendo que seria se esta senhora tivesse uma atividade com desportiva com regularidade e alguma intensidade”; mais referiu que o prejuízo sexual, a ser considerado autonomamente, seria fixado no grau 1, mantendo, todavia, ser acertada a sua valoração nos termos constantes do relatório pericial, no âmbito do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica.

É bem certo que o Dr. GC manifestou, no seu “parecer médico legal”, e no depoimento prestado em audiência de julgamento, uma opinião médica diferente, no sentido da existência de uma repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer, bem como de prejuízo sexual. Todavia, as razões que singelamente indicou não são, em nosso entender, suficientes para abalar a valoração feita nas duas perícias médico-legais, as quais, reforçadas pelos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito médico, se nos afiguram mais consentâneas com a prática médico legal em situações idênticas.

Mantem-se inalterada a decisão da matéria de facto quanto ao facto vertido em M.
Procedem, pois, parcialmente as conclusões da alegação de recurso, sendo eliminadas as alíneas K e L e aditados os factos aí vertidos ao elenco dos factos provados, passando a figurar como pontos 100-A e 100-B.

Factos N, O e P

Na sentença foi considerado não provado:

N-Que a Autora para iniciar negócio próprio tenha arrendado uma loja, realizado as obras necessárias para instalar um café, e obtido as licenças necessárias juntos das respetivas entidades, para o funcionamento do espaço comercial.
O-Que a mãe da Autora tenha ido abrir o estabelecimento, negócio da Autora, a solicitação desta, nem que a Autora lhe tenha pago mensalmente 600,00 € até julho de 2016.
P-Que à data do acidente a Autora iria desempenhar a atividade profissional de gerente de café, que a própria exploraria, onde auferiria um salário mensal nunca inferior a 700,00 €.

A este respeito, na motivação da sentença, referiu-se designadamente que: “Para os factos provados 66 e 67 e não provados N a P não pode deixar de se ter presente que a A. não apresentou um único documento indiciador de que montara ela mesma e para si mesma o negócio alegado, documentos que inevitavelmente teria e que seriam demonstrativos do arrendamento da loja e/ou da titularidade das necessárias licenças para a abertura do estabelecimento; elementos que referenciou na sua petição, mas tão só. E a prova pessoal não foi consistente e ainda menos coerente a esse respeito.
Apesar de a A. e a sua mãe terem manifestado que o café era um estabelecimento da A., um projecto seu e por ela custeado, e que a mãe apenas se viu obrigada a abrir o café na altura que estava previsto porque a A., pelo acidente, não o pode fazer, o certo é que o próprio companheiro da mãe desde há 11 anos - pessoa que se revelou muito espontânea, conversadora e genuína - disse peremptoriamente que a A. ia ajudar a mãe no café; a mãe ia abrir um café em Janeiro, investimento da mãe e do companheiro, a testemunha PR; a MS vinha ajudar a mãe nesse negócio, foi esse o propósito da vinda dela de Inglaterra, e essa ajuda não foi possível de imediato por causa do acidente; depois, quando se reabilitou e teve alguma autonomia, a A. trabalhou com a mãe durante 2 anos.
E isso é corroborado pelo depoimento do pai da A., que espontaneamente referiu a facilidade/possibilidade da mãe prestar à A. o auxilio de que ela precisou quando teve alta hospitalar para o domicílio porque a mãe tinha um negócio perto de casa. E só quando direccionado por algumas questões colocadas pelo Ilustre Mandatário da A., então disse que a A. perspectivava abrir o café e que teve de ser a mãe a fazê-lo pela impossibilidade de, na ocasião, a A. o fazer; tendo também, no contexto dessas questões, referido que o café seria para o futuro da A., o que, no entanto, não é coerente com as iniciais afirmações espontaneamente feitas de que previsível ou provavelmente a A. regressaria a Inglaterra.
E a amiga JC mencionou que a A. vinha montar um negócio de café com a mãe, o qual a mãe montou sozinha; não podendo deixar de se assinalar que, na verdade, até a mãe da A. inicialmente se expressou em termos de que iriam abrir o negócio juntas, no sentido de a mãe beneficiar da experiência já adquirida pela A. no ramo, tendo depois inflectido o depoimento direccionando-o para o sentido de que o negócio era para ser da A. e a mãe iria só ajudar.
Destaque-se, no concernente a remunerações, que a mãe da A. expressamente mencionou não ter havido remuneração, nomeadamente sua: o negócio alimentava-se a si mesmo. Além do mais não tendo resultado provado o facto M todos os que o tinham como pressuposto ficam prejudicados, nomeadamente os factos 71 a 77 e 80 da petição.
Como se vê das assinaladas inconsistências, a A. não logrou fazer prova cabal, como o ónus probatório lhe impunha, dos factos ora em apreço, certo que o depoimento do companheiro da mãe da A. foi o discurso que se divisou mais genuíno e autêntico, e diverge frontalmente da alegação apresentada pela A. na petição.”

A Apelante pretende que sejam considerados provados os factos vertidos em N, O até “a solicitação desta” e P, 1.ª parte. Embora de forma muito pouco clara, parece-nos que, além dos elementos de prova acima indicados, a Apelante, em particular quanto ao facto vertido em P, invoca ainda prova documental, mais precisamente, os seus recibos de vencimento relativos ao período de setembro de 2013 a outubro de 2015, bem como as suas declarações de rendimentos para efeitos de IRS de 2016 e 2017 (cf. requerimento de 20 de julho de 2021), defendendo que daí resulta quer o rendimento auferido pela Autora antes do acidente, quer a sua inscrição fiscal, na categoria B destinada a “Profissionais, Comerciais e Industriais”, o que, conjugado com a prova testemunhal, considera indicador do projeto de montar o seu negócio em parceria com a mãe, no caso o café.

Vejamos.

Sem embargo dos referidos documentos, o certo é que a Autora não apresentou nenhuma prova documental atinente à constituição e exploração, por sua iniciativa, da referida empresa/estabelecimento comercial, incluindo a celebração de contrato de arrendamento; ora, parece-nos evidente que a ocorrência dos factos em apreço teria deixado um considerável “rasto de documentos”, até pela inerente burocracia envolvida.

Por outro lado, foi referido pela testemunha PR, de forma que se nos afigurou sincera, que o café era um negócio que a sua “mulher tinha aberto” e a MS “vinha para ajudar”; aliás, este deu conta do projeto de vida da Autora, referindo que ela equacionava ser assistente de bordo, se viesse a adquirir um bom nível de inglês, tendo sido para isso que tinha ido trabalhar para Inglaterra; acrescentou que a outra possibilidade que ela chegou a ponderar era vir a ser instrutora de mergulho (atividade que a testemunha disse praticar). Não nos pareceu, nem mesmo do depoimento de CS, que a Autora, tivesse feito fosse o que fosse no sentido da abertura do café, mais nos parecendo que seria uma forma gizada pela testemunha no sentido de facilitar o regresso da filha, tendo mesmo dito espontaneamente que a intenção era a filha “ficar uns anos perto de mim” (desgostando-a que isso não tivesse acontecido, até porque, como também referiu, entretanto precisou de emigrar para poder melhorar a sua situação financeira).

Tudo ponderado, improcedem as conclusões da alegação de recurso, mantendo-se inalterada, neste particular, a decisão a matéria de facto.

Facto Q

Na sentença considerou-se não provado: Que em consequência do acidente, a Autora ficou uma pessoa complexada, sentindo-se inferiorizada perante as outras pessoas.
Na motivação da sentença referiu-se, a este propósito, que: “(P)ara a resposta ao facto Q considerou-se que as próprias declarações de parte não o denotaram; a A. revelou-se uma pessoa segura, animicamente forte, e sem complexos face aos outros, pese embora as sequelas que para si resultaram do acidente; isso, naturalmente, sem prejuízo da amargura e tristeza que sente pelo que vivenciou e sem prejuízo de algum desânimo que possa ter nalguns momentos e receio quanto ao futuro. Mas esses são factos diversos e consideraram-se em lugar próprio porque também alegados.”

Apreciando.

Atentámos nos relatórios periciais, especialmente no relatório elaborado por psicólogo, em que consta que a Autora referiu complexos com o corpo devido a cicatrizes, mas também verificámos que aí se refere, a propósito de um dos instrumentos de avaliação psicológica utilizados, que os resultados obtidos pela examinanda sugerem a existência de alterações ao nível da Somatização, Situação Interpessoal, Depressão, Ansiedade, Hostilidade, Ansiedade Fóbica  e Psicoticismo e que o facto de a generalidade das escalas se encontrar elevada poderá sugerir a “dissimulação, através de um perfil faking bad”. Conclui-se nesse relatório que: “Os resultados obtidos nas provas aplicadas sugerem a presença de diversas alterações psicopatológicas nomeadamente ao nível da somatização, pensamentos bizarros/confusos e ansiedade fóbica. A aplicação de provas específicas sugere a presença de uma depressão leve e de uma ansiedade moderada compatível com Perturbação de Stresse Pós-traumático [DSM-5: 309.81 (F43.10)]. A relação entre essas alterações e o acontecimento traumático é possível, mas não determinável até porque à própria examinanda admite o consumo de canabinóides. (…) Revela força interna e pessoal, bem como competências e habilidades pessoais e sociais e relações afetivas e sociais.”
Por outro lado, o Dr. NFR, médico que foi responsável pelo acompanhamento da Autora providenciado pela Seguradora, referiu não ter sido diagnosticado nenhum problema do foro psicológico, mormente stress pós-traumático.
Reiteramos que os depoimentos prestados pelos pais e “padrasto” da Autora foram marcados por uma compreensível carga subjetiva, descrevendo um quadro ainda “mais negro” do que aquele que a própria Autora relatou, parecendo-nos que esta, certamente devido à sua juventude e personalidade, está a conseguir lidar de forma positiva com as sequelas de que ficou a padecer.
Por tudo isto, não ficámos convencidos a respeito da verificação do facto em apreço, mantendo-se inalterada a decisão recorrida neste particular.

Facto S

Na sentença considerou-se não provado: Que a cicatriz que a Autora apresenta no tornozelo esquerdo tem hipersensibilidade ao toque, nem que seja por isso ou pela existência da cicatriz que use sempre ténis.
Na motivação da sentença referiu-se, a este respeito, que “o mesmo não resultou provado, não só por não lhe ter sido feita cabal referência na prova pessoal, como também, e especialmente, por não decorrer dos Relatórios Periciais do INML elementos que permitam afirmá-lo.”
A Apelante parece considerar que as suas declarações bastam para prova deste facto.
No entanto, não lhe assiste razão, sendo evidente que um tal facto sempre deveria, pelo menos em parte, resultar comprovado pelas perícias realizadas, o que não sucede, conforme salientado na decisão recorrida; tão pouco as declarações de parte da Autora, para as quais esta se limitou a remeter genericamente, nos convenceram a respeito deste facto, que não pode deixar de continuar a ser considerado como não estando provado.

2.ª questão - Agravamento dos danos da Autora em virtude de facto culposo a si imputável

Na sentença recorrida teceram-se sobre esta questão as seguintes considerações:

«De quanto antecede outra conclusão não é possível se não a de que a exclusiva responsabilidade pela produção do acidente é do condutor do veículo automóvel LI. E porque a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros, emergentes da circulação daquele veículo, havia sido transferida para a seguradora R. (cfr. facto provado 17) é ela a responsável pelo pagamento dos danos que desse acidente tenham resultado, sendo a matéria de facto exuberante quanto a que o acidente causou danos na esfera jurídica da A., verificando-se assim a existência do nexo de causalidade e, por conseguinte, a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, sem prejuízo, porém, de merecer análise a relevância a atribuir a eventual comportamento censurável da própria lesada A., aspecto a que voltaremos adiante.
(…) Aqui chegados e quantificados que estão os valores indemnizatórios pelos danos patrimoniais, pelo dano biológico e pelos danos não patrimoniais, haveremos de determinar, como acima tivemos oportunidade de anunciar, qual a relevância a atribuir a eventual comportamento censurável da própria lesada A., porquanto o artº 570º nº 1 CCivil estabelece que “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
No caso, aquando do acidente a A. seguia do lado esquerdo do banco traseiro do veículo ...-...-..., sem cinto de segurança colocado (cfr. facto provado 101), conduta que configura clara violação ao artº 82º nº 1 CEstrada na redacção então vigente, normativo que impõe aos passageiros o uso desse dispositivo de segurança, sendo portanto eles mesmos destinatários da obrigação legal contida no preceito. E o facto provado 101 é em si revelador de que a A. infringiu essa obrigação legal voluntária e conscientemente : é quanto decorre da circunstância de ter tirado o cinto de segurança para aceder ao telemóvel.
Ora, o cinto de segurança – como, aliás, se vê da sua própria denominação – é um dispositivo destinado a garantir a segurança, e a esfera de protecção da norma impositiva/obrigatória vertida no citado artº 82º nº 1 CEstrada é precisamente a de salvaguardar a integridade física e a vida dos ocupantes dos veículos.
Por conseguinte a violação daquele preceito legal pela A. constitui um acto ilícito e culposo que colide directamente com os fins da norma e com o respectivo núcleo de protecção, tendo-se a mesma colocado voluntariamente na situação potencial de fazer perigar a sua integridade física ou a vida.
No caso verificou-se que dos quatro ocupantes do veículo ...-...-... apenas o passageiro que seguia no banco dianteiro ao lado do condutor, seguia com cinto de segurança colocado, os três que não usavam cinto de segurança – entre eles a A. – foram projectados para o exterior do veículo durante o acidente e os três ficaram politraumatizados. Já o passageiro que seguia no banco dianteiro ao lado do condutor com cinto de segurança colocado permaneceu no interior do veículo durante o acidente, quando o veículo se imobilizou saiu dele pelo seu pé, ficou com ferimento ligeiros e após observação hospitalar teve alta no dia seguinte (cfr. factos 102 a 106).
Estes factos objectivos permitem com recurso a presunções judiciais (cfr. artº 349º CCivil) e ao conhecimento científico, que é do domínio público, que subjaz à obrigatoriedade do uso de cinto de segurança como mecanismo de protecção em caso de sinistro rodoviário, afirmar com segurança que na dinâmica do acidente a A. foi projectada para fora da viatura porque não tinha o cinto de segurança colocado, e em resultado dessa projecção embateu no solo e sofreu as múltiplas e graves lesões elencadas na matéria de facto, das quais decorreu a necessidade de assistência médica, medicamentosa e de recuperação, e resultaram as irreversíveis consequências ali também enunciadas, maxime o défice funcional permanente de 14,8 pontos.
Surge-nos, porém, como óbvio que o não uso do cinto de segurança, em si mesmo, não constituiria causa adequada à produção das lesões sofridas pela A.. Mas, por outro lado, ressalta da matéria de facto que caso a A. estivesse a usar cinto de segurança aquando do acidente a mesma não teria sido projectada do veículo e não teria padecido as lesões graves que sofreu, e provavelmente nenhumas teria sofrido; basta ver que o passageiro que seguia com cinto de segurança no banco direito ao lado do condutor, portanto em zona do veículo que teve vários embates violentos (cfr. factos 6 e 8), não sofreu nenhum ferimento grave.
Estas circunstâncias evidenciam que, apesar de a A. não ter o cinto de segurança colocado, não fora o acidente - por cuja produção apenas é responsável o condutor do veículo seguro pela R., como vimos - e certamente todos os ocupantes do veículo chegariam íntegros ao destino; e, por outro lado, mesmo com a ocorrência do acidente, se a A. tivesse o cinto de segurança colocado sofreria ferimentos ligeiros ou mesmo nenhuns.
Ora, como se diz no Acórdão do STJ de 06/04/2017, proferido no pº 1658/14.9TBVLG.P1.S1 (disponível na base de dados de jurisprudência da dgsi) a “(...) conduta culposa da vítima, não apagando ou precludindo obviamente a censurabilidade do erro ou falta cometido pelo condutor, não se pode perspectivar como dado ou elemento absolutamente neutro ou irrelevante para (...) a gravidade das suas consequências – cabendo naturalmente valorá-la, em sede de cômputo da indemnização, nos termos e por força do disposto no art. 570º do CC. (...)”.
E diante de quanto antecede, podemos concluir que a conduta do condutor do veículo seguro pela R., causadora do acidente, e a conduta da lesada A., ambas violadoras de normas estradais cuja esfera de protecção é a segurança rodoviária, contribuíram de igual modo para a produção e extensão das lesões sofridas pela A. e inerentemente para a produção dos diversos danos que têm nessas lesões a sua génese.
Por isso, por aplicação da norma contida no artº 570º do CCivil, deve aplicar-se aos montantes indemnizatórios a redução decorrente da percentagem de culpa na produção/extensão dos danos atribuída ao comportamento censurável da própria vítima A., o que, face ao que supra explanámos, determina a sua redução a metade.
Deste modo somos a concluir que, atenta a concorrência do facto culposo da A. para a produção e/ou agravamento dos danos, a R. deverá indemnizá-la nos montantes de € 3.095,60 pelos danos patrimoniais, de € 12.500,00 pelo dano biológico, e € 15.000,00 pelos danos não patrimoniais.»

