Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10653/2007-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
LESÃO GRAVE
LESÃO CONSUMADA
LESÃO CONTINUADA
LESÃO REPETIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/07/2007
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- A circunstância de perdurar há algum tempo situação causadora de lesão grave e dificilmente reparável de um direito obsta ao indeferimento liminar da providência em que se pretende que se ordene a evacuação de animais e materiais pertencentes aos requeridos que integram uma exploração pecuniária não licenciada que ocupa parte do prédio do requerente.
II- É que, fora da protecção cautelar, estão as lesões consumadas, mas não as lesões continuadas ou repetidas, pois importante é que a situação de perigo seja actual.
III- As lesões ocorridas subsistentes fortalecem a convicção da gravidade da situação e reforçam a necessidade de tutela cautelar para evitar a repetição ou persistência dessas situações lesivas

(SC)
Decisão Texto Integral: Agravo nº 10653-07

I – Foi proferido despacho de indeferimento liminar no âmbito do procedimento cautelar comum que
F. […] SA,
interpôs contra
M. […] e mulher
no qual fora requerida providência cautelar não especificada consistente na ordem de evacuação dos animais e materiais pertencentes aos requeridos que integram uma exploração pecuária não licenciada que ocupa uma parte de um prédio da requerente, ficando impedidos de acederem ao referido prédio.

Para tanto alegou a requerente que os requeridos não detêm qualquer título de ocupação do prédio, que a exploração pecuária não respeita os condicionalismos legais, que na mesma se encontram animais afectados por brucelose e que os requeridos deixam no prédio carcaças de animais mortos.

Ora, apesar de em 2005 a entidade administrativa competente ter concluído pela necessidade de se efectivar o encerramento da exploração pecuária, a mesma mantém-se em funcionamento, com risco para a saúde pública e com perigo de intoxicação alimentar dos trabalhadores da requerente.

Além disso, a partir do momento em que a requerente manifestou a sua oposição à manutenção da referida exploração, os requeridos começaram a fazer ameaças de fogo posto no prédio.

A decisão de indeferimento fundou-se em que o diferendo entre a requerente e os requeridos já data de 2004, sem que a requerente tenha intentado qualquer acção judicial tendente a apreciar em definitivo o seu direito, nem sequer depois de os requeridos terem interposto contra a requerente um procedimento cautelar atinente à ocupação do prédio e que foi julgado improcedente.

Além disso, considerou-se na decisão agravada que a requerente não justificou suficientemente a alegada impossibilidade de suportar por mais tempo a situação.

Em suma, porque os alegados perigos de intoxicação e para a saúde pública, assim como as ameaças de fogo posto já vêm sendo debatidos entre as partes desde há 3 anos, o procedimento cautelar foi liminarmente indeferido.

Inconformada com esta decisão, agravou a requerente que fez notar nas conclusões das alegações fundamentalmente o seguinte:
- A função dos procedimentos cautelares no que concerne à prevenção de danos futuros, entre os quais os decorrentes de ameaças reiteradas que os requeridos vêm fazendo.
- Deve ser revogada a decisão de indeferimento liminar e ordenado o prosseguimento do procedimento, sem audição dos requeridos ou, se assim não for, com audição.

II – Decidindo:

1. Apesar da abolição, em regra, do despacho liminar na sequência da reforma processual civil de 1996, tal intervenção foi mantida relativamente a alguns instrumentos processuais, entre os quais se destacam os procedimentos cautelares, nos termos do art. 234º, nº 4, al. b), do CPC.

Malgrado as alterações introduzidas neste preceito, em comparação com o que antes se encontrava previsto no art. 474º, o indeferimento liminar continua reservado para os casos em que a petição apresenta vícios formais ou substanciais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, um de dois resultados: ou que o procedimento jamais poderá culminar com uma decisão de mérito ou que ainda que se provem todos os factos alegados, se mostra antecipadamente inviável a sua pretensão, sem necessidade de qualquer diligência suplementar.[1]

Nesta segunda vertente que ao caso mais interessa, seguindo o ensinamento de Antunes Varela, ainda actual,[2]  o despacho de indeferimento liminar constitui um “julgamento prévio ou preliminar” através do qual a lei procura defender o demandado contra a demanda absolutamente injustificada, limitando o exercício do direito de acção aos casos em que exista um mínimo de viabilidade aparente da pretensão.

Trata-se de um julgamento antecipado do mérito da providência que se justifica apenas nos casos de evidente inutilidade de qualquer instrução ou discussão posterior, quando seja inequívoco que nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais aplicáveis aos factos alegados pelo requerente.[3]

Resulta, pois, claro que o indeferimento liminar de um procedimento cautelar deve ser usado com extrema cautela, devendo incidir exclusivamente sobre situações em que a tese propugnada pelo requerente não tenha quaisquer possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência.[4]

2. Na apreciação de agravo que tem por objecto despacho de indeferimento liminar a Relação está em condições semelhantes às que se verificam no tribunal de 1ª instância, devendo assentar qualquer juízo de valor apenas nos factos alegados pelo requerente, no pressuposto de que possam ser integralmente considerados provados na fase oportuna, com ou sem contraditório do requerido.

Importa ainda ponderar que é função específica dos procedimentos cautelares a prevenção de lesões futuras ou a antecipação de resultados que dependem de uma decisão definitiva (art. 381º do CPC).

Para aquele efeito, importam não apenas as lesões que ex novo possam ocorrer, como ainda as que constituam agravamento de lesões já encetadas ou repetição ou continuação de anteriores lesões.

Ao abrigo protector das providências cautelares pode bastar a prova de actos preparatórios que permitam prever a ocorrência de um evento objectivamente idóneo a prejudicar o direito, do mesmo modo que não deixam de ser tuteladas situações em que o evento é anunciado por uma série de elementos de facto ou em que o evento danoso já verificado continua a produzir efeitos que se prolongam no tempo, agravando o estado de insatisfação.

Estão fora de tal protecção cautelar lesões já inteiramente consumadas.[5] Contudo, nada obsta a que relativamente a lesões continuadas ou repetidas seja proferida decisão que previna a continuação ou a repetição de actos lesivos.[6]

Importante é que a situação de perigo, contra a qual se pretende defender o lesado, continue actual, servindo as lesões já ocorridas para fortalecer a convicção acerca da gravidade da situação e para reforçar a necessidade de ser concedida tutela cautelar que evite a repetição ou a persistência de situações lesivas.

Sem que isso cause quaisquer dúvidas na doutrina ou na jurisprudência, admite-se o deferimento de uma providência cautelar se e enquanto subsistir uma situação de perigo de ocorrência de novos danos ou de agravamento dos danos entretanto ocorridos.[7] Ponto é que as lesões futuras ou reiteradas sejam graves e irreparáveis ou de difícil reparação, nos termos dos arts. 381º e 387º do CPC.

3. Feitas estas considerações de ordem geral, importa reverter ao caso concreto.

Aquilo que desde logo se pode antecipar é que, tendo em conta exclusivamente a matéria de facto alegada, poucas situações demandam, com a urgência invocada pela requerente, a adopção de medidas cautelares que visem prevenir prováveis danos futuros.

Repare-se na sequência de factos alegados pela requerente:
a) A requerente adquiriu o prédio em 2004, tendo então detectado a existência de uma situação de ocupação sem título;
b) Essa ocupação traduzia-se na existência de uma exploração pecuária não licenciada, com animais doentes, afectados por brucelose, e com carcaças de animais mortos;
c) Procurou resolver a situação por mútuo consenso com os requeridos, mas não conseguiu;
d) Crente nos poderes das autoridades com funções em matéria pecuária, participou os factos, o que deu origem a um procedimento contra-ordenacional, por falta de licenciamento da exploração, falta de registo dos animais e falta de indicação dos animais reprodutores;
e) O veterinário concluiu pela necessidade de se proceder ao encerramento imediato da exploração e retirada dos animais do prédio, mas tal não foi executado, apesar das insistências da requerente junto da Direcção Regional de Agricultura;
f) A requerente aguarda há 3 anos que a situação seja resolvida;
g) Entretanto, os requeridos, confrontados com a actuação da requerente, formulam ameaças de fogo posto no prédio;
h) Conclui a requerente que existe perigo de intoxicação alimentar dos trabalhadores da requerente, perigo geral para a saúde pública e perigo iminente de destruição de bens imóveis situados no prédio.

4. Perante este quadro integrado, como se disse, por factos alegados, com que se lida na ocasião em que é proferido despacho liminar, somos impelidos a formular a seguinte interrogação de pendor retórico: para que a pretensão da requerente passe a fase liminar que permita o posterior confronto do tribunal com os factos que se apurarem que mais seria necessário alegar?

Uma tal interrogação acaba por conter a resposta, deixando bem evidente a necessidade de revogar a decisão agravada, para que os autos prossigam.


Ao invés do que consta da decisão agravada, não pode extrair-se do facto de o diferendo recuar a 2004 ou 2005 argumento que permita justificar o indeferimento liminar. A maior duração da situação apenas agrava a situação danosa, ao invés do que concluiu o tribunal a quo.

Nem o facto de a requerente se ter abstido de interpor qualquer acção com carácter definitivo pode ser invocada. É que o CPC prevê no seu art. 2º o exercício do direito de acção, como direito subjectivo oposto ao dever do Estado de dirimir litígios de direito privado, bem diverso de um dever de agir judicialmente com consequências na apreciação liminar das pretensões deduzidas.

A requerente, como alega, procurou encontrar nas autoridades administrativas a solução para o caso. Atitude que, se for verdadeira, é irrepreensível, pois que, sem embargo dos efeitos que a situação provoca na sua esfera jurídica, existirão outros bem mais graves que devem ser tutelados por entes públicos, ainda que com posteriores reflexos na esfera dos direitos privados.

A crer naquilo que a requerente alega, a ocorrência de perigos para a saúde pública, a violação de preceitos regulamentares em termos de licenciamento de explorações pecuárias ou o incumprimento de normas legais relacionadas com a posse de animais apresentam virtualidades que bem poderiam ter servido para que a fonte de perigo fosse administrativamente eliminada sem os encargos que decorrem do recurso aos tribunais cíveis.

Não tendo surtido efeito as diligências que a requerente terá empreendido, não poderá de modo algum ser penalizada.

O não exercício anterior do direito de acção judicial e, mais do que isso, a opção pelo accionamento de mecanismos de direito administrativo com posterior inércia dos entes públicos jamais pode redundar em prejuízo dos titulares de direitos afectados e que se encontrem em situação de lesão grave, iminente ou reiterada.

5. Como decorre do direito de acção consagrado no art. 2º do CPC, a qualquer situação juridicamente protegida corresponde uma acção, sem exclusão sequer da acção cautelar, desde que, neste caso, se verifiquem os requisitos específicos. Por outro lado, as funções de que sejam incumbidas autoridades policiais ou administrativas não contendem com a legitimidade dos particulares de requererem providências de carácter inibitório, acompanhadas ou não de medidas que imponham determinados comportamentos.

Não sendo seguro que os interessados a quem a lei reconhece determinado direito possam actuar directamente sobre tais autoridades no sentido de as levar a cumprir as suas funções, resta a possibilidade de lhes ser facultada a intervenção dos tribunais para a defesa dos seus direitos ou dos interesses reconhecidos.

6. Em conclusão, o despacho de indeferimento liminar não poderá deixar de ser revogado.

A situação de perigo resultante dos factos alegados não afasta a passagem do procedimento para a fase subsequente na qual possam ser formulados juízos que tenham subjacentes factos que forem considerados provados.

Por isso, em substituição do despacho agravado virá despacho liminar de admissão, com posterior citação dos requeridos para deduzirem oposição.

Neste aspecto particular, não merecem concordância as observações feitas pela agravante quanto à dispensa de contraditório.

O período de duração da situação, aliado ao facto de anteriormente já ter sido interposto um procedimento cautelar contra a requerente pelos ora requeridos aconselha a que a providência apenas seja apreciada depois de a estes ser conferida a possibilidade de deduzirem oposição, nos termos do art. 385º do CPC.

III – Face ao exposto, decide-se conceder provimento ao agravo, revogando o despacho de indeferimento liminar que deverá ser substituído por outro a determinar a citação dos requeridos.

Sem custas.

Lisboa, 7-12-07

(António Santos Abrantes Geraldes)

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[1] Alberto dos Reis justificava a previsão do despacho de indeferimento liminar como um dos corolários do princípio da economia processual, com vista "a evitar o dispêndio inútil da actividade judicial". Ainda, segundo o mesmo autor, "o indeferimento liminar pressupõe que, ou por motivos de forma, ou por motivos de fundo, a pretensão do autor está irremediavelmente comprometida, está votada ao insucesso" (CPC anot. vol. II, pág. 373).
Anselmo de Castro, por seu lado, considerava igualmente que o indeferimento liminar tinha por fim "eliminar à nascença processos desprovidos das necessárias condições de viabilidade formal e substancial, sem prejuízo das garantias do autor que ficará acautelado de todos os riscos" (ob. cit., pág. 199).
[2] Na RLJ, ano 126º, pág. 104.
[3] Alberto dos Reis, CPC anot., vol. II, pág. 385.
[4] Trata-se de tema abordado pelo signatário em Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I (Princípios Gerais do Processo Civil), vol. I, 2ª ed., págs. 258 a 260, e vol. III (Procedimento Cautelar Comum), em anotação ao art. 385º do CPC.
[5] Cfr. o Ac. da Rel. de Lisboa, de 8-6-93, CJ, tomo III, pág. 123, segundo o qual "a providência cautelar só resulta quando a violação do direito não estiver ainda consumada", o Ac. da Rel. de Évora, de 24-7-86, BMJ 361º/628, o Ac. da Rel. do Porto, de 12-10-89, CJ, tomo IV, pág. 215, e o Ac. da Rel. de Coimbra, de 26-1-88, BMJ 373º/612.
Segundo o Ac. da Rel. de Évora, de 11-6-87, BMJ 368º/631, "o processo cautelar não tem por razão de ser corrigir situações, mas sim prevenir lesão que venha a ser grave e dificilmente reparável".
[6] Lebre de Freitas, CPC anot., vol. II, pág. 7.
Relativamente à cessação de comunicações telefónicas cfr. o Ac. da Rel. de Lisboa, de 11-1-96, CJ, tomo I, pág. 82, e quanto à reposição de um elevador avariado, cfr. o Ac. da Rel. de Lisboa, de 19-5-94, CJ, tomo III, pág. 95.
[7] Sobre danos ambientais, cfr. o Ac. do STJ, de 12-10-00, CJSTJ, tomo III, pág. 70.