Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
117/12.9TVLSB-A.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS
LICENCIAMENTO DE OBRAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Cabe aos tribunais judiciais julgar a ação instaurada pelos compradores de duas frações autónomas pedindo a condenação da ré vendedora na reparação de defeitos e desconformidades de que aquelas frações padecem, incluindo a condenação da vendedora na obtenção de licenciamento junto da Câmara Municipal para as obras que nelas haviam sido feitas pela ré e na realização das obras consequentemente consideradas necessárias.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 18.01.2012 “A” e “B” intentaram nas Varas Cíveis da comarca de Lisboa ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra “C” – Compra e Venda de Imóveis, Lda.
Os AA. alegaram, em síntese, que em maio de 2010 adquiriram à R., mediante escrituras públicas de compra e venda, ½ da fração autónoma designada letra “A” correspondente à cave destinada a uso terciário (loja) de um prédio urbano situado na Rua das ..., em Lisboa, e bem assim a fração autónoma designada letra “E”, correspondente ao segundo andar destinado a habitação e cobertura, do mesmo prédio urbano. O dito edifício havia sido adquirido pela R., no exercício da sua atividade comercial, em 20 de abril de 2006, encontrando-se então num estado de degradação profundo, tendo a R procedido à sua reabilitação mediante a execução de diversas obras de alteração, modificação e conservação, tendo igualmente procedido à sua constituição em propriedade horizontal. Posteriormente a R. procedeu à comercialização das frações autónomas do dito edifício, promovendo-o como uma (re)construção de qualidade e requinte. Porém, os AA. vieram a constatar que as frações padecem de defeitos, vícios, erros e desconformidades, que discriminam, e além disso as obras efetuadas no edifício não foram licenciadas. Tudo isto os AA. ignoravam, tendo sido levados dolosamente ao engano pela R..
Os AA. terminaram pedindo que a R. fosse condenada:
1) A proceder ao licenciamento das obras por si efetuadas, no prédio urbano objecto dos presentes autos, junto da Câmara Municipal de Lisboa, bem como a proceder à execução das obras que venham a ser necessárias e ordenadas para a prossecução do referido fim, no prazo máximo de 6 (seis) meses a contar da data da sua citação;
2) Proceder à eliminação dos defeitos referenciados na petição inicial ou caso assim venha a ser necessário, à substituição da coisa ou à realização de nova obra;
3) Subsidiariamente
a) Caso os referidos defeitos sejam reparáveis e seja aprovado o licenciamento das obras pela Câmara Municipal de Lisboa, mas a ora R. se recuse a executar as reparações necessárias para o referido efeito, a substituir a coisa ou a realizar nova obra, deverá a mesma ser condenada a pagar aos AA., o valor que vier a ser fixado pelo tribunal, a título de indemnização que se venha a apurar e liquidar como o necessário para proceder às referidas obras;
b) Na eventualidade de a R. não diligenciar pelo licenciamento da obra, ou, caso a mesma não seja aprovada por parte da Câmara Municipal de Lisboa, ou, na situação de os mencionados defeitos não terem reparação possível ou a mesma seja tida como demasiado onerosa, deverá ser declarada a anulação das escrituras de compra e venda supra identificadas, com fundamento em erro sobre o objeto do negócio agravado pelo dolo, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 252º n.º 2, 253.º n.º 1 e 254.º n.º 1 do CC, com a consequente restituição aos AA. das verbas descritas nos artigos 165.º a 169.º da petição inicial;
4) Cumulativamente, em qualquer caso, no pagamento aos AA. de uma indemnização pelos prejuízos e danos patrimoniais sofridos, contabilizando-se, até então, em € 26 107,00, acrescidos de € 5 000,00, a título de danos não patrimoniais.
A Ré contestou, tendo, no que interessa para este recurso, arguido a incompetência material do tribunal para apreciar os pedidos 1) e 3) a) e b), devendo por conseguinte a R. ser absolvida da instância quanto a eles.
A A. replicou, pugnando, quanto à aludida exceção de incompetência absoluta, pela sua improcedência.
Realizou-se audiência preliminar no decurso da qual o tribunal pronunciou-se sobre a arguida exceção de incompetência do tribunal quanto à matéria, concluindo pela sua improcedência.
A Ré apelou da aludida decisão, tendo apresentado motivação em que rematou com as seguintes conclusões:
A. Nos presentes autos, os AA. pretendem que o Tribunal aprecie e decida da sujeição ou não a licenciamento das obras efetuadas pela R. nos imóveis que adquiriram face ao disposto do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e, consequentemente, que as qualifique como obras “ilegais e clandestinas”, como ao longo da petição inicial os AA. repetem.
B. Peticionam os AA. que a R. seja condenada a “proceder ao licenciamento das obras por si efectuadas, no prédio urbano objecto dos presentes autos, junto da Câmara Municipal de Lisboa, bem como a proceder à execução das obras que venham a ser necessárias e ordenadas para a prossecução do referido fim, no prazo máximo de 6 (seis) meses a contar da data da sua citação” (cfr. pedido 1) da petição inicial), formulando, ainda, pedidos subsidiários dependentes da R. diligenciar ou não pelo licenciamento da obra e do licenciamento ser ou não aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa (cfr. pedidos 3) e 4) da petição inicial).
C. A competência dos tribunais administrativos não se cinge desde a reforma do contencioso administrativo ao recurso contencioso de anulação de atos administrativos nem a litígios entre um particular e a Administração, tendo atualmente os tribunais administrativos competência para conhecer e julgar todo o tipo de pretensões bem como litígios entre particulares desde que esteja em causa uma questão jurídico-administrativa (cfr. designadamente, artigos 1, n.º 1, e 4.º do ETAF e artigo 37.º, n.º 3, do CPTA).
D. O licenciamento municipal ou a sua ausência envolve relações bipolares, poligonais ou multilaterais, isto é, que afetam e respeitam a outros particulares que não apenas aquele que apresenta o pedido de licenciamento – ou que não apresentam o pedido de licenciamento devido – e a Administração, pelo que a relação jurídico-administrativa não tem que envolver sempre um ente público e não tem que envolver sempre um só particular.
E. O Tribunal não pode condenar a R. no pedido formulado pelos AA. sem indagar, à luz de normas de Direito Público, prima facie do RJUE, se o licenciamento era ou não devido, se as obras são de construção, alteração ou conservação, se o imóvel está sujeito a restrições/servidões administrativas (por exemplo, se se trata de imóvel classificado, em vias de classificação ou situado em zona de proteção a imóveis classificados), não se tratando aqui de meros factos coadjuvantes da pretensão dos AA., mas da causa de pedir e dos pedidos formulados pelos AA.
F. Insere-se na função administrativa e na competência dos órgãos municipais a verificação da sujeição ou não o licenciamento das obras efetuadas pela R. e a determinação das consequências pela realização de obras ilegais e clandestinas nos termos do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, sendo a jurisdição competente para julgar litígios referentes a essa questão de Direito Administrativo a administrativa e não a comum, a qual oferece os meios de tutela para que os AA. possam reagir judicialmente contra a Administração ou contra a R. pelo não licenciamento municipal de obras a ele sujeito.
G. Como ilustra MÁRIO AROSO DE ALMEIDA “O processo administrativo pode mesmo ter apenas sujeitos privados como partes. Seja porque se trata de um particular que reage contra a conduta de outro particular a quem foi confiado o exercício de poderes públicos e que, por isso, pratica actos que a lei equipara a actos administrativos [...]; seja porque se trata de um particular que reage contra a violação ou ameaça de violação, por parte de outro particular, de deveres que para ele resultam de normas, actos ou contratos administrativos, sem que as autoridades administrativas competentes, solicitadas a intervir, tenham adoptado as providências adequadas para impedir ou pôr cobro a tal situação (cfr. artigos 37.º, n.º 3 e 109.º, n.º 2)”.
H. Na verdade, envolvendo o licenciamento municipal de obras, relações bipolares ou multilaterais, o que os AA. reclamam nesta ação é a tutela de um pretenso interesse legalmente protegido fundado em normas de Direito Administrativo (interesse que a R. seja condenada a reintegrar a legalidade urbanística pretensamente violada promovendo agora o licenciamento municipal das obras realizadas nos imóveis que lhe adquiriram), que aos tribunais administrativos compete conceder nos termos dos artigos 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, alínea a) do ETAF.
I. O tribunal cível pode apenas indagar se a R. se obrigou ao licenciamento ou informou os AA. que havia promovido o licenciamento e se esse licenciamento existe, mas não se, nos termos da normas de Direito Público aplicáveis, as obras efetuadas estão ou não sujeitas a licenciamento municipal e se, portanto, são ilegais ou clandestinas, para condenar a R. no licenciamento.
J. Não procede como argumento no sentido da competência dos tribunais comuns o disposto no artigo 97.º do CPC referente a questões prejudiciais do foro administrativo, posto que, na presente ação, não temos menos do que uma questão prejudicial do foro administrativo, mas mais do que uma questão prejudicial, já que a questão de Direito Administrativo referente à ilegalidade das obras por falta de licenciamento camarário constitui causa de pedir e traduz-se no próprio pedido principal de condenação da R. a promover o licenciamento, ou seja, está em causa o próprio objeto da ação.
K. Ao decidir que não se verifica uma exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria para conhecer do litígio na parte referente à sujeição ou não a licenciamento municipal de obras executadas pela R. (ou, noutra perspetiva, na parte referente à ilegalidade e clandestinidade das obras) e ao não absolver a R. da instância quanto aos pedidos formulados pelos AA. que assentam nessa causa de pedir, desde logo o pedido principal de condenação da R. a promover o licenciamento, o despacho saneador violou o disposto nos artigos 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, al. a) do ETAF, bem como os artigos 101.º, 105.º, 288.º, n.º 1, al. a), 493.º, n.º 2, e 494.º, al. a) do CPC.
A apelante terminou pedindo que o despacho saneador fosse revogado na parte em que considerou não verificada a exceção de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria invocada pela R., ora Apelante, e determinando-se a absolvição da instância da R. nos termos expostos.
Não houve contra-alegações.
O recurso foi admitido com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
O objeto do presente recurso cinge-se à competência material do tribunal a quo para apreciar os pedidos formulados pelos AA. sob os n.ºs 1, 3 a) e 3 b).
O circunstancialismo de facto a ter em consideração está exposto no Relatório supra.
O Direito
Nos termos do art.º 211.º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais são os “comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
A competência residual dos tribunais judiciais resulta também do disposto no art.º 18.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.° 3/99, de 13.01, com a redação dada pela Lei n.° 105/03 de 10.12) e no art.º 66.º do CPC, com a redação dada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, ao referir que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Outra ordem ou categoria é a dos tribunais administrativos e fiscais, aos quais, de acordo com o preceituado no art.º 212.º, n.º 3, da Constituição, compete “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Nos termos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (art.º 1.º n.º 1).
A competência desta jurisdição está prevista, em termos exemplificativos, no artigo 4.º do ETAF, com concretizações nos artigos 37.º e 46.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).
Comentando o citado n.º 3 do artigo 212.º da CRP, dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra Editora, 2.º volume, 4.ª edição, páginas 566 e 567:
Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); 2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.
Para Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 12.ª edição, 2012, Almedina, páginas 48 e 49), “esta questão sobre o que se entende por “relação jurídica administrativa”, sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração – sobretudo na medida em que se considere, como defendemos, que esta definição substancial se refere apenas ao âmbito nuclear ou de princípio da jurisdição administrativa, não excluindo soluções justificadas de alargamento ou de compressão da respectiva competência por parte do legislador.”
Podendo aceitar-se a definição de relação jurídica administrativa enunciada por Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilhe (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª edição, 2007, Almedina, pág. 17): “relação regulada por normas de direito administrativo, que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns do intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada.”
A esta luz se compreenderá o teor das normas invocadas pela apelante para suportar a competência da jurisdição administrativa para apreciar parte dos pedidos deduzidos pelos AA. nesta ação, ou seja, artigos 1.º e 4.º n.º 1, alínea a) do ETAF, 37.º n.º 3 do CPTA.
Além da regra geral, já citada, enunciada no artigo inicial do ETAF, dispõe-se na alínea a) do n.º 1 do art.º 4.º que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto “tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal.”
E no n.º 3 do art.º 37.º do CPTA (artigo que define o âmbito de aplicação da forma da ação administrativa comum) estipula-se que “quando, sem fundamento em acto administrativo impugnável, particulares, nomeadamente concessionários, violem vínculos jurídico-administrativos decorrentes de normas, actos administrativos ou contratos, ou haja fundado receio de que os possam violar, sem que, solicitadas a fazê-lo, as autoridades competentes tenham adoptado as medidas adequadas, qualquer pessoa ou entidade cujos direitos ou interesses sejam directamente ofendidos pode pedir ao tribunal que condene os mesmos a adoptarem ou a absterem-se de certo comportamento, por forma a assegurar o cumprimento dos vínculos em causa.”
Qualquer destas normas constitui aplicação do princípio de que cabe aos tribunais administrativos dirimir litígios regulados pelo direito administrativo, ainda que neles participem tão só particulares. No exemplo citado por Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira (Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol I, Almedina, 2004, páginas 40 e 41), se um privado pretender, por exemplo, intimar o seu vizinho a conformar-se com as normas de direito administrativo da construção de um muro que delimita as propriedades de ambos, ou a observar os limites da licença municipal dessa obra, deve recorrer para o efeito à jurisdição administrativa (embora só depois de, solicitadas a fazê-lo, as autoridades competentes se tenham abstido de tomar as medidas adequadas - cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, citado, pág. 276; Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, citado, páginas 223 e 224).
De todo o modo, a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a ação é proposta pelo autor, tendo em conta o pedido, a causa de pedir e as partes intervenientes (por todos, v.g., Tribunal dos Conflitos, 05.11.2012, 013/12, www.dgsi.pt).
Ora, in casu, os autores apresentam ao tribunal um litígio de natureza cível, que pretendem ser regulado por normas do direito privado. Isto é, invocam a celebração de dois contratos de compra e venda de bens imóveis, que estariam afetados por defeitos ou desconformidades das coisas vendidas, que as tornaria impróprias para a sua utilização e fruição. Tais desconformidades seriam tanto de natureza material como legal, pois os bens vendidos teriam sido alvo de obras sem o necessário licenciamento, o que desde logo impediria os AA. de, querendo, procederem à sua posterior venda. Para resolver o conflito, os AA. acobertam-se sob o disposto nos artigos 762.º n.º 1, 798.º, 914.º e 1225.º do Código Civil, pedindo ao tribunal que, em consequência, condene a R. a praticar determinados atos destinados a sanar os aludidos vícios e defeitos ou, subsidiariamente, a entregar aos AA. quantia que lhes permita substituirem-se-lhe na realização das obras necessárias ou, ainda subsidiariamente, que seja declarada a anulação dos dois contratos de compra e venda, ao abrigo do disposto nos artigos 252.º n.º 2, 253.º n.º 1 e 254.º n.º 1 do Código Civil, com as inerentes consequências, tudo acrescido de condenação da R. no pagamento aos AA. de indemnização pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
A pretensão dos AA. reveste natureza civil, pois assenta num litígio travado entre particulares, emergente de um contrato regulado pelo direito privado, e cujo remédio deverá ser equacionado, conforme peticionado, à luz do ordenamento de direito privado. O pedido formulado sob o n.º 1, de condenação da R. a proceder ao licenciamento das obras por si efetuadas, no prédio urbano objecto dos presentes autos, junto da Câmara Municipal de Lisboa, bem como a proceder à execução das obras que venham a ser necessárias e ordenadas para a prossecução do referido fim, no prazo máximo de 6 (seis) meses a contar da data da sua citação, nasce e insere-se no contexto supra exposto, que é o de regulação de um litígio de direito civil, mais precisamente de venda de imóveis com defeitos. A viabilidade da condenação nessa prestação de facto será apreciada à luz das regras que regem o negócio celebrado entre as partes, tarefa para a qual estão vocacionados os tribunais judiciais. O facto de tal tarefa pressupor que o tribunal ajuíze se as ditas obras careciam ou não de licenciamento, tendo para o efeito de indagar do teor das normas que regulam essa matéria, as quais são de natureza administrativa (cfr., maxime, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – RJUE – adotado pelo Dec.-Lei n.º 555/99, de 16.12, com as alterações introduzidas por sucessivos diplomas legais), não tem a virtualidade de transmudar em administrativa a natureza do litígio, pois o direito invocado pelos AA. e cuja tutela reclamam radica, repete-se, num contrato, numa relação jurídica de direito privado e em normas de direito privado, não em atos administrativos ou em normas de direito administrativo. De resto, o tribunal não se substituirá à Administração na decisão concreta de atribuir ou não o licenciamento e na fixação das obras eventualmente tidas como necessárias para a regularização da situação. Quanto a eventual diferença de juízo entre a Câmara Municipal e o tribunal no que concerne à exigência do licenciamento (por exemplo, o tribunal entende que o licenciamento era necessário e julga procedente o pedido sub judice, mas a Câmara Municipal, junto de quem a R. procura obter o licenciamento em falta, entende que as ditas obras não careciam de licenciamento), cabe tão só notar que, quanto a esse juízo específico, que constitui antecedente lógico da decisão judicial, a Câmara Municipal não fica vinculada, conforme aliás expressamente se dispõe nas situações previstas nos artigos 96.º n.º 2 e 97.º n.º 2 do CPC. De resto, no seu iter decisório o tribunal seguramente levará em consideração o que a esse respeito for informado pela Câmara Municipal (sendo certo que na petição inicial os AA. afirmaram terem apresentado à Câmara Municipal um pedido de vistoria ao referido prédio, a fim de esta se pronunciar sobre a necessidade do licenciamento das obras efetuadas pela Ré e, em caso afirmativo, se as mesmas são possíveis de licenciamento).
Entendemos, pois, que a decisão recorrida não merece censura.

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da apelante.

Lisboa, 21.5.2013

Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins
Decisão Texto Integral: