Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1852/08.1TBSCR.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
INCAPACIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -Numa escritura pública de compra e venda, estando o outorgante vendedor incapacitado de assinar por motivo de ter as mãos a tremer, fruto de lesão craniana sofrida em acidente, deve apor a sua impressão digital, sendo perfeitamente lícito que o notário segure a mão desse outorgante e prima o seu dedo no local indicado da folha para aí apor a impressão digital.
-A impossibilidade a que alude o nº 3 do art. 51º do Código do Notariado é a de apor a própria impressão digital (não ter mãos ou dedos, ter os dedos queimados não podendo deixar impressão digital, etc.) e não a de ter de ser auxiliado para poder colocar o dedo na folha correspondente da escritura e aí apor a sua impressão digital.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

R..., intenta contra J..., M..., M..., E... e M... casada com A..., a presente acção declarativa de condenção, com processo ordinário, formulando os seguintes pedidos:

-A declaração de nulidade da escritura de compra e venda celebrada em 29 de Abril de 2005;

-O cancelamento de todos os registos feitos com base em tal escritura, bem como de todos os registos posteriores;

-A condenação dos réus a indemnizar o autor pelos prejuízos que vem suportando devido ao comportamento daqueles, a liquidar em execução de sentença.

Alega para tanto o seguinte:

O autor é filho de M... relativamente a quem interpôs o processo de interdição que correu termos pelo extinto 3° Juízo Cível do Tribunal Judicial do Funchal sob o número 3208/05.9TBFUN vindo o pai a ser declarado interdito com efeitos a partir de 16 de Setembro de 2003;

Não obstante tal incapacidade, os réus conseguiram que fosse exarada escritura em 29 de Abril de 2005, em que M... declara quatro quintas partes dos prédios identificados no artigo 6° da petição inicial;

O M... não assinou a escritura mas antes alguém segurou na sua mão para colocar a impressão digital e não recebeu qualquer montante relativo ao preço;

Os réus apropriaram-se dos bens do M... e o autor, seu filho, tem enfrentado dificuldades económicas por não lhes poder aceder.

Regularmente citados os réus deduziram contestação, em que suscitaram a ilegitimidade do autor, quando desacompanhado dos demais herdeiros, e dos réus J... e A..., alegando, em síntese, o seguinte:

M... era filho de M... e M..., que deixaram como herdeiros os filhos A..., o M..., J..., M... e M..., que herdaram os prédios identificados no artigo 12° da contestação;

Por todos os herdeiros foi decidido vender os bens da herança, com excepção da casa da Assomada e que seria melhor em termos de tempo e preço ser um só a negociar e titular os contratos pelo que simularam a venda dos prédios ao M..., que procedeu à desanexação da parte urbana, o que deu origem ao prédio descrito na Conservatória sob o número 3552/06092001;

A parte restante veio a constituir o prédio descrito sob o número 3501 que foi vendido à sociedade M..., Lda. pelo preço de trinta mil contos; entretanto M... teve um acidente e foi o procurador, R... quem celebrou a escritura, recebeu o preço e o distribuiu pelos herdeiros, tendo a mulher do falecido recebido a sua parte.

O M... veio para a Madeira, onde foi internado num lar e para suportar os seus encargos os herdeiros deliberaram vender o prédio rústico ao Sítio da Tendeira, tendo o procurador intervindo na escritura celebrada em 22 de Janeiro de 2002;

Os réus, face ao estado de saúde irreversível do M..., quiseram repor a verdade material quanto aos prédios sobrantes e por isso celebraram a escritura de 29-04-2005, mas nem o vendedor recebeu, nem os compradores pagaram qualquer valor;

No momento da escritura o M... não padecia de qualquer anomalia mental ou psíquica e declarou expressamente, de livre vontade, ao notário, querer vender os 4/5 dos prédios, capacidade de entender atestada por dois médicos.

Concluem pela procedência das excepções deduzidas e consequente absolvição da instância ou, assim se não entendendo, pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido.

O autor replicou sustentando a sua legitimidade para, sozinho, intentar a presente acção e reiterando que ao momento da escritura de Abril de 2005 o M... estava incapaz de gerir a sua pessoa e os seus bens, facto que era notório.

O autor ampliou o pedido no sentido de que, não sendo as escrituras nulas, devem ser declaradas ineficazes em relação ao autor, enquanto herdeiro do falecido M..., o que foi admitido conforme despacho proferido a fls. 231 p.p 

O autor requereu a intervenção principal dos demais herdeiros de M... - M..., S... e S... - como seus associados, conforme convite que lhe foi formulado (cf. fls. 172 p.p.).

Regularmente citados os chamados, estes nada vieram dizer.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, vindo a ser proferida sentença que declarou a ineficácia da escritura pública celebrada em 29/04/2005 e a consequente nulidade da compra e venda nela mencionada. Ordenou-se ainda o cancelamento de todos os registos efectuados com base na escritura pública referida.

Foram dados como provados os seguintes factos::

1) A..., M..., J..., M... e M... são filhos de M... e de M..., ambos falecidos.

2) Por escritura de cessão de quinhão hereditário, outorgada a 26 de Abril de 2001, R..., na qualidade e em representação de A..., J..., M... e M..., declarou vender a M..., que declarou aceitar, pelo preço de dois milhões de escudos, já recebido, os quinhões hereditários que lhes pertence por óbito de seus pais e sogros M... e de M...

3) M... faleceu a 11-07-2007, no estado de divorciado, tendo sido decretada a sua interdição por anomalia psíquica por sentença transitada em julgado, tendo-se fixado o início dessa incapacidade em 16 Setembro de 2003.

4) O Autor R..., M..., S... e S... são filhos de M....

5) Por escritura de compra e venda, outorgada a 29 de Abril de 2005, por M... foi dito que: pelo preço de 34 000, 00 euros, já recebido, vende a M..., M..., E... e M..., que através do seu procurador declararam aceitar: a) quatro quintas partes do prédio urbano ( ... ) localizado no sítio da Assomada, freguesia do Caniço ( ... ) inscrito na matriz sob o artigo 5 575° e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o nº 3552 da dita freguesia; b) quatro quintas partes do prédio rústico ( ... ) localizado no sítio da Tendeira, freguesia do Caniço ( ... ) inscrito na matriz sob o artigo 6°, da secção AA, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o nº 3418 da dita freguesia.

 6) Na escritura referida em 5. foi exarado pelo Notário o seguinte: (i) intervieram neste acto, por me terem surgido dúvidas sobre a sanidade mental do primeiro outorgante, os peritos médicos Dr. C... e Dr. H..., os quais, depois de prestarem juramento legal, garantiram a sanidade mental do referido outorgante; não assinando o primeiro outorgante por impossibilidade física.

7) A propriedade do primeiro prédio referido em 5. foi inscrita no registo predial:

(i) a 30-07-2001, a favor de A..., M..., J..., M... e M... em comum e sem determinação de parte ou direito por morte de M... e mulher;

(ii) a 06-09-2001, a favor de M..., por cessão do quinhão hereditário a A..., J..., M... e M....

8) Quatro quintos da propriedade do primeiro prédio referido em 5. foi inscrita no registo predial, a 30-06-2005, a favor de M..., M..., E... e M...

9) Na escritura referida em 5. alguém segurou a mão do M..., por este não o poder fazer sozinho, e depois colocou o dedo daquele sobre o papel respectivo.

10) Da referida venda, o M... não recebeu qualquer parte do preço estipulado.

11) Com data de 1 de Outubro de 2001 foi lavrada escritura de compra e venda a folhas 25 a 26 do Livro de Notas para escrituras diversas 198-A do extinto Cartório Notarial de Santa Cruz mediante a qual, R..., na qualidade de procurador e em representação de M..., como primeiro outorgante, declarou que, em nome do seu representado, e pelo preço de trinta milhões de escudos, já recebido, vender à sociedade representada dos segundos outorgantes, "M... Lda.", que declarou aceitar a venda, o prédio urbano, localizado ao Sítio da Assomada, onde chamam Moinhos, freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, omisso na matriz predial, mas já feita participação para a sua inscrição, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz, ainda com a natureza rústica, sob o número 3501, daquela freguesia.

12) Com data de 22 de Janeiro de 2002, foi lavrada escritura de compra e venda a folhas 11 a 12 do Livro de Notas para escrituras diversas 204-A do extinto Cartório Notarial de Santa Cruz mediante a qual, R..., na qualidade de procurador e em representação de M..., como primeiro outorgante, declarou que, em nome do seu representado, e pelo preço de vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euros e oitenta e nove cêntimos, já recebidos, vende aos segundos outorgantes, J... e J..., que declararam aceitar a venda, em comum e partes iguais, o prédio rústico com a área de 1820 metros quadrados, localizado ao Sítio da Tendeira, freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz, sob o número 3419, daquela freguesia, inscrito na matriz cadastral sob o artigo 3 da Secção "AA".

13) Aquando da escritura referida em 5., o M... fazia-se transportar em cadeira de rodas, não era capaz de vestir-se ou alimentar-se sozinho, manifestava dificuldades na fala, designadamente, na articulação das palavras e não conseguia escrever.

Inconformados recorrem os RR J..., M..., M... e E..., formulando as seguintes conclusões:

- O Tribunal de 1ª instância proferiu decisão que declarou a ineficácia da escritura pública celebrada em 29 de Abril de 2005, e a consequente nulidade da compra e venda nela mencionada e ordenou o cancelamento de todos os registos efectuadas com base nesta escritura, por alegada falsidade da assinatura do vendedor, aposta na escritura pela sua impressão digital.

- O Autor interpôs a presente acção requerendo a nulidade da escritura de compra e venda celebrada em 29 de Abril de 2005, ou se assim não se entendesse, que fosse declarada a ineficácia da mesma em relação a si. Como causa de pedir o Autor alega a incapacidade de M..., que na sua opinião, no momento da outorga da escritura, não sabia onde estava, nem o que fazia.

- Não obstante não ter ficado provado nos presentes autos que M... estava incapacitado, o Tribunal a quo julgou parcialmente procedente, por provada a presente acção, por considerar inexistente a referida escritura, por falsidade da mesma, alegando que a impressão digital não foi aposta por M..., mas por terceira pessoa, que segurou na mão deste e colocou o seu dedo no papel.

