Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11459/12.3TDLSB.L1 -5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
EXTORSÃO
BURLA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I.O despacho de pronúncia tem de conter os elementos exigidos à acusação, sob pena de nulidade, sendo compreensível tal exigência na medida em que, na ausência de acusação, ou quando, apesar dela, é requerida instrução, é a decisão instrutória de pronúncia que delimita e fixa o objecto do processo;
II.Em relação ao despacho de não pronúncia, é suficiente que a respectiva fundamentação dê a conhecer as razões, de facto e de direito, que justificam a decisão, sem que haja qualquer obrigatoriedade de indicar quais de entre os factos alegados estão indiciados e quais o não estão;
III.Em termos abstractos, é possível configurar situações de concurso entre o crime de burla e o de extorsão, quando ao lado de actos de disposição patrimonial do ofendido, motivados por erro provocado pelo agente, ocorram outros derivados de violência ou ameaça pelo mesmo agente.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


Iº.1.-No processo nº11459/12.3TDLSB da Comarca de Lisboa, Lisboa - Inst. Central - 1ª Sec. Inst. Criminal - J2, o Ministério Público, findo o inquérito, acusou:
-arguida L.B., como autora material de um crime de burla agravada e co-autora material de um crime de burla agravada, um crime de extorsão, um crime de ameaça e um crime de perturbação da vida privada, na forma continuada.
-os arguidos, S.C., M.B., L.A., C.A., S.R. e A.S., como coautores-materiais de um crime de burla agravada, um crime de extorsão, um crime de ameaça e um crime de perturbação da vida privada, na forma continuada.

O assistente, DCC, aderiu à acusação do Ministério Público, fazendo a esta algumas precisões factuais e deduziu pedido de indemnização civil (fls.714), pedindo a condenação solidária dos demandados (L.B., S.C., M.B., L.A., C.A., S.R. e A.S.), a lhe pagarem a quantia de €47.903,03, acrescida de juros, vencidos e vincendos, por danos patrimoniais e €10.000 por danos não patrimoniais, também acrescida de juros, vencidos e vincendos.

Os arguidos M.B., A.S., C.A. e S.R., requereram a realização de instrução.
A instrução terminou com despacho de 16Jun.16, não pronunciando os arguidos M.B., A.S., C.A. e S.R., por nenhum dos crimes que lhes foram imputados, não pronunciando os arguidos L.B., S.C. e L.A., pelos crimes de extorsão e de perturbação da vida privada que lhes foram imputados e pronunciando a L.B. por dois crimes de burla agravada e um crime de ameaça e a S.C. e o L.A. por um crime de burla agravada e um crime de ameaça.

Este despacho tem o seguinte teor:
“...
...
De acordo com o disposto no art. 286º/l do Cód. Proc. Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da dedução de acusação ou do arquivamento do inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.

Tem-se em vista, nesta fase processual, a formulação de um juízo seguro sobre a suficiência dos indícios recolhidos relativos à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (artº 308º/1 do Cód. de Processo Penal), ou seja, de se ter verificado um crime imputável ao arguido.

Assim, concluindo-se pela suficiência dos indícios recolhidos haverá que proferir despacho de pronúncia, caso contrário, o despacho será de não pronúncia.

Na base da não pronúncia dos arguidos, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade do arguido ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.

Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como vimos, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.

Analisemos, pois, os crimes imputados aos arguidos.

O crime de burla encontra-se previsto no artigo 217º do Código Penal, nos seguintes termos: «Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»

A burla, tendo por bem jurídico protegido o património, é um crime de dano, que apenas se consuma com a ocorrência de um efectivo prejuízo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro. É também um crime de resultado parcial ou cortado na medida em que embora se exija que o agente actue com a intenção de obter para si ou para outrem um enriquecimento ilegítimo a consumação do crime não depende da concretização de tal objectivo, bastando que se verifique o empobrecimento da vítima.

A burla é um delito de execução vinculada, no qual a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento, traduzindo-se na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. Para que se esteja em face de um crime de burla não basta o emprego do meio enganoso.
Torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais. Como melhor se verá adiante, a este processo, globalmente considerado, se reconduz o domínio do erro como critério de imputação inerente à figura da burla e que esgota o sentido da referência à astúcia.«(…) Tratando-se de um crime material ou de resultado a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e depois entre estes últimos e efectiva verificação de prejuízo patrimonial. (…)» Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, artigo 217º pág.293 a 308.

«(…)Em qualquer dos momentos em que se desdobra o duplo nexo de imputação objectiva subjazem os pressupostos da teoria da adequação. (…)» No essencial, a questão prende-se não com a configuração externa, mas com o valor ou conteúdo comunicacional que globalmente considerada, a conduta do agente reveste na situação controvertida, ali radicando a admissibilidade da burla por actos concludentes.

A colocação da tónica no aludido conteúdo comunicacional da conduta, implica relevantes consequências ao nível das soluções concretas. Assim, a afirmação da verdade pelo agente não exclui a punição a título de burla se, atento o contexto em que foi proferida assumir o prevalente sentido de uma declaração não séria ou jocosa e, nessa medida, se mostrar insusceptível de por termo ao estado de erro em que se encontra o sujeito passivo. De outra parte, tendo em atenção a particular credulidade ou falta de resistência do burlado (v.g. mercê de fragilidade intelectual, de inexperiência ou de especiais relações de confiança com o agente) admite-se a possibilidade de concluir pela idoneidade de um meio enganador via de regra incapaz de persuadir a generalidade das pessoas.

O tipo legal exige que o erro que se forma no sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente. Para Beleza dos Santos a astúcia consistiria, no recurso a uma mentira qualificada - requisito que se justificaria pela circunstância da conduta envolver não só uma ofensividade acrescida em relação ao bem jurídico, mas também a expressão de uma particular perigosidade do agente. (Beleza dos Santos , RLJ, nº76º, 276, 278, 295, 322 e 323). Entende-se que a tónica não deve ser colocada na restrição aos critérios gerais de imputação objectiva consubstanciada numa repartição da responsabilidade pelo erro entre os sujeitos activos e passivos da infracção, mas sim na efectiva manipulação de outrem «caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista.(…). A posição adoptada ganha, contudo, em clareza, quando perspectivada do ângulo da qualificação da burla como crime com participação da vítima. Na verdade, como é o próprio sujeito passivo que pratica os actos de diminuição, a burla integra, em ultimo termo, uma hipótese de auto lesão, estruturalmente análoga às situações de autoria mediata em que o domínio do facto, do homem de trás deriva do estado de erro do executor acerca do circunstancialismo em que actua. (…) à luz de uma ponderação material o paralelismo dos dois casos aponta para que também no âmbito em apreço se exija a verificação de um genuíno domínio do erro como pressuposto da responsabilização do agente pelo crime consumado. Melhor dizendo, no quadro da compreensão da burla como um delito contra o património, num tal domínio do erro terá que ancorar o fundamento da imputação do resultado à conduta. De harmonia com a exposição anterior, na medida em que exprime a adequação do comportamento do agente às características do caso concreto, aquele domínio do erro esgota o conteúdo útil da inclusão do advérbio astuciosamente no nº1 do artigo 217º enquanto nota caracterizadora do modus operandi da burla: por referência ao disposto no nº1 do artigo 10º do Código Penal ele exprime, no contexto do iter criminis que comporta, de permeio, a intervenção de outra pessoa, a exigência de um rigor intensificado-o mesmo que se coloca na esfera da autoria mediata fundada no domínio-do-erro – ao nível da aplicação dos critérios de imputação objectiva.».

A particularidade do delito de burla deriva de se estar perante um processo executivo que comporta de permeio a intervenção de um ser autónomo e livre, circunstância que, por si só, justifica as conclusões do parágrafo anterior. Perspectivado de outro ângulo, o problema adquire, todavia, novos contornos. Prendem-se eles, não já com a simples atribuição de um resultado à conduta, mas com a delimitação do âmbito de protecção da norma e, assim, do ilícito subjacente ao crime de burla.

Com efeito, apesar da acentuação da vertente solidarista do Estado de direito social, persiste a convicção de que, em primeira linha, compete a cada pessoa cuidar dos seus interesses, assumindo a obrigação de salvaguardar bens jurídicos alheios (até por razões atinentes à preservação da autonomia da esfera privada) um carácter subsidiário e residual. (…) o que significa que a consumação do delito depende não de um qualquer domínio do erro mas sim de um domínio do erro jurídico-penalmente relevante. Este domínio tem que assentar no princípio da boa fé, analisado em termos objectivos. Isto é, a conduta do agente ao reflectir uma deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico, viola os ditames da boa fé e desde que preenchidos os demais pressupostos permite concluir pela existência de burla, sendo este o caminho para a fronteira entre a verificação ou não do ilícito, uma vez que se trata de uma norma penal em branco.

A burla pode configurar-se materialmente através de palavras ou declarações expressas, por actos concludentes ou por omissão.

Nos termos do disposto no artigo 223º do Código Penal, comete o crime de extorsão quem:
«1-Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até 5 anos.
2-Se a ameaça consistir na revelação, por meio da comunicação social, de factos que possam lesar gravemente a reputação da vítima ou de outra pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
3-Se se verificarem os requisitos referidos:
a)Nas alíneas a), f) ou g) do nº 2 do artigo 204º, ou na alínea a) do nº 2 do artigo 210º, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos;
b)No nº 3 do artigo 210º, o agente é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.»