A Autora-Apelante defende que a Ré deve ser considerada responsável pela totalidade dos danos, argumentando, em síntese, ter sido produzida prova que permite concluir pela possibilidade de as lesões corporais se produzirem mesmo que aquela não usasse cinto de segurança, sendo impossível de provar o nexo de causalidade e o eventual agravamento das mesmas após a projeção da Autora do veículo, pelo que inexiste fundamento para reduzir em metade a indemnização devida.

Vejamos.

Em primeiro lugar, a argumentação da Autora confunde questões de facto e de direito, não sendo claro se pretendeu impugnar a decisão da matéria de facto.

Admitindo que foi sua intenção fazê-lo, importa ter presente o disposto no art. 640.º, n.º 1, do CPC, sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, que:
1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)-A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

É conhecida a divergência jurisprudencial que existiu a respeito da aplicação deste normativo e da sua conjugação com o disposto no n.º 1 do art. 639.º do CPC, atinente ao ónus de alegar e formular conclusões, vindo o STJ a firmar jurisprudência no sentido do “conteúdo minimalista” das conclusões da alegação, conforme espelhado no acórdão do STJ de 06-12-2016 - Revista n.º 2373/11.0TBFAR.E1.S1 - 1.ª Secção, sumário citado na compilação de acórdãos do STJ, “Ónus de Impugnação da Matéria de Facto, Jurisprudência do STJ”, disponível em www.stj.pt, bem como o acórdão do STJ de 01-10-2015, no processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

Nesta linha, conclui-se resultar da conjugação do disposto nos artigos 635.º, 639.º e 640.º do CPC que o ónus principal a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto.
Ora, a Apelante não cuidou de impugnar, pelo menos em termos percetíveis, quaisquer pontos concretos da sentença, pelo que mais não resta do que rejeitar a (incipiente) impugnação da decisão da matéria de facto.
Perante isto, cumpre apreciar se, ante a matéria de facto provada (em particular, a vertida nos pontos 101. a 106.) foi (in)corretamente aplicado o disposto no art. 570.º, n.º 1, do CC, (não) se justificando reduzir o montante da indemnização devida à Autora, pelo menos na proporção de metade.
Clarificando o sentido desta norma, lembramos as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, no seu “Código Civil Anotado”, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, págs. 587-588: “Para que o tribunal goze da faculdade conferida no n.º 1, é necessário que o acto do lesado tenha sido uma das causas do dano, consoante os mesmos princípios de causalidade aplicáveis ao agente (cfr. art. 563.º).  Deve, além disso, o lesado ter contribuído com a sua culpa para o dano (cfr. n.º 2 do art. 487.º …). A culpa do lesado tanto pode reportar-se ao facto ilícito causador dos danos, como directamente aos danos provenientes desse facto. Falando no concurso do facto culposo para a produção dos danos ou para o agravamento deles, a lei pretende sem dúvida abranger os dois tipos de situações. (…)”.

No caso dos autos, já se viu que a exclusiva responsabilidade pela produção do acidente foi atribuída ao condutor do veículo segurado pela Ré, pelo que não se trata aqui de discutir se um facto culposo da Autora, lesada, concorreu para a produção dos danos, cumprindo apenas decidir se um facto culposo daquela contribuiu para o agravamento dos danos.

Tem sido produzida jurisprudência sobre o conceito de facto culposo do lesado, especialmente em situações de condutor ou passageiro sem cinto de segurança, merecendo destaque, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos do STJ (sumários disponíveis em www.stj.pt):

- de 03-03-2009, na Revista n.º 9/09 - 6.ª Secção:
III- É matéria de facto, que o STJ tem de acatar, por estar subtraída ao seu controle (arts. 722.º e 729.º do CPC), o nexo causal - naturalístico - estabelecido pelas instâncias entre a ausência do cinto de segurança e o agravamento das lesões sofridas pelo autor. 
IV- É matéria de direito - e incluída, por isso, na competência do tribunal de revista - o segundo momento da causalidade, referente ao nexo de adequação, de harmonia com o qual o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais ou extraordinárias. 
V- No caso dos autos o nexo de adequação está presente uma vez que, em geral e abstracto, a ausência de cinto de segurança é um facto omissivo apto a causar agravamento das lesões em caso de acidente de viação.”

- de 06-05-2004, na Revista n.º 1217/04 - 2.ª Secção:
III- Devem distinguir-se as situações de não uso do capacete das situações de não uso do cinto de segurança; por um lado, é manifestamente superior (em termos de previsibilidade normal) o risco de lesões na cabeça para um condutor ou um passageiro de veículo de duas rodas que em contravenção ao CEst que não traz o capacete colocado, relativamente àqueles que o usem, e, por outro, tal previsibilidade relativamente aos acidentes em que os lesados usem ou não os cintos de segurança torna-se bastante mais difícil, dada a multiplicidade de hipóteses susceptíveis de ocorrência.
IV-Quanto aos terceiros causadores dos danos encontra-se substancialmente em causa a violação de disposições legais destinadas a proteger direitos ou interesses alheios, pressuposto essencial da responsabilidade civil (art.º 483, n.º 1 do CC); quanto ao uso ou não uso do cinto de segurança, o cumprimento de disposições legais/regulamentares tendentes a proteger o próprio passageiro.
V- Seria as mais das vezes "diabólica" a prova de que o não uso do cinto de segurança em nada contribuiu para as lesões ou seu agravamento.”

- de 17-06-2010, na Revista n.º 1433/04.9TBFAR.E1.S1 - 2.ª Secção:
IV- A formulação legal do art. 570.º do CC afasta os actos do lesado que, embora constituindo concausa do dano, não merecem um juízo de reprovação ou censura. 
V- Daí que a redução ou exclusão da indemnização apenas ocorra quando o prejudicado não adopte a conduta exigível com que poderia ter evitado a produção do dano ou agravamento dos seus efeitos. 
VI-Tal concausalidade determina-se pelo método da causalidade adequada, referido no art. 563.º do CC: ou seja, o agente só responderá pelos resultados para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta a produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária. 
VII- Em geral e abstracto, a ausência de um cinto de segurança é um facto omissivo apto a causar um agravamento das lesões em caso de acidente de viação, para além de constituir uma infracção estradal (art. 81.º, n.º 1, do CEst), o que faz impender sobre o prevaricador a presunção de culpa na produção dos danos dela decorrentes.”

- de 21-02-2013, na Revista n.º 2044/06.0TJVNF.P1.S1 - 7.ª Secção (também disponível em www.dgsi.pt):
«III- O tribunal deve conhecer da culpa do lesado, “ainda que não seja alegada” (art. 572.º do CC). 
IV- No sentido do art. 563.º do CC, a falta de colocação do cinto de segurança não é causa adequada dos danos sofridos pelo passageiro de um veículo automóvel que foi embatido por outro; não se pode falar, assim, de uma situação de concorrência de causas do dano. 
V- Mas essa falta pode ter contribuído para o agravamento do dano causado pelo acidente e, por essa via, conduzir à redução da indemnização devida, porque se trata de uma omissão de cuidado claramente culposa, ostensivamente reveladora da inobservância do cuidado e diligência exigíveis a uma pessoa medianamente diligente e cuidadosa, colocada na situação da lesado. É do conhecimento geral que é perigoso fazer-se transportar num veículo automóvel sem ter o cinto de segurança colocado.”

Nesta senda, diga-se, desde já, que nenhuma razão assiste à Apelante quando defende (cf. conclusão 12.ª) que o facto de ter retirado o cinto de segurança apenas para aceder ao telemóvel implica que a sua conduta seja de considerar justificada, não devendo merecer qualquer juízo de censura. Na verdade, além de não estar verificada nenhuma das causas de justificação ou de desculpa legalmente previstas, parece-nos evidente que não se pode ver na sua atuação um comportamento socialmente adequado ou desculpável insuscetível de se reconduzir à previsão do art. 570.º, n.º 1, do CC. Note-se que, não só inexistia uma razão objetivamente atendível para que tivesse de aceder ao telemóvel (a Autora, nas declarações que prestou, disse que o fez porque queria ver as horas), como estava a ser transportada num veículo que seguia a uma velocidade excessiva numa autoestrada. Assim, tendo a Autora perfeita consciência de que seguia sem cinto (por ela própria o ter retirado), o que fez sem nenhum sentido de oportunidade e por um motivo que não pode deixar de ser considerado fútil, é claro que incorreu na prática de uma contraordenação estradal, prevista e punida, pelo art. 82.º, n.ºs 1 e 6, do Código da Estrada, na versão em vigor.

Dito isto, já não podemos acompanhar inteiramente as considerações tecidas na sentença recorrida no tocante à medida da contribuição culposa da Autora para os danos sofridos e respetiva redução do valor da indemnização devida.

Lembramos, pela sua concreta relevância, a dinâmica do acidente tal como resulta dos factos descritos nos pontos 4. a 13.: por alturas de ter passado a circular na AE n.º 1 (sentido Sul / Norte) o condutor do ...-...-... repentinamente mudou para a via de circulação à esquerda e com essa manobra perdeu o controlo do veículo; embateu ligeiramente no separador central e entrou em despiste para a sua direita; indo embater no lancil existente à direita, o qual delimita e separa a via de acesso à AE n.º 1 provinda da Avenida ... ...; nesse embate o ...-...-... perdeu duas rodas e prosseguiu em despiste; galgou o talude que ali se encontra à direita, junto ao atual Regimento de Transportes; capotou diversas vezes até que se imobilizou mais adiante na 2.ª via da direita, tendo ficado imobilizado a 87 metros do lancil em que anteriormente embatera.

Tendo em conta esta factualidade e as consequências que resultaram dos factos culposos do condutor do veículo e da Autora, de modo algum nos parece seguro afirmar, como faz o Tribunal a quo, que “mesmo com a ocorrência do acidente, se a A. tivesse o cinto de segurança colocado sofreria ferimentos ligeiros ou mesmo nenhuns”.

Na verdade, dada a violência do acidente, parece-nos que seria quase impossível que a Autora, ainda que usando cinto de segurança, não tivesse sofrido nenhuns ferimentos; aliás, até nos parece pouco provável que apenas sofresse ferimentos ligeiros; embora isso tenha acontecido com o único dos passageiros que usava cinto, para tanto também podem ter contribuído outros fatores, como a posição que ocupava no veículo. Admitimos tão só como muito provável que o uso do cinto poderia ter contribuído para evitar algumas das lesões sofridas pela Autora. Porém, não podemos deixar de salientar que não está provado que tais lesões tenham ocorrido apenas por causa da projeção para o exterior do veículo; além disso, não se pode olvidar que, mesmo usando cinto, a Autora poderia ter sofrido sérias lesões, designadamente nas áreas do peito, na zona abdominal e lombar.

Por outro lado, quanto à gravidade das culpas do condutor e da Autora, consideramos que a atuação daquele é muitíssimo mais grave, na medida em que conduzia a uma velocidade consideravelmente superior ao limite máximo permitido e sob o efeito de substâncias psicotrópicas, incorrendo em duas contraordenações estradais (grave e muito grave) p. e p. pelos arts. 27.º e 145.º e 81.º e 146.º do Código da Estrada. Não se nos afigura, pois, que o facto ilícito imputável à Autora possa ser equiparado à situação apreciada no acórdão do STJ de 06-04-2017 invocado na sentença recorrida; foi entendido neste acórdão que, não obstante a conduta censurável do condutor - ao perder o domínio da marcha do veículo, permitindo que este passasse a circular pela berma e raspando em prédio que ladeava a estrada - tinha de operar a redução decorrente da percentagem de culpa na eclosão do acidente atribuído a comportamento censurável da própria vítima, ao agravar sensivelmente os riscos e as consequências do embate, por seguir injustificada e temerariamente com (pelo menos) a cabeça fora da janela do veículo. Na verdade, o comportamento de um passageiro que se faz transportar com a cabeça do lado de fora da janela é, a nosso ver, muito inusitado e até temerário, merecendo um juízo de censura mais intenso.

Efetuada uma pesquisa da jurisprudência do STJ nos últimos anos, foi-nos dado verificar que existe alguma disparidade a este propósito, obtendo-se um valor médio de redução do montante indemnizatório na ordem dos 25%, conforme ilustrado pelos seguintes acórdãos (sumários disponíveis em www.stj.pt):

- de 03-03-2009, na Revista n.º 9/09 - 6.ª Secção:
“(…) VI-O art. 570.º, n.º 1, manda atender exclusivamente à gravidade das culpas de ambas as partes e às consequências delas resultantes, não permitindo o julgamento segundo a equidade (art. 4.º do CC). 
VII- Na avaliação global das condutas de lesante e lesado para que a lei aponta no art. 570.º, n.º 1, deve ser tida em conta a contribuição causal do facto culposo do lesado, não para a produção do acidente (que ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na ré), mas somente para o aprofundamento das lesões (por não levar o cinto de segurança colocado). 
VIII- Provando-se que as lesões sofridas pelo autor se agravaram por viajar deitado no banco de trás, que se encontrava rebatido, a dormitar e sem o cinto de segurança posto, ignorando-se, todavia, o peso relativo de cada um destes factores em tal agravamento e, bem assim, a medida, o grau deste, a indemnização a fixar deverá ser reduzida em 15%, por aplicação do disposto no art. 570.º, n.º 1, do CC.”

- de 17-06-2010, na Revista n.º 1433/04.9TBFAR.E1.S1 - 2.ª Secção:
VIII-Demonstrando os factos apurados que o autor seguia gratuitamente, sem o cinto de segurança colocado, no banco da frente de um veículo ligeiro de mercadorias e que este se despistou a pelo menos 150 km/hora, capotando várias vezes, tendo o autor sido “cuspido” pela janela fora, projectando-o para o asfalto, e na falta de mais factos que permitam verificar a ocorrência de qualquer circunstância extraordinária que só por si excluísse a participação da omissão do uso do cinto de segurança no agravamento dos danos sofridos, deve concluir-se que é ajustada a percentagem de 20% da culpa do autor para a ocorrência daqueles. 

- de 12-09-2013, na Revista n.º 157/07.0TBVFC.L1.S1 - 2.ª Secção:
IV- Tendo resultado provado que a autora não apertara o cinto de segurança e que a circunstância de ter sido cuspida da viatura inculca a certeza que a falta do cinto foi decisiva na ocorrência das graves lesões que sofreu, afigura-se equilibrada e equitativa a percentagem de contribuição da ofendida – para a produção das lesões – fixada pelas instâncias de 50%.”

- de 19-04-2016, na Revista n.º 212/10.9 TCGMR.G1.S1 - 1.ª Secção:
II- Resultando da decisão sobre a matéria de facto que a lesada não teria sido projectada do habitáculo do veículo onde era transportada, se estivesse presa pelo cinto de segurança ao banco onde seguia sentada, é de concluir apenas que cometeu um facto ilícito consubstanciado na omissão/falta de uso do cinto, sem que se possa ter por adquirido que agiu com culpa, apuramento que, afinal, se evidenciou irrelevante, por ter a seguradora ficado constituída no dever de indemnizar, com base na responsabilidade objectiva. 
III- Não obstante, a apontada conduta ilícita tem de se considerar como comparticipativa de um agravamento das lesões sofridas, sendo criterioso e ponderado atribuir, em estimativa, uma percentagem de 15%, conforme decidiu o acórdão recorrido.

- de 14-12-2016, na Revista n.º 12381/11.6TBBCL.G1.S1 - 2.ª Secção:
IV-Tendo, porém, ficado demonstrado que a vítima, no momento do despiste ocorrido em virtude de objecto existente na faixa de rodagem, não usava cinto de segurança – circunstância que, configurando a violação da norma estradal do art. 82.º, n.º 1, do CEst, concorreu para o agravamento do resultado (art. 570.º, n.º 1, do CC) – é adequado fixar a sua contribuição para o acidente em 25%.”

- de 05-06-2018, na Revista n.º 370/12.8TBOFR.C1.S2 - 6.ª Secção: III- Desconhecendo-se as lesões que a vítima mortal sofreria caso usasse o cinto de segurança e não tivesse sido projectado para o exterior do seu veículo, o montante indemnizatório total, a pagar pela seguradora, deve, com recurso à equidade, ser reduzido em 40% - art. 496.º, n.º 3, do CC.”

de 03-07-2018, na Revista n.º 36/12.9T2STC.E1.S1 - 6.ª Secção: IV- Atendendo à culpa do autor, por não usar o cinto de segurança, agravando os danos sofridos em 15%, o valor a arbitrar a título de indemnização pelo dano biológico deve ser fixado em € 34 000 (e não em € 20 000, como entendeu a 1.ª instância, nem em € 25 000, como decidiu a Relação).”
Tudo ponderado, procedem parcialmente as conclusões da alegação de recurso, sendo mais ajustado, em nosso entender, operar uma redução do montante da indemnização de (apenas) 25%.

3.ª questão – Quantificação do dano biológico

Na sentença recorrida desenvolveram-se, a este propósito, as seguintes considerações:

“O dano biológico tem sido objecto de muita análise dogmática por não ser simplesmente enquadrável na dicotomia tradicional de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais, podendo ter reflexos numa, noutra ou em ambas as categorias uma vez que ele tanto pode ter consequências patrimoniais como não patrimoniais, tendo vindo a consolidar-se o seu reconhecimento como dano autónomo, a que subjaz o juízo de que o lesado não pode ser objecto de uma visão redutora e economicista do homo faber, como uma simples força de trabalho, ressaltando uma visão humanista do lesado, como ente complexo, pleno em todos os aspectos da sua individualidade como ser humano, plenitude essa que corresponde ao estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas à ausência de doença ou enfermidade.
Por isso qualquer afectação da integridade anátomo-funcional do ser humano constitui um dano em si mesmo, independentemente das consequências patrimoniais e não patrimoniais que possa acarretar, que devem ser ponderadas em cada caso concreto.
Este dano vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais.
É um prejuízo que se repercute nas potencialidades, qualidade de vida e bem-estar do lesado ao longo da vida, susceptível de afectar o seu dia-a-dia em todas as suas vertentes: familiar, laboral, social, afectiva, sentimental, sexual, recreativa, etc. dada a inferioridade em que o lesado se encontra na sua condição física, quanto à resistência e capacidade de esforço. Determina perda das faculdades físicas e/ou intelectuais que se projecta no futuro, e eventualmente agravável em função da idade do lesado; poderá afectar a sua vida de relação; poderá exigir do lesado esforços acrescidos, conduzindo-o a uma posição de inferioridade no mercado de trabalho.
Em suma, corresponde a um estado deficitário de natureza anatómico-funcional ou psicosensorial, com carácter definitivo e com impacto nos gestos e movimentos próprios da vida corrente comuns a todas as pessoas.
Pode ser valorada em diversos graus de percentagem, tendo como padrão máximo o índice 100.
No caso vertente, em consequência do acidente a A. está afectada de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14,8 pontos (facto provado 62), e apresenta : no crânio, cicatriz hipocrómica, linear, no terço posterior esquerdo da região parietal, horizontal, com 2,5 cm de comprimento; no tórax, cicatriz acastanhada, linear, abrangendo a face anterior do ombro direito, estendendo-se até à face anterior do terço superior do tórax, oblíquo para baixo e para a esquerda, com 12 cm de comprimento; no membro superior direito, várias cicatrizes ligeiramente hipocrómicas, pouco visíveis, no dorso da mão, ocupando no conjunto uma área de 5x1,5cm; área ligeiramente hipocrómica, arredondada, mediando 1cm de diâmetro; no membro superior esquerdo, três cicatrizes acastanhadas, lineares, com vestígios de sutura, a primeira localizada à extremidade externa do ombro, horizontal, com 3 cm de comprimento, a segunda na face anterior do terço superior do braço, vertical, com 2 cm de comprimento, e a terceira na face anterior do terço inferior do braço, com 3 cm de comprimento; no membro inferior esquerdo, cicatriz nacarada, linear, na face externa do tornozelo, vertical, com 8 cm de comprimento (cfr. facto provado 52)
Por outro lado, mantém dores na coluna dorso-lombar que lhe causam algumas dificuldades na vida sexual e tem também dores na lombo-sagrada que se agravam com os esforços e mudanças climatéricas, sendo que as dores que sente agravam-se para o final do dia, após o dia de trabalho (cfr. factos provados 53 a 55).
É inequívoco tratar-se de sequelas limitadoras da vida quotidiana, quer ao nível pessoal, quer ao nível profissional, apesar de as sequelas de que a A. ficou a padecer serem compatíveis com o exercício da sua actividade profissional, implicando, contudo, esforços suplementares (cfr. facto provado 64).
É facilmente percepcionável que as dores na coluna dorso-lombar e na lombo-sagrada, que ademais se agravam com os esforços e mudanças climatéricas, agravando-se sempre para o final do dia, após o dia de trabalho (cfr. factos provados 53 a 55), importam uma diminuição da condição física da A. e da sua resistência e capacidade de esforço, que se traduz numa deficiente capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades em geral, incluindo nas suas tarefas profissionais, implicando maior penosidade, dispêndio e desgaste físico no desempenho de todas as actividades diárias (pessoais e profissionais), e acarreta uma menor qualidade de vida em geral.
Não sendo possível determinar o valor exacto do dano biológico e sendo este diverso do dano não patrimonial, é jurisprudência pacífica que a respectiva avaliação deve de ser efectuada recorrendo à equidade nos termos do artigo 566 º nº 3 do CCivil, e na determinação do seu quantum indemnizatório ter-se-á em consideração a prática jurisprudencial em situações semelhantes face ao que dispõe o artº 8° n° 3 do CCivil, não se perdendo de vista as especificidades do caso concreto.
Assim, ponderando que à data do acidente a A. tinha 23 anos de idade (cfr. se extrai do facto 65); era uma pessoa activa, dinâmica, sem qualquer limitação física (cfr. facto 78); ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14,8 pontos (cfr. facto 62); ficou com as múltiplas cicatrizes descritas no facto provado 52 e anteriormente ao acidente não tinha qualquer cicatriz no corpo (cfr. facto 83); tem subjectivos dolorosos que lhe causam algumas dificuldades na vida sexual (cfr. facto 53 a 55), aspecto particularmente significativo na juventude; apesar das sequelas serem compatíveis com o exercício da sua actividade profissional habitual implicam esforços suplementares (facto 64), e embora a A. tenha deixado de trabalhar na restauração e passado a trabalhar numa loja de roupa (cfr. facto 90) esse esforço acrescido mantém-se, desde logo porque a experiência da vida nos revela que os lojistas se mantém muito tempo de pé e a A. não consegue estar longos períodos de pé, tendo de se sentar para poder descansar (cfr. facto 82), e as dores que sente agravam-se para o final do dia, após o dia de trabalho (cfr. facto 55), o que inevitavelmente condicionará as suas expectativas profissionais e evolução no mercado de trabalho e inerentemente a sua capacidade de ganho; apresenta um dano estético permanente de grau 3 numa escala crescente de 7 (cfr. facto 63); sofreu um quantum doloris de grau 5 numa escala crescente de 7 (cfr. facto 61); sendo patente, à luz das regras da experiência da vida, a afectação permanente que as sequelas e a condição dolorosa acarretam na vida social, de relação e das actividades recreativas, entendemos ser adequado e equitativo avaliar o dano biológico, decorrente do défice funcional permanente de que a A. ficou portadora, em € 25.000,00.”
A Apelante continua a defender que o dano biológico deve ser quantificado no valor de 30.000,00 €, citando jurisprudência.

Apreciando.

Sobre o conceito de dano biológico tem sido publicada abundante doutrina e jurisprudência, visando inclusivamente a Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio (alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25-06), em cujo Preâmbulo se refere precisamente que “uma das alterações de maior impacte será a adopção do princípio de que só há lugar à indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional habitual ou qualquer outra. No entanto, ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica”. O direito indemnizatório desse dano, a par de outros ditos “danos morais complementares” encontra consagração no art. 4.º da Portaria n.º 377/2008, que veio a ser alterado pela Portaria n.º 679/2009, em cujo Preâmbulo se explicita que se pretendeu, em concreto, alargar o direito indemnizatório por esforços acrescidos a lesados ainda sem actividade profissional.
Na doutrina, destacamos o estudo da Senhora Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo “Adopção do Conceito de “Dano Biológico” Pelo Direito Português”, disponível online, em https://portal.oa.pt/, citando, pelo seu interesse, as respetivas conclusões:
«1.–A adopção da Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil é de aplaudir porque permite, por um lado, separar as consequências da situação de incapacidade laboral e, por outro lado, que o juiz atribua relevância à incapacidade genérica ou funcional;
2.–O dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/ danos não patrimoniais;
3.–Quando a prática jurisprudencial nacional se afasta das conclusões do número anterior tende a obscurecer a clareza dos fundamentos das decisões e a causar eventuais injustiças;
4.–O tratamento do conceito de dano biológico teve todavia a vantagem de permitir percepcionar a existência de componentes do dano real habitualmente esquecidos para efeitos indemnizatórios. Mas damos como certo que apenas danos de consequências não patrimoniais se podem presumir como sendo comuns a todas as pessoas que sofram o mesmo tipo de lesão psico-somática;
5.–A compensação destas consequências de índole não patrimonial poderá efectuar-se mediante recurso a uma tabela indemnizatória de carácter indicativo que, porém, não dispensa a ponderação casuística pelo julgador de outros danos não patrimoniais, danos variáveis de sujeito para sujeito e que, na senda da doutrina italiana, poderemos
qualificar como “danos não patrimoniais subjectivos”;
6.–O regime da Portaria n.º 377/2008, tem, entre outras deficiências, um vício capital: lida com o “dano biológico” como correspondendo a consequências patrimoniais de situações de incapacidade temporária e/ou parcial, uma vez que o contrapõe aos danos patrimoniais futuros das situações de incapacidade de obtenção de rendimentos absoluta (ou equiparada), orientação da qual divergimos como se extrai das conclusões 4. e 5.»

Neste estudo, a autora, depois de lembrar que o dano biológico é um dano-evento que não se confunde com os denominados “danos-consequência” que hão-de ser ponderados no cálculo da indemnização pecuniária, explica que as consequências do dano biológico podem ser diferentes, de ordem patrimonial ou não patrimonial, havendo que distinguir, além do mais, a redução da força de trabalho, a perda de rendimentos profissionais e, por fim, o aumento da penosidade no exercício da actividade laboral sem relevância para o nível de remuneração da mesma. Nas sua palavras (sublinhado nosso), «este aumento de penosidade no trabalho, na medida em que não produz qualquer efeito directo ou indirecto no património da vítima, só pode ser qualificado como dano não patrimonial. Já a perda de rendimentos profissionais é evidentemente um dano de carácter patrimonial, na variante de lucro cessante. Por fim, a perda de capacidade de trabalho é aquela que suscita maior interesse; há realmente quem a qualifique como um dano patrimonial indirecto, mas isso não nos satisfaz inteiramente. Tem-se vindo a debater o seu enquadramento na novel categoria de “perda de chance”, a qual — para além do debate acerca da qualificação como dano emergente ou lucro cessante — justifica que seja também objecto de indemnização, desde que seja feita prova do nexo causal o que constitui a dimensão mais complexa do processo.»

Não deixa a Senhora Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo de se interrogar acerca da (des)necessidade (no quadro legal vigente no nosso País, no confronto com o direito italiano) e das virtualidades da admissibilidade do conceito de dano biológico, nos seguintes termos: “Aparentemente, dispondo de amplos regimes de ressarcibilidade dos danos-consequência, quer de natureza patrimonial, quer de natureza não patrimonial, e afigurando-se-nos que esta dicotomia se mantém apta a abarcar a totalidade dos efeitos de qualquer categoria de dano evento, a ruptura com a estrutura tradicional não traria quaisquer vantagens. Num segundo plano de reflexão, porém, o estudo do conceito de dano biológico tem potencialidades inegáveis, na medida em que a análise dos componentes que integram esta categoria, tem conduzido ao significativo alargamento da compreensão do âmbito dos prejuízos efectivamente sofridos pelas vítimas de factos geradores de responsabilidade civil delitual. Ponderemos um elenco possível de variáveis que integram o dano biológico: dano de afirmação pessoal ou dano à vida de relação; dano estético; dano psíquico; dano sexual; dano à capacidade laboral genérica. Este elenco poderá ser decomposto e aumentado designadamente com as seguintes variantes: perda de aptidões familiares ou afectivas, em especial da capacidade procriativa; perda da faculdade de prática de actividade desportiva ou de outra actividade recreativa; perda do gozo dos anos da juventude; perda da possibilidade de iniciar ou prosseguir determinados estudos; perda de esperança de vida.
Admitimos que, em princípio, a fixação das indemnizações por danos não patrimoniais nos acórdãos supra indicados (n.º 2.1.) como (I) e (II), possa gerar resultados semelhantes aos da jurisprudência na qual o dano biológico é expressamente referido. A título de exemplo, refira-se o Acórdão do STJ de 14/09/2010 (SOUSA LEITE), no qual, sem qualquer referência a dano biológico, se têm em conta as seguintes modalidades de dano não patrimonial: dano estético, prejuízo de afirmação pessoal, prejuízo da saúde e da longevidade, pretium juventude e pretium doloris. Por outras palavras, a vantagem da introdução da concepção de dano biológico seria a de ampliar os componentes de dano real a ter em conta; para, num segundo plano, determinar, de forma mais justa, a indemnização devida pelo lesante, em regra quanto às consequências de natureza não patrimonial. Mas não necessariamente apenas quanto a estas. Também no domínio dos efeitos de natureza patrimonial, equivalentes aos danos emergentes e aos lucros cessantes, entendidos estes últimos como os valores de perda de rendimentos resultantes da afectação, total ou parcial, temporária ou permanente, da actividade laboral do lesado, será possível extrair novos elementos da concepção ampla de dano biológico como dano real ou dano-evento.”
Continua a Senhora Juíza Conselheira, autora do citado artigo, referindo que (…) O entendimento que acabamos de defender implicaria uma diferença essencial ao nível da prova da ocorrência de danos e da sua dimensão: os danos patrimoniais futuros para além da perda de remuneração laboral, teriam de ser provados, sendo a respectiva indemnização fixada equitativamente de acordo com a prática tradicional; diversamente, a ocorrência de danos não patrimoniais derivados da lesão psico-somática da pessoa — dano biológico — seria tão-só presumida pela simples prova da lesão correspondente. Já a determinação da indemnização a atribuir seria feita através do recurso a um “sistema tabelar”, ainda que meramente indicativo, de fixação antecipada de intervalos indemnizatórios equivalentes a diferentes taxas de incapacidade fixadas pelos peritos médico-legais (no nosso caso, mediante a aplicação da Tabela de incapacidades permanentes civis, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 352/2007). Deste modo se conseguiria alcançar o desiderato do tratamento igualitário das vítimas e o objectivo de justiça, desde que, evidentemente, as tabelas indemnizatórias fossem elaboradas com rigor e actualizadas periodicamente. Admitindo que as mesmas incluiriam os componentes do dito dano biológico — dano à vida de relação, dano estético, dano psíquico, dano sexual, dano à capacidade laboral genérica, e outros mais — variando em função da idade do lesado e da gravidade da lesão. O “sistema tabelar” não dispensaria contudo a intervenção do juiz porque, para além dos danos presumivelmente idênticos para todos os sujeitos, haverá quase sempre danos não patrimoniais específicos de cada um. Ora só a prova efectiva e não apenas presumida destes últimos permitirá ter a certeza de que o universo dos danos não patrimoniais será indemnizado e, ao mesmo tempo, de que não o será duplamente (risco que ocorre em particular em certas categorias de danos, como o dano psíquico e o dano estético). A doutrina italiana propõe para tal categoria de danos a denominação de “danos não patrimoniais subjectivos por contraposição aos danos não patrimoniais comuns a todas as vítimas de uma lesão psico-somática».

De referir ainda, pelo seu interesse, o artigo do Senhor Juiz Conselheiro João Bernardo, “O dano biológico: Sua quantificação na vertente patrimonial e diferenciação relativamente ao dano não patrimonial”, incluído no e-book CEJ “NOVOS OLHARES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL”, edição atualizada em setembro de 2019, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil_2018.pdf, em que, salientando a inexistência em Portugal das razões que em Itália levaram à consagração indemnizatória autónoma do dano biológico, critica a falta de adequada resposta por parte do legislador e a insatisfatória dada pela Portaria n.º 377/2008, de 26-05, referindo, a propósito da mesma, que, perante a ameaça que pairava de fixação duma terceira parcela indemnizatória relativa ao dano biológico (injustificada, a meu ver) “capturou-se” o conceito, vinculando-o a realidade que, pressupondo-o embora, está longe de a ele corresponder totalmente. (…)
(…) Traçado todo este quadro, importa agora transmitir o que eu penso sobre a realidade indemnizatória, em especial sobre a parcela relativa à afetação definitiva da integridade físicopsíquica sem repercussão na diminuição de proventos auferidos laboralmente.
(…) É certo que, quanto às indemnizações, tem imperado o bom senso dos juízes, mas nunca deixa
 de ter lugar um desagradável subjetivismo. Temos de o reconhecer: os montantes indemnizatórios fixados, mesmo pelo Supremo Tribunal de Justiça, dependem relevantemente do coletivo a quem for distribuído o processo.
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º352/2007, de 23.10, avançou-se no plano médicolegal, sem correspondência no plano propriamente jurídico. O julgador continua apenas com a equidade numa das mãos e agora com os pontos correspondentes ao deficit da integridade psico-física na outra.
O capital tem agora rendimentos mínimos, de sorte que o critério de encontrar um montante que, de rendimento, proporcione o que teoricamente deixou de se auferir e se extinga no fim presumível de vida ativa da pessoa visada, entrou necessariamente em crise.
Neste quadro, para além de entender que o legislador devia vir a terreiro, defendo que o devia fazer com tabelas indemnizatórias. Não tabelas fixas que apontassem para valores rígidos, mas que, estabelecendo limites máximos e mínimos para cada situação, deixassem ao julgador uma margem algo ampla de fixação, em ordem a que pudesse atender às circunstâncias do caso concreto. Em meu entender, o exemplo espanhol com os seus “Baremos” permite que se encontrem soluções muito mais justas.
Nestas tabelas, à semelhança precisamente dos modelos do país vizinho, partir-se-ia da ideia de que, estando perante danos pessoais, se impunha, à partida, a igualdade (ainda que de modo não rígido), afastando-se a tremenda e já referida injustiça da jurisprudência portuguesa de, nas contas finais dos casos em que não há diminuição efetiva de proventos laborais, quem ganha bem sair altamente beneficiado, relativamente a quem ganha mal ou nada ganha.
21.- Na falta de elementos legislativos, o julgador não pode abster-se de julgar.
Como deve, então, agora proceder?
Deve manter-se a duplicidade indemnizatória entre danos patrimoniais e não patrimoniais. Eu, confesso, não morro de amores por ela, mas está de tal modo radicada na nossa jurisprudência que não se justifica, por aqui, inovação, a não ser de iniciativa da lei. Se é certo que todo dano biológico – entendido como toda a afetação físico-psíquica com tradução médico-legal – deve ser atendido indemnizatoriamente – verificados, claro, os demais pressupostos da responsabilidade civil – não se deve considerar autonomamente uma terceira vertente a este reportada uma vez que o que esta poderia abranger já está incluído naquelas.
O deficit irreversível da integridade psico-física integra-se na fixação indemnizatória quer relativamente aos danos não patrimoniais, quer relativamente aos danos patrimoniais.
Quanto àqueles, eu aconselharia – apenas com saber de experiência feito – um exame muito atento da descrição dos danos. A análise sairia facilitada se se cindissem os efeitos temporários dos irreversíveis. Não para se criarem categorias ou parcelas indemnizatórias próprias – nada disso – mas apenas para melhor observação.
Assim, há que ver, com pormenor, os dias de internamento hospitalar, a eventual reiteração deste, o número e gravidade de intervenções cirúrgicas, a diminuição de mobilidade e sua duração, a dependência de outrem e sua duração, etc. e, depois, aos danos irreversíveis.
Quanto a estes – principalmente quanto a estes – há que considerar que muitos termos médicos não traduzem para o leigo, pelo menos de modo imediatamente percetível, a gravidade toda. Aconselharia a que se procurasse, se necessário com recurso à informática ou de outro modo, o verdadeiro conteúdo de cada palavra não imediatamente acessível.
Além disso, não obstante as perícias médicas, penso que, na 1.ª instância, se devia procurar ver o lesado. Não em exame propositado, é evidente, mas como for mais oportuno (tentativas de conciliação, audiência, etc.) Por exemplo, se os relatórios médicos dizem que ficou afetado na marcha, acho que se deve procurar ver como ele anda; se ficou desfigurado, peçam-lhe que se aproxime e mostre a cara e aí por diante. Esta atenção é muito falível, mas a parte positiva da sua efetivação – explícita ou discreta – supera os riscos desvantajosos.
Depois, deve-se ter presentes os valores que vem sendo fixados pela jurisprudência para casos semelhantes, em obediência atenta ao n.º3 do artigo 8.º do Código Civil e em procura constante da minoração do subjetivismo que, como referi, sempre existe. Reparem que este n.º3 tem subjacente a ideia, tão cara também no plano constitucional, de que as pessoas visadas com decisões judiciais seja tratadas em plano de igualdade e, no aspeto indemnizatório, estamos em terreno onde tudo é particularmente visível.
Não percam de vista, claro, os critérios do artigo 494.º do Código Civil (exceto, por inconstitucionalidade, acolhida por jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, do da situação económica do lesado).”

Em nosso entender, o dano biológico (em sentido amplo) pode, consoante os casos, ser tratado como um dano patrimonial ou um dano não patrimonial; nunca deixará de se verificar nesta última vertente (dano biológico em sentido estrito), posto que de ofensa à integridade física e psíquica se trata, podendo não afetar a capacidade de ganho do lesado, isto é, não determinar rebate profissional ou, como vem sendo referido este parâmetro do dano, inexistir um rebate das sequelas no exercício da atividade profissional habitual do lesado.

Assim, haverá lugar, consoante os casos, à atribuição de parcelas indemnizatórias distintas, uma atinente ao dano biológico propriamente dito, outra ao dano patrimonial futuro, que assume relevância autónoma quando do défice funcional permanente de integridade físico-psíquica resulte perda de capacidade de ganho, isto é, tenha também - o que nem sempre sucederá - uma repercussão permanente na atividade profissional habitual do lesado (rebate profissional).

Na determinação do quantum da indemnização do dano biológico enquanto dano não patrimonial, é inevitável reconhecer que haverá de ser formulado um juízo equitativo (cf. art. 496.º do CC), que poderá, quanto muito, se as especificidades do caso concreto assim o aconselharem, ter como ponto de partida ou auxiliar a tabela que consta do anexo IV da Portaria n.º 377/2008. Nesta linha de pensamento, veja-se, a título exemplificativo, o acórdão da Relação de Coimbra de 04-06-2013, proferido no processo n.º 2092/11.8T2AVR.C1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do respetivo sumário:
1.- Por não se repercutir directamente na esfera patrimonial do lesado mas antes na sua saúde o dano biológico ou corporal é um dano não patrimonial que deve ser compensado, conforme dispõe o artº 496 do C.Civil, desde que tenha gravidade suficiente para merecer a tutela do direito.
2.-O dano biológico pode determinar a indemnização de danos patrimoniais reflexos, que dele decorrem, o que acontece, nomeadamente quando vai interferir com a capacidade do lesado auferir rendimentos. Nesta medida, o dano biológico pode vir a determinar a indemnização de danos de natureza patrimonial e/ou não patrimonial, conforme os casos.
3.- A compensação a atribuir, pelo dano biológico, quando não interfere com a capacidade de ganho do lesado, não tem de ter uma relação directa com a sua actividade profissional, antes se posicionando como um dano permamente e interferindo em todos os aspectos da vida do lesado e na sua qualidade de vida, pelo que o ponto de partida para o cálculo da indemnização pelo dano biológico deve ser o mesmo para todos, em obediência ao princípio da igualdade.
4.- Tendo como referência o anexo IV da Portaria 377/2008 de 26 de Maio actualizada pela Portaria 679/2009 de 25 de Junho, considera-se, no entanto, que deve servir de base ao cálculo da compensação a remuneração média nacional e não a remuneração mínima mensal garantida que é o suporte aos valores contemplados em tal tabela.”

Em conclusão, podemos afirmar que nas situações em que do défice funcional de que o lesado fica afetado resultar uma incapacidade permanente para a profissão habitual (ainda que com reconversão profissional), terá direito à atribuição de quantias específicas a título de indemnização (i)-dos danos patrimoniais futuros, (ii)-do dano biológico e (iii)-dos (outros) danos não patrimoniais [cf. artigos 3.º, alíneas a), b), e 4.º, al. d), da Portaria n.º 377/2008, alterada pela Portaria n.º 679/2009].

No caso dos autos, considerou-se na sentença recorrida que se justificava autonomizar ou ressarcir autonomamente o dano biológico atinente ao défice funcional permanente da integridade física-psíquica da Autora (dano biológico no sentido estrito de “dano pela ofensa à integridade física e psíquica”) fixável em 14,8 pontos, dos demais danos não patrimoniais que emergem dos factos provados (e aos quais adiante nos iremos referir), avaliando-o em 25.000 €, valor que a Apelante reputa insuficiente, considerando mais adequado o valor peticionado de 30.000 €.

Importa proceder então ao cálculo do valor indemnizatório do dano biológico que emerge dos factos provados (em particular os descritos nos pontos 62., 64., 81. e 82.), para o que nos iremos socorrer, como mero ponto de partida, dos critérios objetivos considerados na Tabela do anexo IV da referida Portaria (idade do lesado e n.º de pontos), a qual prevê, para uma desvalorização entre 11 a 15 pontos e uma lesada com idade entre os 21 e os 25 anos, os valores de 1349,19 a 1395,36 por ponto; multiplicando tais valores por 14,8 pontos, obtem-se, uma indemnização daquele dano na ordem dos 19.968,01 €  € a 20.651,33  €.

Tendo presente que os valores da Portaria foram fixados com referência à remuneração mínima mensal garantida (RMMG) em 2007, referindo-se mesmo que “(A) indemnização pelo dano biológico é calculada segundo a idade e o grau de desvalorização, apurado este pela Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, e com referência inicial ao valor da RMMG (retribuição mínima mensal garantida”) que, na altura, era de 403,00 € (cf. nota 1 ao anexo IV), impõe-se, por mais justo e equilibrado, atender à remuneração base média nacional na data mais recente que pode ser considerada  - cf. artigos 566.º, n.º 2, do CC e 611.º, n.º 1, do CPC -, que, face aos dados atualmente disponíveis, é de 1.042,0 € (informação disponível em https://www.pordata.pt), o que, observando uma regra matemática de três simples, dá um valor compensatório entre 51.629,46 € e 53.396,24 €. Face ao n.º de pontos (14,8 - valor próximo do limite mais elevado da tabela) e à idade da Autora (23 anos - valor intermédio da Tabela), já se vê que, à partida, se poderia considerar um valor na ordem dos 52.000 a 53.000 €.
Não podemos deixar de ter também em consideração a jurisprudência dos nossos Tribunais em casos similares (cf. art. 8.º, n.º 3, do CC), em particular a emanada do STJ, mormente a recolhida nos Cadernos de Jurisprudência Temática do STJ “Danos não patrimoniais (2004-2012)” e “Indemnização por danos corporais emergentes de acidentes de viação - Sumários de Acórdãos (2015 - Outubro de 2019)”, disponíveis em www.stj.pt, bem sabendo que o confronto com casos análogos se reveste de dificuldades, pois, mesmo quando existe alguma similitude das situações apreciadas no plano fáctico, as decisões judiciais refletem a disparidade de pedidos formulados e da qualificação jurídica dos factos (como é particularmente evidente, por exemplo, no acórdão do STJ de 18-03-2021, proferido no processo n.º 1337/18.8T8PDL.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em que se considera que a lesão do direito ao corpo e à saúde, traduzida em incapacidade permanente, é indemnizável como dano patrimonial futuro, independentemente de quaisquer consequências pecuniárias ou repercussões patrimoniais de qualquer natureza; aliás, os acórdãos citados pela Apelante também o evidenciam).
Neste esforço comparativo, e sem olvidar que os valores fixados em anteriores decisões devem hoje ser encarados como merecedores de atualização (ante a natural evolução e considerando também a taxa de inflação),  destacamos, a título de exemplo, os seguintes acórdãos do STJ (ambos com sumário disponível em www.stj.pt):

- de 21-01-2016, na Revista n.º 1021/11.3TBABT.E1.S1 - 7.ª Secção:
II-Não é desproporcionada à gravidade objectiva e subjectiva das lesões sofridas por lesado em acidente de viação o montante de € 50 000, atribuído como compensação dos danos não patrimoniais, num caso caracterizado pela existência em lesado jovem, de 27 anos de idade, de múltiplos traumatismos (traumatismo na bacia, traumatismo toráxico, com hemotórax, traumatismo crânio-encefálico grave, com hemorragia subaracnoideia e contusão cortico-frontal, à esquerda, traumatismo abdominal, fratura do condilo occipital esquerdo, fratura do acetábulo direito e desernevação do ciático popliteu externo direito), envolvendo sequelas relevantes ao nível psicológico e de comportamento, produzindo as lesões internamento durante 83 dias, quantum doloris de 5 pontos em 7 e dano estético de 2 pontos em 7; ficando com um deficit funcional permanente da integridade físico-psíquica, fixável em 16 pontos, e com repercussão nas actividades desportivas e de lazer, fixável em grau 2 em 7, envolvendo ainda claudicação na marcha e rigidez da anca direita; implicando limitações da marcha, corrida, e todas as actividades físicas que envolvam os membros inferiores e determinando alteração relevante no padrão de vida pessoal do lesado, que coxeia e é inseguro, física e psiquicamente, triste, deprimido e com limitação na capacidade de iniciativa; sofrendo incómodos, angústias e perturbações resultantes das lesões que teve, dos tratamentos e intervenções cirúrgicas a que foi sujeito; terá de suportar até ao fim dos seus dias os sofrimentos e incómodos irreversivelmente decorrentes das limitações com que ficou. 
III-O dano biológico, perspectivado como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial. 
IV-A indemnização a arbitrar pelo dano biológico, consubstanciado em relevante limitação ou défice funcional sofrido pelo lesado, perspectivado na óptica de uma capitis deminutio na vertente profissional, deverá compensá-lo, apesar de não imediatamente reflectida em perdas salariais imediatas ou na privação de uma específica capacidade profissional, quer da relevante e substancial restrição às possibilidades de obtenção, mudança ou reconversão de emprego e do leque de oportunidades profissionais à sua disposição, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade profissional corrente, de modo a compensar as deficiências funcionais que constituem sequela das lesões sofridas – não se revelando desproporcionado ao quadro atrás definido, em lesado que não logrou obter emprego estável após o acidente, o montante de € 32 500, fixado na sentença proferida em 1.ª instância.”

- de 26-01-2017, na Revista n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1 - 2.ª Secção:
I- Devendo o dano biológico ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho, já que, havendo uma incapacidade permanente, dela sempre resultará uma afetação da dimensão anátomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível de atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que, de futuro, terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo. 
II- O dano biológico não se pode reduzir aos danos de natureza não patrimonial na medida em que nestes estão apenas em causa prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária e naquele estão também em causa prejuízos de natureza patrimonial provenientes das consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado. 
III- Tendo ficado provado que, em consequência das lesões sofridas em virtude do acidente de viação de que foi vítima, a lesada: (i)- ficou com dores diárias na coluna cervical e na cabeça; (ii)- devido às dores, tem dificuldade em dormir, andar, sentar-se, curvar-se, pegar em objetos, vestir-se, pentear-se, secar o cabelo, arrastar mobília, pegar em tachos, dar banho à filha, subir e descer escadas, passar a ferro e conduzir um veículo automóvel; (iii)- frequenta desde o acidente (08-07-2012), e terá de continuar a frequentar, tratamentos de fisioterapia; (iv)- ficou a sofrer de perturbação de stress pós-traumático, o que afeta a sua autonomia pessoal, social e profissional, importando uma incapacidade de 10%; (v)- o exercício da sua atividade profissional (cabeleira) é possível, mas implica esforços suplementares, o que lhe importa uma incapacidade de 2,7%; (vi)- ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 13 pontos; (vii)- as lesões sofridas e as sequelas com que ficou têm repercussão permanente nas atividades desportivas, a qual foi fixada no grau 3 numa escala de 7; (viii)- à data do acidente estava desempregada e inscrita no Centro de Emprego, tendo perdido essa qualidade a partir de 27-02-2012 por aí se ter deixado de apresentar em consequência das lesões; (ix)- por causa destas, teve de recusar um emprego na sua profissão de cabeleireira; e (x)- contratou uma empregada que lhe assegura as lides domésticas, é de concluir que, tendo, ou podendo ter, estes factos repercussão nas atividades da vida diária da autora, o dano biológico sofrido merece a tutela do direito, devendo ser ressarcido. 
IV-Considerando os factos elencados em III, bem como que a indemnização, a título de dano biológico, deve ser calculada de acordo com a equidade nos termos do n.º 3 do art. 566.º do CC, é justo e correto o montante de € 70 000 fixado pela Relação (por contraposição ao de € 8 000 fixado pela 1.ª instância).”

- de 29-10-2019, na Revista n.º 7614/15.2T8GMR.G1.S1 - 6.ª Secção:
I-Ao dano biológico não pode ser conferida autonomia enquanto tertium genus e, por essa razão, todas as variantes do dano-consequência terão de traduzir-se sempre num dano patrimonial e/ou num dano não patrimonial. 
II-Assim, o défice funcional, ou dano biológico, representado pela incapacidade permanente resultante das lesões sofridas em acidente de viação, é suscetível de desencadear danos no lesado de natureza patrimonial e/ou de natureza não patrimonial. 
III- Numa situação em que ao lesado, com 34 anos, foi atribuído um défice funcional de 16 pontos por força das lesões sofridas, sem rebate profissional mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional (vendedor e empresário de materiais de construção civil e produtos agrícolas), afigura-se ajustado o montante de € 36 000,00 para indemnizar tal dano futuro.”
Tudo ponderado, no caso em apreço, consideramos equitativamente ajustado quantificar o dano biológico em 50.000 €, sendo a respetiva parcela indemnizatória, face à percentagem de redução acima indicada (25%), fixada em 37.500 €.
Adiante se verá se, para cômputo da indemnização global, poderá ser considerada na totalidade esta parcela, tendo em que conta que o limite da condenação imposto pelo art. 609.º, n.º 1, do CPC se reporta ao valor global do pedido formulado, e não ao valor de cada uma das parcelas que o integram – neste sentido, exemplificativamente, veja-se o acórdão do STJ de 16-11-2017, na Revista n.º 12914/14.6T2SNT.L1.S1 - 2.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt, em que se referiu que: III- A circunstância de o lesado ter pedido a quantia de € 5 000 para ressarcir os danos não patrimoniais que sofreu não é obstáculo a que se arbitre, a esse título, indemnização de montante superior, desde que o valor total alcançado não seja superior ao pedido formulado.”

4.ª questão - Dano patrimonial futuro decorrente do défice permanente da integridade físico-psíquica

Na sentença recorrida teceram-se a este respeito as seguintes considerações:

“Na pretensão da A. compreendem-se danos patrimoniais futuros já liquidados e outros relegados para liquidação de sentença.
Por dano futuro deve entender-se aquele prejuízo que o sujeito do direito ofendido ainda não sofreu no momento temporal em que é considerado. Nesse tempo já existe um ofendido, mas não existe ainda um lesado.
Os danos futuros podem dividir-se em previsíveis e imprevisíveis, sendo que o dano é futuro e previsível - e apenas este é indemnizável face ao artº 564º nº 2 CCivil - quando se pode prognosticar a sua ocorrência, conjecturar com antecipação ao tempo em que o mesmo acontecerá, devendo, no momento de julgar, fixar-se a indemnização do dano determinável (cfr. Ac. STJ de 11/10/1994 in BMJ nº 440, pp. 437 e in CJ/STJ 1994 ano II, tomo III, pp. 83).
(…) Quanto ao outro segmento do pedido relativo a danos patrimoniais futuros, que se encontra explanado no artº 84º da petição, o raciocínio enunciado tem subjacente uma perda de capacidade de ganho correspondente à incapacidade que para a A. terá resultado do acidente.
Mas felizmente para a A. ela não ficou atingida na sua capacidade de ganho. Embora tenha passado a ser portadora de um défice funcional permanente, as sequelas de que ficou a padecer são compatíveis com o exercício da sua actividade profissional habitual, apesar de implicarem esforços suplementares (cfr. facto provado 64).
Ora o défice funcional permanente não é confundível com a incapacidade profissional que sustentaria a diminuição de capacidade de ganho até ao fim da vida activa e que constituiria um dano patrimonial futuro autonomizável. Como consta do Relatório Pericial do INML, refere-se a um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, respeitando à afectação da integridade física e/ou psíquica com repercussão nas actividades da vida diária, sendo independente das actividades profissionais: corresponde à anteriormente denominada incapacidade permanente geral.
E no caso o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica/incapacidade permanente geral de que a A. ficou afectada não lhe determina qualquer incapacidade para o exercício das actividades profissionais em geral nem para a sua actividade profissional habitual, sendo compatível com o exercício desta embora implicando esforços suplementares, pelo que não importa no caso qualquer perca de capacidade de ganho, devendo essa pretensão da A. ser indeferida.
Coisa diferente, e que deverá ser atendida no domínio do dano biológico e/ou em sede de danos não patrimoniais, é a circunstância de aquela incapacidade que a A. apresenta, o défice funcional permanente, embora compatível com a sua actividade profissional, lhe exigir esforços acrescidos para o seu desempenho. A este aspecto voltaremos adiante.
Quanto aos demais danos patrimoniais invocados constata-se que relativamente à frustração de ganhos e a despesas acrescidas relacionadas com a impossibilidade de abrir ela mesma o seu próprio negócio, que para tanto estaria pronto, os factos não provados N a P ostentam não ter a A. logrado fazer a prova dos factos alegados em sustento desses invocados danos, certo que o ónus de prova sobre si impendia.
E assim, encontra-se esse segmento do pedido indemnizatório votado ao insucesso.”

A Apelante discorda deste entendimento, contrapondo, em síntese, que:
- Quanto ao valor concreto dos danos decorrentes do longo período de incapacidade temporária que absoluta quer relativa, a Autora juntou aos autos recibos de vencimento anteriores ao acidente relativos ao período de setembro de 2013 a outubro de 2015, bem como as suas declarações de rendimentos para efeitos de IRS de 2016 e 2017, prova documental que permite apurar e concluir quer o rendimento que auferia antes do acidente, quer a sua inscrição fiscal, na categoria B destinada a “Profissionais, Comerciais e Industriais”, facto que se articula com toda a prova testemunhal quanto ao projeto de montar o seu negócio em parceria com a mãe, no caso o café, que a mãe chegou a abrir, mas que a Autora ficou impedida de acompanhar, permitindo ainda tal prova documental ter a base de cálculo para a fixação dos danos patrimoniais futuros;
- O défice permanente da integridade físico-psíquica de 14,8 pontos, com previsão de agravamento pelo decurso do tempo e esforços suplementares para o exercício da atividade habitual, implica repercussão relevante na perda de capacidade de ganho que deve ser devidamente indemnizado;
- As hipóteses de a Autora concorrer no mercado de trabalho estão diminuídas e teve de abandonar o seu projeto inicial de montar um negócio na restauração, face à impossibilidade de permanecer nesse ramo de atividade;
- Considerando o défice de 14,8 pontos, os 23 anos de idade à data do acidente, um salário médio mensal de 700,00€ mensais, a idade média de via ativa das mulheres nos 82 anos, deve ser atribuída à Autora uma indemnização, a título de dano patrimonial futuro, no valor de 71.723,45 €.

Apreciando.

Antes de passarmos a apreciar a questão do dano patrimonial futuro propriamente dito, parece-nos oportuno fazer uma breve referência a outros danos patrimoniais cujo direito indemnizatório a Autora, de forma muito incipiente e confusa, parece continuar a arrogar-se.
Assim, encontra-se provado, em conformidade com as perícias realizadas, que a Autora teve um défice funcional temporário total de 216 dias, entre 24-12-2015 e 26-07-2016, período esse de repercussão temporária na atividade profissional total (cf. pontos 57 e 59), bem como que a Autora teve um défice funcional temporário parcial de 216 dias entre 27-07-2016 e 27-02-2017, período esse de repercussão temporária na atividade profissional parcial (cf. pontos 58 e 60). Na sentença, considerou-se que, não obstante isso, estava votado ao insucesso o segmento do pedido indemnizatório deduzido pela Autora atinente a danos patrimoniais relativos “à frustração de ganhos” (portanto, lucros cessantes) e a “despesas acrescidas relacionadas com a impossibilidade de abrir ela mesma o seu próprio negócio”, ostentando os factos não provados N a P não ter a Autora logrado fazer a prova dos factos alegados em sustento desses invocados danos, certo que o ónus de prova sobre si impendia.

Ora, a Autora no presente recurso, apesar da impugnação da decisão da matéria de facto, nem parece questionar esta parte da sentença, que julgou improcedente a sua pretensão de ressarcimento de (alegadas) despesas com o salário da sua mãe no valor de 3.600 €. De qualquer modo, mesmo que se pudesse retirar das conclusões da sua alegação recursória uma tal questão, é evidente, ante o que acima decidimos quanto à impugnação da decisão da matéria de facto (cf. alíneas O a P), a falta de substrato fáctico para que possa ser atendida uma tal parte do pedido. O mesmo se diga, aliás, quanto a alegadas despesas decorrentes da necessidade de auxílio de terceira pessoa (cf. alínea E).

Quanto aos dano patrimonial futuro, remetemos, por economia, para algumas das considerações atinentes à problemática do danos biológico, lembrando em especial as palavras da Sr.ª Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo, no artigo acima citado, quando afirma que os danos patrimoniais futuros para além da perda de remuneração laboral, teriam de ser provados, sendo a respectiva indemnização fixada equitativamente de acordo com a prática tradicional, mormente nos moldes referidos no citado acórdão do STJ.

Essa repercussão permanente na atividade profissional habitual do lesado é matéria de facto cuja prova não é fácil, sendo certo que com frequência apenas fica demonstrado que as sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares. Parece-nos, todavia, ser consensual que a exigência de tais esforços para o desempenho da profissão se poderá traduzir num dano patrimonial futuro desde que os factos provados permitam suportar um juízo de previsibilidade ou prognose a esse respeito; por exemplo, quando é de antever, pela natureza das funções profissionais, que deixará de ser possível realizar trabalho suplementar. Nesta linha de pensamento, veja-se, a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 30-06-2016, na Revista n.º 161/11.3TBPTB.G1.S1 - 7.ª Secção (sumário disponível em www.stj.pt):
IV-A atribuição de uma indemnização a título de danos patrimoniais pela perda de capacidade de ganho, ao abrigo do art. 566.º, n.os 2 e 3, do CC, não dispensa a prova da existência de danos futuros. 
V- Resultando da factualidade provada que o lesado ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 16 pontos, mas não se sabendo se, em consequência do acidente de viação de que foi vítima, deixou de trabalhar, ou, trabalhando, qual o grau de dificuldade existente no desempenho das suas tarefas como vidraceiro, se o seu rendimento laboral deixou de ser o mesmo e em que medida ou se deixou de auferir o mesmo salário e em que montante, não existem elementos fácticos que permitam avaliar a existência de um dano patrimonial futuro”.

Quando se conclua pela existência de danos patrimoniais decorrentes do dano corporal de que adveio uma incapacidade permanente absoluta ou uma incapacidade para a profissão habitual, em particular danos patrimoniais futuros, surgem as habituais dificuldades na fixação do valor da indemnização. Disso nos dá conta, na parte final do referido artigo, o Sr. Juiz Conselheiro João Bernardo, em especial na situação que descreve como “perda da capacidade de ganho sem rebate nos proventos laborais”. Explica que “Temos agora os pontos em lugar da incapacidade parcial permanente para o trabalho, mas a tradição jurisprudencial é muito forte e haverá que considerar a vertente incapacitante daqueles com referência aos proventos auferidos, nestes incluindo os que não tiverem sido declarados à administração fiscal.
Por outro lado, o rendimento de capital é agora, como referi, irrisório.
Ou seja, o juiz continua ainda mais despido de pontos de apoio, em ordem a conseguir integrar-se numa corrente indemnizatória consistente e em justificar perante as partes por que fixou aquela e não outra quantia.
Reparando na jurisprudência, apenas maioritária, do Supremo, continuará de pé o velho método de encontrar um capital que, de rendimento, produza o que teoricamente deixou de se auferir e se extinga no fim presumível de vida ativa do lesado.
Mas creio que, se contarmos com a inflação existente, ainda que rastejante, dificilmente se encontra um capital que permita algum rendimento.
Seja como for, teremos aqui um ponto de partida que, não conduzindo a resultado fixo, permite ao julgador nova ponderação sobre os elementos corretivos, entre os quais – penso eu – se situará o abaixamento do montante a que juros particularmente baixos conduzirão em primeira análise.
Tendo sempre e intensamente presente a correção da já falada discrepância entre quem ganha bem e quem ganha mal ou nada ganha, minorando a injustiça a que conduz este modo de cálculo.
É que – lembrem-se sempre – não estamos a repor patrimónios. Estamos a indemnizar pessoas.”

É com frequência possível lançar mão de cálculos matemáticos, partindo de conhecidas fórmulas propostas pela doutrina (em que avulta Sousa Dinis, com diversos artigos, desde “Dano corporal em acidentes de viação”, publicado na Colectânea de Jurisprudência, STJ, Ano IX, T1, p. 5 e ss.), e jurisprudência (com destaque para o acórdão do STJ de 04-12-2007, no processo n.º 07A3836, e para o acórdão da Relação de Lisboa de 13-09-2018, no processo n.º 3181/14.2TBVFX-2, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) ou tabelas como as da referida Portaria n.º 377/2008 (na redação dada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de junho).  Sobre esta problemática, destacamos ainda, na jurisprudência, o acórdão do STJ de 01-03-2018 (relatado pela Sr.ª Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo), no processo n.º 773/07.0TBALR.E1.S1, de que citamos, porque muito esclarecedor, o respetivo sumário:
«I- Não existe o obstáculo da dupla conforme, quanto à ré, quando a Relação, apesar de ter reduzido a indemnização fixada pela 1.ª instância, a título de “dano patrimonial futuro por perda da capacidade de ganho”, de € 550 000 para € 280 000, adoptou fundamentação essencialmente diferente no que respeita aos critérios seguidos para fixar essa indemnização, sendo, como tal, o recurso de revista admissível (art. 671.º, n.º 3, do CPC).
II-A afectação da integridade físico-psíquica (que tem vindo a ser denominada “dano biológico”) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial, compreendendo-se na primeira categoria a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais.
III- Os índices de incapacidade geral permanente não se confundem com os índices de incapacidade profissional, correspondendo a duas tabelas distintas, aprovadas pelo DL n.º 352/2007, de 23-10: na incapacidade geral avalia-se a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, a qual pode ter reflexos ao nível da incapacidade profissional, mas que com esta não se confunde.
IV-A fixação da indemnização por danos patrimoniais resultantes do “dano biológico” não pode seguir a teoria da diferença (art. 566.º, n.º 2, do CC) como se tais danos fossem determináveis, devendo antes fazer-se segundo juízos de equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC).
V- Para tanto, relevam: (i)- a idade do lesado à data do sinistro (39 anos); (ii)- a sua esperança média de vida que, para homens nascidos em 1964, se situará, no ano de 2004 – ano do acidente – entre 64 e 75 anos (e não a sua previsível idade da reforma, já que a perda da capacidade geral de ganho tem repercussões negativas ao longo de toda a vida do lesado); (iii)- a percentagem de incapacidade geral permanente (53%); e (iv)- a conexão entre as lesões físicas sofridas e as exigências próprias de actividades profissionais ou económicas alternativas, compatíveis com a formação/preparação técnica do lesado (sendo que, no caso, este deixou de poder caminhar, levantar-se ou baixar-se normalmente, só o podendo fazer com canadianas e a sua formação/preparação técnico-profissional corresponde à de um electricista de redes de distribuição, assentando as suas competências na destreza, mobilidade e força).
VI-É, por isso, de concluir que a afectação dos referidos parâmetros terá consequências extremamente negativas na possibilidade efectiva de o lesado vir a exercer actividade profissional alternativa, aproximando-se a sua situação de uma incapacidade total permanente para o trabalho, pelo que, ponderando os enunciados factores e comparando o caso com outras decisões do STJ, afigura-se justa e adequada a fixação da indemnização, a título de dano patrimonial futuro por perda da capacidade de ganho desde a data do sinistro, em € 400 000 (ao qual se deduzirá o valor já pago) e não em € 280 000 como fez a Relação.»

Merece também destaque o acórdão do STJ de 11-02-2014, proferido na Revista n.º 855/10.0TBGDM.P1.S1 - 1.ª Secção, citando-se parte do respetivo sumário, disponível em www.stj.pt:
IV- É justificada a indemnização de € 100 000, atribuída pela Relação (e não de € 50 000 fixada pela 1.ª instância), por danos não patrimoniais, a pessoa – o autor – que, por virtude de acidente de viação, aos 47 anos de idade, perde a perna esquerda, tem de usar uma prótese para o resto da vida, não pode correr e caminha com esforço, com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, fixável em 50 pontos percentuais, sente-se diminuído, triste e angustiado, foi submetido a várias intervenções cirúrgicas, sofreu dores em grau 5, numa escala de 7, um dano estético fixável no grau 4, numa escala de 7 e no que respeita à repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, um défice fixável em grau 5, numa escala de 7. 
V- Considerando que (i)- o autor tinha 47 anos de idade à data do acidente; (ii)- em virtude do mesmo, sofreu um grau de incapacidade funcional fixado em 50%, não estando impedido – apesar da perda da perna esquerda – de continuar a exercer a sua habitual profissão em estabelecimento de drogaria, nem qualquer outra que não implique especial esforço físico, (iii)- a esperança de vida é superior aos 70 anos; (iv)- o salário mensal de € 500, com os previsíveis aumentos ao longo dos anos; (v)- a erosão decorrente da inflação; (vi)- a vantagem de receber de uma só vez o total da indemnização; (vii)- ponderando, ainda, uma taxa de juro da ordem dos 3% a 4%, afigura-se equitativo fixar a indemnização pelo dano patrimonial, decorrente da perda de ganho futuro em € 80 000 (e não em € 70 000, como fixou a 1.ª instância, nem em € 180 000, como decidiu a Relação).”

De referir, por último, o acórdão do STJ de 23-11-2017, proferido na Revista n.º 3930/06.2TBLRA.C1.S1 - 7.ª Secção, em particular a seguinte passagem do respetivo sumário, disponível em www.stj.pt:
III- A lei prescreve o critério da equidade e não outro, nomeadamente o baseado no mero cálculo matemático, como meio de alcançar a justa reparação do dano cujo valor exato não é possível averiguar, como sucede, paradigmaticamente, com o dano futuro. 
IV-Numa situação em que a autora, nascida em 1964, em consequência do acidente de viação de que foi vítima, ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 13,55 pontos e em que as sequelas a nível dos membros inferiores afetados são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional impeditivas do exercício da atividade habitual (motorista de serviços públicos), mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional, mostra-se adequada e equitativa a fixação da indemnização por danos patrimoniais futuros no valor de € 65 000, conforme foi fixado pela Relação.”

Transpondo estas considerações para o caso dos autos, há que atentar no conjunto dos factos provados (em particular, nos pontos 64., 66., 67. e 90.), em ordem a compreender se e em que medida as sequelas descritas e os “esforços acrescidos” podem ter repercussão permanente na capacidade de a Autora exercer a sua profissão habitual, avaliando, no plano patrimonial, do eventual rebate dessas sequelas no exercício da sua atividade profissional habitual.

De salientar que a Autora, nas suas conclusões, distorce a matéria de facto provada, continuando a invocar factos que não constam, pelo menos com esse sentido e alcance, do elenco dos factos provados, designadamente quando se refere ao futuro agravamento do défice funcional permanente que a afeta (facto não provado) ou alega que o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14,8 pontos que a ficou a afetar (cf. ponto 62.) determinou uma incapacidade para a profissão habitual.
Com efeito, – bem ou mal, não importa aqui sindicar, pois a Autora não impugnou a decisão da matéria de facto neste ponto – apenas resultou provado que as lesões sofridas e as sequelas que a Autora apresenta são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares (cf. ponto 64.), facto que decorre, como resulta da motivação da sentença, do relatório pericial, no qual consta, o seguinte: Repercussão Permanente na Atividade Profissional (corresponde ao rebate das sequelas no exercício da atividade profissional habitual da vítima - atividade à data do evento, isto é, na sua vida laboral, para utilizar a expressão usada na Portaria n° 377/2008, de 26 de maio, tratando-se do parâmetro de dano anteriormente designado por Rebate profissional). Neste caso, as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual”. Isto, sublinhe-se, contrariamente aos factos descritos nos pontos 57. a 60., em que são explicitados os períodos temporais em que o défice funcional temporário (total/parcial) que afetava a Autora teve uma repercussão temporária (total/parcial) na sua atividade profissional (cf. pontos 58. e 60.).

Ademais, não está provado que a Autora iria desempenhar a atividade profissional de gerente de café e que auferiria um salário mensal nunca inferior a 700,00 € (cf. alínea P), nem sequer que passou a auferir uma remuneração inferior à que antes auferia (aliás, não está provado quanto auferia, nem quanto passou a auferir), tão pouco se tendo provado que não possa já trabalhar em horário completo ou realizar trabalho suplementar (e que antes o fazia).

Assim, os factos provados são insuficientes para concluirmos que, em virtude do Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica, a Autora, no desempenho da sua atividade profissional, irá deixar de auferir determinadas quantias, não estando evidenciado que as sequelas descritas nos factos provados terão, no caso concreto, consequências patrimoniais.

Deste modo, por não se prefigurar como provável no contexto fáctico apurado uma futura perda de rendimentos, inexiste fundamento para atribuir à Autora a peticionada verba indemnizatória autónoma atinente ao (invocado) dano patrimonial futuro, apenas se justificando a indemnização pelo dano biológico e também, como melhor se verá adiante, pelos (outros) danos não patrimoniais, nenhuma censura nos merecendo a sentença recorrida quando considerou que a ação tinha que improceder quanto a esta parte do pedido.

Com esta conclusão, já se vê que inexiste obstáculo à fixação do valor indemnizatório do denominado “dano biológico” nos termos acima indicados.

5.ª questão - Quantificação dos danos não patrimoniais

Na sentença recorrida teceram-se a este respeito as seguintes considerações (sublinhado nosso):

“Refere o artigo 496º nº 1 do CCivil que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos. Por outro lado, o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. Por último, a reparação obedecerá a juízos de equidade, tendo em conta o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado, bem como as demais circunstâncias do caso (artºs 496º nº 4 e 494º do CCivil).
A A. tinha 23 anos de idade (cfr. facto 65), era uma pessoa activa, dinâmica, sem qualquer limitação física (cfr. facto 78), portanto no vigor da juventude adulta e com boa condição física, quando sofreu o acidente de viação que importou despiste, embates vários e capotamento do veículo em que seguia transportada, e a projectou para o exterior do veículo tendo a mesma ficado prostrada na faixa de rodagem (cfr. factos 5 a 9 e 14 a 16), constituindo facto notório que a vivência desse evento inevitavelmente induziu na A., como em qualquer pessoa em tal situação, imediato sofrimento, choque, e receio pela sua integridade física e até pela sua vida.
A A. ficou gravemente ferida, foi assistida no local e imobilizada em plano duro, e depois transportada para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, politraumatizada, com traumatismo craneo-encefálico (TCE) com perda de conhecimento; traumatismo ocular, com derrame; traumatismo da coluna lombo-sagrada, com factura das apófises transversas esquerdas de L3, L4 e L5; fractura das apófises espinhosas de L3 e L4; fractura cominutiva da diáfise do úmero esquerdo; fractura de ambas as clavículas; fractura dos 4º, 5º e 6º arcos costais direitos; fractura cominutiva da asa do sacro direito; luxação anterior da coxo-femural direita com fractura do pilar anterior do acetábulo; hematoma do pé esquerdo; hematoma pélvico extraperitoneal e pré-sagrado; fractura do maléolo peronial da tibiotársica á esquerda; e pequenos focos de contusão pulmonar nos lobos superiores (cfr. facto 18 a 20), lesões que necessariamente lhe infligiram dores, e certamente fortes dores por todo o seu corpo.
Ainda no serviço de urgência do Hospital de Santa Maria a A. foi submetida a intervenção para redução da luxação anterior da coxo-femural direita com fractura do pilar anterior do acetábulo, para estabilização da bacia e do fémur (cfr. facto provado 21), certo que qualquer intervenção cirúrgica importa sofrimento e incómodos inabituais.
Ficou internada naquele Hospital, no Serviço de Medicina Intensiva, até 28/12/2015, internamento durante o qual lhe foram administrados diversos fármacos, foi-lhe colocado dispositivo anti-rotatório do membro inferior direito, realizada imobilização gessada braquiplamar do membro superior esquerdo e imobilizado o membro inferior esquerdo com tala gessada (cfr. factos 22 e 23).
Foi então, em 28/12/2015, transferida para o Hospital da área de residência [Hospital de Vila Franca de Xira,] onde ficou internada no Serviço de Unidade de Cuidados Intensivos e foi submetida a nova intervenção cirúrgica, dessa feita com redução e osteossíntese à fractura proximal do úmero esquerdo, à fractura da clavícula direita e à fractura do maléolo peroneal da tibiotársica esquerda.
Tendo o pós-operatório decorrido sem complicações, a A. foi transferida para o serviço de ortopedia, onde ficou internada até à alta hospitalar, em 29/01/2016, internamento durante o qual realizou tratamentos de medicina física e de reabilitação, tendo iniciado deambulação em 26/01/2016, fazendo percursos curtos com apoio de andarilho (cfr. factos provados 24 a 28).
Ora, a sujeição a internamento constitui sempre factor de tristeza e acarreta ao próprio apreensão quanto à evolução da sua condição clínica, potenciada no caso pela sucessiva sujeição a tratamentos e intervenções cirúrgicas, aqueles e estas com os inerentes incómodos e sofrimento físico e psíquico.
Como dito, ainda em contexto hospitalar, um mês e dois dias após o acidente (em 26/01/2016), a A. iniciou deambulação, fazendo percursos curtos com apoio de andarilho, e à data da alta hospitalar, em 29/01/2016, a A. já não tinha imobilização gessada, apresentava dores mínimas, mobilidade razoável, com capacidade de marcha, e foi-lhe recomendada a manutenção da marcha com apoio de canadianas, e o uso de analgésicos em sos (cfr. factos 27, 29 e 30), circunstâncias que denotam uma boa evolução clínica e boas perspectivas de recuperação.
Desde a alta hospitalar a A. fez marcha com apoio de andarilho durante cerca de 2 meses e com canadianas até Junho de 2016, e no regresso a casa após aquela alta a A. sentiu limitações para tratar da sua higiene pessoal, vestir-se, confeccionar refeições, e por isso necessitou de auxílio de terceiros por cerca de 2 meses, ajuda que lhe foi prestada pela mãe, com a qual vivia, e por algumas pessoas a quem a mãe pediu esse apoio quando não podia prestá-lo (cfr. factos 31 a 34), situação que fez a A., aos 23 anos de idade, sentir-se totalmente dependente e sem qualquer autonomia (cfr. facto 97).
Logo após a alta hospitalar a A. iniciou a sua reabilitação, tendo-se sujeitado para a recuperação das lesões e sequelas resultantes do acidente a um total de 149 tratamentos de fisioterapia e hidroterapia, entre os suportados por si e os realizados no âmbito dos serviços clínicos da R., tendo para além disso mantido seguimento no Hospital de Vila Franca de Xira, em consulta e em tratamentos de hidroterapia (cfr. factos 35 a 38, 42 a 45 e 94), sendo que em muitos tratamentos de fisioterapia a A. teve muitas dores (cfr. facto 93).
Por outro lado, a partir de 25/02/2016 a A. passou a realizar os tratamentos de fisioterapia na clínica sita nas Telheiras (cfr. facto 37) e passou a ser acompanhada pelos serviços clínicos da R. a partir de 01/03/2016 (cfr. facto 39), data em que ainda se locomovia de canadianas (cfr. facto 34 in fine), tendo-se deslocado a 22 consultas aos serviços clínicos da R., certo que as deslocações para tratamentos e consultas, inclusive nos serviços clínicos da R., implicaram para a A. muitos incómodos e aborrecimentos (cfr. factos 95 e 96).
De outra banda, em 01/02/2017 a A. foi operada em regime de ambulatório, com alta hospitalar no próprio dia, para extracção de material de osteossíntese na clavícula direita e no maléolo externo esquerdo e teve alta com bom prognóstico. No entanto, como qualquer intervenção, implicou todos os sofrimentos, inconvenientes e incómodos inerentes, a este nível destacando-se o subsequente seguimento em consulta, mudança de penso duas vezes por semana, retirada os pontos, prescrição de analgésicos em caso de SOS (cfr. factos 46 e 47), certo que quanto aos sofrimentos, quer durante o período de internamento hospitalar quer nos pós-operatórios, a A. teve muitas dores, e as três intervenções cirúrgicas a que se submeteu causaram-lhe receio e ansiedade quanto à sua recuperação (cfr. factos 92 e 93).
Sofreu ainda a A., em consequência do acidente, uma alopecia areata" post traumática e um quadro de cefaleias e síndrome vertiginoso (cfr. facto 50).
Todas as circunstâncias vivenciadas pela A. e acabadas de enunciar e o correspondente envolvimento, que grosso modo se traduz em a vida ficar reconduzida á labuta e esforço tendente à reabilitação e à preocupação quanto ao seu êxito, encerram variadas limitações inevitavelmente causadoras de mágoa e tristeza profunda por no fulgor da jovem vida adulta, aos 23 anos, se ver afectada na sua integridade física com patente repercussão nas actividades da sua vida diária.
Tendo o acidente ocorrido em 24/12/2015 (cfr. facto 1) apenas em 27/02/2017, um ano e dois meses depois e em permanente acompanhamento médico, com três intervenções cirúrgicas, frequentes tratamentos de fisioterapia e hidroterapia, se verificou a consolidação médico-legal das lesões sofridas pela A. (facto provado 56), porém com um défice permanente da integridade físico-psiquica e com as sequelas e padecimentos constantes dos factos provados 52 a 55, o que inevitavelmente é causa de sofrimento, mágoa e apreensão, e o certo é que a A. sente-se limitada fisicamente, o que lhe causa revolta, amargura, tristeza, ansiedade (cfr. facto 91).
As lesões sofridas pela A. em resultado do acidente determinaram-lhe um período 216 dias de défice funcional temporário total (entre 24/12/2015 e 26/07/2016) e um período igualmente de 216 dias de défice funcional temporário parcial (entre 27/07/2016 e 27/02/2017) (cfr. factos 57 e 58); em virtude do acidente e das lesões que do mesmo resultaram para a A. esta, como já dito, sofreu dores quantificáveis em grau 5 em 7, mantém condição dolorosa e ostenta várias cicatrizes, muitas delas visíveis. E essas cicatrizes desgostam-na, não gosta de as mostrar e, por se sentir observada, a A. evita ir à praia para não ter de expor o corpo, usa sempre roupa com mangas para não mostrar a cicatriz que apresenta na zona do úmero e a na zona da clavícula, a A., que antes do acidente gostava de andar de saia e saltos altos, deixou de fazê-lo para não exibir a cicatriz que apresenta ao nível do tornozelo esquerdo, tendo passado a usar sempre calças (factos provados 84 a 88).
Antes do acidente a A., como a maioria dos jovens, gostava de sair à noite com os amigos, ir a discotecas e dançar, o que deixou de fazer pelo facto de não conseguir dançar muito tempo pelas dores que começa a sentir, e passou a ser uma pessoa mais reservada, evitando ir a festas e convívios (cfr. factos 80 e 81).
Todas as descritas circunstâncias vivenciadas pela A. e as sequelas permanentes que apresenta ultrapassam incomensuravelmente os incómodos sempre existentes na vida em comunidade e que a A. não teria padecido não fora o acidente.
Trata-se de marcas com as quais a A. se confrontará diariamente para o resto da vida e que são percepcionáveis por terceiros, especialmente as cicatrizes, e isso não podem deixar de afectar a sua auto-estima e condicionarem-na no quotidiano, e a verdade é que a A. tudo faz para evitar expor as cicatrizes, alterando o seu modo de vestir e evitando idas à praia, e sente-se limitada fisicamente, o que lhe causa revolta, amargura, tristeza, ansiedade (cfr. factos 85 a 88 e 91), e isso a despeito de não se sentir complexada nem inferiorizada perante as outras pessoas (cfr. facto não provado Q).
Estamos inquestionavelmente em presença de danos não patrimoniais merecedores da tutela do direito, porque excedem enormemente aquilo que é exigível, em termos de resignação, relativamente aos incidentes a que os cidadãos estão sujeitos na vida normal em comunidade.
Assim, considerando que os critérios legais estabelecidos nos já citados artºs 496º nº 4 e 494º do CCivil revelam que o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado pelo Tribunal, quer haja dolo ou mera culpa, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, às flutuações do valor da moeda, etc., que o montante da reparação deve ser proporcional à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida, e aquela que tem sido a sua densificação pelos Tribunais superiores, que vem revelando uma tendência para a elevação dos quantitativos indemnizatórios por danos não patrimoniais em vista do aumento geral da qualidade de vida e do progresso económico, das oscilações do valor aquisitivo da moeda, das taxas de inflação e de juro, dos aumentos de prémios de seguro e da capacidade económica das seguradoras, afigura-se-nos adequado atribuir a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial a que nos vimos reportando o valor de € 30.000,00 (valor este actualizado, reportado a este momento tendo em atenção o artº 566º nº 2 do CCivil, o qual manda considerar, para cálculo da indemnização em dinheiro, a data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal).”
A Autora defende que, face ao seu sofrimento, passado, presente e futuro, e tendo em conta a jurisprudência que indica, o valor da indemnização a título de danos não patrimoniais deve ser fixado na peticionada quantia de 50.000,00 €.

Apreciando.

Como é sabido, o nosso ordenamento jurídico consagra o princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito (art. 496.º, n.º 1, do CC), surgindo as maiores dificuldades maiores na fixação do seu quantum,por não ser possível a reconstituição in naturanem funcionar aqui a teoria da diferença, já que, em regra, não é possível reconstituir a situação que existiria se o evento danoso não tivesse ocorrido, sendo de atribuir ao lesado uma compensação pecuniária. Lembramos, a propósito, as sábias palavras de Vaz Serra: “a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente ao dano, isto é, de valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão. Trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de equivalente” - in BMJ 83, pág. 85.

A fixação dos danos não patrimoniais é assim feita segundo juízos de equidade, tendo em conta a culpabilidade do lesante e as demais circunstâncias do caso (arts. 496.º, n.º 3, e 494.º, ambos do CC). Há ainda que ter em consideração os critérios usualmente seguidos nas decisões dos nossos tribunais (cf. art. 8.º, n.º 3, do CC), sem olvidar que a jurisprudência tem vindo a reconhecer progressivamente a necessidade de atribuir indemnizações significativas por danos não patrimoniais. A título meramente exemplificativo, veja-se o seguinte trecho do acórdão do STJ de 24-05-2005, proferido no processo n.º 05A819, disponível em www.dgsi.pt, pela síntese de aspetos que devem nortear o juízo equitativo:
Primeiro: está definitivamente enterrado o tempo da atribuição de indemnizações baixas, miserabilistas; hoje, os tribunais estão sensibilizados para a quantificação credível dos danos não patrimoniais - credível para o lesado e credível para a sociedade, respeitando a dignidade e o primado dos valores do ser, como acontece com a integridade física e a saúde, que o Estado garante a todos os cidadãos (art.ºs 9º, b), e 25º, nº 1, da Constituição); este "movimento" contra indemnizações meramente simbólicas não deixa de estar relacionado muito directamente, além do mais, com o aumento continuado e regular dos prémios de seguro que tem ocorrido no nosso país por imposição das directivas comunitárias, aumento esse cujo objectivo fulcral (pelo menos no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação) não é o de garantir às companhias seguradoras lucros desproporcionados, mas antes o de, em primeira linha, assegurar aos lesados indemnizações adequadas.
Segundo: As indemnizações adequadas passam com cada vez maior frequência por uma valorização mais acentuada dos bens da personalidade física, espiritual e moral atingidos pelo facto danoso, bens estes que, incindivelmente ligados à afirmação pessoal, social e profissional do indivíduo, "valem" hoje mais do que ontem; e assim, à medida que com o progresso económico e social e a globalização crescem e se tornam mais próximos toda a sorte de riscos - riscos de acidentes os mais diversos, mas também, concomitantemente, riscos de lesão do núcleo de direitos que integram o último reduto da liberdade individual, - os tribunais tendem a (2) interpretar extensivamente as normas que tutelam os direitos de personalidade, particularmente a do art.º 70º do Código Civil.
Terceiro: É necessário, em todo o caso, agir cautelosamente; e o Supremo Tribunal, nesta matéria, tem uma responsabilidade acrescida, dada a função que lhe está cometida de contribuir para a uniformização da jurisprudência; não é conveniente, por isso, alterar de forma brusca os critérios de valoração dos prejuízos; não deve perder-se de vista a realidade económica e social do país; e é vantajoso que o trajecto no sentido duma progressiva actualização das indemnizações se faça de forma gradual, sem rupturas e sem desconsiderar (muito pelo contrário) as decisões precedentes acerca de casos semelhantes. Isto porque os tribunais não podem nem devem contribuir para alimentar a noção de que neste domínio as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. A justiça tem ínsita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade; é tudo isto que no seu conjunto origina o sentimento de segurança, componente essencial duma sociedade assente em bases sólidas. Ora, de certo modo os tribunais são os primeiros responsáveis e sobretudo os principais garantes da afirmação de tais valores: cabe-lhes contrariar com firmeza a ideia de que os factos danosos geradores de responsabilidade civil, muitas vezes tragédias pessoais e familiares de enorme dimensão material e moral, possam ser transformados em negócios altamente rendosos para pessoas menos escrupulosas.
Quarto: A indemnização prevista no art.º 496º, nº 1, do CC, mais do que uma indemnização é uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objectivo que lhe preside é o de proporcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos e não o de o recolocar "matematicamente" na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e, nessa exacta medida, irreparáveis, é uma reparação indirecta).”

Não podemos deixar de fazer o confronto com casos análogos (cf. art. 8.º, n.º 3, do CC), apesar das limitações acima apontadas (continuando a não olvidar que os valores fixados em anteriores decisões devem hoje ser encarados como carecidos de atualização), merecendo destaque, nesta senda, o caderno de jurisprudência temática do STJ, “Os danos não patrimoniais na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça”, disponível em www.stj.pt. Com alguma proximidade com o caso dos autos, destacamos:
- o acórdão do STJ de 24-03-2015, proferido na Revista n.º 1425/12.4TJVNF.G1.S1 - 6.ª Secção, cujo sumário está igualmente disponível em www.stj.pt: II- Tendo-se provado que (i)- o autor só teve alta mais de um ano após o acidente; (ii)- foi submetido a uma intervenção cirúrgica – osteossíntese da rótula esquerda – e a tratamento conservador ao tornozelo direito; (iii)- após a alta, andou cerca de dois meses de cadeira de rodas e depois com a ajuda de canadianas, durante mais de três meses; (iv)- ficou com atrofia da coxa esquerda superior e falta de força muscular do membro inferior esquerdo, com dor à mobilização; (v)- está impossibilitado de correr, tem dificuldade em estar de pé por longo tempo, sente dores no joelho esquerdo, tem dificuldade em ajoelhar, em baixar-se e em carregar pesos (vi)- vai continuar a necessitar de acompanhamento médico periódico; (vii)- sente-se infeliz, desgostoso da vida, inibido e diminuído físico e esteticamente, julga-se adequado arbitrar, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 25 000 (mais € 10 000 que o montante fixado na 1.ª instância).”

- o acima referido acórdão do STJ de 26-01-2017, na Revista n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1 - 2.ª Secção: VII- Resultando da matéria fáctica provada que a autora: (i)- tinha 29 anos de idade à data do acidente; (ii)- em virtude deste, sofreu pânico e dores corporais; (iii)- recorreu, várias vezes, ao serviço de urgência hospitalar, tendo sido submetida a exames, tratamentos e medicação; (iv)- usa colar cervical e colete dorsal; (v)- continua em tratamento, designadamente medicação, com o mesmo quadro clínico de síndrome pós-traumático, dores lombares e cervicais com intensidade progressiva, irradiação occipital, dores de cabeça, crises de pânico, humor depressivo, angústia e insónia; (vi)- o quantum doloris foi fixado no grau 4; (vii)- é casada e tem a seu cargo dois filhos menores; (viii)- antes do acidente era uma pessoa alegre, enérgica, trabalhadora e ativa, sendo agora uma pessoa triste, angustiada, revoltada e nervosa; (ix)- apresenta uma atitude apelativa e pitiática, humor lábil de tonalidade depressiva, expressando desgosto pelas dificuldades de mobiliação com que ficou, queixando-se do evitamento para a condução e revivências do acidente; (x)- não brinca com a filha, nem a ajuda nos estudos, o que antes fazia; e (xi)- deixou de fazer desporto, caminhadas e de andar de bicicleta, o que a deixa nervosa e desgostosa, é correto, de acordo com a equidade, o montante de € 30 000 fixado pela Relação a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial (arts. 494.º e 496.º do CC).”

- o acima citado acórdão do STJ de 29-10-2019, na Revista n.º 7614/15.2T8GMR.G1.S1 - 6.ª Secção (lesado com 34 anos e um défice funcional de 16 pontos, sem rebate profissional mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional): IV- Considerando (i)- as cinco intervenções cirúrgicas a que o autor se submeteu, (ii)- os tratamentos de fisioterapia durante cerca de dois anos, (iii)- a dor física que padeceu (grau 4 numa escala de 1 a 7), (iv)- o dano estético (grau 3 numa escala de 1 a 7), a afetação permanente nas atividades desportivas e de lazer (grau 3 numa escala de 1 a 7), (v)- a limitação funcional do membro superior esquerdo em relação a alguns movimentos, (vi)- a dor ligeira da anca no máximo da flexão e ao ficar de cócoras, (vii)- a tristeza, a depressão e o desgosto, considera-se adequado compensar estes danos não patrimoniais no montante de € 30 000,00, reduzindo-se, assim, a indemnização fixada pela Relação.”

No caso dos autos, são elencados com acerto na sentença recorrida os aspetos ponderados para fixação do valor indemnizatório, merecendo destaque as lesões sofridas e os tratamentos a que foi sujeita, com o quantum doloris de grau 5 numa escala crescente de 7, e o dano estético que as cicatrizes deixaram (grau 3), as dores que mantem, sobretudo em certas atividades, como dançar ou a permanência de longos períodos em pé.

Tudo ponderado, não nos parece que a decisão recorrida tenha feito uma avaliação incorreta dos danos não patrimoniais em apreço, pelo que improcedem neste particular as conclusões da alegação de recurso (sem prejuízo da apontada redução de 25% da parcela indemnizatória).

6.ª questão - Indemnização, a liquidar, por danos futuros atinentes ao previsível agravamento do estado de saúde da Autora

Na sentença recorrida teceram-se a este respeito, além da passagem acima citada quanto ao conceito de danos futuros, as seguintes considerações:
“Na pretensão da A. compreendem-se danos patrimoniais futuros já liquidados e outros relegados para liquidação de sentença.
(…) Quanto aos invocados danos futuros relegados para liquidação de sentença, os mesmos fundam-se da alegada necessidade futura de sujeição a intervenções cirúrgicas, uma para extracção de material de osteossíntese do membro superior esquerdo, outra, de natureza plástica, para reparação de cicatrizes com aspecto queloide, e ainda outra para colocação de prótese na cabeça do fémur, assim como nos inerentes danos não patrimoniais relativos às dores, sofrimento e incómodos decorrentes de tais intervenções, e bem assim os períodos de incapacidade determinados por essas intervenções com correspondente perda salarial.
Para além disso, e também a liquidar ulteriormente, a A. alega danos futuros relativos à necessidade futura de ajuda médica, medicamentosa e tratamentos de fisioterapia.
Ora, da matéria de facto apurada não decorre que a A. terá ainda no futuro de ser submetida a uma intervenção cirúrgica para extracção do material de osteossíntese no membro superior esquerdo, nem de ser submetida a cirurgia plástica para reparação de cicatrizes com aspecto queloide, nem de se submeter a uma intervenção cirúrgica para colocação de prótese na cabeça do fémur, nem que necessitará no futuro de ajuda médica e medicamentosa, nem de realizar sessões anuais de fisioterapia, como forma de atenuar os fenómenos dolorosos e influenciar o prognóstico positivamente e evitar o agravamento futuro (cfr. factos não provados H a L), pelo que essa vertente do seu pedido terá de improceder, porquanto inexiste dano patrimonial futuro.”

A Autora continua a pugnar pela condenação da Ré no tocante à indemnização dos danos futuros “decorrentes do agravamento do seu estado de saúde e todos os demais danos daí decorrentes a liquidar em execução de sentença”, invocando, em síntese, que: a Autora verá o seu estado de saúde agravar-se no futuro; terá a quase certa necessidade de intervenção a nível da anca, devido ao desgaste acelerado do colo do fémur; terá desenvolvimento de artroses precoces, dificuldades agravadas na hipótese de gravidez, constante necessidade de medicação analgésica e necessidade imperiosa de fisioterapia regular, a fim de tentar retardar tal degradação precoce do seu estado de saúde.

Vejamos.

Resultou provado, com a procedência parcial da impugnação da decisão da matéria de facto, que a Autora necessitará no futuro de ajuda médica e medicamentosa e terá ainda de realizar sessões anuais de fisioterapia, como forma de atenuar os fenómenos dolorosos e influenciar o prognóstico positivamente e evitar o agravamento futuro. Naturalmente, a necessidade de consultas médicas da especialidade (por certo de ortopedia e/ou fisiatria), de fisioterapia e de medicação fazem prever que será necessário à Autora suportar as respetivas despesas, sendo um facto notório [cf. art. 5.º, n.º 2, al. c), do CPC] que não está assegurada, no nosso país, salvo em casos especiais, o acesso gratuito a cuidados médicos e medicamentosos. Logo, estamos perante um dano futuro previsível, embora de extensão inferior ao peticionado, considerando não terem resultado provados alguns dos factos invocados pela Autora, desde logo que terá no futuro de ser submetida a uma intervenção cirúrgica para colocação de prótese na cabeça do fémur – cf. al. J.

A Autora formulou a este respeito um pedido ilíquido e, efetivamente, não dispomos ainda de elementos fácticos suficientes para que, mesmo com apelo à equidade, seja possível fixar já o valor da indemnização devida pela Ré. Logo, não sendo para já determináveis, caberá à Autora em ulterior incidente de liquidação alegar e provar os factos indispensáveis a esse respeito, impondo-se agora relegar para decisão ulterior a fixação da respetiva indemnização, ao abrigo do disposto nos artigos 564.º, n.º 2, do CC e 358.º, n.º 2, do CPC.

Em suma, com a procedência parcial da impugnação da decisão da matéria de facto e considerando o acima decidido quanto à medida da contribuição culposa (25%) da Autora para o agravamento dos danos (acima apreciados e aos quais há que acrescentar os danos patrimoniais que foram quantificados na sentença em 6.191,12 €) e à quantificação do dano biológico, o recurso merece provimento parcial, sendo a Ré condenada a pagar à Autora:
- a quantia de 4.643,34 €, a título de indemnização por danos patrimoniais;
- a quantia de 37.500,00 €, a título de indemnização pelo dano biológico;
- a quantia de 22.500,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais.;
- a quantia a liquidar relativa às despesas que a Autora futuramente tiver de suportar com ajuda médica e medicamentosa e sessões anuais de fisioterapia, como forma de atenuar os fenómenos dolorosos e influenciar o prognóstico positivamente e evitar o agravamento futuro.

Vencidas ambas as partes, são responsáveis pelo pagamento das custas processuais, na proporção do decaimento (artigos 527.º, 529.º e 607.º, n.º 6, este ex vi do art. 663.º, n.º 2, todos do CPC); porém, como a Autora beneficia do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cf. ofício junto com a Petição Inicial), não será condenada a efetuar o respetivo pagamento (cf. artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP).

***

III–DECISÃO

Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
a)-revoga-se parcialmente a sentença recorrida:
- na parte em que condenou a Ré no pagamento das quantias de 3.095,60 €, 12.500 € e 15.000 €, a título de indemnização por danos patrimoniais, pelo dano biológico e por danos não patrimoniais, respetivamente, que ora se substitui, pela decisão de condenação da Ré a pagar à Autora, a esses mesmos respetivos títulos, as quantias de 4.643,34 €, 37.500,00 € e 22.500,00 €;
- na parte em que absolveu a Ré do pedido de condenação no valor a liquidar relativo ao acompanhamento/tratamento médico, ajuda medicamentosa, nomeadamente medicação analgésica, sessões de fisioterapia, até ao final da vida, a custear futuramente pela Autora, decidindo-se, em substituição, condenar a Ré a pagar à Autora a quantia a liquidar atinente às despesas que esta tiver de suportar no futuro com ajuda médica e medicamentosa e sessões anuais de fisioterapia, como forma de atenuar os fenómenos dolorosos e influenciar o prognóstico positivamente e evitar o agravamento futuro;
b)-mantem-se, quanto ao mais, a sentença recorrida;
c)-condena-se a Ré-Apelada no pagamento das custas processuais, sendo as da ação na proporção de 30 % e as do recurso na proporção de 19%, não se condenando a Autora-Apelante no pagamento das custas da sua responsabilidade atento o apoio judiciário de que beneficia.

D.N.


Lisboa, 15-09-2022



Laurinda Gemas
Arlindo Crua (com Declaração de voto infra)
António Moreira
(Acórdão assinado eletronicamente)


Declaração de voto:

1)-Subscrevo o douto Acórdão supra quanto à Decisão, nomeadamente no que concerne aos montantes indemnizatórios fixados ;
2)-Todavia, não posso aderir, em pleno, aos fundamentos invocados na mesma douta decisão, nomeadamente no que concerne ao ressarcimento do invocado dano patrimonial futuro, decorrente do dano corporal de que adveio uma incapacidade permanente absoluta ou uma incapacidade para a profissão habitual, concretizada como dano biológico ou dano corporal a título não patrimonial ;
3)-Nomeadamente quando se referencia, a fls. 75 do douto Acórdão, que Assim, os factos provados são insuficientes para concluirmos que, em virtude do Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica, a Autora, no desempenho da sua atividade profissional, irá deixar de auferir determinadas quantias, não estando evidenciado que as sequelas descritas nos factos provados terão, no caso concreto, consequências patrimoniais.
Deste modo, por não se prefigurar como provável no contexto fáctico apurado uma perda de rendimentos, inexiste fundamento para atribuir à Autora a peticionada verba indemnizatória autónoma atinente ao (invocado) dano patrimonial futuro, apenas se justificando a indemnização pelo dano biológico (...), efectivada em sede não patrimonial ;
4)-A Autora lesada, conforme a factualidade provada, regressou a Portugal em Novembro de 2015, depois de ter estado dois anos a trabalhar em Inglaterra, no ramo da restauração, como empregada de mesa, o que ocorreu devido ao facto de pretender ajudar a sua mãe a abrir um negócio no ramo da restauração, nomeadamente um café – cf., factos 66 e 67 ;
5)-Na sequência do acidente, lesões sofridas e das sequelas de que ficou portadora, a sua vida alterou-se profissionalmente – cf., facto 79 ;
6)-A actividade da restauração exige a permanência por longos períodos de pé, o transporte de bandejas, e que se caminhe bastante”, tendo a Autora deixado de trabalhar na restauração, tendo passado a trabalhar numa loja de roupa”, sentindo-se “limitada fisicamente” – cf., factos 89 a 91 ;
7)-As lesões por si sofridas e as sequelas apresentadas são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares – cf., facto 64 ;
8)-Ora, conforme exarámos em Acórdão desta Relação de 08/11/2018 [1], com base na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça aí citada:
“O dano corporal ou dano biológico (incapacidade fisiológica ou funcional) não se confunde com o dano patrimonial, sendo que aquele está sempre presente em cada lesão da integridade físico-psíquica ou do bem saúde, enquanto que este, como dano sucessivo ou ulterior, é eventual ;
Considerando-se a força do trabalho um bem patrimonial, tem-se entendido que a incapacidade parcial permanente (IPP) é, consequentemente, um dano de natureza patrimonial ;
Pelo que a incapacidade permanente (IPP) é, de per si, um dano patrimonial indemnizável ;
E isto, quer determine ou acarrete para o lesado uma diminuição efectiva do seu ganho laboral, quer apenas implique um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de proventos laborais, exigindo tal incapacidade um esforço suplementar físico e/ou psíquico para obter o mesmo resultado ;
Trata-se de indemnizar, a se, o dano corporal sofrido, e não qualquer perda efectiva de rendimento ;
A incapacidade fisiológica ou funcional é, assim, diferenciada da incapacidade laboral ou para o trabalho, sendo ambas indemnizáveis ;
Aquela incapacidade – fisiológica ou funcional -, vulgarmente designada por handicap, tem por objectivo indemnizar o dano corporal sofrido, tendo por referência a integridade psicossomática plena, que não particularmente qualquer perda efectiva de rendimento ou de concreta privação da capacidade de angariação deste ;
O dano biológico é assim, ressarcível, ainda que não se traduza numa perda de rendimentos profissionais ou não imponha um acréscimo de estrito esforço físico ;
E a sua ressarcibilidade é sempre como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial ;
Integrando ainda tal dano biológico a inferiorização de ordem funcional ou perda de capacidades e a potencial perda de oportunidades, a acrescer, e para além, do dano não patrimonial ;
Assim, o dano biológico ou dano corporal é um dano-evento ou dano primário, enquanto o dano patrimonial ou dano moral são danos secundários ou eventuais ;
Apesar de, num determinado entendimento, ao dano biológico ser atribuída uma natureza não patrimonial, este pode ser ressarcido em sede patrimonial ou compensado em sede não patrimonial, a título de dano patrimonial ou como dano moral ;
Assim, caso a lesão origine, no futuro, durante o período activo do lesado, ou da sua vida, uma perda de capacidade de ganho ou um esforço acrescido no seu desempenho profissional, o ressarcimento deve operar-se em sede patrimonial ;
Em contraponto, estando em causa a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e energia, decorrente de uma maior fragilidade adquirida, a nível somático ou psíquico, sem rebate profissional, a compensação deve operar-se em sede não patrimonial ;
9)–E, conforme sumariámos, mais recentemente, em aresto desta Relação, datado de 28/04/2022 [2]:
  • I- O dano corporal ou dano biológico (incapacidade fisiológica ou funcional) não se confunde com o dano patrimonial, sendo que aquele está sempre presente em cada lesão da integridade físico-psíquica ou do bem saúde, enquanto que este, como dano sucessivo ou ulterior, é eventual ;
  • II- considerando-se a força do trabalho um bem patrimonial, tem-se entendido que a incapacidade parcial permanente (IPP) é, consequentemente, de per si, um dano de natureza patrimonial indemnizável ;
  • III- e isto, quer determine ou acarrete para o lesado uma diminuição efectiva do seu ganho laboral, quer apenas implique um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de proventos laborais, exigindo tal incapacidade um esforço suplementar físico e/ou psíquico para obter o mesmo resultado ;
  • IV- pois, neste caso, trata-se de indemnizar, a se, o dano corporal sofrido,e não qualquer perda efectiva de rendimento ;
  • V- assim, caso a lesão origine, no futuro, durante o período activo do lesado, ou da sua vida, uma perda de capacidade de ganho ou um esforço acrescido no seu desempenho profissional, o ressarcimento deve operar-se em sede patrimonial ;
  • VI- em contraponto, estando em causa a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e energia, decorrente de uma maior fragilidade adquirida, a nível somático ou psíquico, sem rebate profissional, a compensação deve operar-se em sede não patrimonial ;
10)–tendo resultado provado que as lesões sofridas pela Autora, e as sequelas daí decorrentes, levaram-na a deixar de trabalhar na restauração, em virtude de nesta ser exigível a permanência por longos períodos de pé, o transporte de bandejas, e que se caminhe bastante, tendo-se alterado a sua vida profissional, pois passou a trabalhar numa loja de roupa, bem como que, sendo compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual, implicam esforços suplementares, aquelas lesões têm efectivo rebate profissional no desempenho da sua actividade e, não estando provada a cessação das mesmas, o ressarcimento do dano biológico, no nosso entendimento, sempre seria de operar em sede patrimonial ;
11)–E isto, independentemente de não se provar ou não existir qualquer diminuição dos ganhos ou proventos ;
12)–Com efeito, e in casu, não se afigura estar em equação apenas um mero dispêndio de energia ou esforço, fruto ou consequência de uma maior fragilidade adquirida, a nível físico ou somático, destituída de quaisquer efeitos profissionais.

***


Lisboa, 15/09/2022


O Desembargador Adjunto
Arlindo José Colaço Crua



[1]Processo nº. 3421/15.0T8PDL.L1.
[2]Processo nº. 12067/16.5T8LRS.L1.