- O Tribunal a quo alterou, assim, a causa de pedir, indo muito além do que foi pedido pelo Autor e violando o disposto nos artigos 5.° e 609.° do CPC.

- As partes têm o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, não podendo a sentença condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que foi pedido. O Tribunal só pode conhecer de factos instrumentais, complementares ou notórios, e pode, ainda, alterar a qualificação jurídica atribuída pelas partes aos factos.

- O Autor peticionou a nulidade da escritura ou a sua ineficácia, com base na incapacidade de M..., sendo esta uma típica acção constitutiva por se destinar a obter uma mudança na ordem jurídica existente.

- O Tribunal a quo julgou falsa a referida escritura, julgando provado que o Notário segurou a mão de M... e colocou o seu dedo sobre a escritura, ali apondo a sua impressão digital, sendo a acção judicial para declaração da falsidade de um documento autêntico, uma acção de simples apreciação negativa.

- Estamos perante dois tipos de acções totalmente distintas, com causas de pedir totalmente diversas.

- Em momento algum, o Autor requereu a falsidade da escritura motivada no facto de o Notário ter colocado a mão de M... na referida escritura. Não poderia o douto Tribunal ter-se estribado num fundamento que nunca foi invocado pelas partes, tendo extravasado, em muito, o objecto do processo e incumprido os limites legais impostos.

- A sentença ora recorrida violou assim o artigo 609.° do NCPC, sendo nula nos termos do artigo 615.°, nº 1, al e) do NCPC.

- Proferindo uma decisão surpresa, o Tribunal também aqui andou mal ao decidir sobre a falsidade da escritura de compra e venda, sem ter dado oportunidade às partes de se pronunciarem sobre o teor da decisão a proferir, violando grosseiramente, o princípio do contraditório, vertido no aludido artigo, 3.°, nº 3 do CPC, o que configura nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 668° do Código de Processo Civil.

- Acresce que, se o Autor tivesse requerido a apreciação da falsidade da referida escritura, esta acção teria necessariamente de ser proposta contra o Notário que a celebrou (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Maio de 2005).

- O Notário M... teria todo o interesse em contradizer os factos aqui alegados, uma vez que estes factos são potencialmente geradores de responsabilidade disciplinar e civil para si, colocando em causa o seu bom nome profissional, devendo necessariamente correr contra este qualquer acção na qual a sua conduta profissional foi posta em causa.

- Mais, acresce que, caso não se entenda que houve uma alteração da causa de pedir, o que não se concede, sempre se dirá que da prova produzida no processo não se poderia aferir que houve falsificação da assinatura.

- Na verdade, ambos os médicos que atestaram a sanidade mental de M..., no momento da outorga da escritura, confirmaram esta mesma capacidade para querer e entender, no seu depoimento, em sede de audiência de julgamento (C... e H...).

- Estas testemunhas, médicos, prestaram um depoimento claro, objectivo e consistente, sendo de salientar que ambas atestaram, sem qualquer tipo de dúvida, que M..., não obstante a sua incapacidade fisica, estava na posse de todas as suas faculdades mentais e intelectuais, e que compreendia o que estava ali a fazer e que era esta a sua vontade.

 - Assim requer-se que seja dado como provado: "Não denunciando qualquer anomalia mental ou psíquica que dissimulasse o seu querer ou distorcesse a sua vontade" (facto nº 12 da matéria de facto não provada).

- Por fim, o Notário que outorgou a referida escritura confirmou a capacidade mental de M... e referiu que segurou na mão de M..., para o auxiliar a colocar a sua impressão digital na escritura, posicionando o seu dedo no local certo para o efeito.

- Deste depoimento resulta que o Notário, como prática habitual, auxiliava os outorgantes a colocar a sua impressão digital, segurando na mão destes posicionando o dedo dos mesmos no papel. Na verdade, é o Notário quem sabe exactamente o local onde deve ser colocada a impressão digital e qual a pressão certa a exercer para que esta fique legível, sendo natural que seja este a segurar a mão da pessoa e que a ajude a colocar o dedo no papel.

- O mesmo se passava aquando a emissão do bilhete de identidade, em que o funcionário segurava a mão da pessoa para auxiliar na aposição da impressão digital, e também nas polícias, em que o agente segura a mão dos arguidos, posicionando da forma correcta, o dedo destes sobre o papel.

- Ainda que o M... não padecesse de qualquer incapacidade fisica que pudesse por em causa a sua capacidade de entender e querer (por não saber assinar ou por ter qualquer outro problema de saúde que impossibilitasse o normal uso das suas mãos), certamente o Notário iria segurar na mão deste e posicioná-la sobre o papel, auxiliando-o na aposição da impressão digital no papel.

- Tendo este dificuldade em movimentar as mãos, carecendo de destreza fisica suficiente para o efeito, é natural que o Notário o tenha auxiliado, sem que daqui advenha qualquer tipo de ilegalidade.

- Ao pensarmos doutra forma cairíamos no ridículo de impugnar todas as assinaturas por impressão digital, pois na sua grande maioria (senão totalidade!) são os funcionários que seguram a mão da pessoa em causa e colocam o seu dedo no papel. A impressão digital aposta no documento pertence a M... e foi colocada pelo mesmo, ainda que com o auxílio do Notário, não tendo sido forçado a colocar o seu dedo no papel, nem o fez de forma inconsciente ou involuntária, não resultando dos autos qualquer prova que permita ao Tribunal retirar ilação diversa.

- Pelo exposto, requer-se a alteração do facto 9. da matéria de facto provada: "Na escritura referida em 5. alguém segurou a mão de M..., por este não o poder fazer sozinho, e depois colocou o dedo daquele sobre o papel respectivo" para  "Na escritura referida em 5. o Notário auxiliou M..., que comprovadamente carecia de destreza física, na indicação do local onde este deveria colocar o dedo para apor a sua impressão digital". 

Também os RR A... e M... recorreram, concluindo que:

 - O que o nº 4 do artigo 51º do CN estabelece sobre a impossibilidade de aposição da impressão digital referindo que esta: "pode ser substituída pela intervenção de duas testemunhas instrumentarias ... " (sublinhado nosso), é admitir uma possibilidade e não um dever, o que se constata pela própria utilização da palavra pode, já que não utiliza a palavra "deve", a qual implica obrigação.

- Daí, que o notário não estava de modo nenhum obrigado a utílizar as duas testemunhas instrumentarias, ao contrário do explanado na sentença recorrida.

- Mais, não se pode considerar que o M... estivesse impossibilitado de apor a sua impressão digital, apenas precisava de ajuda para esse efeito e foi isso que o Sr. Notário fez, auxiliou o outorgante, conforme lhe competia (ou competia também a funcionário do cartório).

- A intervenção de duas testemunhas instrumentárias, deve ser utilizada no caso das pessoas não terem mãos ou dedos, o que impossibilitaria (aí sim) a aposição da impressão digital, o que não era de modo nenhum o caso do outorgante M....

- Pelo que, ao contrário da sentença recorrida, nunca se pbde considerar uma assinatura falsa (a impressão digital do dito vendedor) e como tal considerar a escritura inexistente e ineficaz, há sim que considerar a escritura válida e eficaz.

-  Não ficou provado nos presentes autos que M... estava incapacitado, mas mesmo assim, o Tribunal a quo julgou parcialmente procedente, por provada a presente acção, por considerar inexistente a referida escritura, por falsidade da mesma, alegando que a impressão digital não foi aposta por M..., mas por terceira pessoa, que segurou na mão deste e colocou o seu dedo no papel; alterando, assim, a causa de pedir, indo muito além do que foi pedido pelo Autor (nulidade da escritura) e violando portanto o disposto nos artigos 5.° e 609.° do Código de Processo Civil.

- O Autor peticionou a nulidade da escritura ou a sua ineficácia, com base  na incapacidade de M..., sendo esta uma típica acção  constitutiva por se destinar a obter uma mudança na ordem jurídica existente e o Tribunal a quo julgou falsa a referida escritura, sendo a acção judicial para declaração da falsidade de um documento autêntico, uma acção de simples apreciação negativa;  estamos assim, perante dois tipos de acções totalmente distintas, com causas de pedir totalmente diversas, não podendo o douto Tribunal ter-se estribado num fundamento que nunca foi invocado pelas  partes, tendo extravasado, em muito, o objecto do processo e incumprido os limites legais impostos, a sentença ora recorrida violou assim o artigo 609.°, sendo nula nos termos do artigo 615.°, nº 1, al. e) do Código de Processo Civil.

- Proferindo uma decisão surpresa, o Tribunal também aqul andou mal ao decidir sobre a falsidade da escritura de compra e vendal sem ter dado oportunidade às partes de se pronunciarem sobre o teor da decisão a proferir, violando grosseiramente, o princípio do contraditório, vertido no aludido artigo, 3.°, nº 3 do CPC, o que configura nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 615° do Código de Processo Civil.    

- Acresce que, se o Autor tivesse requerido a apreciação da falsidade da referida escritura, esta acção teria necessariamente de ser proposta contra o Notário que a celebrou (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Maio de 2005).

- Mais acresce que, caso não se entenda que houve uma alteração da causa de pedir, o que não se concede, sempre se dirá que da prova produzida no processo não se poderia aferir que houve falsificação da assinatura.

- Na verdade, ambos os médicos que atestaram a sanidade mental de M... no momento da outorga da escritura, confirmaram esta mesma capacidade para querer e entender.

- Assím, deve dar-se como provado (facto nº 12 da matéria de facto não provada): “Não denunciando qualquer anomalia mental ou psíquica que dissimulasse o seu querer ou distorcesse a sua vontade"  

- Do depoimento do Notário, resulta que este, como prática habitual, auxiliava os outorgantes (que não sabiam ou não podiam assinar) a colocar a sua impressão digital, segurando na mão deles posicionando o dedo dos mesmos no papel, prática habitual noutros serviços públicos, sem que daí advenha qualquer tipo de ilegalidade; ao pensarmos doutra forma cairíamos no ridículo de impugnar todas as assinaturas por impressão digital, pois na sua grande maioria (senão totalidade) são os funcionários que seguram a mão da pessoa em causa e colocam o seu dedo no papel.

- A impressão digital aposta no documento pertence a M... e foi colocada pelo mesmo, ainda que com o auxílio do Notário, não tendo sido forçado a colocar o seu dedo no papel, nem o fez de forma inconsciente ou involuntária, não resultando dos autos qualquer prova que permita ao Tribunal retirar ilação diversa, pelo que deve ser alterado o facto 9. da matéria de facto provada para facto provado e com a seguinte redação: "Na escritura referida em 5. o Notário auxiliou  M..., que comprovadamente carecia de destreza física, na indicação do local onde este deveria colocar o dedo para apor a sua impressão digital".

O Autor R... contra-alegou e deduziu recurso subordinado, concluindo que:

- Não há qualquer dúvida de que o falecido M... não colocou a impressão digital da sua mão direita sobre o instrumento notarial em questão- a escritura ora em causa, celebrada no dia 29/04/2005;   

 - Esse facto, só por si, determina que a escritura é falsa, pois certifica que foi colocada na mesma e pelo impressão digital do vendedor, quando isso não aconteceu;

- Tal facto é do conhecimento oficioso e determina a nulidade da escritura em causa, tudo nos termos do artigo 5º do Código do Notariado;   

- Estamos perante uma norma de interesse e ordem pública, pois visa que os atos praticados pelos Agentes Públicos correspondem à verdade;

- Se assim não for entendido, então deve proceder o recurso subordinado, começando por aditar-se aos factos assentes que " O M... foi declarado incapaz, com efeitos a partir do dia 16 de Setembro do ano de dois mil e três, através da competente acção de interdição que correu termos no Tribunal judicial do Funchal sob o n° 3208/05.9TBFUN do 3° Juízo Cível ";

- Nessa interdição os médicos declararam que o senhor M... estava incapaz de gerir a sua pessoa e os seus bens.

- O próprio notário que celebrou a escritura pública teve dúvidas sobre a sanidade mental do M... e exigiu a presença de dois médicos pagos pelos compradores ;

- O Facto 9 dado como provado, diz o se uinte: "Na escritura referida em 5. alguém segurou a mão do M..., por este não o poder fazer sozinho, e depois colocou o dedo daquele sobre o papel respectivo (ponto 2. da base instrutória).

- O Facto 10 dado como provado, diz o seguinte: " Da referida venda, o M... não recebeu qualquer parte do preço estipulado”.

-  O Facto 13 dado como provado, diz o seguinte- " quando da escritura referida em 5., o M... fazia-se transportar em cadeira de rodas, não era capaz de vestir-se ou alimentar-se sozinho, manifestava dificuldade na fala, designadamente, na articulação das palavras e não conseguia escrever (ponto 15.). "

- Ninguém no seu perfeito juízo assina uma escritura de venda, sem receber qualquer parte do preço;

- A testemunha T... declarou que o M... estava totalmente incapaz de gerir a sua pessoa e os seus bens, desde 2002/2003;

 - A testemunha José Luís declarou que o M... não tinha noção do local onde estava e o que fazia, desde 2002/2003;

-Da conjugação de todos estes elementos de prova, deve ser aditado aos factos assentes, mais o seguinte facto:

"Aquando da celebração da escritura lavrada no dia 29 de Abril de 2005, identificada no n° 5 dos factos assentes, o vendedor M... estava totalmente incapaz de gerir a sua pessoa e os seus bens".

- Se for entendido que este facto é matéria de direito, então deve ser dado como provado que no dia da escritura em causa, o senhor M... não tinha a consciência do ato que estava a realizar;

- No presente caso, para além da incapacidade acidental, estamos perante a falta total de consciência da declaração vertida na escritura pública, ( se chegou a fazê-la, o que não aceitamos, nem acreditamos).

 - Ao declarar que o M... estava capaz de gerir a sua pessoa e os seus bens aquando da escritura celebrada no dia 29 de Abril de dois mil e cinco, o tribunal a quo violou os artigos 246° e 257°, ambos do Código Civil.

Cumpre apreciar.

Há que começar a análise do recurso pela questão invocada relativa à existência de decisão surpresa já que se trata de um problemo prévio à aferição da justeza da decisão fáctica e jurídica.

Nos termos do art. 3º nº 3 do CPC “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Na presente acção, o Autor pede, além do mais, que se declare a nulidade da escritura de compra e venda, já que o suposto vendedor, M... se encontrava em estado de demência, tendo alguém segurado a mão e colocado o seu dedo sobre o papel da escritura (artigos 8º, 9º, 11º e 12º da petição inicial).

Ora, a sentença recorrida, embora não entendesse como provado o estado de demência de M..., considerou que a circunstância de alguém ter segurado a mão de M... e apoiado o dedo na escritura para obter a impressão digital acarreta a falsidade da escritura.

Estamos a falar de factos que foram alegados e debatidos, tendo os RR tido a oportunidade de sobre eles se pronunciarem. Se, dos factos alegados e provados, o Mº juiz a quo concluiu pela falsidade da escritura, não fez mais que integrar tais factos juridicamente, não estando limitado pela qualificação feita pelas partes.

Como se refere no Acórdão do STJ de 27/09/2011 (disponível em www.dgsi.pt) “Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio”.

No caso em apreço o Mº juiz decidiu de acordo com os factos que lhe foram aportados pelas partes, aplicando-lhes a qualificação jurídica que entendeu mais adequada, mas num âmbito de discussão e respeito pelo contraditório, pelo que, a nosso ver, não estamos perante a nulidade da chamada “decisão surpresa”.   

Do mesmo modo, não se nos afigura que tenha existido excesso de pronúncia, ou seja, que o juiz tenha conhecido de questões que não lhe era lícito conhecer por não terem sido invocadas pelas partes.

O Autor pediu a declaração de nulidade da escritura por ter sido outorgada por alguém que não estava na posse das suas faculdades mentais. Mas alegou, além do mais, que não tinha sido o outorgante M... a apôr a sua impressão digital no documento. Tal facto foi dado como provado.

Sucede que, nos termos do art. 372º nºs 1 e 3 do Código Civil, “a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade (...) Se a falsidade for evidente em face dos sinais exteriores do documento, pode o tribunal, oficiosamente, declará-lo falso”.

Face à circunstância provada de o M... não ter colocado o dedo na escritura para marcar a sua impressão digital, tendo sido outra pessoa a movimentar a sua mão e a premir o dedo na escritura para tal fim, o Mº juiz entendeu haver lugar à falsidade da mesma escritura, por nela estarem relatados actos que diferem dos que efectivamente ocorreram.

Assim, o Mº juiz analisou a veracidade do documento com base em factos que lhe foram trazidos ao processo pelas partes e, tendo concluído, pela não conformidade entre o declarado no documento e aquilo que na verdade sucedeu, declarou o documento falso, o que em nossa opinião lhe era lícito fazer, mesmo oficiosamente.

Logo, inexiste a invocada nulidade.

Quanto à questão da existência de sentença transitada em julgado que declarou a interdição de M... , por anomalia psíquica, e que fixou o início dessa incapacidade em 16/09/2003, passamos a citar um excerto de um Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa que nos parece sintetisar a questão de forma modelar:

“... as ações de interdição são unanimemente consideradas como "ações de estado". De facto, a interdição consiste numa situação de privação do exercício pessoal e livre de direitos, determinada por decisão judicial, respeitante a quem padece de incapacidade natural para o governo da sua pessoa e dos seus bens, em virtude de deficiência de natureza psíquica ou física (artigos 138.º e seguintes do Código Civil; artigo 944.º e seguintes do CPC).

Trata-se, assim, de uma ação que interfere com o estado pessoal de um indivíduo, podendo aqui aceitar-se a definição de estado pessoal dada pelo Prof. Castro Mendes, como sendo a "qualidade que condiciona a atribuição de uma massa pré-determinada de direitos e vinculações, cuja titularidade ou não titularidade é aspecto fundamental da situação jurídica da pessoa.

O caso julgado material formado na sentença de interdição, por nela se dirimir uma questão sobre o estado das pessoas, abrange terceiros (artigo 674.º do CPC), ou seja, opera erga omnes.

Deste modo, o efeito do caso julgado material conforma a situação jurídica substantiva ali dirimida, donde decorre a vinculação da ré ao ali decidido, ou seja, que o ora autor se encontra interditado por anomalia psíquica.

Porém, questão se coloca é se igualmente o segmento decisório que fixou o início da incapacidade, está abrangido pela força do caso julgado material.

A resposta é negativa, pelas razões que passamos a expor resumidamente.

A sentença de interdição tem natureza constitutiva, com efeitos ex nunc, estabelecendo uma nova situação jurídica em que se reconhece, para futuro, a incapacidade de uma pessoa para a prática de atos da vida civil, nomeadamente para gerir os bens da pessoa interditada.

Nessa parte, a sentença opera erga omnes, como se disse, por aplicação do artigo 674.º do CPC.

Porém, a sentença de interdição quando fixa a data do começo da incapacidade, também declara esse facto e, nesse segmento, mesmo que esteja inserido na parte dispositiva da sentença, não faz caso julgado material.

Como já teve oportunidade de se pronunciar o Supremo Tribunal de Justiça, "A declaração judicial, na sentença que decreta a interdição, sobre a data do começo da incapacidade, constitui mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, da incapacidade, à qual pode ser oposta contraprova, nos termos do art.  346º do CC. “

Significa isto que aquela declaração judicial, em termos de força vinculativa, vale como uma prova bastante, ou seja, admite contraprova, donde se conclui se está perante uma prova livre ou prova não plena.”

“Por conseguinte, mesmo em relação a atos praticados pelo interdito após o momento em que foi fixada a incapacidade, a sua validade sempre terá de ser discutida em processo autónomo (cfr. artigos 138º, 148º, 149º do Código Civil). Já quanto aos atos praticados antes de anunciada a propositura da ação é aplicável o disposto no artigo 150º e 257º do Código Civil, ou seja, as regras sobre incapacidade acidental. Terá sempre de ser discutido o conhecimento ou a cognoscibilidade da incapacidade natural..”

Foi este o entendimento seguido na sentença recorrida. Tendo em conta que o Mº juiz deu como não provado que M...  denunciasse “qualquer anomalia mental ou psíquica que dissimulasse o seu querer ou distorcesse a sua vontade”, entendeu inexistir fundamento para declarar nula a escritura pública com base na incapacidade acidental do outorgante vendedor.

Perante isto as questões essenciais que nos cumpre apreciar são:

Se M... não mostrava qualquer anomalia mental ou psíquica que dissimulasse o seu querer ou distorcesse a sua vontade” como é pedido pelos recorrentes; 

Ou se, ao invés, M... não tinha consciência do acto que estava a praticar (recurso subordinado do Autor);

Por último, apurar se o facto de o notário ter pegado na mão de M... apoiando o dedo na escritura para obter a impressão digital, constitui fundamento de falsidade da escritura.

Quanto à primeira questão, e depois de ouvidos os depoimentos de C... e H..., médicos, de M... (notário) e de R... (tio do M...  e que foi procurador de todos os cinco sobrinhos durante algum tempo), não nos restam dúvidas de que não se provou que M... em 29/04/2005 não estivesse mentalmente lúcido. Os dois médicos, que compareceram no cartório, a pedido do notário, por este ter dúvidas quanto ao estado mental do outorgante vendedor, depuseram de modo que se nos afigura convincente. As perguntas a M...  foram feitas por H..., seu médico no Lar da Bela Vista, tendo-lhe nomeadamente perguntado o nome, o nome dos pais, a idade e se sabia o que tinha vindo ali fazer. O M... respondeu correctamente a tais questões, dizendo quanto à última pergunta, que ia fazer uma escritura.

O notário M..., tinha antes perguntado a M... se pretendia passar uma procuração a favor de J..., tendo aquele respondido que já tinha passado uma procuração a R..., o que correspondia à realidade.

É certo que as testemunhas do Autor, J... e T... insistiram que M... não estava na posse das suas faculdades mentais em 2003, depois do grave acidente que sofreu, e de ter regressado da Venezuela para a Madeira.

Neste âmbito o depoimento que se nos afigurou mais convincente foi o de R..., pessoa idosa mas com boa memória e que relatou diversos detalhes do dia a dia que permitem perceber melhor o estado do M... Quando este regressou da Venezuela não havia ainda lugar num lar pelo que ficou em casa do tio, R... e depois em casa da filha deste.

A testemunha referiu que nesse período, com a ajuda de uma pessoa (enfermeiro ou terapeuta, já que a testemunha não esclarece bem esse ponto) o M... conseguia andar pelo seu pé, embora apoiado nessa pessoa, e uma vez disse ao tio que já tinha conseguido dar cinco voltas à casa. Ora, este é um tipo de afirmação só possível numa pessoa mentalmente lúcida.

Todas as testemunhas concordam que, posteriormente, quando o M..., deu entrada  no Lar, se movimentava em cadeira de rodas, tinha as mãos a tremer, tinha de usar fralda e a voz estava entarelamelada, tornando-se difícil perceber o que dizia. Esse facto levava o M... a optar por se manter em silêncio muitas vezes. Foi esse defeito na fala que levou o notário M... a exigir aos outorgantes da escritura, ou ao seu procurador, que se fizessem acompanhar de dois médicos que atestassem a capacidade de entender do aludido M...

R... afirmou que M... não conseguia escrever mas conseguia ler.

Para que a escritura pública fosse declarada nula nos termos pretendidos pelo Autor seria necessário que tivesse ficado demonstrado que M..., outorgante vendedor, não tinha consciência do acto que estava a praticar e que tal situação fosse perceptível pelo notário (art. 257º do Código Civil).

E pelas razões apontadas, consideramos que tal prova não foi feita pelo que deve ser mantida a matéria dada como provada na sentença recorrida, naufragando assim a causa de pedir invocada pelo Autor.

Como já atrás referimos, a Mª juiz a quo, veio a declarar a ineficácia da escritura com base no entendimento que a aposição da impressão digital pelo outorgante vendedor não resultou de um acto próprio e voluntário.

Provou-se que M...  não conseguia assinar a escritura pelo seu punho dado ter as mãos sempre a tremer. Daí que o notário tenha optado pela aposição do dedo com o fim de marcar a sua impressão digital.

Contudo, dadas as aludidas dificuldades que levavam o M... a colocar por si próprio o dedo no local exigido, foi o notário que lhe segurou a mão e e colocou o seu dedo sobre a escritura em causa.

Na escritura, in fine, (ver fls. 22) o notário refere:

“Li e expliquei o conteúdo desta escritura aos outorgantes, fora das horas regulamentares, não assinando o primeiro outorgante por impossibilidade física”.

Vendo-se no lado direito a impressão digital do outorgante vendedor M....

Estamos perante uma falsidade da escritura, como se pretende na sentença recorrida?

Há que dizer, antes do mais, que na escritura não se refere que M... tenha aposto a impressão digital por si próprio, sem auxílio. Afirma-se apenas que não assinou devido a impossibilidade física.

Será que o facto de o notário lhe ter pegado na mão e colocado o dedo na página correspondente da escritura determina que tal acto não tenha sido nem próprio nem voluntário?

Claro que determina que não tenha se tenha tratado de um movimento próprio, no sentido de que o M... não deslocou a mão para a escritura e nela colocou o dedo através dos seus próprios meios. Já vimos que isso não lhe era possível.

Mas o facto de ter sido o notário a pegar na mão e a colocar o dedo na escritura, não torna de modo algum tal acto involuntário. Sê-lo-ia se fosse praticado contra a vontade do outorgante ou sem que este tivesse consciência do acto negocial. O que não foi dado como provado.

Provou-se, por exemplo, que no Lar, eram as funcionárias que davam de comer ao M..., já que este não o conseguia fazer por si próprio. Mas isso não significa que sempre que tomava as suas refeições, este o fizesse involuntariamente.

Há uma grande diferença entre ter a vontade de praticar um acto e praticá-lo através dos seus próprios meios, ou ter tal vontade mas, por impossibilidade física, ter de o praticar com o auxílio de terceira pessoa.

O art. 51º nº 1 do Código do Notariado dispõe que:

“Os outorgantes que não saibam ou não possam assinar devem apor, à margem do instrumento (...) a impressão digital do indicador da mão direita”.

No nº 2 do mesmo preceito determina-se que, quando não for possível ao outorgante apor a impressão do indicador da mão direita, por motivo de doença ou de defeito físico, deve apor a do dedo que o notário determinar, fazendo-se menção na escritura do dedo a que corresponde a impressão digital.

Finalmente o nº 3 estabelece que:

“Quando algum outorgante não puder apor nenhuma impressão digital, deve referir-se no instrumento a existência e a causa da impossibilidade”.

Da leitura deste normativo, afigura-se-nos que a impossibilidade de apor a impressão digital, seja do indicador da mão direita seja de que dedo for, tem a ver com uma situação diferente da dos autos, ou seja, reporta-se aos casos em que, por exemplo, a pessoa não tenha mão, ou não tenha o dedo indicador, ou não tenha nenhum dedo, ou os dedos não estejam aptos a deixar a respectiva impressão por estarem queimados etc. A impossibilidade não é a de deslocar a mão e o dedo para o premir sobre a escritura, mas sim a impossibilidade de apor a própria impressão digital.

Na situação dos autos não existia qualquer impossibilidade de M... apor a sua impressão digital, o que de resto fez. Precisava era de auxílio para que o dedo fosse colocado sobre o lugar apropriado da escritura.

Note-se que a faculdade de substituir a aposição da impressão digital, recorrendo em substituição a duas testemunhas, não é apenas prevista para a situação do nº 3 do artigo 51º, mas sim para todas as situações de aposição de impressão digital, do nº 1 ao nº 3 desse art. 51º, como resulta claramente do nº 4 deste preceito. E trata-se de uma faculdade, não da imposição de uma alternativa para uma impossibilidade, o que de resto nem faria sentido no caso do nº 1 do art. 51º.

Assim e contrariamente à sentença recorrida não entendemos que exista qualquer falsidade ou até irregularidade na escritura.

Diga-se ainda que o favto de ter sido dado como provado que o M... não recebeu qualquer quantia da contra e venda constante da escritura, nada tem a ver com a fidelidade desta. Na escritura, o notário atesta aquilo que os outorgantes referem, assegura-se da qualidade em que o fazem e eventualmente inclui outros factos por ele percepcionados no decurso da escritura.

Na escritura nunca se refere que, nesse acto, os outorgantes compradores entregaram o montante do preço ao outorgante comprador. Como o próprio notário M... referiu no seu depoimento testemunhal, não sabe se o preço foi pago ou não, já que isso extravasa das suas funções e se reporta a um momento posterior ao da celebração da escritura.

A testemunha R... adiantou que o prédio estava em nome do M... apesar de pertencer a todos os irmãos, mas essa é matéria que vai para lá da questão em causa nos presentes autos.                                                                                                                      

Conclui-se assim que:

– Numa escritura pública de compra e venda, estando o outorgante vendedor incapacitado de assinar por motivo de ter as mãos a tremer, fruto de lesão craniana sofrida em acidente, deve apor a sua impressão digital, sendo perfeitamente lícito que o notário segure a mão desse outorgante e prima o seu dedo no local indicado da folha para aí apor a impressão digital.

–  A impossibilidade a que alude o nº 3 do art. 51º do Código do Notariado é a de apor a própria impressão digital (não ter mãos ou dedos, ter os dedos queimados não podendo deixar impressão digital, etc.) e não a de ter de ser auxiliado para poder colocar o dedo na folha correspondente da escritura e aí apor a sua impressão digital.

Nestes termos, julga-se procedente o recurso, julgando-se válida a escritura pública em causa e absolvendo-se os Réus dos pedidos.

Improcedendo o recurso subordinado do Autor.

Custas pelo Autor.

LISBOA, 12/01/2017

António Valente

Ilídio Sacarrão Martins

Teresa Prazeres Pais

Decisão Texto Integral: