Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3793/09.6TDLSB.L1-9
Relator: FRANCISCO CARAMELO
Descritores: NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
LEGES ARTIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - Todo o profissional, independentemente da área à qual pertença, deve possuir os conhecimentos básicos, tanto práticos quanto teóricos, da sua profissão, no intuito de exercê-la de acordo com os princípios de uma conduta cautelosa, perita e eficiente. Isso ser-lhe-á útil no sentido de não prejudicar os seus futuros clientes, bem como para o seu próprio nome, a sua carreira e a classe profissional que representa.

II - A culpa dos profissionais farmacêuticos, perante o direito, é uma culpa comum e não uma culpa especial, como querem alguns, o que diferenciaria sua conduta dos demais indivíduos. Também a responsabilidade que lhe é atribuída é aquela idêntica para todos; diferente, apenas, é a natureza de ocorrência da culpa, pois esta resulta do exercício de uma profissão, da profissão farmacêutica.

III - Todavia, ao determinar-se a responsabilidade dos profissionais em causa, mister se faz um tipo de cuidado específico e, este, diz respeito a uma verificação efectiva se os danos ocorridos foram causados pelos atos decisórios das pessoas em causa ou se advieram por factores externos à sua vontade.

IV - Tem a ver com o que os estudiosos nesta matéria chamam de resultados imprevisíveis ou previsíveis. Um resultado é objectivamente previsível quando puder ser representado a uma pessoa posta no lugar do agente, antes do começo da realização da acção, fornecendo-lhe os dados referentes ao caso concreto conhecido pelo autor, dentro das possibilidades de conhecimento de uma pessoa inteligente.

Decisão Texto Parcial:Acordam, precedendo conferência, na 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I

1. Nos autos de processo comum colectivo n.º 3793/09.6TDLSB, da 7ª Vara Criminal de Lisboa, foram submetidos a julgamento os arguidos, HD, e, SB, melhor identificados nos autos a fls. 2891, pronunciados, como autores materiais e em concurso efetivo, de seis crimes de ofensa á integridade física por negligência p.p. pelo artº 148 nº1 e 3 do C. Penal.

2. Realizado o julgamento, o Tribunal, por acórdão de 28/06/2013 ( 2891 a 2996 ) Decidiu Absolver ambos os arguidos.

3. Por Ac. proferido por este Tribunal em 9 de Julho de 2014 ( Fls. 3639 a 3705) foi decidido:

A) Declarar nulo o acórdão recorrido, por inobservância do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), e bem assim nos artigos 358.º, n.º3 e 379.º, n.º1, alínea b), todos do C.P.P., o qual deverá ser substituído por outro que, depois de ser dado cumprimento ao estatuído no artigo 358.º. nºs. 1 e 3, do C.P.P., venha a decidir em conformidade, devendo ser suprido o apontado vício de falta de fundamentação, nos termos em que acima se faz referência.

B) Não conhecer das questões suscitadas pelo recorrente, por se mostrarem prejudicadas.

4. Em cumprimento do ordenado, o Tribunal por Ac. proferido a 14 de Novembro de 2014 ( fls. 3746 a 3851 ) Manteve a Absolvição dos arguidos.

5. Inconformado, recorreu o Exmo. Magistrado do Ministério Público, na forma constante de fls. 3856 a 3900, extraindo da correspondente motivação as seguintes conclusões:

1 - O Acórdão recorrido decidiu, na sequência de vasta produção de prova em audiência e do exame de múltipla documentação junta aos autos, quer na fase de Inquérito quer já em julgamento, absolver os arguidos da prática dos crimes que lhes foram imputados no despacho de pronúncia proferido nos autos.

2 - Tal como decorre da respectiva leitura, esta decisão baseou-se no facto de não terem sido dados como provados diversos factos constantes da pronúncia, fundamentalmente no que se refere:

a) À asserção de que o produto injectado nos olhos dos ofendidos nos autos não foi o medicamento Avastin (bevacizumab);

b) À noção complementar de que as lesões provocadas na visão desses mesmos ofendidos, na sequência das injecções oculares efectuadas no dia 17-7-2009, foram provocadas por uma “endoftalmite química/tóxica”, por contraposição a uma doença infecciosa, nomeadamente de origem bacteriana;

c) À conclusão, retirada dos factos precedentes, de que as lesões sofridas pelos ofendidos derivaram do facto de lhes ter sido injectado nos olhos produto “tóxico” diverso do Avastin, na sequência de uma troca dos medicamentos a utilizar nas operações, ocorrida aquando da preparação desses medicamentos no Hospital de Santa Maria;

d) À imputação dessa troca de medicamentos à arguida SB, com consequente violação dos deveres de cuidado que lhe cabia observar no exercício das respectivas funções profissionais, bem como a subsequente imputação ao arguido HD de responsabilidades pelo não exercício adequado dos deveres de supervisão da conduta da arguida SB que lhe cabiam, enquanto farmacêutico responsável pela produção dos concretos medicamentos em questão.

3 - Porém, no entender do Ministério Público, tais conclusões em matéria de facto não apenas são contrariadas pela globalidade da prova produzida em audiência e constante dos autos, como são em si mesmas contraditórias com o teor de outros factos dados como provados no Acórdão recorrido – que incorre igualmente em contradições quando procura fundamentar as respectivas decisões em matéria de prova.

4 - Não poderá assim o Ministério Público conformar-se com o decidido no Acórdão recorrido em matéria de facto e, consequentemente, com a decretada absolvição dos arguidos – pelo que se interpõe o presente recurso, versando fundamentalmente tal matéria.

5 – Deverão nestes termos considerar-se provados, ao contrário do que fez o Acórdão recorrido, os seguintes factos, incorrectamente considerados não provados no Acórdão recorrido, seguindo a numeração aí adoptada:

– No tabuleiro de alíquotas encontrava-se uma única alíquota de Bevacizumab, que havia sido preparada com o remanescente das preparações efectuadas, no dia de 15.07.2009 (Este facto corresponde ao art. 57º da acusação, que o Acórdão recorrido não deu como provado ou não provado, pese embora o constante do nº 69 dos factos provados, “correspondente” ao art. 56º da acusação).

8 - Agindo de forma apressada atento o adiantado da hora e a sua hora de saída e eventualmente equivocada na leitura da designação manuscrita do fármaco na alíquota em causa, a arguida consciente que qualquer desatenção poderia culminar numa troca de fármacos e que tal, atenta a toxicidade do produto, acarretaria consequências danosas muito graves à integridade física dos doentes, pegou numa alíquota contendo fármaco diferente de Bevacizumab e com ela produziu 8 seringas.

10 - Quando foi limpa a câmara de fluxo de ar laminar e a arguida saiu da Sala Limpa permitindo que a assistente operacional efectuasse a limpeza da mesma e já na sala de apoio, o arguido HD deveria ter diligenciado pela validação dos preparados como era da sua competência e obrigação.

11 - De acordo com o que é a prática laboratorial comum, a preparação de uma seringa demora entre 4 a 5 minutos, num total mínimo, para a feitura de 8 seringas, de 36 minutos.

12 - Tendo em conta o tempo despendido na preparação das 8 seringas de medicamento e tendo em linha de conta que a arguida ainda limpou a câmara de fluxo de ar laminar, se teve de desequipar e saiu do local acompanhada da assistente auxiliar que ainda procedera a limpeza da sala limpa, e que o relógio de ponto se situa no 2º piso do edifício, implicando descer por escadas 5 andares, constata-se que a mesma na reconstituição efectuada demorou 27 m 48s na realização do preparado, tempo superior ao gasto na efectiva preparação efectuada.

13 - Ao agir como descrito os arguidos não levaram a efeito as etapas de produção técnica e eticamente exigíveis, originando erros seguramente evitáveis caso tivessem preconizado as boas práticas, representando como possível a danosidade das suas condutas e as nefastas consequências de tais actos, actuando em violação dos mais elementares deveres de cuidado da profissão.

14 - Ao deixar ao critério da arguida SB a selecção do fármaco adequado à preparação do medicamento, ao não validar os manipulados e não efectuar o seu acondicionamento final, o arguido HD desinteressou-se totalmente pela actividade profissional que desenvolve, destituiu-se das competências e funções que lhe estão atribuídas sabendo que tal conduta aumentava o risco de troca de medicamento, o que a suceder, como sucedeu, determinaria graves lesões nos doentes a quem o medicamento se destinava, nomeadamente colocaria sérios riscos de lesão da visão dos mesmos.

15 - De igual forma a arguida SB ao praticar actos da competência do farmacêutico, actuando de forma apressada, desprovida de rigor e da atenção que se lhe impunha em face da elevada tecnicidade das suas funções e da elevada perigosidade dos fármacos que manuseava sabia que aumentava seriamente as probabilidades de troca de fármacos, o que a suceder, como sucedeu, colocaria em risco a saúde dos doentes a quem tal fármaco se destinava.

20 - Efectuados exames complementares às amostras biológicas recolhidas aos ofendidos: ecografias e estudos electro-fisiológicos (avaliação da actividade eléctrica da retina e do nervo óptico), retinografias e angiografias verificou-se que, com excepção para a MJ, os demais ofendidos após a intervenção de 17.07.2009, sofriam agora de isquémia da retina (ausência de aporte sanguíneo a circulação retineana com consequente morte celular) - patologia não compatível com a administração de Avastin.

22 - Sendo que a causa das graves e permanentes lesões provocadas nos ofendidos consistentes na privação do sentido da visão foi a administração de fármaco de alta danosidade, não adequado às patologias que sofriam, originadas pela troca de fármacos ocorrida na UPC aquando da preparação do medicamento pela arguida SB sob a direcção do arguido HD.

23 - Sabia o arguido HD que, como farmacêutico da Unidade, seria da sua competência a selecção da alíquota adequada à preparação pela TDT do medicamento Avastin, cujo mapa de preparação o arguido elaborara e bem assim a posterior validação do preparado, procedimentos que omitiu representando como possível as consequências daí decorrentes e aceitando-as.

 24 - Todavia, a arguida não se certificou dos rótulos apostos nas alíquotas e fiando-se na aparência da substância contida na alíquota que seleccionou fez oito preparados de substância de fármaco que não Avastin, prevendo como possível que a tal substância a mesma não correspondesse, sabendo que com tal actuação poderia prejudicar de forma muito grave a saúde de terceiros, impossibilitando-os de utilizar a visão como veio a suceder. 

26 - Os arguidos sabiam que a intervenção de dois técnicos (o farmacêutico e Técnico de diagnostico e terapêutica) no ciclo de produção do Avastin permitiria um duplo controlo e maior segurança na manipulação do fármaco usado, tanto mais que os fármacos existentes na UPC, constituindo citostáticos monoclonais são altamente tóxicos, exigindo escrupuloso cumprimento dos procedimentos devidos.

27 - Embora pudessem e devessem ter tomado precauções para que as seringas em apreço fossem objecto de diferente forma de preparação, os arguidos não o fizeram sendo a inobservância desse dever que aos profissionais com os conhecimentos técnicos e competências dos arguidos é exigido, facilitou a troca de fármacos cuja aplicação foi directamente causal das graves lesões que os ofendidos vieram a sofrer e que afectam gravemente a sua capacidade para o trabalho e a possibilidade de usufruição do sentido da visão.

28 - Os arguidos actuaram de forma livre e conscientemente, em manifesta desconformidade com os procedimentos técnicos instituídos e a que estavam obrigados sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.

6 - Deverão para além disso ser correspondentemente alterados os factos dados como provados nos nºs 31, 78, 80, 84, 97, 98 e 107 do Acórdão, de modo a que se adequem aos correspondentes da acusação e pronúncia, tendo em conta a prova efectivamente produzida nos autos, desde logo nos seguintes termos:

a) O facto nº 31 passe a referir um volume de “cerca de 4,4 ml”;

b) O facto nº 78 seja eliminado, face àquilo que deverá considerar-se provado, nos termos referidos supra;

c) O facto nº 80 seja modificado de acordo com o referido supra quanto ao facto não provado nº 10;

d) A redacção do facto nº 84 seja substituída pela constante do correspondente art. 72º da acusação;

e) A redacção do facto nº 97 seja substituída pela constante do art. 84º da acusação (“patologia não compatível com a administração de Avastin”);

f) A redacção do facto nº 107 seja substituída pela seguinte: “Os arguidos sabiam que o tabuleiro de alíquotas que a arguida manuseava continha fármacos especialmente tóxicos e que quando aplicados a nível oftalmológico vêm tal toxicidade potenciada, porquanto tratando-se de citostáticos produzem a morte dos tecidos e, consequentemente, a destruição do sentido da visão”.

7 - Sendo eliminados quaisquer outros factos em contradição com aqueles que deverão vir a considerar-se provados.

8 - As alterações pretendidas em relação à matéria de facto dada como provada são impostas, no entender do Ministério Público, pelas provas já referidas supra e pelas próprias contradições existentes entre os factos dados como provados e não provados no Acórdão.

9 - Em concreto, no que se refere ao facto que foi totalmente desconsiderado no Acórdão recorrido, a saber, que “No tabuleiro de alíquotas encontrava-se uma única alíquota de Bevacizumab, que havia sido preparada com o remanescente das preparações efectuadas, no dia de 15.07.2009”, foi para além do mais descurada a prova resultante do inventário de fls. 231, dos autos de reconstituição de alíquota de fls. 444 a 449 e dos elementos documentais constantes do Apenso IV-G em que essa operação de reconstituição se baseou, devendo ter-se em conta aquilo que foi referido supra no Ponto D quanto a esta matéria.

10 - Quanto ao facto não provado nº 8, a existência de uma alíquota contendo efectivamente Avastin no tabuleiro utilizado pela arguida SB deverá ser conjugada com a abundante prova constante dos autos e produzida em julgamento, da qual decorre inequivocamente que o produto administrado aos ofendidos não foi Avastin, quer por este produto não ser passível de produzir lesões tão graves na saúde como as que foram documentadas, quer por não haver quaisquer indícios minimamente cogentes ou sequer plausíveis de que pudesse ter sido administrado Avastin adulterado ou microbiologicamente contaminado, em moldes susceptíveis de provocar as referidas lesões.

11 - Em termos que nos levarão necessariamente a concluir ter existido uma troca de medicamentos, tal como foi referido na acusação e pronúncia e indevidamente dado como não provado no Acórdão recorrido.

12 - A respeito destas matérias, poderemos indicar em concreto, sem prejuízo da totalidade das provas já referidas e analisadas no corpo do presente recurso:

a) A opinião unânime dos médicos ouvidos nos autos, abundantemente ilustrada:

- pela Drª MF, no depoimento por si prestado no dia 24-5-2012 (ver sobretudo os esclarecimentos prestados por esta médica entre os 7 m 25 s e os 8 m 5 s, nos quais refere que “viu logo que não era uma endoftalmite infecciosa”, bem como entre os 16 m e 10 s e os 17 m e 30 s, nos quais esclarece as questões relativas à existência de pus no olho, tudo por referência às declarações gravadas na sessão de audiência, iniciadas às 11 h, 01 m e 37 s desse dia);

- pelo Dr. JC, no depoimento por si prestado no dia 9-2-2012 (ver sobretudo os esclarecimentos prestados por este médico entre os 23 m 24 s e os 24 m 45 s, entre os 48 m 30 s e os 52 m 07 s, entre a 1 h o1 m 50 s e a 1 h 2 m 35 s e entre a 1 h 19 m 20 s e a 1 h 19 m e 41 s, nos quais refere que “não era uma endoftalmite séptica”, “o problema não é infeccioso”, “uma endoftalmite bacteriana é muito dramática, cheia de pus, não era o caso”, “exclui a origem bacteriológica” das lesões dos ofendidos, tudo por referência às declarações gravadas na sessão de audiência, iniciadas às 15 h, 33 m e 14 s desse dia);

- pelo Dr. MG, no depoimento por si prestado no dia 26-3-2012 (ver sobretudo os esclarecimentos prestados por este médico entre os 10 m e 16 s e os 10 m 40 s, nos quais refere que “a minha opinião e de todos os colegas é de que não foi aplicado Avastin”, por referência às declarações gravadas na sessão de audiência, iniciadas às 18 h, 15 m e 56 s desse dia);

- pelo Dr. AT, no depoimento por si prestado no dia 16-4-2012 (ver sobretudo os esclarecimentos prestados por este médico entre os 55 m e 13 s e os 55 m e 56 s e entre os 56 m 00 s e os 56 m 41 s, nos quais refere que “não foi administrado Avastin” e que “a endoftalmite foi tóxica”, tudo por referência às declarações gravadas na sessão de audiência, iniciadas às 10 h, 23 m e 41 s desse dia);

- pela Drª MB no depoimento por si prestado no dia 9-2-2012, conforme foi já detalhado supra;

- pelo próprio Prof. MiB, nos termo já expostos supra, ao manifestar com clareza que não estaríamos perante qualquer tipo de endoftalmite infecciosa, mas antes tóxica, apesar de a sua probidade científica o impedir de atestar que não fora administrado Avastin, tendo em conta os dados ao seu dispor.

b) A impossibilidade estatística de que pudesse ter ocorrido qualquer contaminação microbiológica ou erro médico selectivo no próprio Bloco Operatório;

c) A conformidade com a composição química aprovada e a ausência de contaminação microbiológica de todas as seringas que se verificou terem Avastin e que foram preparadas no mesmo local e utilizadas para efeitos oftalmológicos nos dias 14 e 20 de Julho de 2009, antes e depois da data dos factos, sem quaisquer reacções adversas nos doentes (Ver nomeadamente o Relatório do Infarmed no Apenso I, sobretudo de fls. 18 a 25 e as Conclusões de fls. 46);

d) O afastamento da possibilidade de que as seringas encontradas num dos contentores do Bloco Operatório, contendo Avastin, pudessem ser das utilizadas na data dos factos, sendo antes provenientes da intervenção realizada em 14-7-2009, pelas razões expostas supra no Ponto B, alínea d);

e) A irrelevância da inviabilidade de obtenção de prova laboratorial positiva da ausência de Avastin nas seringas utilizadas para operar os ofendidos, ou da ausência nessas seringas e nos olhos dos ofendidos de qualquer microrganismo patológico capaz de provar lesões como as ocorridas, por a mera possibilidade teórica da presença de tal medicamento ou microrganismo não ser bastante para afastar as provas positivas decorrentes da avaliação clínica efectuada e validada pelos relatórios médicos elaborados, tal como é reflectido nos factos provados nºs 88, 103 e 104 (quanto ao carácter químico/tóxico da endoftalmite sofrida pelos ofendidos);

f) A irrelevância, para efeitos de possível contaminação bacteriológica, das condições em que era preparado o Avastin para aplicação oftalmológica, por estar mais uma vez em causa uma mera possibilidade teórica;

g) A irrelevância, para efeitos de causalidade das lesões sofridas pelos ofendidos, da eventual contaminação dos olhos de alguns deles por streptococcus pneumoniae, pelas razões expostas supra no Ponto C, alínea a);

h) A total inverosimilhança e ausência de prova da existência dum acto deliberado de adulteração ou substituição do produto administrado aos ofendidos, pese embora o telefonema anónimo recebido no HSM.

13 - Decorrendo a violação dos deveres de cuidado impostos à arguida SB da existência de troca de medicamentos, das regras da experiência e do que foi dado como provado a respeito dos deveres que sobre a mesma impendiam, no próprio Acórdão recorrido (Factos nº 106 a 108).

14 - Quanto ao facto não provado nº 10, está igualmente em causa o teor dos referidos factos dados como provados, tendo em conta as regras da experiência e aquilo que foi referido supra no Ponto E, a respeito da responsabilização do arguido HD.

15 - Quanto aos factos não provados nºs 11 e 12, deverá ter-se em conta o que resulta, para além do mais, dos autos de reconstituição e reportagem fotográfica de fls. 300 a 326 e de fls. 475 a 497.

16 - Quanto aos factos não provados nºs 13, 14 e 15, está em causa matéria relativa à imputação subjectiva, cuja prova deverá ser fundada em presunção natural, decorrente dos factos dados como provados no Acórdão recorrido a respeito das funções desempenhadas pelos arguidos e daquilo que os mesmos sabiam a respeito da potencial perigosidade dos produtos com que lidavam, conjugados com aquilo que deverá ser dado como provado em matéria de troca do medicamento utilizado.

17 - Quanto ao facto não provado nº 20 (facto provado nº 97), remete-se para aquilo que foi já referido supra, quanto à ausência de quaisquer razões para crer que a administração de Avastin não adulterado ou contaminado pudesse produzir lesões comos aquelas que foram detectadas nos ofendidos.

18 - Quanto ao facto não provado nº 22, está mais uma vez em causa a prova, já indicada, de que o produto tóxico administrado aos ofendidos não foi Avastin.

19 - Quanto ao factos não provados nºs 23, 24, 26, 27 e 28, relativos à imputação subjectiva do crime praticado, deveremos considerar que os actos e omissões objectivamente imputáveis aos arguidos nos permitem concluir, mais uma vez com recurso às regras da experiência, que os mesmos conheciam ou deviam conhecer aquilo que lhes seria exigível, tendo em vista evitar a ocorrência de situações como aquela que levou os ofendidos a sofrerem as lesões descritas no Acórdão recorrido, independentemente de quaisquer práticas incorrectas usualmente adoptadas no serviço onde exerciam funções.

20 - No que se refere ao facto provado nº 31, a redacção proposta baseia-se apenas na constatação de que a prova produzida nos autos não permite a certeza matemática de que o conteúdo de cada frasco de Avastin fosse exactamente de “4,4 ml”, em lugar dos “4 ml” indicados pelo próprio fabricante.

21 - No que se refere ao facto provado nº 78, a respectiva eliminação baseia-se na sua incompatibilidade com o facto não provado nº 8, que deverá passar a considerar-se provado, na redacção proposta supra.

22 - No que se refere ao facto provado nº 80, a redacção proposta baseia-se na necessidade de o conjugar com o facto não provado nº 10, que deverá passar a considerar-se provado.

23 - No que se refere ao facto provado nº 84 (facto não provado nº 16), a redacção proposta baseia-se na constatação de que o produto injectado nos olhos dos ofendidos não foi Avastin, tal como referido supra.

24 - No que se refere ao facto provado nº 97, a redacção proposta baseia-se na necessidade de o conjugar com o facto não provado nº 20, que deverá passar a considerar-se provado.

25 – Por fim, no que se refere ao facto provado nº 107, a redacção proposta baseia-se na necessidade de eliminar o erro notório que é integrado, face à prova produzida nos autos, pela asserção de que o bevacizumab será um fármaco “especialmente tóxico” que, “quando aplicado a nível oftalmológico”, verá “tal toxicidade potenciada”, “tratando-se de um citostático”.

26 – Isto quando resulta da prova produzida nos autos, inclusive da própria documentação farmacêutica junta em diversos pontos, que o bevacizumab (ou Avastin) é antes um anticorpo monoclonal com potencial anti-angiogénico, inibindo o crescimento de vasos sanguíneos através da neutralização do chamado VEGF.

27 - Não tendo toxicidade minimamente comparável à dos tradicionais citostásticos (que não distinguem as células cujo crescimento inibem), muito menos quando aplicado em doses minúsculas e nos olhos (em lugar de ser introduzido na corrente sanguínea, como sucede quando é usado para tratar o cancro).

28 - Em qualquer caso, independentemente das provas que impõem uma decisão diversa da recorrida quanto a múltiplos pontos da matéria de facto, em termos que serão certamente supridos por esse Venerando Tribunal, julga-se serem manifestas as contradições existentes entre diversos pontos da matéria de facto dada como provada e não provada, desde logo a respeito das características e suposta perigosidade do Avastin, quando utilizado “off-label” para fins oftalmológicos.

29 - Sendo tais contradições acrescidas quando o Tribunal recorrido procura fundamentar a sua conclusão de que será impossível saber aquilo que não foi administrado aos ofendidos em possibilidades meramente teóricas de eventual contaminação ou adulteração do produto injectado, em moldes que não têm qualquer apoio naquilo que foi dado como provado, ou nos meios de prova que o próprio Tribunal considerou terem sido relevantes para a sua decisão.

30 - Situação que se agrava ainda mais quando o Tribunal parece dar a entender que, na sua opinião, o próprio Avastin, ainda que não adulterado ou contaminado, poderia ter provocado lesões como as causadas aos ofendidos, em circunstâncias como aquelas a que se referem os autos.

31 - Sem basear essa opinião em qualquer prova ou raciocínio, para além duma irracional desconfiança a respeito da utilização “off-label” de medicamentos, que manifestamente considera potenciadora de efeitos nefastos indiscriminados e multiformes, mesmo estando em causa uma prática instituída há vários anos e testada na prática, em condições possivelmente mais elucidativas e esclarecedoras do que os ensaios clínicos efectuados com vista à obtenção de autorização para comercialização de medicamentos, tal como aqueles que terão sido efectuados quanto ao Lucentis (que, como vimos, permitiram ainda assim detectar possíveis consequências adversas em tudo similares às do Avastin, como seria de esperar).

32 - Podendo assim considerar-se, salvo melhor opinião, ter o Acórdão recorrido incorrido em contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão proferida, bem como em erro notório na apreciação da prova, em termos susceptíveis de integrar as previsões das alíneas b) e c) do nº 2 do art. 410º do CPP.

33 - Tendo estes vícios, centrados fundamentalmente na fundamentação da imputação objectiva da prática dos factos aos arguidos, por acção ou omissão, impedido que o Tribunal procurasse sequer efectuar e fundamentar a imputação subjectiva da prática desses factos, nos termos em que deveria tê-lo feito.

 34 - Algo que não poderia deixar de conduzir, salvo melhor opinião, à condenação desses arguidos pela prática dos crimes que lhes foram imputados na pronúncia.

35 – Nestes termos, julga-se não poder ser mantida a decisão ora impugnada, desde logo em matéria de facto, devendo a mesma ser alterada nos termos propugnados e naqueles que serão doutamente supridos por esse Venerando Tribunal.

36 - Com a consequente revogação do Acórdão recorrido e sua substituição por outro que condene os arguidos pelos crimes pelos quais foram pronunciados.

 

4. O recurso foi admitido por despacho proferido a 05/01/2015.(v.fls.3946).

5. Responderam os arguidos, nos termos constantes de fls. 3950 a 4022 e fls. 4099 a 4171, sustentando doutamente a improcedência do recurso.

            6. Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos, emitindo o douto parecer que consta de fls. 4179, sustentando o provimento do recurso.

7. Cumprido o disposto no artº 417 nº2 do C.P.Penal, os recorridos vieram responder, nos termos constantes de fls.4163 a 4255 e fls. 4257, reiterando a manutenção do decidido no Acórdão recorrido.

8. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir:

II

9. Na primeira instância foram dados como provados e não provados os seguintes factos:

a) Factos provados:

(…….)

9. 2- Consta da fundamentação do acórdão, quantoà matéria de direito, o seguinte:

III- APRECIAÇÃO DE DIREITO

3-1 Responsabilidade jurídico-penal:

Os dois arguidos vêm pronunciados como autores materiais, e em concurso efetivo, de seis crimes de ofensa á integridade física por negligência p.p. pelo artº 148 nº1 e 3 do C. Penal

Preceitua o artigo 148º, Ofensa à integridade física por negligência:

1 — Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 — No caso previsto no número anterior, o tribunal pode dispensar de pena quando:

a) O agente for médico no exercício da sua profissão e do acto médico não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias; ou

b) Da ofensa não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 3 dias.

3 — Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

4 — O procedimento criminal depende de queixa.

Verificar-se-ão estes requisitos no caso sub judice?

Vejamos:

O tribunal deu como provado nos artigos 106 (Os arguidos sabiam que os fármacos existentes na UPC, consistentes em citotóxicos e anticorpos monoclonais são altamente perigosos e exigem uma especial atenção no seu manuseamento e preparação pois que se aplicados fora das situações clínicas para que estão indicados são passíveis de provocar lesões graves e de carácter permanente); 107 (Os arguidos sabiam que o tabuleiro de alíquotas que a arguida manuseava continha fármacos especialmente tóxicos (incluindo o Bevacizumab) e que quando aplicados a nível oftalmológico, vêem tal toxicidade potenciada, porquanto tratando-se de citostáticos inibem o crescimento de vasos sanguíneos produzindo a morte dos tecidos e, consequentemente a destruição do sentido da visão); 108 (Sabia a arguida SB que teria de certificar-se que o fármaco que selecionara como Bevacizumab era efetivamente esse, ciente que estava dos efeitos devastadores dos demais fármacos quando aplicados intravitreo.).

O artº. 10º do CP prescreve:

1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.

2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.

3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.

Não existem quaisquer dúvidas do ponto de vista jurídico que os crimes imputados aos arguidos são caraterizados como crimes de resultado.

E, porque o tipo legal de crime em apreço compreende um certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo, mas também a omissão da ação adequada a evitá-lo, salvo se for outra a intenção da lei.

Mas a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recaír um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado - artº 10º-2 do CP vigente.

Tendo presente tudo isto, os artigos (106, 107 e 108) acima transcritos integra alguma das situações descritas no referido artº. 10º do CP?

No entender do Tribunal, claro que não!

É que os factos apurados apenas provam que os arguidos, tais como qualquer outro funcionário da farmácia deve saber, face às funções específicas que exercem, que os fármacos existentes na UPC, consistentes em citotóxicos e anticorpos monoclonais são altamente perigosos e exigem uma especial atenção no seu manuseamento e preparação pois que se aplicados fora das situações clínicas para que estão indicados são passíveis de provocar lesões graves e de carácter permanente. E que os arguidos, bem como qualquer farmacêutico, ou Técnico de Diagnóstico e Terapêutica, sabiam que o tabuleiro de alíquotas quando o manuseavam continha fármacos especialmente tóxicos (incluindo o Bevacizumab) e que quando aplicados a nível oftalmológico, vêem tal toxicidade potenciada, porquanto tratando-se de citostáticos inibem o crescimento de vasos sanguíneos produzindo a morte dos tecidos e, consequentemente a destruição do sentido da visão.

Mas isto são meros factos notórios e evidentes que isolados de outros elementos não têm qualquer implicação ao nível do resultado ilícito.  E já iremos ver porquê, face aos factos que resultaram como não provados.

Por último, e quanto ao último facto também não releva, tais como os anteriores, porque não respeita somente à arguida SB. Qualquer profissional da farmácia, tal como a arguida SB sabia, que quando manipulava os citotóxicos teria de certificar-se que o fármaco que selecionara como Bevacizumab era efetivamente esse, ciente que estava dos efeitos devastadores dos demais fármacos quando aplicados intravítreo. Efetivamente o saber tal facto em nada releva para o resultado. Onde está verificada a causalidade?

Em nenhum facto apurado.

Na verdade, os factos que poderiam preencher a respetiva causalidade foram considerados não provados, e passam-se de imediatos a enuncia-los mantendo-se a ordem numérica respetiva:

8. Que agindo de forma apressada atento o adiantado da hora e a sua hora de saída e eventualmente equivocada na leitura da designação manuscrita do fármaco na alíquota em causa, a arguida consciente que qualquer desatenção poderia culminar numa troca de fármacos e que tal, atenta a toxicidade do produto, acarretaria consequências danosas muito graves à integridade física dos doentes, possibilidade com que se conformou, pegou numa alíquota contendo fármaco diferente de Bevacizumab e com ela produziu 8 seringas.

9. Que assim preparadas as seringas oftalmológicas a que a arguida acoplou as agulhas, a mesma, contrariando o prescrito no Manual de Procedimentos que determina a colocação do rótulo na própria seringa, rotulou com os rótulos grandes que lhe haviam sido entregues pelo arguido HD, as mangas de plástico onde colocara as seringas.

10. Que quando foi limpa a câmara de fluxo de ar laminar e a arguida saiu da Sala Limpa permitindo que a assistente operacional efetuasse a limpeza da mesma, e já na sala de apoio, o arguido HD deveria ter diligenciado pela validação dos preparados como era da sua competência e obrigação.

13.Que ao agir como descrito os arguidos não levaram a efeito as etapas de produção técnica e eticamente exigíveis, originando erros seguramente evitáveis caso tivessem preconizado as boas práticas, representando como possível a danosidade das suas condutas e as nefastas consequências de tais atos, atuando em violação dos mais elementares deveres de cuidado da profissão.

14.Que, ao deixar ao critério da arguida SB a seleção do fármaco adequado à preparação do medicamento, ao não validar os manipulados e não efetuar o seu acondicionamento final, o arguido HD desinteressou-se totalmente pela atividade profissional que desenvolve, destituiu-se das competências e funções que lhe estão atribuídas sabendo que tal conduta aumentava o risco de troca de medicamento, o que a suceder, como sucedeu, determinaria graves lesões nos doentes a quem o medicamento se destinava, nomeadamente colocaria sérios riscos de lesão da visão dos mesmos.

15.Que de igual forma a arguida SB ao praticar atos da competência do farmacêutico, atuando de forma apressada, desprovida de rigor e da atenção que se lhe impunha em face da elevada tecnicidade das suas funções e da elevada perigosidade dos fármacos que manuseava sabia que aumentava seriamente as probabilidades de troca de fármacos, o que a suceder, como sucedeu, colocaria em risco a saúde dos doentes a quem tal fármaco se destinava, facto com que se conformou.

23.Que o arguido HD sabia que, de acordo com o Manual de Procedimentos vigente na UPC que necessariamente conhecia, tanto mais que continha procedimentos de carácter obrigatório que o próprio arguido ajudara a compilar, era, como farmacêutico da Unidade da sua competência a seleção da alíquota adequada à preparação pela TDT do medicamento Avastin, cujo mapa de preparação o arguido elaborara e bem assim a posterior validação do preparado, procedimentos que omitiu representando como possível as consequências daí decorrentes e aceitando-as.

24.Que a arguida não se certificou dos rótulos apostos nas alíquotas e fiando-se na aparência da substância contida na alíquota que selecionou fez oito preparados de substância de fármaco que não Avastin, prevendo como possível e aceitando que a tal substância a mesma não correspondesse, sabendo que com tal atuação poderia prejudicar de forma muito grave a saúde de terceiros, impossibilitando-os de utilizar a visão como veio a suceder. 

27.Que embora pudessem e devessem ter tomado precauções para que as seringas em apreço fossem objeto de diferente forma de preparação, consentânea com o exigido no Manual de Procedimentos, os arguidos não o fizeram sendo a inobservância desse dever que aos profissionais com os conhecimentos técnicos e competências dos arguidos é exigido, facilitou a troca de fármacos cuja aplicação foi diretamente causal das graves lesões que os ofendidos vieram a sofrer e que afetam gravemente a sua capacidade para o trabalho e a possibilidade de usufruição do sentido da visão.

28.Que os arguidos atuaram de forma livre e conscientemente, em manifesta desconformidade com os procedimentos técnicos instituídos e a que estavam obrigados sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.

Seguindo de perto os ensinamentos do prof. Eduardo Correia, a conduta negligente e o nexo de causalidade com o evento são evidentes nos seguintes casos:

O dever, cuja violação a negligência supõe, consiste antes de tudo em o agente não ter usado aquela diligência exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento (não está provado como acabamos de verificar);

Estes deveres podem estar particularmente ligados pelo uso e pelas normas jurídicas ao exercício de um certo ofício, profissão ou atividade (efetivamente, como vimos, estes deveres estão particularmente ligados ao manuseamentos de manipulados existentes na farmácia, mas que não resultou demonstrado que os arguidos tivessem violado qualquer dever - o ter conhecimento dos mesmos não basta, evidentemente, é necessário a exista a violação desses deveres que são causa de um resultado).

Portanto, para que haja negligência é necessário que tenha lugar uma atividade que viole os usos ou costumes da experiência e que a produção do evento seja da experiência e que a previsão do evento seja previsível e só a omissão desse dever impeça a sua previsão ou a sua justa previsão.

É um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objectivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar á negligência, ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-los.

Para que haja censura a título de negligência é necessário que o agente possa ou seja capaz segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever corretamente a realização do tipo legal de crime.

Por fim, e ainda segundo os ensinamentos do prof. Eduardo Correia, as disposições do Código Penal referentes á culpa, mostram que, pelo menos em princípio, não é necessário nem correto recorrer-se ao pensamento da responsabilidade objectiva ou pelo evento.

O juízo de censura em que se estrutura a culpa não se esgota numa relação objectiva do facto com o agente sob a forma de dolo ou negligência, mas supõe sempre a possibilidade de se exigir do agente outro comportamento.

Há causalidade nas ações por negligência quando o resultado é uma consequência adequada da conduta.

Parece, pois, evidente a falta de qualquer nexo de causalidade entre as condutas dos arguidos e as lesões oculares que os ofendidos vieram a sofrer nas intervenções cirúrgicas a que foram submetidos, atendendo aos factos apurados e não apurados.

Diremos ainda:

Todo o profissional, independentemente da área à qual pertença, deve possuir os conhecimentos básicos, tanto práticos quanto teóricos, da sua profissão, no intuito de exercê-la de acordo com os princípios de uma conduta cautelosa, perita e eficiente. Isso ser-lhe-á útil no sentido de não prejudicar os seus futuros clientes, bem como para o seu próprio nome, a sua carreira e a classe profissional que representa.

No caso concreto, dos profissionais farmacêuticos (farmacêutico e Técnica de Diagnóstico e terapêutica) é exigida uma conduta bastante rigorosa, uma vez que trabalham diretamente com bens cujo valor vai além da própria possibilidade de aferição, como sejam, a vida, a saúde e a integridade psicofísica.

A culpa destes profissionais, perante o direito, é uma culpa comum e não uma culpa especial, como querem alguns, o que diferenciaria sua conduta dos demais indivíduos. Também a responsabilidade que lhe é atribuída é aquela idêntica para todos; diferente, apenas, é a natureza de ocorrência da culpa, pois esta resulta do exercício de uma profissão, da profissão farmacêutica.

A responsabilidade em causa, depois de passar pelos diferentes estágios rege-se hoje pelos mesmos princípios da responsabilidade civil em geral, segundo a qual, quem pratica um ato em estado de sã consciência e capacidade, com liberdade, intencionalidade ou por mera culpa, tem o dever de reparar as consequências danosas da sua conduta.

Todavia, ao determinar-se a responsabilidade dos profissionais em causa, mister se faz um tipo de cuidado específico e, este, diz respeito a uma verificação efetiva se os danos ocorridos foram causados pelos atos decisórios das pessoas em causa ou se advieram por fatores externos à sua vontade.

Tem a ver com o que os estudiosos nesta matéria chamam de resultados imprevisíveis ou previsíveis.

Entendem que para um resultado, um insucesso ou acidente ser considerado imprevisível não basta que o indivíduo não o tenha previsto, ou que não possa ser para ele previsível, já que para outra pessoa, se colocada em seu lugar, o teria sido.

    Portanto, para deduzir o conceito de imprevisibilidade, necessário se faz, primeiramente, delimitar o seu oposto, ou seja, o previsível e se possível, ir mais além e atingir o terreno do objetivamente previsível.

    Um resultado é objetivamente previsível quando puder ser representado a uma pessoa posta no lugar do agente, antes do começo da realização da ação, fornecendo-lhe os dados referentes ao caso concreto conhecido pelo autor, dentro das possibilidades de conhecimento de uma pessoa inteligente.

A negligência, como referia Eduardo Correia (Eduardo Correia, in Direito Criminal I, Reimpressão de 1968, p. 421) é, antes de mais, “a omissão de um dever jurídico de cuidado ou diligência”. Mas, acrescentava o referido autor: “a omissão do dever objetivo de cuidado, adequado a evitar a realização do tipo legal de crime, não justifica só por si, efetivamente, a censura a título de negligência. É ainda necessário que o agente possa ou seja capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever corretamente a realizações do tipo legal de crime”.

Assim, e atento o disposto no art. 15º do CP a negligência traduzir-se-á na omissão ou violação (quer por ação quer por omissão) dos deveres de diligência e cuidado a que um agente está obrigado e de que é capaz, tendo em conta as circunstâncias do caso, os seus conhecimentos e capacidades pessoais.

Tal como acontece quanto aos crimes dolosos, também nos crimes negligentes existe uma ação (ou omissão) típica, ilícita, e culposa (neste sentido, Teresa Beleza, in Direito Penal, 2º Vol., p. 571 e ss.).

São pois elementos da ofensa à integridade física sob a forma negligente a conduta humana (ação ou omissão), infração do dever objetivo de cuidado, possibilidade de imputação objetiva do resultado (ofensa no corpo ou saúde) à conduta contrária ao dever, ausência de causa de justificação da conduta e autor imputável e com as faculdades, conhecimento e experiência que lhe permitam reconhecer o dever de cuidado objetivamente exigido e prever o curso causal que conduz ao resultado concreto produzido”.

Como já se disse supra, segundo o art. 15º do CP, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

Representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas atua sem se conformar com essa realização;

Não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

No caso da alínea a) fala-se em negligência consciente, visto que o agente chegou a prever a realização do facto considerado crime; e no caso da alínea b) diz-se que a negligência é inconsciente, pois o agente nem chegou a prever aquela realização (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, i, Reimpressão de 1971, pág. 430, nota 2; Ac. Da RC de 16.11.88, in CJ, ano XIII, tomo 5, p. 97; Ac. STJ de 6.05.1993, sumariado em Jurisprudência Penal, Simas Santos e Leal Henriques, pág. 47).

Posto isto, “quid iuris” no caso em apreço?

Inexistem elementos indiciários suficientes de que os arguidos tenham atuado sem observâncias dos cuidados mínimos exigíveis, ou seja, que nos termos do artº. 15º do CP não procederam com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estavam obrigados e de que eram capazes, no sentido de representarem como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuaram sem se conformarem com essa realização …”.

Na verdade, da prova já criteriosamente analisada nas suas várias vertentes resultam que terá inexistido qualquer incúria por parte dos arguidos. E não é por acaso que o próprio processo disciplinar instaurado ao arguido HD veio a culminar em arquivamento por não se ter encontrado matéria fáctica para responsabilizar o arguido.

Uma certeza os autos parecem apontar, é que as fatalidades que atingiram os ofendidos, infelizmente, resultaram de causas de todo impossíveis de identificar tais as variáveis e probabilidades em causa.

Aqui chegados, necessário será concluir inexistirem fundamentos bastantes que legitimem a constatação de que estamos perante atuação deficiente e negligente dos Arguidos.

Pelo exposto a decisão só pode ser uma: absolvição dos arguidos.

10. Como é amplamente consabido, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente e por elas limitado - veja-se o Ac. do S.T.J. de 19/4/94, C.J., Ano II, Tomo II, pg. 189 e ainda, entre muitos outros, os Ac. do S.T.J. de 29/2/96, proc. n.º 46740, de 21/4/97, proc. n.º 220/97, de 2/10/97, proc. n.º 686/97 e de 27/5/98, proc. n.º 423/98, no C.P.P. Anotado de Simas Santos e Leal Henriques. 2ª Ed., pag. 808, 795 e 797, respectivamente -  isto sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença prevenidos no art. 410 n.º2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” - Ac. do Plenário das secções do STJ de 19.10.95, in D.R. I-A Série de 28.12.95.


No caso, o recorrente aporta, na minuta recursória, em sede de conclusões, as seguintes questões:

A – Impugnação da matéria de facto.

B – verificação do vício de contradição insanável da fundamentação da matéria de facto dada como não provada, ou mesmo em erro notório na apreciação da prova, especificamente: contradição entre os factos dados como provados sob os pontos 88; 103 e 104 e os não provados a respeito da natureza e características das lesões sofridas pelos ofendidos e 61; 68; 69 e 72 dos factos provados e os não provados.

C - se a conduta adoptada pelos arguidos face aos factos dados como provados sob os pontos 106 a 108, é suficiente para a condenação dos mesmos pela prática dos imputados crimes de ofensas à integridade física por negligência p.p. peloo artº  148 nºs 1 e 3 , com referência aos artºs 10º e 15º , todos do C.Penal.


10.1 - Da Impugnação da matéria de facto:

Analisando o texto da motivação do recurso e as conclusões verifica-se que o recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando incorrectamente julgados os seguintes factos:

a) À asserção de que o produto injectado nos olhos dos ofendidos nos autos não foi o medicamento Avastin (bevacizumab);

b) À noção complementar de que as lesões provocadas na visão desses mesmos ofendidos, na sequência das injecções oculares efectuadas no dia 17-7-2009, foram provocadas por uma “endoftalmite química/tóxica”, por contraposição a uma doença infecciosa, nomeadamente de origem bacteriana;

c) À conclusão, retirada dos factos precedentes, de que as lesões sofridas pelos ofendidos derivaram do facto de lhes ter sido injectado nos olhos produto “tóxico” diverso do Avastin, na sequência de uma troca dos medicamentos a utilizar nas operações, ocorrida aquando da preparação desses medicamentos no Hospital de Santa Maria;

d) À imputação dessa troca de medicamentos à arguida SB, com consequente violação dos deveres de cuidado que lhe cabia observar no exercício das respectivas funções profissionais, bem como a subsequente imputação ao arguido HD de responsabilidades pelo não exercício adequado dos deveres de supervisão da conduta da arguida SB que lhe cabiam, enquanto farmacêutico responsável pela produção dos concretos medicamentos em questão.

Considera que devereriam ter sido considerados provados, os seguintes factos:

– No tabuleiro de alíquotas encontrava-se uma única alíquota de Bevacizumab, que havia sido preparada com o remanescente das preparações efectuadas, no dia de 15.07.2009 (Este facto corresponde ao art. 57º da acusação, que o Acórdão recorrido não deu como provado ou não provado, pese embora o constante do nº 69 dos factos provados, “correspondente” ao art. 56º da acusação).

- Agindo de forma apressada atento o adiantado da hora e a sua hora de saída e eventualmente equivocada na leitura da designação manuscrita do fármaco na alíquota em causa, a arguida consciente que qualquer desatenção poderia culminar numa troca de fármacos e que tal, atenta a toxicidade do produto, acarretaria consequências danosas muito graves à integridade física dos doentes, pegou numa alíquota contendo fármaco diferente de Bevacizumab e com ela produziu 8 seringas.

- Quando foi limpa a câmara de fluxo de ar laminar e a arguida saiu da Sala Limpa permitindo que a assistente operacional efectuasse a limpeza da mesma e já na sala de apoio, o arguido HD deveria ter diligenciado pela validação dos preparados como era da sua competência e obrigação.

- De acordo com o que é a prática laboratorial comum, a preparação de uma seringa demora entre 4 a 5 minutos, num total mínimo, para a feitura de 8 seringas, de 36 minutos.

- Tendo em conta o tempo despendido na preparação das 8 seringas de medicamento e tendo em linha de conta que a arguida ainda limpou a câmara de fluxo de ar laminar, se teve de desequipar e saiu do local acompanhada da assistente auxiliar que ainda procedera a limpeza da sala limpa, e que o relógio de ponto se situa no 2º piso do edifício, implicando descer por escadas 5 andares, constata-se que a mesma na reconstituição efectuada demorou 27 m 48s na realização do preparado, tempo superior ao gasto na efectiva preparação efectuada.

- Ao agir como descrito os arguidos não levaram a efeito as etapas de produção técnica e eticamente exigíveis, originando erros seguramente evitáveis caso tivessem preconizado as boas práticas, representando como possível a danosidade das suas condutas e as nefastas consequências de tais actos, actuando em violação dos mais elementares deveres de cuidado da profissão.

- Ao deixar ao critério da arguida SB a selecção do fármaco adequado à preparação do medicamento, ao não validar os manipulados e não efectuar o seu acondicionamento final, o arguido HD desinteressou-se totalmente pela actividade profissional que desenvolve, destituiu-se das competências e funções que lhe estão atribuídas sabendo que tal conduta aumentava o risco de troca de medicamento, o que a suceder, como sucedeu, determinaria graves lesões nos doentes a quem o medicamento se destinava, nomeadamente colocaria sérios riscos de lesão da visão dos mesmos.

- De igual forma a arguida SB ao praticar actos da competência do farmacêutico, actuando de forma apressada, desprovida de rigor e da atenção que se lhe impunha em face da elevada tecnicidade das suas funções e da elevada perigosidade dos fármacos que manuseava sabia que aumentava seriamente as probabilidades de troca de fármacos, o que a suceder, como sucedeu, colocaria em risco a saúde dos doentes a quem tal fármaco se destinava.

- Efectuados exames complementares às amostras biológicas recolhidas aos ofendidos: ecografias e estudos electro-fisiológicos (avaliação da actividade eléctrica da retina e do nervo óptico), retinografias e angiografias verificou-se que, com excepção para a MJ, os demais ofendidos após a intervenção de 17.07.2009, sofriam agora de isquémia da retina (ausência de aporte sanguíneo a circulação retineana com consequente morte celular) - patologia não compatível com a administração de Avastin.

- Sendo que a causa das graves e permanentes lesões provocadas nos ofendidos consistentes na privação do sentido da visão foi a administração de fármaco de alta danosidade, não adequado às patologias que sofriam, originadas pela troca de fármacos ocorrida na UPC aquando da preparação do medicamento pela arguida SB sob a direcção do arguido HD.

- Sabia o arguido HD que, como farmacêutico da Unidade, seria da sua competência a selecção da alíquota adequada à preparação pela TDT do medicamento Avastin, cujo mapa de preparação o arguido elaborara e bem assim a posterior validação do preparado, procedimentos que omitiu representando como possível as consequências daí decorrentes e aceitando-as.

- Todavia, a arguida não se certificou dos rótulos apostos nas alíquotas e fiando-se na aparência da substância contida na alíquota que seleccionou fez oito preparados de substância de fármaco que não Avastin, prevendo como possível que a tal substância a mesma não correspondesse, sabendo que com tal actuação poderia prejudicar de forma muito grave a saúde de terceiros, impossibilitando-os de utilizar a visão como veio a suceder. 

- Os arguidos sabiam que a intervenção de dois técnicos (o farmacêutico e Técnico de diagnostico e terapêutica) no ciclo de produção do Avastin permitiria um duplo controlo e maior segurança na manipulação do fármaco usado, tanto mais que os fármacos existentes na UPC, constituindo citostáticos monoclonais são altamente tóxicos, exigindo escrupuloso cumprimento dos procedimentos devidos.

- Embora pudessem e devessem ter tomado precauções para que as seringas em apreço fossem objecto de diferente forma de preparação, os arguidos não o fizeram sendo a inobservância desse dever que aos profissionais com os conhecimentos técnicos e competências dos arguidos é exigido, facilitou a troca de fármacos cuja aplicação foi directamente causal das graves lesões que os ofendidos vieram a sofrer e que afectam gravemente a sua capacidade para o trabalho e a possibilidade de usufruição do sentido da visão.

- Os arguidos actuaram de forma livre e conscientemente, em manifesta desconformidade com os procedimentos técnicos instituídos e a que estavam obrigados sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.

- Devem para além disso ser correspondentemente alterados os factos dados como provados nos nºs 31, 78, 80, 84, 97, 98 e 107 do Acórdão, de modo a que se adequem aos correspondentes da acusação e pronúncia, tendo em conta a prova efectivamente produzida nos autos, desde logo nos seguintes termos:

a) O facto nº 31 passe a referir um volume de “cerca de 4,4 ml”;

b) O facto nº 78 seja eliminado, face àquilo que deverá considerar-se provado, nos termos referidos supra;

c) O facto nº 80 seja modificado de acordo com o referido supra quanto ao facto não provado nº 10;

d) A redacção do facto nº 84 seja substituída pela constante do correspondente art. 72º da acusação;

e) A redacção do facto nº 97 seja substituída pela constante do art. 84º da acusação (“patologia não compatível com a administração de Avastin”);

f) A redacção do facto nº 107 seja substituída pela seguinte: “Os arguidos sabiam que o tabuleiro de alíquotas que a arguida manuseava continha fármacos especialmente tóxicos e que quando aplicados a nível oftalmológico vêm tal toxicidade potenciada, porquanto tratando-se de citostáticos produzem a morte dos tecidos e, consequentemente, a destruição do sentido da visão”.

- Sendo eliminados quaisquer outros factos em contradição com aqueles que deverão vir a considerar-se provados.

- As alterações pretendidas em relação à matéria de facto dada como provada são impostas, no entender do Ministério Público, pelas provas já referidas supra e pelas próprias contradições existentes entre os factos dados como provados e não provados no Acórdão.

- Em concreto, no que se refere ao facto que foi totalmente desconsiderado no Acórdão recorrido, a saber, que “No tabuleiro de alíquotas encontrava-se uma única alíquota de Bevacizumab, que havia sido preparada com o remanescente das preparações efectuadas, no dia de 15.07.2009”, foi para além do mais descurada a prova resultante do inventário de fls. 231, dos autos de reconstituição de alíquota de fls. 444 a 449 e dos elementos documentais constantes do Apenso IV-G em que essa operação de reconstituição se baseou, devendo ter-se em conta aquilo que foi referido supra no Ponto D quanto a esta matéria.

- Quanto ao facto não provado nº 8, a existência de uma alíquota contendo efectivamente Avastin no tabuleiro utilizado pela arguida SB deverá ser conjugada com a abundante prova constante dos autos e produzida em julgamento, da qual decorre inequivocamente que o produto administrado aos ofendidos não foi Avastin, quer por este produto não ser passível de produzir lesões tão graves na saúde como as que foram documentadas, quer por não haver quaisquer indícios minimamente cogentes ou sequer plausíveis de que pudesse ter sido administrado Avastin adulterado ou microbiologicamente contaminado, em moldes susceptíveis de provocar as referidas lesões.

- Em termos que nos levarão necessariamente a concluir ter existido uma troca de medicamentos, tal como foi referido na acusação e pronúncia e indevidamente dado como não provado no Acórdão recorrido.

- A respeito destas matérias, poderemos indicar em concreto, sem prejuízo da totalidade das provas já referidas e analisadas no corpo do presente recurso:

a) A opinião unânime dos médicos ouvidos nos autos, abundantemente ilustrada:

- pela Drª MF, no depoimento por si prestado no dia 24-5-2012 (ver sobretudo os esclarecimentos prestados por esta médica entre os 7 m 25 s e os 8 m 5 s, nos quais refere que “viu logo que não era uma endoftalmite infecciosa”, bem como entre os 16 m e 10 s e os 17 m e 30 s, nos quais esclarece as questões relativas à existência de pus no olho, tudo por referência às declarações gravadas na sessão de audiência, iniciadas às 11 h, 01 m e 37 s desse dia);

- pelo Dr. JC, no depoimento por si prestado no dia 9-2-2012 (ver sobretudo os esclarecimentos prestados por este médico entre os 23 m 24 s e os 24 m 45 s, entre os 48 m 30 s e os 52 m 07 s, entre a 1 h o1 m 50 s e a 1 h 2 m 35 s e entre a 1 h 19 m 20 s e a 1 h 19 m e 41 s, nos quais refere que “não era uma endoftalmite séptica”, “o problema não é infeccioso”, “uma endoftalmite bacteriana é muito dramática, cheia de pus, não era o caso”, “exclui a origem bacteriológica” das lesões dos ofendidos, tudo por referência às declarações gravadas na sessão de audiência, iniciadas às 15 h, 33 m e 14 s desse dia);

- pelo Dr. MG, no depoimento por si prestado no dia 26-3-2012 (ver sobretudo os esclarecimentos prestados por este médico entre os 10 m e 16 s e os 10 m 40 s, nos quais refere que “a minha opinião e de todos os colegas é de que não foi aplicado Avastin”, por referência às declarações gravadas na sessão de audiência, iniciadas às 18 h, 15 m e 56 s desse dia);

- pelo Dr. AT, no depoimento por si prestado no dia 16-4-2012 (ver sobretudo os esclarecimentos prestados por este médico entre os 55 m e 13 s e os 55 m e 56 s e entre os 56 m 00 s e os 56 m 41 s, nos quais refere que “não foi administrado Avastin” e que “a endoftalmite foi tóxica”, tudo por referência às declarações gravadas na sessão de audiência, iniciadas às 10 h, 23 m e 41 s desse dia);

- pela Drª MB no depoimento por si prestado no dia 9-2-2012, conforme foi já detalhado supra;

- pelo próprio Prof. MiB, nos termo já expostos supra, ao manifestar com clareza que não estaríamos perante qualquer tipo de endoftalmite infecciosa, mas antes tóxica, apesar de a sua probidade científica o impedir de atestar que não fora administrado Avastin, tendo em conta os dados ao seu dispor.

b) A impossibilidade estatística de que pudesse ter ocorrido qualquer contaminação microbiológica ou erro médico selectivo no próprio Bloco Operatório;

c) A conformidade com a composição química aprovada e a ausência de contaminação microbiológica de todas as seringas que se verificou terem Avastin e que foram preparadas no mesmo local e utilizadas para efeitos oftalmológicos nos dias 14 e 20 de Julho de 2009, antes e depois da data dos factos, sem quaisquer reacções adversas nos doentes (Ver nomeadamente o Relatório do Infarmed no Apenso I, sobretudo de fls. 18 a 25 e as Conclusões de fls. 46);

d) O afastamento da possibilidade de que as seringas encontradas num dos contentores do Bloco Operatório, contendo Avastin, pudessem ser das utilizadas na data dos factos, sendo antes provenientes da intervenção realizada em 14-7-2009, pelas razões expostas supra no Ponto B, alínea d);

e) A irrelevância da inviabilidade de obtenção de prova laboratorial positiva da ausência de Avastin nas seringas utilizadas para operar os ofendidos, ou da ausência nessas seringas e nos olhos dos ofendidos de qualquer microrganismo patológico capaz de provar lesões como as ocorridas, por a mera possibilidade teórica da presença de tal medicamento ou microrganismo não ser bastante para afastar as provas positivas decorrentes da avaliação clínica efectuada e validada pelos relatórios médicos elaborados, tal como é reflectido nos factos provados nºs 88, 103 e 104 (quanto ao carácter químico/tóxico da endoftalmite sofrida pelos ofendidos);

f) A irrelevância, para efeitos de possível contaminação bacteriológica, das condições em que era preparado o Avastin para aplicação oftalmológica, por estar mais uma vez em causa uma mera possibilidade teórica;

g) A irrelevância, para efeitos de causalidade das lesões sofridas pelos ofendidos, da eventual contaminação dos olhos de alguns deles por streptococcus pneumoniae, pelas razões expostas supra no Ponto C, alínea a);

h) A total inverosimilhança e ausência de prova da existência dum acto deliberado de adulteração ou substituição do produto administrado aos ofendidos, pese embora o telefonema anónimo recebido no HSM.

- Decorrendo a violação dos deveres de cuidado impostos à arguida SB da existência de troca de medicamentos, das regras da experiência e do que foi dado como provado a respeito dos deveres que sobre a mesma impendiam, no próprio Acórdão recorrido (Factos nº 106 a 108).

- Quanto ao facto não provado nº 10, está igualmente em causa o teor dos referidos factos dados como provados, tendo em conta as regras da experiência e aquilo que foi referido supra no Ponto E, a respeito da responsabilização do arguido HD.

- Quanto aos factos não provados nºs 11 e 12, deverá ter-se em conta o que resulta, para além do mais, dos autos de reconstituição e reportagem fotográfica de fls. 300 a 326 e de fls. 475 a 497.

- Quanto aos factos não provados nºs 13, 14 e 15, está em causa matéria relativa à imputação subjectiva, cuja prova deverá ser fundada em presunção natural, decorrente dos factos dados como provados no Acórdão recorrido a respeito das funções desempenhadas pelos arguidos e daquilo que os mesmos sabiam a respeito da potencial perigosidade dos produtos com que lidavam, conjugados com aquilo que deverá ser dado como provado em matéria de troca do medicamento utilizado.

- Quanto ao facto não provado nº 20 (facto provado nº 97), remete-se para aquilo que foi já referido supra, quanto à ausência de quaisquer razões para crer que a administração de Avastin não adulterado ou contaminado pudesse produzir lesões comos aquelas que foram detectadas nos ofendidos.

- Quanto ao facto não provado nº 22, está mais uma vez em causa a prova, já indicada, de que o produto tóxico administrado aos ofendidos não foi Avastin.

- Quanto ao factos não provados nºs 23, 24, 26, 27 e 28, relativos à imputação subjectiva do crime praticado, deveremos considerar que os actos e omissões objectivamente imputáveis aos arguidos nos permitem concluir, mais uma vez com recurso às regras da experiência, que os mesmos conheciam ou deviam conhecer aquilo que lhes seria exigível, tendo em vista evitar a ocorrência de situações como aquela que levou os ofendidos a sofrerem as lesões descritas no Acórdão recorrido, independentemente de quaisquer práticas incorrectas usualmente adoptadas no serviço onde exerciam funções.

- No que se refere ao facto provado nº 31, a redacção proposta baseia-se apenas na constatação de que a prova produzida nos autos não permite a certeza matemática de que o conteúdo de cada frasco de Avastin fosse exactamente de “4,4 ml”, em lugar dos “4 ml” indicados pelo próprio fabricante.

- No que se refere ao facto provado nº 78, a respectiva eliminação baseia-se na sua incompatibilidade com o facto não provado nº 8, que deverá passar a considerar-se provado, na redacção proposta supra.

- No que se refere ao facto provado nº 80, a redacção proposta baseia-se na necessidade de o conjugar com o facto não provado nº 10, que deverá passar a considerar-se provado.

- No que se refere ao facto provado nº 84 (facto não provado nº 16), a redacção proposta baseia-se na constatação de que o produto injectado nos olhos dos ofendidos não foi Avastin, tal como referido supra.

- No que se refere ao facto provado nº 97, a redacção proposta baseia-se na necessidade de o conjugar com o facto não provado nº 20, que deverá passar a considerar-se provado.

– Por fim, no que se refere ao facto provado nº 107, a redacção proposta baseia-se na necessidade de eliminar o erro notório que é integrado, face à prova produzida nos autos, pela asserção de que o bevacizumab será um fármaco “especialmente tóxico” que, “quando aplicado a nível oftalmológico”, verá “tal toxicidade potenciada”, “tratando-se de um citostático”.

– Isto quando resulta da prova produzida nos autos, inclusive da própria documentação farmacêutica junta em diversos pontos, que o bevacizumab (ou Avastin) é antes um anticorpo monoclonal com potencial anti-angiogénico, inibindo o crescimento de vasos sanguíneos através da neutralização do chamado VEGF.

- Não tendo toxicidade minimamente comparável à dos tradicionais citostásticos (que não distinguem as células cujo crescimento inibem), muito menos quando aplicado em doses minúsculas e nos olhos (em lugar de ser introduzido na corrente sanguínea, como sucede quando é usado para tratar o cancro).

- Em qualquer caso, independentemente das provas que impõem uma decisão diversa da recorrida quanto a múltiplos pontos da matéria de facto, em termos que serão certamente supridos por esse Venerando Tribunal, julga-se serem manifestas as contradições existentes entre diversos pontos da matéria de facto dada como provada e não provada, desde logo a respeito das características e suposta perigosidade do Avastin, quando utilizado “off-label” para fins oftalmológicos.

- Sendo tais contradições acrescidas quando o Tribunal recorrido procura fundamentar a sua conclusão de que será impossível saber aquilo que não foi administrado aos ofendidos em possibilidades meramente teóricas de eventual contaminação ou adulteração do produto injectado, em moldes que não têm qualquer apoio naquilo que foi dado como provado, ou nos meios de prova que o próprio Tribunal considerou terem sido relevantes para a sua decisão.

- Situação que se agrava ainda mais quando o Tribunal parece dar a entender que, na sua opinião, o próprio Avastin, ainda que não adulterado ou contaminado, poderia ter provocado lesões como as causadas aos ofendidos, em circunstâncias como aquelas a que se referem os autos.

- Sem basear essa opinião em qualquer prova ou raciocínio, para além duma irracional desconfiança a respeito da utilização “off-label” de medicamentos, que manifestamente considera potenciadora de efeitos nefastos indiscriminados e multiformes, mesmo estando em causa uma prática instituída há vários anos e testada na prática, em condições possivelmente mais elucidativas e esclarecedoras do que os ensaios clínicos efectuados com vista à obtenção de autorização para comercialização de medicamentos, tal como aqueles que terão sido efectuados quanto ao Lucentis (que, como vimos, permitiram ainda assim detectar possíveis consequências adversas em tudo similares às do Avastin, como seria de esperar).

- Podendo assim considerar-se, salvo melhor opinião, ter o Acórdão recorrido incorrido em contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão proferida, bem como em erro notório na apreciação da prova, em termos susceptíveis de integrar as previsões das alíneas b) e c) do nº 2 do art. 410º do CPP.

- Tendo estes vícios, centrados fundamentalmente na fundamentação da imputação objectiva da prática dos factos aos arguidos, por acção ou omissão, impedido que o Tribunal procurasse sequer efectuar e fundamentar a imputação subjectiva da prática desses factos, nos termos em que deveria tê-lo feito.

- Algo que não poderia deixar de conduzir, salvo melhor opinião, à condenação desses arguidos pela prática dos crimes que lhes foram imputados na pronúncia.

Vejamos.

É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artº 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido artº 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, 10ª ed., pág. 729, Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 3ª ed., pág. 334 e Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 7ª ed., pág. 72 e segs].

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artº 412º, do CPP.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal “a quo” quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa [cfr. os Acs. do STJ, de 14-03-2007, Proc. nº 07P21 e de 23-05-2007, Proc. nº 07P1498, acessíveis em www.dgsi.pt].

Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artº 412º, nº 3, do CPP:

«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.».

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º, do CPP).

Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 6 do artº 412º, do CPP).

Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, Proc. nº 07P4375, acessível em www.dgsi.pt, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:

- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;

- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;

- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;

- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado artº 412º).

Ora, é manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova. O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância [cfr. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999].

No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha, in “O caso Julgado Parcial…”, 2002, pág. 37, ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica – e não como “novos julgamentos”.

Com efeito, “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros” [cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt].

O nosso poder de cognição está confinado aos pontos de facto que o  recorrente considera incorrectamente julgados, com as especificações estatuídas no artº 412º, nºs 3 e 4, do CPP.

No caso em apreço, o recorrente cumpriu o ónus de especificação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Todavia, no que se refere à indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, tanto da leitura das motivações como das conclusões resulta cristalinamente que o presente recurso em matéria de facto se limita a procurar abalar a convicção formada pelo tribunal “a quo”, relativamente aos factos que impugna.

O Tribunal recorrido, após uma análise exaustiva de todos os meios de prova produzidos e examinados em audiência conclui que:

- À data dos factos não existia qualquer Manual de Procedimentos aplicável na unidade de citotóxicos nem regras escritas sobre o manuseamento das alíquotas;

- As instruções eram dadas verbalmente pela Drª RL e mudavam periodicamente. Exemplo: períodos de estabilidade dos fármacos contidos nas alíquotas; dupla validação e funções do farmacêutico e TDT´s  no que respeitava ao manuseamento dos citostáticos, que é a matéria que nos releva.

- Os níveis de VEGF não são determinativos da não inoculação de bevacizumab.

- As seringas encontradas no bloco operatório no dia 20.07.2009 poderiam ser da intervenção efetuada no dia 17.07;

- Não estava instituída a dupla verificação na manipulação do avastin na data dos factos conforme determinado pela Drª RL;

- Impossibilidade de saber-se existiu troca ou não do fármaco Bevacizumab e consequentemente se foi ou não aplicado Bevacizumab nos olhos dos pacientes, ora ofendidos;

- À data dos factos laborava apenas um farmacêutico e um auxiliar de ação médica no turno da manhã e não dois com exceção apenas e somente no período entre as 12H00 e as 15H00.

- O farmacêutico adstrito à UCPC não executava apenas funções relacionadas com a respetiva unidade.

- Regra geral, a preparação de tabuleiros com especialidades farmacêuticas (ampolas ou frascos originais) estava adstrita às funções do ora arguido contudo a gestão, utilização e seleção das alíquotas estavam a cargo dos T.D.T por indicação da coordenadora do sector.

- O Bevacizumab necessitava de estar num ambiente entre os 2-8º C, sendo que todas as alíquotas eram retiradas do frio logo no período da manhã e mantinham-se todas na sala limpa todo dia trazendo um risco acrescido de contaminação.

- Do resultado da análise efetuada no IML relativamente à amostra colhida ao paciente Walter (ora assistente e único paciente a que foi colhido uma amostra) não se pode concluir que não foi administrada, por hipótese, a substância "cavalinha" mas sim que na única amostra recolhida a 25 de Julho de 2009 ao paciente Walter Bom não estavam presentes os compostos analisados, o que não exclui que os mesmos não tivessem sido administrados e, entretanto, metabolizados pelo próprio organismo do paciente.

- A colheita de humor vítreo e lavado ocular recolhido aos pacientes não foi no dia 20-7 mas sim a partir do dia 27-7 inclusive.

- A reconstituição da alíquota padece de falhas e põem em causa os resultados ali constantes.

- À data dos factos não existia qualquer inventário diário de alíquotas sendo o inventário efectuado semanalmente à quinta-feira.

- A inexistência de um inventário referente à sexta - feira, dia 17 de Julho de 2009, não permite concluir o ciclo de reconstituição da alíquota de Bevacizumab.

Este exame crítico da prova produzida e examinada exaustivamente em audiência, não se revela desprovido de razoabilidade, sendo uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência.

Todos os profissionais médicos ouvidos nos autos afastaram a possibilidade de que o medicamento injectado aos ofendidos e causador da “endoftalmite química/tóxica” que lhes foi diagnosticada pudesse ser Avastin.

Não afastaram, contudo, que o produto injectado pudesse ter sido Avastin embora contaminado ou adulterado, por razões que se prendiam com a empírica manipulação, armanezamento e rotulazem das “ sobras “ de tal medicamento.

Os depoimentos prestados em julgamento pela Drº RL – cordenadora à data dos factos da UCPC –, e os prestados pelas TDT demonstram que a par da inexistência de um manual de procedimentos à data dos factos, relativamente ao manuseamento e conservação das alíquotas, o procedimento para a seu registo; conservação e rotulagem era feito sem qualquer controlo.

Não se comprende porque razão, logo a seguir à data dos factos a Drª. RL rejeitou, lançando para o lixo todas as alíquotas que existiam na farmácia, gorando as eventuais análises às mesmas.

Existia perigo de contaminação das aliquotas na farmácia, como explicou?

Mas a admitir-se esse perigo deveria ter um comportamento contrário ao encetado e não ter, como resulta dos autos, omitido à investigação tal facto.

O acórdão proferido pelo tribunal “a quo” relativamente à factualidade que teve como apurada, assenta, no limiar, em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova.

Assim sendo, não existem motivos para se proceder à alteração da matéria de facto provada que, por isso, se mantém.


11. Enfermará o acórdão recorrido dos vícios de contradição insanável de fundamentação entre os factos provados e não provados, como defende o recorrente?

Diz o recorrente que no acórdão recorrido “ os factos dados como assentes sob os pontos 61; 68; 69 e 72, encontram-se em contradição com a matéria de facto considerada como não provada e que os factos dados como assentes sob os pontos  88; 103 e 104 encontram-se em frontal contradição com a matéria factual considerada não provada a respeito da natureza e características das lesões sofridas pelos ofendidos.

Tais factos dados como assentes são os seguintes:

61.Na Unidade, semanalmente, à quinta-feira, procede-se à contabilização dos fármacos e solventes em utilização e do stock em reserva e à contabilização das alíquotas, inventário que se fez naquele dia, ainda antes das 18.00h.

68.No frigorífico, no tabuleiro de alíquotas, existia uma alíquota do fármaco Bevacizumab, com o volume que não é possível identificar, medicamento integrante do lote B5006B01, com validade até 11/2010, a partir do qual dever-se-ia proceder à preparação de cada uma das seringas.

69.Em hora que não é possível determinar, mas ainda antes das 18:30 horas, a arguida SB dirigiu-se ao frigorífico que se encontrava na sala de apoio da UPC e dele retirou o tabuleiro das alíquotas onde se encontrava a alíquota de Bevacizumab entre outras alíquotas de citostáticos e anticorpos em numero próximo de 15 - algumas macroscopicamente iguais (coloração, viscosidade) caso do Bortezomib e, outras, de igual volume e seringa de acondicionamento caso da Vimblastina, - que colocou no transfer (veículo de transmissão de objetos para a sala limpa).

72.Em ato contínuo, retirou do transfer o tabuleiro contendo as alíquotas, que colocou sobre a mesa de apoio e escolheu a alíquota com a inscrição de fármaco que não é possível determinar, colocando-a dentro da câmara (equipamento com fluxo de ar laminar vertical onde se fazem os preparados por forma a garantir a esterilização deste, bem como do próprio preparador).

88.Nesse mesmo dia 19, com exceção dos ofendidos António Correia, Américo Palhota e Maria Antónia todos os demais doentes recorreram ao serviço de urgências, mas não obstante a sintomatologia sentida, só a Maria Dores Monteiro ficou internada, acabando os demais, inclusive estes últimos acima identificados, na sequência de contacto telefónico do hospital por aí se deslocarem, e por ficarem internados no dia 20, pois que todos apresentavam uma reação inflamatória muito marcada (endoftalmite química /tóxica infeção do globo ocular), com um quadro clínico semelhante, no inicio, a todos os doentes - edema e opacificação da córnea, ardor, dor ocular, secreções, desipetilização e quistos endoteliais, reação fibrinosa, diminuição, hiperémia ocular e perda de visão.

103.Da documentação clínica junta verifica-se que mercê da aplicação da injeção intravitrea em 17.07.2009, resultaram para os ofendidos lesões várias que à data de 16.10.2009, ainda não apresentavam carácter definitivo para todos os ofendidos, atento que não se encontravam ainda estabilizadas.

104.Assim, efetuados exames pelo INML e fixando-se a data de consolidação das lesões, em 16.10.2009, concluiu o Sr. Perito médico que sofreram com carácter definitivo:

-Walter Bom, intervencionado nos dois olhos, as lesões descritas a fls. 115 do Apenso VIII, com hiperémia conjuntival e edema querático sem visualização do Fundo ocular com diminuição marcada e progressiva e perda da acuidade visual, as quais determinaram 90 dias de doença com igual tempo de incapacidade total para o trabalho, apresentando o ofendido na aludida data: escassos sinais inflamatórios do olho drt, com atrofia ótica, isquemia muito acentuada com hialinização vascular e morte celular, não apresentando o olho perceção luminosa. O olho esq. ainda com sinais inflamatórios que não permitem observar com detalhe o fundo ocular, mas em situação análoga à do olho direito, com ausência de perceção luminosa, colocando-se em dúvida a possibilidade de recuperação visual em ambos os olhos. Da ofensa resultou como consequência permanente a privação do sentido da visão (cegueira) com afetação grave da capacidade de trabalho;

-António Ferreira M Correia, intervencionado no olho drt, sofreu as lesões descritas a fls. 2 e 81 do Apenso XI, apresentando no olho drt edema das pálpebras e córnea, hiperémia conjuntival com secreções muco purulentas e diminuição progressiva da ac. Visual, que determinaram 90 dias de doença com incapacidade para o trabalho, apresentando em 16.10.009: o olho sem sinais inflamatórios, com acuidade visual de 0,02 (com busca), o fundo ocular com atrofia ótica), isquemia acentuada com hialinização dos vasos, sinais de morte celular e hemorragias dispersa. Apresenta retinopatia diabética admitindo-se que a situação assinalada não venha a sofrer alterações. Da ofensa resultou como consequência direta e permanente afetação grave do sentido da visão com perda da visão do olho direito;               

Vejamos:


O vício em apreço, como resulta da letra do art. 410, n.º 2 al. b) do CPP, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que se mostre insanável, ou seja, aquela que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Qualquer um dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 410 do CPP, como decorre da letra da lei, só se poderá ter por verificado se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo (cf. entre outros os ac. do STJ de 90-01-10 e de 94-07-13, o primeiro publicado na AJ, 5, 3 e o segundo na CJ/STJ, ano II, tomo III, 197), pelo que a actividade de fiscalização e de controlo do tribunal superior neste particular, conquanto incida sobre toda a decisão, com destaque para a proferida sobre a matéria de facto, não constitui actividade de apreciação e julgamento da prova, sendo que ao exercê-la se limita a verificar se a mesma contém algum ou alguns dos mencionados vícios, sendo que no caso de aquela deles enfermar e, em face disso, se tornar impossível decidir a causa, deverá o processo ser reenviado para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426, n.º1 do CPP).
Este vício ocorre quando se afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou uma emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas. A contradição pode suceder entre segmentos da própria fundamentação – dão-se como provados factos contraditórios, dá-se como provado e não provado o mesmo facto, afirma-se e nega-se a mesma coisa, enfim, as premissas contradizem-se - , como entre a fundamentação e a decisão - esta não se encontra em sintonia com os factos apurados (cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2ª Ed., Editorial Verbo, págs. 340 e 341).
A contradição a que se reporta a alin. b) do art. 410 do CPP é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento.
Lendo o que se exarou sob os pontos 61; 68; 69; 72; 88; 103 e 104 dos factos provados, não se vê, com o devido respeito, qualquer contradição, muito menos insanável. Efectivamente, os factos em si não se encontram numa relação de incompatibilidade ou negação entre uns e outros.
Se os factos constantes dos considerados como não provados foram incorrectamente julgados é também questão que só pode ser reapreciada em sede de conhecimento da impugnação da matéria de facto.
Entende ainda o recorrente ainda que “a decisão colocada em crise padece de flagrante erro notório na apreciação da prova, pelo que estamos na presença de um vício da decisão recorrida, nos termos do art. 410.º, n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal.
Porém, com o devido respeito, não se vê das conclusões, nem da motivação do recurso em que pressupostos assenta a invocação deste vício.
Este vício existirá e será relevante quando o homem médio, perante o que consta da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se dá conta que o tribunal errou – manifestamente – na apreciação e valoração que fez das provas produzidas em julgamento, seja porque violou as regras da experiência comum, seja porque se baseou em critérios ilógicos, arbitrários ou, mesmo, contraditórios.
O erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo(acórdão do STJ de 98.07.09, Proc. 1509/97, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 77).

Tal vício, como expressamente se dispõe no art. 410 n.º 2 al.ª c) do CPP, terá de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – sem o recurso a quaisquer elementos externos à mesma, como são, designadamente, os depoimentos prestados em julgamento - e, ao mesmo tempo, terá que ser manifesto, de tal modo que ele se apresente como evidente, aos olhos do observador comum, ou seja, ele existirá quando da sentença ressalte uma desconformidade evidente, manifesta – “erro tão crasso que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental”, como se escreve no acórdão do STJ de 21.11.97, Proc. 32507, www.dgsi.pt - entre os factos provados (ou não provados) e a prova produzida em audiência de julgamento ou que se decidiu contra o que se provou (ou não provou) ou que se deu como provado algo que não pode ter acontecido.
Assim entendido, é manifesto que não se verifica o invocado vício, pois não se detecta qualquer erro no acórdão recorrido, e muito menos notório ou manifesto.

12. A conduta adoptada pelos arguidos, consubstancia, segundo o recorrente, face à factualidade dada como assente sob os pontos 106; 107 e 108, a prática por estes arguidos dos seis crimes de ofensa à integridade física por negligência p. p. pelos artºs. 148 nºs 1 e 3, com referência aos artºs. 10º e 15º, ambos do C.penal.

No acórdão recorrido, em sede sede de enquadramento jurídico dos factos provados, escreveu-se o seguinte:

Preceitua o artigo 148º, Ofensa à integridade física por negligência:

1 — Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 — No caso previsto no número anterior, o tribunal pode dispensar de pena quando:

a) O agente for médico no exercício da sua profissão e do acto médico não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias; ou

b) Da ofensa não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 3 dias.

3 — Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

4 — O procedimento criminal depende de queixa.

Verificar-se-ão estes requisitos no caso sub judice?

Vejamos:

O tribunal deu como provado nos artigos 106 (Os arguidos sabiam que os fármacos existentes na UPC, consistentes em citotóxicos e anticorpos monoclonais são altamente perigosos e exigem uma especial atenção no seu manuseamento e preparação pois que se aplicados fora das situações clínicas para que estão indicados são passíveis de provocar lesões graves e de carácter permanente); 107 (Os arguidos sabiam que o tabuleiro de alíquotas que a arguida manuseava continha fármacos especialmente tóxicos (incluindo o Bevacizumab) e que quando aplicados a nível oftalmológico, vêem tal toxicidade potenciada, porquanto tratando-se de citostáticos inibem o crescimento de vasos sanguíneos produzindo a morte dos tecidos e, consequentemente a destruição do sentido da visão); 108 (Sabia a arguida SB que teria de certificar-se que o fármaco que selecionara como Bevacizumab era efetivamente esse, ciente que estava dos efeitos devastadores dos demais fármacos quando aplicados intravitreo.).

O artº. 10º do CP prescreve:

1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.

2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.

3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.

Não existem quaisquer dúvidas do ponto de vista jurídico que os crimes imputados aos arguidos são caraterizados como crimes de resultado.

E, porque o tipo legal de crime em apreço compreende um certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo, mas também a omissão da ação adequada a evitá-lo, salvo se for outra a intenção da lei.

Mas a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recaír um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado - artº 10º-2 do CP vigente.

Tendo presente tudo isto, os artigos (106, 107 e 108) acima transcritos integra alguma das situações descritas no referido artº. 10º do CP?

No entender do Tribunal, claro que não!

É que os factos apurados apenas provam que os arguidos, tais como qualquer outro funcionário da farmácia deve saber, face às funções específicas que exercem, que os fármacos existentes na UPC, consistentes em citotóxicos e anticorpos monoclonais são altamente perigosos e exigem uma especial atenção no seu manuseamento e preparação pois que se aplicados fora das situações clínicas para que estão indicados são passíveis de provocar lesões graves e de carácter permanente. E que os arguidos, bem como qualquer farmacêutico, ou Técnico de Diagnóstico e Terapêutica, sabiam que o tabuleiro de alíquotas quando o manuseavam continha fármacos especialmente tóxicos (incluindo o Bevacizumab) e que quando aplicados a nível oftalmológico, vêem tal toxicidade potenciada, porquanto tratando-se de citostáticos inibem o crescimento de vasos sanguíneos produzindo a morte dos tecidos e, consequentemente a destruição do sentido da visão.

Mas isto são meros factos notórios e evidentes que isolados de outros elementos não têm qualquer implicação ao nível do resultado ilícito.  E já iremos ver porquê, face aos factos que resultaram como não provados.

Por último, e quanto ao último facto também não releva, tais como os anteriores, porque não respeita somente à arguida SB. Qualquer profissional da farmácia, tal como a arguida SB sabia, que quando manipulava os citotóxicos teria de certificar-se que o fármaco que selecionara como Bevacizumab era efetivamente esse, ciente que estava dos efeitos devastadores dos demais fármacos quando aplicados intravítreo. Efetivamente o saber tal facto em nada releva para o resultado. Onde está verificada a causalidade?

Em nenhum facto apurado.

Na verdade, os factos que poderiam preencher a respetiva causalidade foram considerados não provados, e passam-se de imediatos a enuncia-los mantendo-se a ordem numérica respetiva:

8. Que agindo de forma apressada atento o adiantado da hora e a sua hora de saída e eventualmente equivocada na leitura da designação manuscrita do fármaco na alíquota em causa, a arguida consciente que qualquer desatenção poderia culminar numa troca de fármacos e que tal, atenta a toxicidade do produto, acarretaria consequências danosas muito graves à integridade física dos doentes, possibilidade com que se conformou, pegou numa alíquota contendo fármaco diferente de Bevacizumab e com ela produziu 8 seringas.

9. Que assim preparadas as seringas oftalmológicas a que a arguida acoplou as agulhas, a mesma, contrariando o prescrito no Manual de Procedimentos que determina a colocação do rótulo na própria seringa, rotulou com os rótulos grandes que lhe haviam sido entregues pelo arguido HD, as mangas de plástico onde colocara as seringas.

10. Que quando foi limpa a câmara de fluxo de ar laminar e a arguida saiu da Sala Limpa permitindo que a assistente operacional efetuasse a limpeza da mesma, e já na sala de apoio, o arguido HD deveria ter diligenciado pela validação dos preparados como era da sua competência e obrigação.

13.Que ao agir como descrito os arguidos não levaram a efeito as etapas de produção técnica e eticamente exigíveis, originando erros seguramente evitáveis caso tivessem preconizado as boas práticas, representando como possível a danosidade das suas condutas e as nefastas consequências de tais atos, atuando em violação dos mais elementares deveres de cuidado da profissão.

14.Que, ao deixar ao critério da arguida SB a seleção do fármaco adequado à preparação do medicamento, ao não validar os manipulados e não efetuar o seu acondicionamento final, o arguido HD desinteressou-se totalmente pela atividade profissional que desenvolve, destituiu-se das competências e funções que lhe estão atribuídas sabendo que tal conduta aumentava o risco de troca de medicamento, o que a suceder, como sucedeu, determinaria graves lesões nos doentes a quem o medicamento se destinava, nomeadamente colocaria sérios riscos de lesão da visão dos mesmos.

15.Que de igual forma a arguida SB ao praticar atos da competência do farmacêutico, atuando de forma apressada, desprovida de rigor e da atenção que se lhe impunha em face da elevada tecnicidade das suas funções e da elevada perigosidade dos fármacos que manuseava sabia que aumentava seriamente as probabilidades de troca de fármacos, o que a suceder, como sucedeu, colocaria em risco a saúde dos doentes a quem tal fármaco se destinava, facto com que se conformou.

23.Que o arguido HD sabia que, de acordo com o Manual de Procedimentos vigente na UPC que necessariamente conhecia, tanto mais que continha procedimentos de carácter obrigatório que o próprio arguido ajudara a compilar, era, como farmacêutico da Unidade da sua competência a seleção da alíquota adequada à preparação pela TDT do medicamento Avastin, cujo mapa de preparação o arguido elaborara e bem assim a posterior validação do preparado, procedimentos que omitiu representando como possível as consequências daí decorrentes e aceitando-as.

24.Que a arguida não se certificou dos rótulos apostos nas alíquotas e fiando-se na aparência da substância contida na alíquota que selecionou fez oito preparados de substância de fármaco que não Avastin, prevendo como possível e aceitando que a tal substância a mesma não correspondesse, sabendo que com tal atuação poderia prejudicar de forma muito grave a saúde de terceiros, impossibilitando-os de utilizar a visão como veio a suceder. 

27.Que embora pudessem e devessem ter tomado precauções para que as seringas em apreço fossem objeto de diferente forma de preparação, consentânea com o exigido no Manual de Procedimentos, os arguidos não o fizeram sendo a inobservância desse dever que aos profissionais com os conhecimentos técnicos e competências dos arguidos é exigido, facilitou a troca de fármacos cuja aplicação foi diretamente causal das graves lesões que os ofendidos vieram a sofrer e que afetam gravemente a sua capacidade para o trabalho e a possibilidade de usufruição do sentido da visão.

28.Que os arguidos atuaram de forma livre e conscientemente, em manifesta desconformidade com os procedimentos técnicos instituídos e a que estavam obrigados sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.

Seguindo de perto os ensinamentos do prof. Eduardo Correia, a conduta negligente e o nexo de causalidade com o evento são evidentes nos seguintes casos:

O dever, cuja violação a negligência supõe, consiste antes de tudo em o agente não ter usado aquela diligência exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento (não está provado como acabamos de verificar);

Estes deveres podem estar particularmente ligados pelo uso e pelas normas jurídicas ao exercício de um certo ofício, profissão ou atividade (efetivamente, como vimos, estes deveres estão particularmente ligados ao manuseamentos de manipulados existentes na farmácia, mas que não resultou demonstrado que os arguidos tivessem violado qualquer dever - o ter conhecimento dos mesmos não basta, evidentemente, é necessário a exista a violação desses deveres que são causa de um resultado).

Portanto, para que haja negligência é necessário que tenha lugar uma atividade que viole os usos ou costumes da experiência e que a produção do evento seja da experiência e que a previsão do evento seja previsível e só a omissão desse dever impeça a sua previsão ou a sua justa previsão.

É um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objectivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar á negligência, ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-los.

Para que haja censura a título de negligência é necessário que o agente possa ou seja capaz segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever corretamente a realização do tipo legal de crime.

Por fim, e ainda segundo os ensinamentos do prof. Eduardo Correia, as disposições do Código Penal referentes á culpa, mostram que, pelo menos em princípio, não é necessário nem correto recorrer-se ao pensamento da responsabilidade objectiva ou pelo evento.

O juízo de censura em que se estrutura a culpa não se esgota numa relação objectiva do facto com o agente sob a forma de dolo ou negligência, mas supõe sempre a possibilidade de se exigir do agente outro comportamento.

Há causalidade nas ações por negligência quando o resultado é uma consequência adequada da conduta.

Parece, pois, evidente a falta de qualquer nexo de causalidade entre as condutas dos arguidos e as lesões oculares que os ofendidos vieram a sofrer nas intervenções cirúrgicas a que foram submetidos, atendendo aos factos apurados e não apurados.

Diremos ainda:

Todo o profissional, independentemente da área à qual pertença, deve possuir os conhecimentos básicos, tanto práticos quanto teóricos, da sua profissão, no intuito de exercê-la de acordo com os princípios de uma conduta cautelosa, perita e eficiente. Isso ser-lhe-á útil no sentido de não prejudicar os seus futuros clientes, bem como para o seu próprio nome, a sua carreira e a classe profissional que representa.

No caso concreto, dos profissionais farmacêuticos (farmacêutico e Técnica de Diagnóstico e terapêutica) é exigida uma conduta bastante rigorosa, uma vez que trabalham diretamente com bens cujo valor vai além da própria possibilidade de aferição, como sejam, a vida, a saúde e a integridade psicofísica.

A culpa destes profissionais, perante o direito, é uma culpa comum e não uma culpa especial, como querem alguns, o que diferenciaria sua conduta dos demais indivíduos. Também a responsabilidade que lhe é atribuída é aquela idêntica para todos; diferente, apenas, é a natureza de ocorrência da culpa, pois esta resulta do exercício de uma profissão, da profissão farmacêutica.

A responsabilidade em causa, depois de passar pelos diferentes estágios rege-se hoje pelos mesmos princípios da responsabilidade civil em geral, segundo a qual, quem pratica um ato em estado de sã consciência e capacidade, com liberdade, intencionalidade ou por mera culpa, tem o dever de reparar as consequências danosas da sua conduta.

Todavia, ao determinar-se a responsabilidade dos profissionais em causa, mister se faz um tipo de cuidado específico e, este, diz respeito a uma verificação efetiva se os danos ocorridos foram causados pelos atos decisórios das pessoas em causa ou se advieram por fatores externos à sua vontade.

Tem a ver com o que os estudiosos nesta matéria chamam de resultados imprevisíveis ou previsíveis.

Entendem que para um resultado, um insucesso ou acidente ser considerado imprevisível não basta que o indivíduo não o tenha previsto, ou que não possa ser para ele previsível, já que para outra pessoa, se colocada em seu lugar, o teria sido.

    Portanto, para deduzir o conceito de imprevisibilidade, necessário se faz, primeiramente, delimitar o seu oposto, ou seja, o previsível e se possível, ir mais além e atingir o terreno do objetivamente previsível.

   Um resultado é objetivamente previsível quando puder ser representado a uma pessoa posta no lugar do agente, antes do começo da realização da ação, fornecendo-lhe os dados referentes ao caso concreto conhecido pelo autor, dentro das possibilidades de conhecimento de uma pessoa inteligente.

A negligência, como referia Eduardo Correia (Eduardo Correia, in Direito Criminal I, Reimpressão de 1968, p. 421) é, antes de mais, “a omissão de um dever jurídico de cuidado ou diligência”. Mas, acrescentava o referido autor: “a omissão do dever objetivo de cuidado, adequado a evitar a realização do tipo legal de crime, não justifica só por si, efetivamente, a censura a título de negligência. É ainda necessário que o agente possa ou seja capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever corretamente a realizações do tipo legal de crime”.

Assim, e atento o disposto no art. 15º do CP a negligência traduzir-se-á na omissão ou violação (quer por ação quer por omissão) dos deveres de diligência e cuidado a que um agente está obrigado e de que é capaz, tendo em conta as circunstâncias do caso, os seus conhecimentos e capacidades pessoais.

Tal como acontece quanto aos crimes dolosos, também nos crimes negligentes existe uma ação (ou omissão) típica, ilícita, e culposa (neste sentido, Teresa Beleza, in Direito Penal, 2º Vol., p. 571 e ss.).

São pois elementos da ofensa à integridade física sob a forma negligente a conduta humana (ação ou omissão), infração do dever objetivo de cuidado, possibilidade de imputação objetiva do resultado (ofensa no corpo ou saúde) à conduta contrária ao dever, ausência de causa de justificação da conduta e autor imputável e com as faculdades, conhecimento e experiência que lhe permitam reconhecer o dever de cuidado objetivamente exigido e prever o curso causal que conduz ao resultado concreto produzido”.

Como já se disse supra, segundo o art. 15º do CP, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

Representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas atua sem se conformar com essa realização;

Não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

No caso da alínea a) fala-se em negligência consciente, visto que o agente chegou a prever a realização do facto considerado crime; e no caso da alínea b) diz-se que a negligência é inconsciente, pois o agente nem chegou a prever aquela realização (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, i, Reimpressão de 1971, pág. 430, nota 2; Ac. Da RC de 16.11.88, in CJ, ano XIII, tomo 5, p. 97; Ac. STJ de 6.05.1993, sumariado em Jurisprudência Penal, Simas Santos e Leal Henriques, pág. 47).

Posto isto, “quid iuris” no caso em apreço?

Inexistem elementos indiciários suficientes de que os arguidos tenham atuado sem observâncias dos cuidados mínimos exigíveis, ou seja, que nos termos do artº. 15º do CP não procederam com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estavam obrigados e de que eram capazes, no sentido de representarem como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuaram sem se conformarem com essa realização …”.

Na verdade, da prova já criteriosamente analisada nas suas várias vertentes resultam que terá inexistido qualquer incúria por parte dos arguidos. E não é por acaso que o próprio processo disciplinar instaurado ao arguido HD veio a culminar em arquivamento por não se ter encontrado matéria fáctica para responsabilizar o arguido.

Uma certeza os autos parecem apontar, é que as fatalidades que atingiram os ofendidos, infelizmente, resultaram de causas de todo impossíveis de identificar tais as variáveis e probabilidades em causa.

Aqui chegados, necessário será concluir inexistirem fundamentos bastantes que legitimem a constatação de que estamos perante atuação deficiente e negligente dos Arguidos.

Vejamos:

Nos termos do art. 148º,( Ofensa à integridade física por negligência): 1 — Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 (…) 3 -Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

Da análise do referido preceito resulta desde logo que, para o preenchimento deste tipo de crime, é necessária a verificação quer da negligência, quer da imputação objectiva do resultado à conduta negligente.

É pois necessário, desde já, a fim de qualificar a conduta dos arguidos, caracterizar o que deve ser considerado como conduta negligente, bem como especificar quais as condições da referida imputação.

Estabelece o art.15º do C.Penal que: «Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuar sem se conformar com essa realização; ou

b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.»

A distinção entre a chamada negligência consciente e inconsciente não é relevante, pelo menos neste primeiro momento. O que importa ora é verificar se a conduta do arguido se enquadra no conceito de negligência expresso na letra deste preceito legal.

A negligência é a violação de um dever objectivo de cuidado.

Para que exista negligência é necessário, desde logo, que se esteja perante uma situação em que, para determinado bem jurídico, é objectivamente previsível o perigo de uma determinada acção, ou omissão.

De facto, apenas a previsibilidade objectiva do perigo da acção ou da omissão pode criar no agente um determinado dever de agir ou de se abster de o fazer. É necessário que uma pessoa de capacidade média, perante a mesma situação, pudesse prever o perigo de determinada acção ou omissão - é o que se denomina previsibilidade objectiva.

A negligência pressupõe ainda, como é óbvio, a inobservância do cuidado adequado a impedir a ocorrência do resultado típico.

Ou seja, para que nos encontremos perante uma conduta negligente, é necessária a verificação da ausência do cuidado que efectivamente poderia impedir o evento que a própria norma pretende evitar. Também este cuidado deve ser entendido como o cuidado objectivamente adequado a impedir a ocorrência do evento.

A negligência pressupõe, pois, em suma, a verificação de duas circunstâncias, a previsibilidade objectiva do perigo e a omissão do cuidado objectivamente adequado a evitá-lo.

No entanto, para o preenchimento do tipo objectivo de crime que agora nos interessa – ofensas à integridade física negligentes -  é também necessário, como já referido, um outro elemento, ou seja, a imputação objectiva do resultado típico à acção violadora do dever objectivo de cuidado. Por outras palavras, a omissão do cuidado tem de ser a causa do evento que se pretendia evitar com a imposição do dever de conduta. É, assim, necessário que o resultado típico, o evento ofensa ao corpo ou saúde de outrem, seja objectivamente imputável, não só ao agente, como também à própria acção violadora do dever objectivo de cuidado, isto é, à negligência.

E para que exista imputação objectiva é necessário que, desde logo, se possa afirmar, com grande grau de probabilidade, que o resultado ocorrido teria sido evitado se o agente tivesse procedido com o cuidado objectivamente exigível, bem como, que o cuidado omitido visava impedir a verificação de resultados da espécie do efectivamente produzido.

Passando este entendimento para o tipo juspenal que nos ocupa podemos afirmar que este tipo se encontra preenchido quando:

- perante determinada situação, é objectivamente previsível a existência de perigo para a saúde de outrem;

- o agente não observa os cuidados objectivamente adequados a evitar tal facto;

- ocorrem as ofensas para a saúde de terceiro;

- pode dizer-se que tal resultado não ocorreria se o agente tivesse procedido com o cuidado que lhe era objectivamente exigível;

- o cuidado desrespeitado visava impedir a verificação de resultados da espécie do efectivamente produzido.

Na apreciação do caso concreto importa proceder à análise da alegada violação dos deveres funcionais imputados aos arguidos, já que, nos termos da acusação/pronúncia deduzida, a alegada inobservância pelos arguidos dos deveres de cuidado que lhe eram impostos se traduziu, exactamente, na inobservância de procedimentos técnicos que, se lhes impunham.

Aliás, por essa razão a referência ao art.10º do C.Penal, que determina a responsabilização do agente que actua por acção ou por omissão, limitando a responsabilização neste último caso aos crimes de resultado (cfr. nº1 do citado artigo) e às situações em que sobre o agente/omitente impende um dever jurídico de actuar no sentido de evitar esse resultado (cfr. nº2 do mesmo normativo).

Dispõe o art. 10.° do CP, com a epígrafe "Comissão por acção e por omissão":

«1. Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.

2. A comissão de uni resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair uni dever jurídico que pessoahnente o obrigue a evitar esse resultado.

3. No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada».

Os delitos de omissão podem ser de omissão própria (neles, o dever de actuar surge, no plano objectivo, da presença de uma situação típica, p. ex. a omissão de auxílio plasmada) ou de omissão imprópria (comissão por omissão), caracterizados pela falta de menção expressa no tipo respectivo do comportamento omissivo determinante da produção do resultado proibido, sendo necessário que o agente tenha uma obrigação de impedir o resultado típico em virtude de determinados deveres cujo cumprimento haja assumido ou lhe incumbem por razão do seu cargo ou profissão, isto é, a que o artigo citado chama `"dever jurídico pessoal". Esta especial obrigação converte o agente em garante de que não se produza o resultado, como se o tivesse ocasionado mediante uma acção positiva.

Os deveres de garante relevantes para o Direito Penal podem caracterizar-se e delimitar-se, segundo a teoria tradicional (teoria formal do dever jurídico) com base na fonte de que surge o dever jurídico de evitar o resultado: a lei, o contrato e o actuar perigoso precedente; e. segundo a teoria das funções, pelo recurso a critérios materiais, quais seja a existência, para o garante, de uma função de protecção de um determinado bem jurídico ou da obrigação do controlo de uma fonte de perigo.

Dentro da tendência doutrinal que fundamenta a posição de garante de maneira menos formalista, pode dizer-se que só aquelas pessoas que têm as referidas vinculações especiais ao bem jurídico protegido podem ser consideradas garantes da integridade desse bem jurídico, mesmo que não exista um precito legal, contrato ou a actuação precedente concreta que fundamente expressamente esse dever.

Com o consenso generalizado da doutrina hoje dominante, para evitar um formalismo excessivo das fontes da posição de garante, devem considerar-se as fontes que podem fundamentar a posição de garante num sentido menos rígido, reduzindo-as aos preditos dois grandes grupos.

«Dentro do segundo grupo de posições de garante, o da responsabilidade por determinadas fontes de perigo, há que distinguir de outras situações, o dever de garante que deriva de fontes de perigo situadas no próprio âmbito social de domínio, independentemente de concorrer uma acção anterior contrária ao dever. A sua fundamentação reside no facto de que a sociedade deve poder confiar em que, quem exerce o poder de dispor sobre um espaço delimitado que se encontra aberto a outros ou apartirdo qual é possível incidir sobre outros, domine os perigos que, no referido âmbito podem proceder de objectos, animais, instalações ou maquinaria».

Os delitos de omissão imprópria podem cometer-se por negligência sempre que o respectivo tipo de comissão assim o preveja, coincidindo, em parte, o dever de garante e o dever objectivo de cuidado.

Feito este excurso teórico, passemos, então, à análise do caso concreto.

Tendo em conta a complexidade da matéria de facto provada, não se antolha qualquer omissão por parte dos arguidos, com um grau de certeza, reveladora de violação do dever objectivo de cuidado que as concretas circunstâncias impunham, desde logo porque não resultam assentes os factos que permitiriam também a atribuição de um nexo causal entre a actuação daqueles e as causas das ofensas provocadas com a utilização do produto  injectado nos olhos dos ofendidos.

Conclui-se, de todo o exposto, pela não verificação, in casu, dos elementos típicos do crime previsto no art.148 nºs 1 e 3, com referencia aos artºs 10º e 15º, ambos do C.Penal,  em síntese, pela impossibilidade de determinação de nexo causal entre as ofensas provocadas à saúde dos ofendidos e uma actuação qualificável como negligente por parte dos arguidos, ainda que nos termos definidos nos art.10 e 15º, al. a e b) do C.Penal.

Termos em que, estando nós em concordância com a análise que é feita no acórdão recorrido, e sendo a decisão recorrida absolutória, remetendo-se quanto ao mais, para os fundamentos da decisão impugnada, se decide confirmar o decidido no Acórdão recorrido. ( artº 425 nº 5 do C.P.Penal )


III

13. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:


a) Negar provimento ao recurso interposto pelo Mº.Pº. confirmando-se, em consequência, o acórdão recorrido.

Lisboa, 21-05-2015

Francisco Caramelo
Fernando Estrela

Decisão Texto Integral: