Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6554/2005-7
Relator: ARNALDO SILVA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL CONEXA COM A CRIMINAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
EXECUÇÃO
OPOSIÇÃO
LITISPENDÊNCIA
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- A acção de indemnização por responsabilidade civil conexa com a criminal quando proposta em separado, fora dos casos previstos na lei, é causa de incompetência em razão da matéria; tal situação é diversa tratando-se de acção executiva, pois aqui não se trata já de declarar a existência da indemnização, mas de assegurar a realização desse direito, finalidades diversas que não impõem nem justificam a adesão da acção executiva ao processo penal.
II- No entanto, pode verificar-se a excepção de litispendência designadamente quando, ocorrendo identidade de partes e de pedido, se constate identidade de causa de pedir considerada a obrigação exequenda que não se confunde com o título executivo que a corporiza.
III- Não tendo sido invocada a excepção de litispendência no processo penal como no caso se impunha face ao disposto no artigo 499.º do Código de Processo Civil, a decisão final absolutória proferida em processo penal, transitada em julgado, constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis (artigo 89.º do Código de Processo Penal).
IV- O acatamento do caso julgado material formado pela decisão penal atinente ao pedido de indemnização obsta a que a questão se volte a suscitar (função negativa do caso julgado) e, no que respeita à acção executiva pendente onde foram deduzidos embargos de executado, a excepção dilatória do caso julgado conduz à absolvição da instância executiva ( artigos 288.º,alínea e), 493.º, n.ºs 1 e 2, 494.º, alínea i), 495.º, 497.º e 498.º todos do Código de Processo Civil)

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes, em conferência, na 7.ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:

1. Existe litispendência entre o pedido de indemnização cível deduzido no processo penal, na acusação formulada pelo Ministério Público, após o inquérito […] que correu termos nos serviços do Ministério Público, na comarca de Vila Real, contra a sociedade C.  Ld.ª e outros, em que o Ministério Público pede a condenação da arguida C.[…] Ld.ª a pagar ao Estado Português, representado pelo Ministério Público, a quantia de 34.064.448$00 (€ 169.912,75), acrescido de juros de mora contados da notificação para pagamento, ou, se assim se não entender, da data da notificação da acusação, proveniente das quantias entregues à arguida, em várias tranches de subsídios correspondentes a um projecto ao abrigo do Programa de Acção Florestal (PAF), e cujo não uso não foi minimamente comprovado, e o pedido formulado na execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, pelo Estado Português, representado pelo Ministério Público, contra a sociedade C. […] Ld.ª e outros, tendo como título executivo a certidão de dívida emitida pelo Director Geral das Florestas do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas de 30-11-2001, no montante total de 73.855.365$00 (cfr. doc. 1 a fls. 213 e fls. 235 e segs.), na qual o exequente pede o pagamento global da quantia € 415.460,39 (83.292.330$00), acrescida de juros vincendos à taxa legal em vigor, até integral pagamento. Existe incerteza do título executivo, porque no pedido de indemnização cível enxertado no processo penal pede-se a condenação da aqui executada no pagamento da quantia de 34.064.448$00 (€ 169.912,75), com juros de mora contados da notificação para pagamento, ou, se assim se não entender, da data da citação e notificação da acusação e na aludida execução, pelos mesmos factos, pede-se a quantia de 34.951.297$00 (€ 174.335,89) e juros no total de 19.643.827$00), donde decorre portanto uma diferença de capital de 886.759$00. E existe incerteza da obrigação, porque são erróneos os pressupostos em que assenta a certidão exibida, pelo que não é certa a obrigação que se pretende executar. A obrigação é inexigível por caducidade, porque os juros moratórios só se venceriam após a interpelação e esta só veio a ocorrer em 23-09-2003. Pelo que são inexigíveis quaisquer juros anteriores. Por outro lado, todos os juros anteriores a 02-11-1997 prescreveram (art.º 323º, n.º 2 do Cód. Civil). A obrigação é inexigível por caducidade, porque o contrato em que assenta o pedido, apesar de se reger pelas regras de direito privado, é um contrato administrativo, por ser um contrato com objecto passível de direito administrativo (ou substitutivos ou integrativos de acto administrativo), que, não revogado em tempo oportuno, se convalidou, pelo que caducou a possibilidade de reembolso, já que isso equivaleria à revogação do acto administrativo, em relação ao qual se deixou escoar o prazo de recurso contencioso. A sociedade C.[…] Ld.ª é parte ilegítima, porque não pode ser demandada para cumprir uma alegada do Agrupamento dos Produtos […] __ agrupamento que não tem personalidade jurídica e quem a tem são os seus membros, os beneficiários propriamente ditos, representado por uma pessoa (representação que não é legal) apenas por motivos de simplificação __, pelo que, a existir responsabilidade da executada, essa seria conjunta com os demais membros do agrupamento, nos termos do art.º 513º do Cód. Civil a contrario.

Com base nestes fundamentos, veio a executada C. […]Ld.ª, com sede […] Porto, por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, deduzir embargos de executado contra o exequente Estado Português […]nos quais pede que:

a) Seja suspensa a execução por força da litispendência do pedido cível formulado no processo crime; ou, quando assim se não entenda, que
b) Seja declarada a caducidade da obrigação;
c) E sempre a incerteza do quantum da obrigação de capital e juros; e/ou
d) Seja julgada procedente a excepção peremptória de prescrição relativamente aos juros contáveis anteriores a 02-11-1997.
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2. O embargado contestou, concluindo pela improcedência das excepções invocadas.
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3. Depois do acórdão desta Relação de 13-05-2004, ter anulado o despacho saneador-sentença de 23-06-2003, que julgou parcialmente procedentes os embargos, e que absolveu a embargante do valor correspondente aos juros vencidos até 22-01-1997, com a condenação da embargante nas custas na proporção do decaimento, para que os autos prosseguissem na 1.ª instância com a averiguação dos elementos necessários em falta ao conhecimento da excepção da litispendência: a averiguação das datas em que ocorreram a citação da executada para a execução e a notificação da acusação no processo crime com o « aderente pedido » de indemnização cível, e após a junção da certidão de fls. 288 e segs. foi proferido novo despacho saneador-sentença, onde se concluiu pela improcedência de todas as excepções deduzidas, salvo a excepção da prescrição, que se concluiu ser parcialmente procedente, e, em consequência, julgou parcialmente procedentes os embargos, e que absolveu a embargante do valor correspondente aos juros vencidos até 22-01-1997, com a condenação da embargante nas custas na proporção do decaimento.
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4. Inconformada, apelou a embargante. Nas suas alegações, em síntese nossa, conclui:
(...)
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5. Nas suas contra-alegações, o Estado Português, representado pelo Ministério Público, em síntese nossa, conclui:
(...)
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6. As questões essenciais a decidir:

Na perspectiva da delimitação pelo recorrente (1), os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º, n.º 1 e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil) (2), salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil), exceptuando-se do seu âmbito a apreciação das questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (n.º 2 1.ª parte do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).

Os recursos os recursos são meios de impugnação de decisões judicias e não meios de julgamento de questões novas (3), visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova. Por conseguinte, não se podem levantar no recurso questões novas, que não foram postas no tribunal recorrido, devendo apenas ser arguíveis e devendo apenas ser conhecidas ex novo em recurso questões de conhecimento oficioso, entre as quais, as excepções dilatórias (4) e as construções de direito, ainda não decididas (5).

No caso do presente recurso, a embargante introduziu a seguinte questão nova:  « há ou não incompetência em razão da matéria, por violação do princípio de adesão consagrado no art.º 71º do Cód. Proc. Penal, e por se ter feito apelo ao regime dos art.ºs 72º e 82º do Cód. Proc. Penal? ».

A embargante diz que sim, porque a indemnização só pode ser pedida em sede criminal, atento o disposto no art.º 71º do Cód. Processo Penal, e formulou-se a pretensão sem fazer funcionar o regime dos art.ºs 72º ou 82º do Cód. Processo Penal. E havendo incompetência absoluta impunha-se, como consequência, a absolvição da instância.

A incompetência absoluta do tribunal é uma excepção dilatória [art.º 494º, n.º al. a) do Cód. Proc. Civil], que pode ser suscitada arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo executivo, mesmo que não tenham sido deduzidos embargos de executado, enquanto não for ordenada a realização da venda ou de outra diligência destinada ao pagamento (art.º 820º do Cód. Proc. Civil (6)).
 
Há, pois, que conhecer desta questão nova.

Atento o exposto e o que flui das conclusões das alegações (7) __ e só se devem conhecer as questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas (8). Do exposto decorre que não podem ser objecto do presente recurso as seguintes questões, por as conclusões se encontrarem desgarradas do corpo das respectivas alegações: 1) A nulidade do despacho saneador-sentença supra descrita na conclusão 1.ª da apelante; 2) se a afirmação de que nunca há litispendência (entre) (“sic”) « a lesão decorrente de violação de “normas de protecção”, relativas a um “contrato de atribuição de ajudas” e uma execução por incumprimento de “contrato de atribuição de ajudas” choca ou não com os princípios de que na acção executiva é insubstituível a função atribuída à causa de pedir (elemento de determinação da obrigação exequenda, portanto do título executivo) e de que, em processo de adesão, há que apreciar e averiguar dos danos provenientes de violação de um interesse civilmente relevante, que serve de base e enforma o interesse específico que a norma tutela e de forma própria sancional, pois a “responsabilidade civil não nasce do delito, mas do acto antijurídico” ». Não se faz qualquer referência no despacho saneador-sentença recorrido à aludida afirmação da conclusão 3.ª (9); 3) se há ou não que averiguar se o prejuízo “se repercute na situação patrimonial global de uma pessoa” (sic), já que a apelante faz qualquer alusão a esta necessidade de averiguação no corpo das suas alegações; 4) se houve ou não errada interpretação do conceito de impugnação do art.º 487, n.º 2 1.ª parte do Cód. Proc. Civil, ao dizer-se no despacho saneador-sentença recorrido que « (...) o embargante teria de impugnar os factos que fundamentam tal decisão, oferecendo uma versão diferente. (...) Não há alegação de factos concretos (...) »; 5) se há ou não erro de interpretação dos art.ºs 801º; 810º; 510º e 811º-A, n.º 1 al. c) do Cód. Proc. Civil; 6) se há ou não errada interpretação dos art.ºs 371º e/ou 376º e 346º, todos do Cód. Civil, e ainda dos art.ºs 490º; 817º, n.º 3(?); 820º (?) e 811º, n.º 1 al. c) (?) 1.ª parte, estes do Cód. Proc. Civil, ao afirmar-se que não é admissível a impugnação por documento, porque esta questão não é tratada no corpo das alegações; 7) se houve ou não violação do disposto no art.º 405º do Cód. Civil por não se ter considerado o contrato de atribuição de ajudas celebrado em 24-10-1988, no âmbito do “Programa Específico do Desenvolvimento da Agricultura Portuguesa”, entre o exequente Estado Português e C. […], administrador da embargante, em representação da embargante e de todos os membros constituídos das Áreas Agrupadas, e, na execução, também executados, como fonte de obrigação de ressarcimento não caducada; 8) se houve ou não errada interpretação do art.º 55º do Cód. Proc. Civil; 9) se a imputação à embargante da responsabilidade pela dívida de reembolso consubstancia ou não um caso de abuso de direito (art.º 334º do Cód. Civil) __, da embargante-apelante supra descritas em I. 4., as questões essenciais a decidir são: 1) se houve ou não violação de caso julgado formal a propósito da excepção da litispendência arguida pela embargante; 2) se há ou não incompetência em razão da matéria, por violação do princípio de adesão consagrado no art.º 71º do Cód. Proc. Penal, e por se ter feito apelo ao regime dos art.ºs 72º e 82º do Cód. Proc. Penal; 3) se o contrato de atribuição de ajudas celebrado, no âmbito do “Programa Específico do Desenvolvimento da Agricultura Portuguesa” celebrado, em 24-10-1988, entre o exequente Estado Português e C.[…], administrador da embargante, em representação da embargante e de todos os membros constituídos das Áreas Agrupadas, e, na execução, também executados, é um contrato civil ou administrativo; 4) e, se for um contrato administrativo,                                                                 se a possibilidade de reembolso caducou ou não; 5) se existir responsabilidade da embargante se a sua obrigação é conjunta ou solidária.

Atenta a procedência lógico-jurídica das excepções dilatórias em concurso, vai-se conhecer das questões pela seguinte ordem:
1.º 2.ª questão;
2.º 1.ª questão;
3.º 3.ª questão;
4.º 4.ª questão;
5.º 5.ª questão.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
***
II. Fundamentos:
A) De facto:

Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Do escrito constante de fls. 8 do processo executivo, cujo conteúdo se dá aqui por inteiramente reproduzido, denominado “certidão de dívida”, consta que os executados devem ao exequente, em consequência de não terem cumprido um contrato de atribuição de ajudas celebrado com a exequente, as seguintes importâncias: 34.951.207$00 – capital; 34.171.421$00 juros até 22-12-1999; 4.732.737$00 – juros de 23-12-1999 até 30-11-2001; 7.231.688$00 – despesas extrajudiciais e encargos.
2. Em 24-10-1988 foi celebrado com a exequente o acordo escrito cuja cópia foi junta aos autos a fls. 9 a 13 do processo executivo, mediante o qual o exequente atribui uma ajuda aos executados, no âmbito do Programa Específico do Desenvolvimento da Agricultura Portuguesa.
3. O acordo supra referido em 2. foi celebrado por C. […], administrador da embargante, em representação da embargante e também em representação dos restantes executados.
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Atento o documento de fls. 7 e segs. (notificação da acusação deduzida contra a arguida C.[…] Ld.ª pelo Ministério Público) e das certidões juntas aos autos a fls. 291, 405 e segs. e 429 e segs., estão ainda provados os seguintes factos relevantes para a decisão a proferir nestes autos:

4. Nos autos de Processo Comum (Tribunal Colectivo) […] em que é autor o Ministério Público e arguidos C. […]Ld.ª e outros requerendo o seus julgamento em processo penal comum com Tribunal Colectivo, acusando-os da prática de crimes de fraude de obtenção de subsídio ou subvenção previsto e punido no art.º 36º, n.º 1 al. a), n.º 2 als. a) e c) do Dec. Lei n.º  28/84, de 20-01 e de desvio se subvenção, subsídio ou crédito bonificado previsto e punido no art.º 37º, n.ºs 1 e 3 do Dec. Lei n.º  28/84, de 20-01. Nesta acusação, o Ministério Público deduziu pedido de indemnização cível contra a arguida C. […]Ld.ª, no qual pede que esta arguida a pagar ao Estado Português, representado pelo Ministério Público, a quantia de 34.064.448$00 (€ 169.912,75), acrescido de juros de mora contados da notificação para pagamento, ou, se assim se não entender, da data da notificação da acusação, proveniente das quantias entregues à arguida, em várias tranches de subsídios correspondentes a um projecto ao abrigo do Programa de Acção Florestal (PAF), alegando, para o efeito, que o uso dos subsídios não foi minimamente comprovado.

5. A arguida C. […]Ld.ª foi notificada para querendo contestar o pedido de indemnização cível supra citado em 4. em 23-05-2003.

6. A executada C. […]Ld.ª foi citada nos autos de execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, a que estes embargos estão apensos em 06-12-2002.

7. Nos autos de processo comum (Tribunal Colectivo) […], em que é autor o Ministério Público e arguidos C. […]Ld.ª, no qual pede que esta arguida a pagar ao Estado Português, representado pelo Ministério Público foi em 25-01-2006 proferido acórdão que absolveu todos os arguidos dos crimes que lhes eram imputados, e que julgou improcedente o pedido de indemnização cível  deduzido pelo lesado Estado Português, absolvendo a demandada C.[…]Ld.ª do pedido.

8. O acórdão supra referido em 7. transitou em julgado em 22-02-2006.
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B) De direito:

1. A inexistência da incompetência absoluta:

Nos termos do art.º 71º do Cód. Proc. Penal, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos termos previstos nas als. a) a i) do art.º 72º do Cód. Proc. Penal (10). Se for instaurado pedido de indemnização civil em separado sem observância das condições estabelecidas no n.º 1 do art.º 72º do Cód. Proc. Penal, a acção civil não pode prosseguir, por falta de um requisito de validade, que se reflecte na competência do tribunal. O tribunal é então materialmente incompetente e consequentemente o réu na acção civil deve ser absolvido da instância [art.º 288º, n.º 1 al. a) do Cód. Proc. Civil] (11).

O pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal, há-de ter como causa de pedir os mesmo factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado (12). Esta acção cível que adere ao processo penal, por a responsabilidade civil estar conexa com a criminal __ conexão que é imposta por haver identidade de causa material (13), e na natureza tendencialmente absorvente do facto que dá causa às duas acções (14) __, é só a acção de indemnização cível de perdas e danos e só essa (15), como flui claramente do art.º 129º do Cód. Penal e dos art.ºs 71º e 74º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal (16). É assim uma acção de condenação. Nela o lesado, para além do pedido de declaração prévia da existência do seu direito à indemnização pelos danos emergentes do crime, pede, em sua consequência, que o arguido seja condenado a pagar-lhe a respectiva indemnização. Esta acção é transferida para o processo penal por razões de economia e cautela no que respeita a possíveis decisões contraditórias se as acções civil e penal fossem julgadas separadamente (17). Esta acção cível é, pois, muito diferente da acção executiva para pagamento de quantia certa. Aquela visa a declaração da existência da indemnização e condenação do arguido cumprimento da prestação devida. Esta visa assegurar a realização de um direito em caso de incumprimento, da prestação do obrigado, e traduz-se fundamentalmente em operações: desapossamento do devedor de coisas do seu património (penhora), venda forçada, seguida de pagamento com o preço. As razões que impõem a adesão daquela ao processo penal não justificam que se imponha também a adesão da acção executiva ao processo penal. E não impõem, porque o fim próprio desta é diferente daquela, como vem dito.

Logo art.º 71º do Cód. Proc. Penal não impõe a adesão da acção executiva para pagamento de quantia certa ao processo penal. Por conseguinte, na a acção executiva para pagamento de quantia certa, a que estes embargos de executado estão apensos, deduzida contra o Estado Português contra a executada embargante de demais co-executados __ a única executada que é arguida no processo crime e que é a única demandada no pedido de indemnização cível deduzido no processo crime é a aqui embargante __ não tinha de ser deduzida no processo crime onde também foi deduzido o pedido de indemnização cível contra a ora embargante-apelante. Por conseguinte, ao ter sido instaurada em separado, não gera, por esse facto a incompetência material do tribunal.

Improcede, pois, a questão nova suscitada.
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2. A litispendência que não foi deduzida no processo penal e a existência de caso julgado material formado na acção penal e suas implicações na acção executiva:

Nos termos do art.º 813º al. c) do Cód. Proc. Civil, na redacção da reforma processual de 1995/96, estão hoje abrangidos os vícios da incompetência absoluta, da litispendência e o erro na forma do processo. Para que haja litispendência é preciso que a causa se repita estando a anterior ainda pendente (art.º 497º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil). E a causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art.º 498º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil). E nos termos deste artigo, há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (n.º 2); há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (n.º 3), e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (n.º 4). A litispendência deve ser deduzida na acção proposta em segundo lugar (art.º 499º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil).

Entre a acção cível aderente ao processo penal e a acção executiva a que estes embargos estão apensos os sujeitos são os mesmos: o Estado Português e a sociedade C. […]Ld.ª, com os restantes co-executados. Na acção cível aderente ao processo penal, o Estado Português pede que a arguida C. […]Ld.ª seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 169.912,75 (34.064.448$00). Na acção executiva a que estes embargos estão apensos, o Estado Português pede lhe seja paga a quantia global de € 415.463,39 (83.292.330$00) __ sendo 34.951.207$00 de capital, o restante juros de mora sobre esta quantia e 7.231.688$00 de despesas extrajudiciais __, acrescida de juros de mora à taxa legal. O pedido destas quantias provém essencialmente dos mesmos factos, conforme se verá infra. No que toca ao pedido de capital, entre as duas acções, há uma diferença de 886.759$00. Embora não esclarecida, a diferença respeita porventura à diferença dos cálculos efectuados entre a dedução da acusação em 09-01-2002 e a instauração da acção executiva em 28-10-2002. O facto de na acção cível aderente ao processo penal se pedir a condenação da arguida C. […] Ld.ª no pagamento da quantia de 34.064.448$00 e de na acção executiva a que estes embargos estão apensos se pedir o pagamento da quantia de 34.951.207$00 de capital, para além dos juros de mora sobre esta quantia e despesas extrajudiciais, não obsta a que, no essencial, haja identidade de pedidos, visto que para haver identidade de pedidos entre duas acções não é necessária uma rigorosa identidade formal entre uma e outra, bastando que sejam coincidentes o objectivo fundamental de que depende o êxito de cada uma delas (18), é preciso que as pretensões (direito subjectivo que se pretende fazer valer) que se solicita ao tribunal sejam semelhantes nas duas acções, mas já não que tenham necessariamente a mesma expressão quantitativa (19) ou que a expressão literal dos mesmos seja exactamente igual (20). Com o pedido formulado na acção executiva, o Estado Português pretende obter logo o mesmo resultado que no final pretende obter com o pedido formulado a acção cível aderente ao processo penal, caso a arguida não pague a indemnização em que o Estado Português a pretende ver condenada. Embora não exista uma rigorosa semelhança formal entre dos dois pedidos, é coincidente entre eles o objectivo fundamental: a obtenção do pagamento da indemnização pelos danos emergentes do crime. A diferente expressão quantitativa do valor dessa indemnização não obsta, como se disse supra à sua identidade formal.

Verifica-se, pois, a identidade de pedidos nas duas acções.

A causa de pedir na acção executiva não é sempre a mesma coisa. Se a obrigação exequenda for abstracta, como sucede nos títulos de crédito, a causa de pedir da acção executiva é a relação cambiária documentada no título, « sendo o título executivo suficiente para fundamentar a execução, mesmo que dele não conste qualquer causa debendi. Se, por exemplo, o direito de crédito se encontra titulado por uma letra ou por uma livrança, o exequente só tem que apresentar esse título de crédito, porque ele incorpora a relação cambiária que constitui a causa de pedir do pedido executivo ». Se a obrigação exequenda for uma obrigação causal a causa de pedir da acção executiva são os factos constitutivos da obrigação. Neste caso, exige-se sempre a alegação da causa debendi. Se a causa de pedir não resultar do título executivo, tem o exequente de completar este com a alegação da causa de pedir no requerimento executivo (21). Enquanto que na acção declarativa a causa de pedir cumpre uma dupla função: é elemento de individualização da situação alegada pelo autor e delimita os factos que hão-de servir de base à apreciação da procedência da acção. Na acção executiva, a causa de pedir só serve para individualizar a obrigação exequenda (22). Não é, pois, aceitável a posição de Eurico Lopes Cardoso, quando diz que na acção executiva o título executivo corresponde à causa de pedir (23). E não é, porque não só o título executivo e a causa de pedir são duas figuras distintas __ aquele é um documento que demonstra a existência de uma obrigação, ou passe a clássica polémica entre Carnelutti e Liebman sobre a natureza do título executivo (24), por talvez não se poder, com  rigor, chegar a um conceito unitário (25), se o título executivo for um acto, então aquele será um acto documentado constitutivo ou meramente declarativo de um direito a uma prestação (26), enquanto que a causa de pedir é um acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor se propõe declarar (cfr. art.º 498º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil) __, mas também, porque, a não ser assim, haveria a impossibilidade de deduzir as excepções de litispendência e de caso julgado, por serem diversas as causas de pedir, quando as execuções referentes à mesma obrigação se baseassem em títulos executivos diferentes, por não se verificarem então os respectivos pressupostos (art.º 498º do Cód. Proc. Civil) (27).

Na acção executiva, a que os presentes embargos de executado respeitam, a obrigação exequenda é uma obrigação causal já que a sua existência depende do disposto no art.º 18º do Dec. Lei n.º 96/87, de 04-03, e do não cumprimento pelos executados do contrato de atribuição de ajudas, celebrado em 24-10-1988, no âmbito do “Programa Específico do Desenvolvimento da Agricultura Portuguesa”, entre o exequente Estado Português e C. […], administrador da executada-embargante, em representação desta e de todos os membros constituídos das Áreas Agrupadas, e, na execução, também executados.

O título executivo que serve de base à presente execução é a certidão de dívida ao Estado Português, emitida pela Direcção-Geral da Florestas, Ministério da  Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, cuja certidão desta certidão consta de fls. 213 destes autos (doc. 1). Do título executivo não constam quais os factos concretos, os factos nus e crus, que constituem a fonte da respectiva obrigação exequenda. Assim, e nos termos expostos, tinha o exequente, no seu requerimento inicial da execução, de alegar a causa de pedir, por forma a completar o título executivo.

Do confronto do requerimento inicial da execução com a acusação deduzida no processo crime, constata-se que o Estado Português deduziu pedido de indemnização cível pelos mesmos factos que constam do seu requerimento inicial para a presente execução.  

Em síntese, nos termos do requerimento inicial da execução e da acusação deduzida no processo crime __ na qual se imputam aos arguidos (de entre estes só a aqui embargante-apelante é também executada): C.[…], sociedade C.[…]Ld.ª, Carlos […] e A.[…] a co-autoria material e em concurso dos crimes de: fraude de obtenção se subsídio ou subvenção, previsto e punido no art.º 36º, n.º 1 al. a), n.º 2, n.º 5 als. a) e c) do Dec. Lei n.º 28/84, de 20-01, e de desvio se subvenção, subsídio ou crédito bonificado, previsto e punido no art.º 37º, n.ºs 1 e 3 do Dec. Lei n.º 28/84, de 20-01; crimes pelos quais o Ministério Público pede a condenação da sociedade C.[…] Ld.ª, nos termos do art.º 3º do Dec. Lei n.º 28/84, de 20-01; e ao arguido A.[…] de um crime de desvio se subvenção, subsídio ou crédito bonificado, previsto e punido no art.º 37º, n.ºs 1 e 3 do Dec. Lei n.º 28/84, de 20-01; e ao arguido José […] a autoria material de um crime fraude de obtenção se subsídio ou subvenção, previsto e punido no art.º 36º, n.º 1 al. a), n.º 2, n.º 5 als. a) e c) do Dec. Lei n.º 28/84, de 20-01; e aos arguidos F.[…], E.[…] e José […] a co-autoria material e em concurso dos crimes de: fraude de obtenção se subsídio ou subvenção, previsto e punido no art.º 36º, n.º 1 al. a), n.º 2, n.º 5 als. a) e c) do Dec. Lei n.º 28/84, de 20-01, e de desvio se subvenção, subsídio ou crédito bonificado, previsto e punido no art.º 37º, n.ºs 1 e 3 do Dec. Lei n.º 28/84, de 20-01 __, respectivamente, constata-se que « no dia 24-10-1988 foi celebrado entre o Estado Português e C.[…], em representação de todos os membros que constituíram a Área Agrupada […] o contrato junto aos autos a fls. 214 a 218 (Vol. I dos presentes embargos __ nos autos de execução a fls. 9 a 13), no âmbito do Programa Específico de Desenvolvimento da Agricultura Portuguesa (PEDAP) e enquadrada no Programa de Acção Florestal (PAF) ao abrigo da Portaria n.º 570/88, de 20-08. Nesse contrato o exequente Estado Português comprometeu-se a conceder aos executados uma ajuda, sob a forma de subsídio, a ser utilizado na execução do Projecto de Investimento Florestal […] cujo orçamento era de 72.316.867$00. Esse projecto tinha em vista a realização de acções previstas no n.º 2 da Portaria n.º 570/88, de 20-98. O Estado pagou aos beneficiários em 09-12-1988, 21-02-1989, 19-04-1989, 17-07-1989, 22-09-1989, 18-09-1989 e 26-10-1992, os montantes de 2.710.491$00 e 16.404.050$00, 30.974.895$00, 1.265.758$00, 9.840.968$00, 4.920.484$00 e 4.439.934$00, respectivamente, num total de 70.556.580$00. Posteriormente, por se ter constado o incumprimento do contrato pelos beneficiários, por ter sido efectuada a preparação apenas de 18,5 ha e infra-estruturas, foi pela autoridade competente determinada a devolução do subsídio, razão pela qual foram os executados notificados por carta datada de 24-08-2000, para proceder à devolução, no prazo de 30 dias do montante de 34.951.207$00, acrescido de 19.643.827$00 de juros. Ora os executados não procederam até hoje à devolução do quantitativo recebido e bem assim dos juros ». Do exame da acusação no processo crime, numa exposição sintética, vê-se que « os sócios do G. […]Ld.ª, C.[…], A.[…] e José […], este último já falecido, elaboraram um projecto que sabiam ser falacioso e à partida inexequível, duplicaram tarefas numa mesma área de terreno. Este projecto, não obstante os flagrantes erros, veio a merecer a aprovação e o elogio do arguido V.[…], engenheiro silvicultor, o qual nunca seguiria para aprovação superior se não tivesse omitido os seus deveres de fiscalização. Este projecto veio a ser a ser identificado […] e veio a ser aprovado em 23-12-1987, e teve início em 11-11-1988, tendo sido alterado durante a sua execução. Este projecto foi dado como concluído em Julho de 1997. Foi aprovado para a quantia de 72.316.876$00. A Associação dos Produtores Florestais […]em Mirandela, liderada pela sociedade C.[…] Ld.ª apresentaram este projecto, na sequência do qual veio em 24-10-1988 a ser celebrado o aludido contrato de fls. 440 do processo crime entre o Estado e a firma C.[…] Ld.ª. Os arguidos responsáveis pelo G.[…], pela sociedade C.[…] Ld.ª, e o empreiteiro responsável pela execução dos trabalhos, António […], forjaram e ficcionaram, repetidamente, factos que fizeram constar nas facturas, de modo a empolarem horas de trabalho e materiais usados. Os arguidos F.[…] , E. […] e F.[…], que desempenhavam funções na orgânica responsável pela fiscalização, e a quem cabia as funções de fiscalização do projecto, por forma a que os executantes pudessem de qualquer forma desviar verbas adstritas à execução do projecto, decidiram, deliberadamente não cumprir tais funções com o rigor que lhes cabia, e não denunciaram as irregularidades que se verificavam. Pela execução do projecto, e após cumpridos vários requisitos processuais, foram sucessivamente concedidos tranches de subsídio, tendo o projecto sido desenvolvido até ao seu termo em Julho de 1992. Tais tranches de subsídio vieram a ser depositadas no Banco […] titulada em nome da sociedade C.[…], Ld.ª, no balcão […]no Porto. Assim, do montante global aprovado, foi integralmente paga a quantia de 70.556.580.000$00. Devido à actuação concertada de todos os arguidos, o Estado Português entregou à arguida C.[…] Ld.ª várias tranches de subsídios correspondentes a um projecto ao abrigo do Programa de Acção Florestal (PAF), no montante total de 70.556.580$00 (€ 351.934,73). Parte deste total, no montante de  34.064.448$00 (€ 169.912.,75) foi indevidamente apropriado pela arguida C. […] Ld., como resulta  da  diferença  entre  a quantia efectivamente entregue (70.556.580$00) e aquilo que  os beneficiários realmente executaram  e  tinham  direito  a  receber (36.492.132$00). Assim sendo, tem o Estado a receber o montante relativo às quantias entregues à arguida e cujo não uso não foi minimamente comprovado, no montante de 34.064.448$00 (€ 169.912.,75) ».

Do cotejo do requerimento inicial da execução com a acusação crime ressalta que devido à actuação concertada de todos os arguidos a C. […], Ld.ª, na sequência da aprovação do projecto n.º […] APF […], e do contrato que no dia 24-10-1988 ela e os membros que constituíram a Área Agrupada do […] celebraram com o Estado Português, no âmbito do Programa Específico de Desenvolvimento da Agricultura Portuguesa (PEDAP) e enquadrada no Programa de Acção Florestal (PAF) e ao abrigo da Portaria n.º 570/88, de 20-08, veio a receber do Estado Português várias tranches de subsídios correspondentes a um projecto ao abrigo do Programa de Acção Florestal (PAF), no montante total de 70.556.580$00 (€ 351.934,73). Parte deste total foi indevidamente apropriado pela arguida. Assim sendo, tem o Estado a receber o montante relativo às quantias entregues à arguida e cujo não uso não foi minimamente comprovado, no montante de 34.064.448$00 (€ 169.912.,75) ». A única diferença respeita apenas ao montante total que foi apurado como indevidamente recebido. Segundo a acusação e o pedido de indemnização cível nela deduzido este montante foi de 34.064.448$00. Segundo a causa de pedir deduzida na execução a que estes embargos de executado estão apensos foi de 34.951.207$00. A diferença de 886.759$00, embora não esclarecida, respeita porventura à diferença dos cálculos efectuados entre a dedução da acusação em 09-01-2002 e a instauração da acção executiva em 28-10-2002. Fora este pormenor, os factos são essencialmente os mesmos. O que não afasta que haja identidade de pedidos, já que, conforme se deixou dito, não é a diferente expressão quantitativa do valor que a tal obsta, e os dois pedidos (o da acção crime e da execução) coincidem no seu objectivo fundamental: a obtenção do pagamento da indemnização pelos danos emergentes do crime.

Portanto, e em conclusão, os factos relativos à causa de pedir na execução a que estes embargos estão apensos são, no essencial, os mesmos que constam do pedido de indemnização cível constante da acusação deduzida em processo penal, e estes, por sua vez, têm como causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais a arguida C.[…] Ld.ª, com os demais arguidos,  foram acusados. Verifica-se, pois, identidade de causas de pedir entre a acção aderente ao processo penal e a acção executiva a que estes embargos estão apensos. E há também identidade de pedidos.

Atenta a matéria de facto provada supra descrita em II A) pontos 4. a 8., verifica-se que a arguida C.[…]Ld.ª foi notificada da acusação crime em 23-05-2003, a acção executiva, a que estes embargos de executado estão apensos foi proposta em 28-10-2002 (fls. 235 dos autos de embargos de executado), a executada C.[…] Ld.ª foi citada para a acção executiva em 06-12-2002. Assim, ao ser deduzido o pedido de indemnização cível em processo penal com a acção executiva ainda curso provocou-se uma situação de litispendência. Litispendência que devia ter sido deduzido na acção aderente ao processo penal (art.º 499º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil). Não se tendo ali conhecido da excepção da litispendência, o acórdão que conheceu do pedido de indemnização cível em processo penal e que absolveu do pedido a arguida C.[…] Ld.ª acabou por transitar em julgado 22-02-2006.

Nos termos do art.º 89º do Cód. Processo Penal, a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis. Ou seja, à decisão penal proferida em processo de adesão, como foi o caso, aplicam-se as normas da lei civil, substantiva e adjectiva. Não se trata, pois, da hipótese prevista no art.º 674º-B do Cód. Proc. Civil. Neste artigo prevê-se o caso da eficácia da sentença penal absolutória, quando na acção penal não tenha sido deduzido o pedido de indemnização cível.

O caso julgado material formado com a decisão penal sobre o pedido de indemnização cível tem aqui de ser acatado (art.º 671º do Cód. Proc. Civil). A sua eficácia  impede que a questão se volte aqui a suscitar (função negativa do caso julgado (28)). E porque existe caso julgado anterior sobre a questão que se repete na presente acção executiva a que os presentes embargos de executado respeitam, e esta excepção dilatória [art.ºs 493º, n.ºs 1 e 2; 494º al. i); 497º e 498º do Cód. Proc. Civil] é de conhecimento oficioso (art.º 495º do Cód. Proc. Civil), a sua existência determina a absolvição da instância executiva [art.º 288º al. e) do Cód. Proc. Civil] (29). Absolvição da instância que, inelutavelmente, se impõe aqui declarar.

Procede, pois, o recurso, mas com outro fundamento.
***
IV. Decisão:
Assim e pelo exposto, acordam em julgar procedente o recurso interposto pela executada-embargante apelante, e, consequentemente, revogam o despacho saneador-sentença, e acordam agora em absolver os executados da instância executiva.
Sem custas.
Registe e Notifique (art.º 157º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil).
***
Lisboa, _12___/_7___/__2006________

Arnaldo Silva
Soares Curado
Roque Nogueira



_________________________
1.-O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461 e 395 e segs. Cfr. ainda, v. g., Manuel Rodrigues, Dos Recursos – 1943 (apontamentos de Adriano Borges Pires), págs. 5 e segs.; J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V (Reimpressão – 1981), págs. 305 e segs.; Castro Mendes, Direito Processual Civil – Recursos, Ed. da A.A.F.D.L. – 1980, págs. 57 e segs. e 63 e segs.; Armindo Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Ed. da A.A.F.D.L. – 1982, págs. 239 e segs.; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.

2.-Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.

3.-O objecto do recurso é, assim, a decisão judicial recorrida. O tribunal superior vai ver se a decisão recorrida é aquela que ex lege deveria ter sido proferida, dentro dos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que decidiu. O tribunal superior não vai julgar de novo a questão sobre que incidiu a decisão recorrida. No nosso sistema de recursos, acolheu-se assim o modelo do recurso de reponderação ou de revisão e não o modelo de recurso de reexame. Há no entanto excepções ao modelo de recurso de reponderação. É o que pode suceder quanto à produção de prova na instância de recurso de direito consuetudinário, local ou estrangeiro (art.º 348º, n.º 1 do Cód. Civil), em que é admissível a produção de prova na instância de recurso. O recurso de apelação, no caso previsto do art.º 712º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil, também se aproxima do modelo de reexame. Sobre esta matéria vd. v. g., Castro Mendes, Direito Processual Civil – Recursos, Ed. da A.A.F.D.L. (1980), págs. 24 e segs.; Armindo Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Ed. da A.A.F.D.L. – 1982, págs. 170 e segs.; Freitas do Amaral, Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, Coimbra – 1981, págs. 227 e segs.; Miguel Teixeira de Sousa, opus cit., págs. 395 e segs.

4.-Mas já não são de conhecimento oficioso os factos em que se baseiam as excepções dilatórias. O conhecimento oficioso destes factos só pode ocorrer nos casos previstos no art.º 514º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil (só muito excepcionalmente constituirão factos notórios). E o mesmo se diga em relação às excepções peremptórias de conhecimento oficioso (art.º 496º do Cód. Proc. Civil), visto que o tribunal só pode conhecer oficiosamente do efeito impeditivo, modificativo ou extintivo produzido pelos factos que forem introduzidos no processo pelas partes (art.º 264º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil). Neste sentido vd. J. Lebre de Freitas e outros, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. 2.º, Coimbra Editora – 2001, págs. 312 e 313, respectivamente anotações 2 ao artigo 495º e 496º.

5.-Vd. Castro Mendes, Direito Processual Civil – Recursos, Ed. da A.A.F.D.L. (1980), págs. 25 e segs. e 27-28, e jurisprudência citada; Miguel Teixeira de Sousa, opus cit., págs. 395 e segs. No mesmo sentido vd. Ac. da R. de Évora de 02-05-2002: CJ Ano XXVII (2002), tomo 3, pág. 241. Segundo este acórdão sendo a questão nova, não apreciada na 1.ª instância, uma questão de direito, nada obsta a que a Relação dela conheça, nem sequer era exigível que as partes suscitassem.

6.-J. Lebre de Freitas, Acção Executiva à luz do código revisto, 2.ª Ed., Coimbra Editora – 1997, pág. 137 nota 8 diz que o art.º 820º derroga, no âmbito da acção executiva, o art.º 102º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil. Afirmação com a qual concordamos.

7.-As quais terão de ser, logicamente, um resumo dos fundamentos porque se pede provimento do recurso, tendo como finalidade que elas se tornem fácil e rapidamente apreensíveis pelo tribunal. As conclusões não devem ser afirmações desgarradas de qualquer premissa, e sem qualquer referência à fundamentação por que se pede o provimento do recurso. Não podem ser consideradas conclusões as indicadas como tal, mas que sejam afirmações desgarradas sem qualquer referência à fundamentação do recurso, nem se deve tomar conhecimento de outras questões que eventualmente tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas, mas não levadas às conclusões. Por isso, só devem ser conhecidas, e só e apenas só, as questões suscitadas nas alegações e levadas às conclusões. Neste sentido, vd. Acs. do STJ de 21-10-1993 e de 12-01-1995: CJ (STJ), respectivamente, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19.

8.-Cfr. supra nota 7.

9.-Mas mesmo que não estivesse desgarrada esta conclusão do corpo das alegações __ mas está __ o tribunal sempre teria de abster-se ao conhecer da questão colocada, por manifesta falta de interesse de agir da executada-embargante. O interesse em agir ou interesse processual é um pressuposto processual geral autónomo inominado da acção executiva. O interesse em agir consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou de fazer prosseguir a acção. Embora avulte especialmente do lado do exequente, também existe pela parte do executado.
O executado tem necessidade de usar os embargos de executado quando pretenda obter uma declaração judicial de que o direito de que o exequente se arroga não existe, ou seja, quando pretenda obstar a que o título executivo que serve de base à execução em questão não produza os seus efeitos, isto é, não constitua, certifique ou prove (não demonstre) o direito do exequente. Fora deste âmbito, o executado não tem necessidade da aludida tutela judiciária (Rechtsschutzbedürfnis). O executado pode utilizar a arma judiciária contra o exequente, deduzindo contra ele embargos de executado por mero capricho (de vindicata contra o exequente), ou por puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico).
Ora a questão que a executada coloca __ se a dita afirmação choca ou não com os aludidos princípios __ não diz respeito a qualquer afirmação feita no despacho saneador-sentença recorrido, e qualquer declaração que este tribunal faça sobre a questão não é susceptível de obstar à produção dos efeitos do título executivo. Ou seja, a executada-embargante não tem qualquer necessidade justificada em deitar mão aos embargos de executado para obter do tribunal uma declaração sobre se a referida afirmação choca ou não com os citados princípios. O interesse que possa ter na resposta deste tribunal à questão que coloca não justifica que use do processo para tal. O tempo dos tribunais é escasso, e, por isso, só se justifica a tutela judiciária para as situações em que realmente é indispensável a tutela jurisdicional.
Sobre o interesse em agir, vd., v.g. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Ld.ª - 1979, págs. 79 e segs.; A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Ld.ª - 1984, págs. 170 e segs.; Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II Liv. Almedina, Coimbra – 1982, pág. 253.

10.-Consagra-se aqui o regime da adesão obrigatória como regra. O pedido de indemnização cível deduzido no processo penal é uma verdadeira acção cível transferida para o processo penal por razões de economia processual e cautela, já que, com o julgamento no mesmo processo, se pretende evitar julgados contraditórios. Vd., v.g., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, 4.ª Ed., Editorial Verbo – 2001, pág. 128; Ac. da Rel. de Lisboa, de 18-10-2000: CJ Ano XXV, tomo 4, pág. 144.

11.-Neste sentido, vd. Germano Marques da Silva, opus cit., págs. 131-132.

12.-Vd. Germano Marques da silva, opus cit., pág. 128.

13.-Eduardo Correia, Processo Criminal – Prelecções ao 5.º Ano Jurídico de 1955-56, Coimbra – 1956, pág. 213. Mas já não assim quanto à causa jurídica. Esta é diferente. Na acção penal é um delito, na acção cível é um dano. Vd. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Coimbra – 1968, pág. 215.

14.-Vd. Eduardo Correia, opus cit., pág. 215.

15.-Vd. Ac. do STJ de 12-01-2000 – Proc. n.º 1146/99 – 3.ª Secção – Relator Cons. Leonardo Dias; Ac. do STJ de 12-01-2000 – Proc. n.º 599/99 – 3.ª Secção – Relator Cons. Leonardo.

16.-Vd. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, 4.ª Ed., Editorial Verbo – 2000, págs. 125 e 128.

17.-Vd. Germano Marques da Silva, opus cit., págs. 128 e 346; Ac. da Rel. de Lisboa, de 18-10-2000: CJ Ano XXV, tomo 4, pág. 144.

18.-Vd. J. Calvão da Silva, Estudos de Direito Civil e Processo Civil, 1996 pág. 234.

19.-Neste sentido vd. Ac. do STJ de 10-06-1984: BMJ 338 pág. 347; Ac. do STJ 06-06-2000: Sumários, 42º-10.

20.-Neste sentido, vd. Ac. do STJ 03-04-1991: BMJ 406 pág. 556.

21.-Vd. Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa – 1998, págs. 68-69 e doutrina citada (Castro Mendes e A. Varela); J. P. Remédio Marques, Curso de Processo Comum, Liv. Almedina – 2000, págs. 52-53 e jurisprudência citada na nota 123.

22.-Vd. Miguel Teixeira de Sousa, opus cit., pág. 69.

23.-Manual da Acção Executiva, Ed. da INCM – Novembro de 1987, pág. 27.

24.-Para o primeiro o título executivo tinha a natureza de documento; para o segundo tinha a natureza de um acto. Sobre a polémica, vd. J. A. Reis, Processo de Execução, Vol. I, 2.ª Ed. (reimpressão), Coimbra Editora, Ld.ª - 1982, págs. 98 e segs.

25.-Sobre a questão, vd. também J. Lebre de Freitas, Acção Executiva à luz do código revisto, 2.ª Ed., Coimbra Editora – 1997, págs. 56 e segs.

26.-Jorge Barata, A acção executiva comum – Noções Fundamentais, Vol. I, Editora Perspectivas e Realidades, Lisboa – Novembro de 1978, pág. 45.

27.-Neste sentido, vd., v.g., Jorge Barata, opus cit., págs. 45 e segs.; J. Lebre de Freitas, Acção Executiva, pág. 65 e nota 91; J. P. Remédio Marques, opus cit., págs. 52-53.

28.-Em contraposição à sua função positiva, ou seja, quando a eficácia do caso julgado consiste na vinculação a certa solução. No caso da função negativa o dever é de non facere, non agere, não discutir; no caso da função positiva o dever é de facere ou agere, de tomar como subsistente a solução julgada. Vd. Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, págs. 38-39.

29.-Neste sentido, vd. Castro Mendes, Direito Processual Civil – Acção Executiva, Ed. da AAFDL – 1980, pág. 61.