Conforme resulta dos ensinamentos de Américo Taipa de Carvalho, publicados sob anotação §.3 e §.4, do artigo 223º, do Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 340/34, edição 1999, «A extorsão tem muitos elementos comuns a vários tipos de crime, nomeadamente aos de coacção (artº 154º) roubo (210º) e burla (217º). Estruturalmente, as maiores afinidades são com o crime de coacção, pois que todos os elementos integrantes da factualidade típica deste crime fazem também parte do crime de extorsão, especializando-se este, em relação ao crime de coacção apenas pela exigência da conduta coagida se traduzir num injusto prejuízo para o sujeito passivo (a vitima da coacção ou outra pessoa) e num enriquecimento ilegítimo para o agente ou terceiro. Por isto o crime de extorsão, é rigorosamente, um lex specialis face ao tipo do crime de coacção. (…)
(…)§ 4.Relativamente ao crime de burla, pode dizer-se que, apesar de os pontos de contacto serem vários, a distinção é nítida. Há afinidades ou mesmo identidade nos seguintes aspectos: os crimes de extorsão e de burla são crimes contra o património em geral; ambos pressupõem uma certa cooperação da vítima, uma vez que as condutas, de que resultam o prejuízo patrimonial da vítima (extorquido e burlado) e o enriquecimento ilegítimo do agente (o extorsionário e o burlão) ou de terceiro, são realizadas pela própria vítima ou por um terceiro; tanto a extorsão como a burla, além de serem crimes directamente contra o património, lesam também o bem jurídico liberdade de decisão e de acção, pois que, sendo isso evidente no caso da extorsão, não deixa de ocorrer também no crime de burla, uma vez que a liberdade no processo de decisão sobre o acto de disposição patrimonial foi afectada pelo erro ou engano provocados pelo burlão. Mas apesar destas coincidências, o crime de extorsão e o crime de burla distinguem-se, claramente, entre si por força dos meios utilizados: na extorsão, violência ou ameaça com mal importante (violência ou chantagem) já na burla, erro ou engano.(…)»

O que se deve entender por «ameaça com mal importante», mereceu tratamento dogmático do mesmo autor, na obra citada, desta vez em anotação ao artigo 154º, Tomo I, pág. 356, «§16 a) deve em primeiro lugar ter-se por firme que o mal importante, em si mesmo considerado, tanto pode ser lícito como não licito, isto é, o mal ou dano (pessoal ou patrimonial, seja directo ou indirecto) não tem de ser, necessariamente, ilegítimo. Por outras palavras e mais correctamente: a execução da conduta objecto da ameaça, não tem que constituir um ilícito, seja penal ou de qualquer outra espécie, civil, laboral, etc. Assim, configurará «ameaça com mal importante» a ameaça que o gerente de uma empresa faça a um seu empregado contratado a termo, de que não lhe renova o contrato de trabalho, se ele não deixar de frequentar o templo de uma certa religião (…).

§ 19. b) o segundo critério orientador da definição concreta do mal importante é o da adequação da ameaça a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante. Isto é, só deverá considerar-se mal importante aquele mal que é, nas circunstâncias do caso concreto, susceptível ou adequado a fazer dobrar a vontade do ameaçado. Há, portanto, que relacionar a importância ou gravidade do mal ameaçado com a exigência típica da adequação (imputação objectiva) deste a constranger o ameaçado. Daqui resultam duas equações: mal importante é igual a mal adequado a constranger o ameaçado, e mal adequado é igual a mal que, tendo em conta as circunstâncias concretas (idade, pobreza, dependência económica do coagido face ao ameaçado, sensibilidade individual e social do ameaçado, etc) do ameaçado, é visto pelo homem comum como susceptível de coagir o ameaçado (assim, Maia Gonçalves, art. 154º 3). Em conclusão, o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objectivo-individual: objectivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum, individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstancias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente as sub-capacidades (económicas, mentais, etc) do ameaçado (quando conhecidas ou quando, se não conhecidas, o agente tinha o dever de as conhecer). (…).»    

Com efeito, comete o crime de perturbação da vida privada, quem com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação ou para o seu telemóvel.

Estabelece o art. 153°, n.º 1, do Código Penal, que «Quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal (. . .) ou de bens de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias»

São meios de prova indicados pela acusação a prova documental de fls. 8 a 10 (caderneta bancária), 33 a 106 (leitura de registo de mensagens do telemóvel do assistente), 160 a 259 (documentação bancária referente às transferências efectuadas) 352 a 356 (prints de comunicações em chat de mensagens com indicação de perfil Rita SCiva), 364 a 370 (documentação bancária), 371 a 375 (print de comunicações em chat de mensagens com perfil de L.S.B., 376 e 377 (relatório psicológico do ofendido), 407, 422, 547 a 554 (documentação bancária), 558 a 560 e os depoimentos de P.C.C., id. a fls. 149, que prestou declarações para memória futura e as declarações do ofendido DCC.

Em sede de instrução prestaram declarações os arguidos M.J.B., C.M.V.A., S.V.R. e A.S. que declararam desconhecerem o ofendido e até a arguida L.B., afirmando que acederam a pedido da S.C.A. que invocava não ter conta bancária para nos contas destes arguidos serem depositadas quantias que eram entregues à Arguida S.C..

Efectivamente da prova colhida nada há que permita identificar qualquer um dos arguidos, excepto a circunstâncias dos depósitos terem sido efectuados nas suas contas, a rogo da arguida A. e no que concerne ao Arguido L.A., ter sido utilizado o seu telefone e efectivamente ter havido uma comunicação. Mesmo o ofendido nas suas declarações, confirma a voz masculina, embora não consiga proceder à sua identificação, sendo que o tempo decorridos não viabiliza a obtenção de dados de identificação junto das operadoras. Deste modo, apenas quanto ao arguido L.A. que igualmente praticou actos de execução, ao proferir expressões infra descritas, não podendo pois ser alheio ao plano, pelo menos desde essa data, nada há que aponte para a provabilidade de condenação dos demais arguidos.
 
Deste modo, antevê-se como evidente a absolvição dos arguidos M.B., C.A., S.R. e A.S. em julgamento pelo que não deverão ser pronunciados.

Com efeito, tendo em conta a natureza do ardil engendrado pelas arguidas L.B. e S.C., cuja inserção na tipicidade das condutas típicas apenas resulta da especialissima fragilidade do assistente, pois caso assim não fosse nenhuma tutela criminal haveria para os actos de depósito por este praticados, para a imputação aos demais arguidos dos factos integradores da burla era necessário a existência de indícios de acesso concreto ao ofendido, o que apenas se verifica quanto ás arguidas e a partir de 13 de Novembro de 2012 também relativamente ao arguido L.A..

Apenas as arguidas L.B. e S.C. que com o arguido directamente interagiam tiveram o domínio de informação sobre o seu grau de fragilidade afectiva, psicológica e perceptiva da realidade para através da mera ficção de situação de carência terem logrado obter do mesmo empréstimos sucessivos, convencendo-o da devolução dos montantes entregues. Apenas por esta particular fragilidade o meio astucioso pode ser considerado ( ainda que com algumas reservas de ordem dogmática) meio ardiloso apto a integrar o elemento objectivo do crime de burla, e apto a conduzir á prática de actos de disposição patrimonial.

Assim não fosse e estaríamos no pleno campo de direito civil, com realização de sucessivos mútuos, com vicio de forma. Contudo, da descrição dos factos plasmada na acusação, encontra-se uma tal debilidade e ausência de resistência que se nos afigura ser, admissível o convencimento do mesmo na carência de meios das arguidas e na sua predisposição para a devolução das quantias entregues numa primeira fase e a prática do crime de ameaça por banda da arguida S.C., utilizando para o efeito um terceiro, cuja identificação não se logrou obter, num momento posterior.

São elementos essenciais do tipo objectivo de ilícito em apreço: a existência de um mal, que esse mal seja futuro e cuja ocorrência depende da vontade do agente. Desde logo, cabe apurar se as expressões proferidas, consubstanciam a existência de um mal futuro.

No que se refere ao mal ameaçado, que pode ser de natureza pessoal ou patrimonial, este tem de configurar em si mesmo um facto ilícito típico (acto violento). Por outro lado, é ainda necessário que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. No caso em concreto, as comunicações descrita nas mensagens não correspondendo, em concreto a nenhuma actividade susceptível de causar um mal definido e crime futuro concretamente anunciado a perpetrar na denunciante, criam uma situação de temor, pela ameaça de deslocação ao emprego do ofendido e à sua residência que são aptas a constranger o ofendido a recear pela sua integridade física e moral.

Pela exposição teórica dos crimes de burla e extorsão, supra exposta, verifica-se a impossibilidade de imputação as arguida do crime de extorsão, por este não ser susceptível de concurso efectivo com o crime de burla, decaindo aqui a imputação realizada na acusação. 

Quanto ao crime de violação de domícilio/perturbação da vida privada, alegadamente praticado com o envio das mensagens, cumpre dizer que estipula o artigo 190º do Código Penal que: «1 - Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias. 2. Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação ou para o seu telemóvel

Aqui entendemos que a conduta descrita, mas não visa que a prática dos outros ilícitos, dela não se autonomizando.

Acresce que a norma prevê que «quem, com intenção de perturbar a vida provada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação ou para o seu telemóvel incorre em pena de prisão até um ano ou com pena de multa.»

O envio de mensagens, não pode ser abarcado no citado preceito, sob pena, de estarmos a fazer uma interpretação analógica ou até uma interpretação extensiva do mesmo. Assim, traduz-se num elemento essencial para o preenchimento do referido crime, que a comunicação seja feita por telefonema, pois impõe o acto de telefonar, com uma intenção específica de perturbar a vida privada, a paz e o sossego.

Enviar mensagem, ainda que por via de telefone, não é telefonar. Admitir que tal conduta está tipificada, imporia que houvesse diferente tutela penal se a mensagem fosse enviada por telefone, ou por outro meio, designadamente por via internet e assim, seria crime o acto de enviar a mesma mensagem, utilizando um telemóvel, mas já não o seria o acto de enviar a mesma mensagem, por via e-mail. Ora, tal distinção não faz sentido.

Com efeito, é elemento do tipo de crime a acção de telefonar e essa não está preenchida pelo envio da mensagem. Telefonar e enviar mensagens são actos naturalísticos e conceptuais diferentes, embora ambos consubstanciam formas de comunicação, sendo que apenas uma delas está prevista na norma incriminadora – o acto de telefonar.

Poder-se-ia argumentar que também por via de mensagens, se poderá perturbar o sossego de outrem, e assim é, de facto, contudo, não se entenderia então a diferença entre tal situação e as mensagens que são recebidas por via postal, ou por via de correio electrónico.

Crê-se que a pedra de toque da diferença consiste na possibilidade que o destinatário tem de obstaculizar à perturbação, pois enquanto não pode impedir o telefone de tocar, poderá não ler a mensagem e apagá-la, poderá não abrir o correio electrónico ou não ler cartas, nisto consistindo a justificação para a diferença de tratamento jurídico.

Deste modo, conclui-se que não deverão as arguidas ser pronunciadas por este ilicitos que lhes é imputado pelo Ministério Público, proferindo-se nessa parte despacho de não pronúncia.

De harmonia com o exposto não pronuncio M.B., C.A., S.R. e A.S., por nenhum dos crimes que lhe são imputados

Não pronuncio os arguidos L.B., S.C. e L.A. pelos crimes de extorsão e de perturbação da vida privada que lhes são imputados.

Pronuncio para julgamento em Processo Comum, com intervenção do Tribunal singular, como requereu o Ministério Público, usando o dispositivo legal previsto no artigo 16º, nº3 do CPP
L.B., ...,

S.C., ...,
e
L.A., ......

porquanto
.....

....
Cometeram assim os arguidos na forma consumada, em concurso real:
A arguida L.B.,
Como autora material na prática de:
o  um crime de Burla Agravada, p. e p. pelo artº 217º, 218º nº 2, al. a) do C. Penal;
Como co-autora na prática dos crimes de:
--Um crime de Burla Agravada, p. e p. pelo artº 217º, 218º nº 1, do C. Penal;
--Um crime de ameaça, p. e p. pelo artº 153º, 155 nº 1 al. a) do C. penal.
           
Os arguidos, S.C. e L.A., em co- autoria material na prática dos crimes de:
--Um crime de Burla Agravada, p. e p. pelo artº 217º, 218º nº 1, do C. Penal;
--Um crime de ameaça, p. e p. pelo artº 153º, 155 nº 1 al. a) do C. penal.
....
...”.

2.-Do despacho de não pronúncia, interpôs recurso o assistente, DCC, motivando-o com as seguintes conclusões:
2.1-A conquanta Douta Decisão Instrutória de 16 de Junho de 2016 infringe o art.308, n.1 do CPP, já que existem nos autos indícios suficientes da prática da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena;
2.2-mais infringindo as regras relativas às presunções judiciais (351.° do Código Civil) entre outros normativos, na medida em que não sopesou e cruzou devidamente todos os elementos probatórios existentes nos autos.
2.3-A Decisão Instrutória está inquinada do vício de falta de fundamentação e contradição na mesma, conforme supra foi explicitado, não cumprindo os requisitos essenciais de qualquer acto decisório, de acordo com o previsto no art.97 do CPP, mormente estar fundamentado de facto e de direito, de forma coerente.
2.4-Neste condicionalismo, discorda-se de tal Decisório, no que concerne à não pronúncia de todos os arguidos pelo crime de perturbação da vida privada e extorsão, bem como a não pronúncia dos arguidos M.B., Anjos, S.R. e A.S., pelo crime de burla qualificada e ameaça.
2.5-Principiamos por salientar o acerto e justeza da Acusação Pública e forma como cuidadosamente analisou os indícios existentes nos autos, pugnando-se por isso nesta sede pela pronúncia de todos os primitivos arguidos, pelos crimes constantes na Acusação Pública.
2.6-Sobre o crime de perturbação de vida privada, os factos que integram o mesmo constavam da Acusação e não foram afastados pelas diligências realizadas em sede de instrução, não se aceitando que tal crime apenas ocorra quando efectuado através de chamada telefónica (aliás é possível enviar uma SMS para um número fixo, que recebê-la-á como uma chamada e após atender a mesma, ouve uma leitura da mensagem, feita por uma voz "robotizada").
2.7-Em todo o caso, existiram chamadas feitas para o número fixo da residência do Assistente, através de um número fixo registado em nome do Arguido L.A..
2.8-Ademais, mesmos os contactos realizados para o telemóvel do Assistente, seja por via de SMS, seja por chamada são hoje pacificamente considerados pelos Tribunais Superiores como integrando o crime de perturbação da vida privada (art.190, nº2 do Código Penal): Acórdão da Relação de Coimbra de 18/06/2014, Proc. Nº718/11.2PBFIG.Cl; Acórdão da Relação do Porto de 07/1112012, Proc. Nº765/08.1PRPRT.P2, entre outros).
2.9-Nos autos tais chamadas estão comprovadas pelas declarações do Assistente, bem como pelas declarações da testemunha PCCe dados documentais constantes do processo (desde logo o que foi retirado do telemóvel do Assistente e transcrito para os autos).
2.10-Devem pois todos os arguidos serem pronunciados pelo crime de perturbação da vida privada, infra melhor se explicitando as razões pelas quais também os arguidos M.B., A.S., C.A. e S.Rdevem ser pronunciados.
2.11-Errónea é também a não pronúncia de todos os arguidos, pelo crime de extorsão. O crime burla tem como um dos elementos do tipo o erro ou engano provocado na vitima, erro ou engano que se verifica, amiúde, nestes autos, seja pedindo dinheiro ao Assistente para doenças que existiram, viagens que não aconteceram, etc.
2.12-Já a extorsão exige a verificação de uma ameaça com mal importante, o que também foi o caso, como a própria Decisão Instrutória parece acolher, na pág. 48, quando a integridade física do Assistente é ameaçada.
2.13-Em causa estão por isso factos naturais diferentes (condutas concretas diversas dos arguidos) - provocar o erro ou engano versus a ameaça à integridade física -, apesar de ambos visarem a obtenção de vantagem patrimonial. Em consequência, cada um desses actos da vida real deverá ser objecto de julgamento e prolação, a final, de uma sanção.
2.14-Daí que todos os arguidos devam ser também pronunciados pelo crime de extorsão, aqui se incluindo também os arguidos requerentes da instrução, pelas razões que abaixo se explicitam.

2.15-Especificamente, sobre os arguidos requerentes da instrução e sua não pronúncia pelos crimes de burla agravada e ameaça, note-se o seguinte sobre cada um dos arguidos:

a.-Arguido M.B.: beneficiário directo de transferências (data de 22/11/2011) realizadas pelo Assistente, na sequência solicitações da Arguida S.C.; relação muito próxima entre este arguido e arguida S.C., ao ponto do primeiro revelar à segunda o seu código pessoal de cartão de débito, permitindo que esta pudesse movimentar tal conta (declarações do próprio M.B., perante a Exma. Senhora Juiz de Instrução a quo, na data de 25/05/2016); utilização da página pessoal do Facebook do arguido M.B., para envio de mensagens ao Assistente, aparentemente assinadas pela arguida S.C. de 14/01/2013).
b.-Arguida A.S.: - beneficiária directa de transferências realizadas (datas de 20/05/2013 a 22/05/2013) pelo Assistente, na sequência de solicitações da Arguida L.B. ao Assistente; relação muito próxima entre esta arguida e arguida S.C., ao ponto de confiar os seus dados bancários, para utilização da arguida S.C. perante terceiros; utilização página pessoal do Facebook da arguida A.S., para envio de mensagens ao Assistente, aparentemente assinadas pela arguida S.C.; amiga próxima da arguida S.C., sendo também vizinha e convivendo diariamente com esta.
c.-Arguidas C.A. e S.R.: beneficiárias directas de transferências bancárias do Assistente; disseram conhecer a arguida L.B., quando na verdade estas arguidas C.A. (transferências de 30/04/2013) e S.R.(transferências de 04 a 08/05/2013) foram beneficiárias de transferências feitas pelo Assistente, a pedido da arguida L.B. São irmãs entre si e do Arguido L.A., que vive em união de facto com S.C..
2.16-Salvo melhor opinião, o Tribunal a quo teria de se debruçar criticamente sobre as declarações dos arguidos requerentes e não aceitá-las, sem tampouco as questionar e procurar perceber a sua credibilidade, circunstância que não merece uma linha na Decisão Instrutória em crise. Aliás, o interesse dos arguidos na não pronúncia merece aturada reflexão do Tribunal.
2.17-Todos os arguidos disseram, cada uma na sua vez: "Apenas dei a minha conta", mas nenhum deles soube explicar convincentemente por que razão a arguida S.C. lhes pediu o acesso à sua conta e respectivos dado.
2.18-Os Arguidos não souberam explicar por que razão a arguida S.C. ou alguém em seu nome utilizou a página pessoal de Facebook do arguido M.B. ou da Arguida A.S., mesmo questionados sobre isso e muito menos como tal acesso terá acontecido, sendo que, como todos sabemos, é necessário preencher os campos de e "palavra¬passe".
2.19-Acresce que os arguidos habitam na mesma rua, em casas vizinhas (que formam uma espécie de pátio interior, como resultou das declarações dos arguidos requerentes da instrução, prestadas no 25/05/2016), encontrando-se e conversando todos os dias, pelo que de acordo com as regras da experiência comum será muito natural que soubessem de todos os detalhes relativos à forma como o dinheiro foi obtido do Assistente, ainda para mais quando recebiam na sua conta dinheiro e viam nas transferências o nome DCC.
2.20-As arguidas A.S., C.A. e S.R. disseram, nas declarações de 25/05/2016 não conhecer a arguida L.B. Todavia, estas três arguidas receberam dinheiro nas suas contas, após a L.B. ter solicitado tais transferências ao Assistente e tê-lo feito dando ao Assistente os NIB das contas destas três arguidas.
2.21-Em conclusão, todos os arguidos vivem no mesmo conjunto de casas contíguas, convivendo convivendo diariamente numa espécie de pátio interior que as casas formam, daí que seja crível que todos os arguidos, incluindo os quatro requerentes da Instrução, tenham participado na concretização do projecto criminoso em causa, nos termos descritos na Acusação Pública.
2.22-Este é um contexto de intenso cruzamento de relações de forte parentesco (primeiro grau da linha lateral), de vizinhança bastante próxima e de convívio diário, o Tribunal a quo devia ter feito uma análise mais atenta e consciente, no sentido de questionar as reais motivações e participação destes quatro arguidos.
2.23-De facto, à luz das regras de experiência comum é bastante forte, face à proximidade que todos os arguidos têm entre si, a probabilidade de todo o projecto criminoso ter contado com a participação consciente de todos os arguidos.
2.24-Muito se estranha que nenhum dos quatro arguidos requerentes da instrução estava ou mostrou nas suas declarações algum incómodo com a arguida S.C., por, adoptando a tese dos mesmos, ter sido esta a conduzi-los, envolve-los nesta situação, em que são arguidos num processo e estou a responder por crimes.
2.25-A experiência na apreciação das respostas dadas, complementada com os demais indícios nestes autos, não justifica outra decisão que não a de acusar os arguidos requerentes da instrução, nos termos da acusação pública.
2.26-Neste contexto, podemos perceber que abundam nos autos elementos probatórios, documentais, testemunhais e até clínicos que ajudam a consubstanciar e fundamentar a decisão de pronúncia dos por todos os crimes nos exactos termos constantes da Acusação Pública.
2.27-Deve por isso a Decisão em crise ser revogada e substituída por outra que pronuncie todos os Arguidos, nos exactos termos em que foi proferida a Acusação Pública.

3.-Admitido o recurso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito não suspensivo, os arguidos M., A., C.A. e S.R., assim como o Ministério Público, responderam, todos concluindo pelo seu não provimento.

4.-Neste Tribunal, o Ex.mo Sr. Procurador-geral Adjunto, aderiu à resposta do Ministério Público em 1ª instância.

5.-Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.

6.-O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação da falta de fundamentação e contradição do despacho recorrido e à questão de saber se a responsabilidade penal dos arguidos, pelos crimes que lhes foram imputados na acusação do Ministério Público, se acha ou não indiciada.
*     *     *

IIº-1.-Alega o recorrente que a decisão recorrida padece de falta de fundamentação e contradição.
Como qualquer outra decisão judicial diferente da sentença, o despacho de não pronúncia está sujeito ao dever geral de fundamentação, obrigando à especificação dos motivos de facto e de direito da decisão, nos termos consagrados nos arts.205, nº1, da CRP e 97, nº5, do CPP.
No que concerne à decisão que pronuncia o arguido, exige ainda a lei – art.308, nº2 , do CPP – que seja observado o disposto no art.283, nº3 do mesmo Código, respeitando esta norma aos elementos que deverá conter a acusação, sob pena de nulidade, sendo compreensível tal exigência na medida em que, na ausência de acusação, ou quando, apesar dela, é requerida instrução, é a decisão instrutória de pronúncia que delimita e fixa o objecto do processo, impondo-se que nela seja identificado o arguido, que sejam discriminados os factos pelos quais o arguido terá de ser submetido a julgamento e que se indiquem as normas legais que punem o comportamento descrito, bem como as respectivas provas.
O mesmo não acontece, porém, quando a decisão é de não pronúncia, hipótese em que basta que a respectiva fundamentação dê a conhecer as razões, de facto e de direito, que justificam a decisão, sem que haja qualquer obrigatoriedade de indicar quais de entre os factos alegados estão indiciados e quais o não estão.
No caso, a decisão impugnada de não pronúncia faz análise crítica da prova, permitindo compreender as razões da decisão, não sofrendo, por isso, de falta de fundamentação.
Não se vislumbra, ainda, contradição na decisão.
Na verdade, o facto de fazer considerações sobre a perturbação da vida privada através de sms não é contraditório com o facto de a acusação referir chamadas de números fixos para o número fixo da residência do ofendido, pois a existência de chamada telefónica, só por si, não preenche os elementos do crime, exigindo outros elementos, nomeadamente o elemento subjectivo.

2.-Como resulta do art.286, do CPP, a instrução é uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito. A fase de instrução foi estruturada com uma dupla finalidade: obter a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, por uma parte, e a fiscalização judicial da decisão processual do Ministério Público de acusar ou arquivar o inquérito, por outra.

No caso, o Ministério Público acusou os arguidos, nos termos seguintes:
-arguida L.B., como autor material de um crime de burla agravada e co-autora material de um crime de burla agravada, um crime de extorsão, um crime de ameaça e um crime de perturbação da vida privada, na forma continuada.
-os arguidos, S.C., M.B., L.A., C.A., S.R. e A.S., como coautores-materiais de um crime de burla agravada, um crime de extorsão, um crime de ameaça e um crime de perturbação da vida privada, na forma continuada.
A instrução foi requerida pelos arguidos, M.B., A.S., C.A. e S.R., pedindo que fosse proferido despacho de não pronúncia em relação a eles.

3.-Discorda o recorrente/assistente da não pronúncia de todos arguidos pelos crimes de perturbação da vida privada e extorsão, e os arguidos M.B., A.S., C.A. e S.R., pelo crime de burla qualificada.
Em relação ao crime de extorsão, refere o despacho recorrido que este crime não é susceptível de concurso efectivo com o crime de burla (fls.11 da decisão recorrida).

O critério determinativo, em casos de pluralidade de acções, da unidade ou pluralidade de crimes, isto é, da existência de concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reconduz-se ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Como refere o Ac. do STJ, proferido no Pº nº1942/06-3º (sumário acessível em www.stj.pt) "...ao critério do bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática...".

Assim, em termos abstractos, é possível configurar situações de concurso entre o crime de burla e o de extorsão, quando ao lado de actos de disposição patrimonial do ofendido motivados por erro provocado pelo agente ocorram outros derivados de violência ou ameaça pelo mesmo agente.

No caso, porém, todos os actos de disposição do ofendido derivaram do erro. A violência e ameaça que existiu, como decorre da própria acusação (fls.662 in fine, 664 a 666), não visou levar o ofendido à disposição patrimonial, consumada pelo erro, constituindo antes elemento do crime de ameaça, por que foi proferido despacho de pronúncia.

Quanto ao crime de perturbação da vida privada, concordamos com o recorrente que o mesmo pode ser consumado através de sms para o telemóvel[1].

Contudo, no caso em apreço, os contactos telefónicos e mensagens enviadas ao ofendido são elementos integradores da execução dos crimes de ameaça e burla, estando os bens jurídicos afectados por esses actos adequada e suficientemente protegidos por esses crimes, não se indiciando uma autónoma intenção de perturbar, para além do necessário à consumação daqueles crimes.

Quanto à não pronúncia dos arguidos requerentes da instrução, de facto, como refere o despacho recorrido, nenhuma prova foi colhida que relacione esses arguidos com os factos, excepto a circunstância dos depósitos terem sido efectuados nas suas contas.
As relações de proximidade entre esses arguidos e as arguidas S.Ce L.B., permitem ver alguma lógica nas razões apresentadas para a utilização por elas de contas bancárias daqueles, ou mesmo da conta pessoal no facebook de um daqueles, não existindo nos autos quaisquer elementos de prova que contrariem aquelas razões e que permitam afirmar, com um mínimo de segurança, que os arguidos requerentes de instrução participaram, de algum modo, nos factos integradores dos crimes de que foi vítima o ofendido, ou que tenham agido, sequer, com intenção e consciência de auxiliar os outros arguidos nos crimes por que foram pronunciados.

O simples facto de transferências bancárias terem sido efectuadas para contas desses arguidos é, nas circunstâncias do caso, manifestamente, insuficiente para se concluir que os mesmos foram beneficiários delas.

As explicações dos arguidos podem merecer reservas, mas a verdade é que a condenação terá de se apoiar em provas e não em presunções ou deduções apoiadas nessas reservas.

Face à falta dessas provas, a condenação pelos crimes em relação aos quais foi proferido despacho de não pronúncia, é altamente improvável, razão por que se impõe a confirmação do despacho de não pronúncia.

Na verdade, como refere, o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, vol. III, pág.179), “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido... A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação”, o que, no caso, em relação aos crimes a que se refere o despacho de não pronúncia, manifestamente, não acontece.
*     *     *

IIIº DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Condena-se o recorrente, em seis UCs de taxa de justiça.


Lisboa, 20.12.2016


(Relator: Vieira Lamim)
(Adjunto: Ricardo Cardoso)


[1]Além do acórdão citado pelo recorrente, cfr. Ac. TRP de 7-11-2012, Relator VAZ PATO, acessível em www.dgsi.pt e Acs. deste Tribunal de 13-12-2012, CJ, 2012, T5, pág.138 "O bem jurídico protegido pelo crime de perturbação da vida privada é a paz e o sossego. Para efeitos daquele ilícito criminal a expressão «telefonar» tem o significado de comunicar pelo telefone/ fazer uso das diversas funcionalidades do telemóvel, abrangendo nesta o envio de mensagens escritas por/para telemóvel" e de 15-10-2013, CJ, 2013, T4, pág.149: "... III. O envio de sms pode configurar um crime de perturbação da vida privada".