Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1751/10.7TVLSB.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
SUBCAPITALIZAÇÃO DA SOCIEDADE
RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Não tendo sido suscitada pela A. a questão da aplicação à situação fáctica que traz aos autos do instituto da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais, não tinha o Exmo Juiz que proceder à análise dos factos à luz deste instituto.
II - Porém, promovendo a prévia audição das partes, nos termos do art 3º/3 CPC, podê-lo-ia ter feito, na medida em que o juiz não está sujeito às alegações das partes, desde logo, no tocante à indagação (e não apenas à interpretação e aplicação) das regras de direito - art 664º CPC.
III - Não o tendo feito, e porque os recursos servem para reapreciar questões já apreciadas e não questões novas, apenas a circunstância de, em última análise, o instituto da desconsideração da personalidade colectiva radicar no instituto do abuso de direito, que é de conhecimento oficioso, conduz a que o tribunal de recurso deva apreciar a questão em apreço.
IV - A doutrina tem autonomizado nas condutas societárias reprováveis que podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade três situações: a confusão ou a promiscuidade entre as esferas jurídica da sociedade e as dos sócios; a subcapitalização da sociedade, seja originária, seja superveniente, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; e as relações de domínio grupal.
V - Em todas estas situações se verifica que a personalidade colectiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios.
VI- A subcapitalização em sede de desconsideração da personalidade colectiva, pode configurar-se como nominal ou formal (e tem lugar quando se verifica que a sociedade dispõe dos meios necessários ao exercício da sua actividade, resultando todavia tais meios, não tanto dos “capitais próprios” - fundamentalmente constituídos pelos bens correspondentes ao capital social e às reservas - reconhecidamente insuficientes – mas sobretudo de empréstimos feitos pelos sócios), e material (que tem lugar quando os capitais próprios são manifestamente insuficientes para a prossecução da actividade social e essa insuficiência não é suprida com empréstimos dos sócios).
VII - A responsabilização por via da desconsideração da personalidade colectiva é dos sócios, enquanto tais, e não dos gerentes. E dos sócios das sociedades devedoras, não dos sócios das “sociedades novas”, ou destas mesmas sociedades.
VIII- No caso de subcapitalização material originária respondem subsidiaria e ilimitadamente todos os sócios. No caso de subcapitalização superveniente só responderão subsidiária e ilimitadamente os sócios «controladores» da sociedade.
IX - Não devem beneficiar da referida responsabilidade ilimitada dos sócios – a que conduz a desconsideração da personalidade colectiva - os credores que conheciam a situação de subcapitalização e/ou assumiram voluntariamente, com escopo especulativo, os riscos.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I - “A”- Construções, Pinturas e Revestimentos. Unipessoal Lda, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra:
1º - “B”,
2º - “C”,
3º - “D”,
4º - “E”,
5º - “F”,
6º - “G”,
7º - “H”,
8º - “I”,
9º- “J”,
10º - “L”,
11º - “M”,
12º- “N”
13º - “O”,
 pedindo os que os RR. sejam solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia de € 142.821,99 e juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor para as dívidas de natureza comercial, desde 01/07/2009, até integral pagamento.
Alegou que os 1° a 8° RR. são sócios e representantes legais da sociedade “P”- Pinturas S.A, sendo o 1°, Presidente do seu Conselho de Administração, o 2º, Vogal do seu Conselho de Administração, a 3ª, sua Fiscal única, o 4°,  Suplente do Fiscal único, o 5°, foi Presidente e Vogal do seu Conselho de Administração, a 6ª, foi sua sócia, o 7º, foi seu Presidente do Conselho de Administração, o 8º foi  Vogal do seu Conselho de Administração e os  9° a 12° RR. são sócios e representantes legais da sociedade "“Q”- Revestimentos e Pinturas, Lda.", sendo o 9° seu sócio-gerente, o 10° seu sócio, o 11° foi seu sócio e gerente, e o 12° é seu sócio. O 13° R. é Técnico Oficial de Contas da “P”. Mais alega que o 5° R. é pai dos 7° e 8°, e que os 5°, 6°, 7°, 8°, 9° 10°, 11°e 12° têm entre si relações de parentesco. Nesse contexto alega que, exercendo a actividade de construção civil, pinturas e revestimentos, e a “P”, a actividade de pintura de construção civil, lhe prestou serviços em 2008 e 2009. A “P” não pagou tais serviços, ascendendo a dívida, em Junho de 2009, a € 142.821.99. Em 2009 propôs-lhe pagar a dívida através da cedência de créditos que alegadamente detinha sobre as sociedades “R” & Filhos. SA, “S” & Filhos. SA, e “T”- Sociedade de Construção, SA, tendo referido que tais créditos estavam vencidos e eram líquidos e exigíveis, o que se veio a verificar corresponder apenas numa muito pequena parte à verdade, sendo que a A., pelas   dificuldades que atravessava, aceitou a cessão de créditos, "imposta" pela “P”, tendo os RR. pretendido, apenas, com esta “manobra”, prorrogar o incumprimento da “P”, enquanto "tratavam" de delapidar o respectivo património, como efectivamente fizeram. De facto a A., apesar das múltiplas diligências que efectuou para cobrança da dívida, não conseguiu localizar qualquer património de que a “P” fosse proprietária, tendo apurado que a mesma cessara toda a actividade, sendo executada, no valor total de € 178.603,11 em diversas execuções fiscais e tendo em curso acções no Tribunal do Trabalho de Lisboa instauradas por trabalhadores que nelas alegam que a “P” vem transferindo os contratos de trabalho para outra sociedade. Alega ainda ser do seu do seu conhecimento que a mesma transferiu parte do seu património para a "“Q” - Revestimentos e Pinturas, Lda.", constituída em 22/10/2009. Os sócios desta sociedade são filhos do accionista e administrador da “P” e a mesma está a laborar nas instalações que anteriormente pertenciam à “P” e desenvolve a mesma actividade que esta anteriormente desenvolvia. A pessoa que assina os cheques da "“Q”” é “I”, que era o administrador da “P”. A pessoa que figura como representante legal na declaração de IRC referente ao exercício de 2009, apresentada em 31/05/2010, pela “P”, é o 7° Réu, “H”. A ““Q””, em 2009, apresentou "proveitos" do exercício no valor de € 119.448,16. O 13° R. é Técnico Oficial de Contas da “Q”, tendo assinado as declarações de IRC (Modelo 22) desta sociedade e da “P” relativas ao exercício de 2009, ambas apresentadas em 31/05/2010. Alega ainda que a “P” tem em curso um processo de insolvência que corre termos no Tribunal de Comércio de Lisboa, 1° Juízo, processo n° .../10.9TYLSB.
O R. “M” contestou, alegando ser falsa a matéria alegada nos arts. 2°, 5° e 46° da petição inicial referente às alegadas relações de parentesco e às alegadas qualidades societárias dos RR., desconhecendo tudo o que demais vem alegado pela A.
Os RR. “H”, “G”, “N”, “I”, “L” e “J”, contestaram alegando, em síntese, que não participaram, nem assumiram ou influenciaram, alguma vez, qualquer acto de gestão da “P” que diga respeito à disposição do seu património, muito menos para prejudicar qualquer credor daquela empresa, e não ter a A. alegado qualquer facto susceptível de fazer incorrer os RR. em qualquer tipo de responsabilidade para consigo.
Nenhum dos outros RR., quer os citados pessoalmente, quer os citados editalmente, apresentou contestação.
 O Ministério Público, citado nos termos e para os efeitos do art. 15°/1 do CPC, não apresentou igualmente contestação.

Tendo sido entendido que o processo permitia o conhecimento imediato do pedido no despacho saneador, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os RR. do pedido.

II – Do assim decidido, apelou a A. que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:
1-Conforme resulta da decisão recorrida o Mm.° Juiz a quo não julgou a petição inicial inepta por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, mas antes a improcedência da acção por falta de concretização dos factos consubstanciadores do direito invocado.
 
2- Desde já se dirá que não existe, no texto da sentença recorrida, qualquer análise dos factos alegados pela A. Na sentença recorrida, o que se fez foi uma transcrição dos factos alegados na petição inicial; A síntese da defesa dos RR. apresentada com as Contestações; Uma síntese do regime (requisitos) da responsabilidade civil extra-contratual; A (apressada) conclusão de que «não se vislumbra que a autora alegue um único facto concreto traduzível numa conduta, por parte de qualquer um dos réus, violadora de uma qualquer norma de protecção.»; (E só depois, informaticamente) uma análise ao regime plasmado no art° 78° do Código das Sociedades Comerciais.
3- Na sentença recorrida nada se expende sobre a subsunção dos factos às normas jurídicas indicadas pela A. na Petição Inicial, do que resulta a nulidade prevista no art° 668º/1 al b) do CPC, por falta de especificação dos fundamentos, quer de facto, quer de direito, que justificam a decisão. Sem conceder,
4- A A. alegou, em síntese, que A sociedade “P” devia (e deve...) à A. a quantia de € 142.821,99 e que, para pagamento da dívida, impôs à A. uma cessão de créditos que alegadamente detinha sobre outras sociedades, comunicando que os créditos que se propunha ceder estavam vencidos e eram líquidos e exigíveis, o que sabia ser falso. Alegou que tal conduta, dos RR., teve por fito e fim prorrogar o incumprimento da “P”, através de esquemas fraudulentos, enquanto "tratavam" de delapidar o respectivo património», o que, acto contínuo, fizeram transferindo esse património para outras sociedades, designadamente, para a sociedade denominada "“Q” - Revestimentos e Pinturas,Lda.", que está a laborar nas instalações que anteriormente pertenciam à “P” e desenvolve a mesma actividade que esta anteriormente desenvolvia, tendo por sócios os filhos do accionista e administrador da “P”, o qual, aliás, assina os cheques da "“Q”", agindo como seu gerente de facto.
5- (Cremos que) Manifestamente, não é caso de improcedência da acção por falta de concretização dos factos consubstanciadores do direito invocado e nem de aperfeiçoamento a Petição Inicial carece.
 A ocorrer tal necessidade, será relativamente à indicação das normas jurídicas que sustentam o pedido de condenação dos RR., que não sejam sócios ou gerentes da "“P”". Porém,
6- Se o princípio dispositivo (art° 264° do CPC) se assume estrutural da legislação processual civil, fazendo recair sobre a A. o ónus de alegar os factos e formular a pretensão, circunscrevendo a acção no seu plano objectivo, ou seja, no que respeita à causa de pedir e ao pedido; certo é que os princípios da oficiosidade e da cooperação (arts. 265° e 266°, do CPC) privilegiam a decisão de fundo em detrimento das questões formais, com o objectivo de propiciar, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, ao passo que o princípio da economia processual impõe que o resultado processual deve ser atingido com a maior economia de meios. Assim, no despacho pré-saneador (art° 508° do CPC), com vista à regularização da instância processual e das irregularidades dos articulados, pode o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
7- Todos estes princípios, exigiam do Tribunal a quo "algo mais" do que proferir sentença que absolveu os RR. da instância, até porque, na decisão da causa, não está o juiz sujeito e vinculado ao Direito alegado pelas partes. Assim,
8- Há muito que a doutrina portuguesa vem defendendo – e a Jurisprudência acolhendo – a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais, imposta pelos ditames da boa fé em situações de utilização abusiva da personalidade colectiva do ente societário, enquanto válvula de escape em situações anti-sistémicas, de uso abusivo daquela, para iludir/prejudicar terceiros, em que inexiste uma norma expressa que imponha alguma proibição.
9- Certo é que a Sentença recorrida nenhuma referência faz a esse respeito, olvidando assim que a personalidade colectiva, ficção jurídica que é, não pode ter uma finalidade redutora, ou seja, não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção de práticas contrárias à ordem jurídica – práticas ilícitas, - a personalidade colectiva.  
10- Não existe a necessidade de recorrer a uma norma legal expressa para responsabilizar os sócios e gerentes de uma sociedade, que recorrendo a esquemas dilatórios (a cessão de créditos inexistentes) delapidaram o património societário, transferindo-o para uma nova sociedade, que tem como sócios os seus familiares directos e que vem exercendo a mesma actividade, património e trabalhadores (ou seja, todos os meios de produção) da sociedade devedora descapitalizada! E o mesmo se aplica a quem figura no título constitutivo de uma sociedade, para a qual foram transferidos património e trabalhadores (ou seja, todos os meios de produção) da sociedade devedora descapitalizada!
11- Pelo que, tendo em conta os factos alegados pela A., sempre a acção deveria prosseguir, com ou sem o despacho a que alude o art 508° do CPC, em ordem a aperfeiçoar qualquer insuficiência que a Petição Inicial apresente.

Os RR. “H”, “G”, “N”, “I”, “L” e “J” apresentaram contra-alegações, nelas defendendo a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
           
IV – O tribunal da 1ª instância não procedeu à especificação dos factos que se mostra possível desde já ter como provados, que, de todo o modo, visto que o R. “M” impugnou abrangentemente toda a matéria de facto alegada pela A. e vários RR foram citados editalmente, acabam por se reconduzir aos que se mostram provados por documentos autênticos e aos dizeres contidos nos documentos particulares juntos à petição.

Assim pode dar-se como adquirido:
1-”P” Pinturas SA, com sede na R. ... ..., em Lisboa, tem como objecto, “pintura e revestimentos de construção civil”.
2-Por deliberação de 31/3/2008 foram designados para o seu Conselho de Administração, relativamente ao quadriénio de 2008/2011, “H” para  Presidente do Conselho de Administração, e “I” e  “F” para Vogais do mesmo, sendo Fiscal Único, “D”, e suplente do Fiscal Único, “E”.
2- “H” e “I” renunciaram aos respectivos cargos em 5/1/2010, tendo sido designados para o preenchimento das respectivas vagas, respectivamente, “B” e “C”.
3- “Q” Revestimentos e Pinturas Lda, com sede na Rua ..., nº ..., Lisboa, que tem por objecto, “empreitadas de revestimentos e pinturas de construção civil”, e cuja constituição data de 20/1/2009, quando se constituiu tinha como sócios “M”, “N” e “J”, sendo o primeiro seu gerente. 
4- “M” renunciou à gerência em 22/10/2009 e transmitiu a sua quota a “L” e a “J”, passando este a ser gerente da “Q” por deliberação de 22/10/2009.
5- A A. é uma sociedade unipessoal por quotas que exerce a actividade de construção civil pinturas e revestimentos.
6 -A fls 38 dos autos consta um escrito datado de 30/6/2009, respeitante ao que nele é designado por “contrato de cessão de crédito”, que se mostra assinado sobre o timbre de ““P” Pinturas SA” e de ““A”, Lda”, nos termos do qual, sendo a “P” sua primeira outorgante e a “A” sua segundo outorgante, aquela declara deter sobre a “R” & Filhos, S.A. um crédito, já vencido, no montante de € 82.120,49, e cede-lo à segunda pelo preço de € 82.120,49, de que esta já deu quitação e que constitui pagamento parcial do seu crédito à cedente no montante de € 142.821,99.
7- A fls 39 dos autos consta um escrito datado de 30/9/2009 respeitante ao que nele é designado por “contrato de cessão de crédito”, que se mostra assinado sobre o timbre de ““P” Pinturas SA” e de ““A”, Lda”, nos termos do qual, sendo a “P” sua primeira outorgante e a “A” sua segundo outorgante, aquela declara deter sobre “S” & Filhos S.A um crédito, já vencido, no montante de € 57.714,84 e cede-lo pelo preço de €  57.714,84 à segunda outorgante, tendo esta  dado quitação, mais declarando que o mesmo constitui pagamento parcial do seu crédito à cedente no montante de € 142.821,99.
8 - A fls 40 dos autos consta um escrito datado de 30/12/2009 respeitante ao que nele é designado por “contrato de cessão de crédito”, que se mostra assinado sobre o timbre de ““P” Pinturas SA” e de ““A”, Lda”, nos termos do qual, sendo a “P” sua primeira outorgante e a “A” sua segundo outorgante, aquela declara deter sobre “T”, Sociedade de Construção SA, um crédito, já vencido, no montante de € 51.662,99 e cede-lo a à segunda outorgante pelo preço de € 51.662,9, de que esta já deu quitação e que constitui pagamento parcial do seu crédito à cedente no montante de € 142,821,99.
9 - A fls 41 dos autos consta um escrito datado de 30/12/2009 respeitante ao que nele é designado por “acordo de pagamento de divida”, que se mostra assinado sobre o timbre de “P” Pinturas SA e de “A”, Lda, nos termos do qual sendo a “P” primeira outorgante e a “A” segundo outorgante, aquela declara dever ao segundo outorgante o montante de € 142.821,99 e que, através de cessões de crédito acordadas em 01/09/09, 30/09/09 e 30/12/09, a cessionária se compromete a dar quitação total desta dívida, independentemente da concretização dos recebimentos dos créditos já cedidos, comprometendo-se ainda a cessionária a restituir à “P” Pinturas, SA a importância de € 43.376,33 logo que obtiver a cobrança do crédito cedido sobre a sociedade “R”. S.A.
10- Em 04/06/2010 a sociedade “R” & Filhos, SA, foi declarada insolvente, pelo 3° Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, no processo n° .../10.0TYVNG.
12- “U”, ... SA, em 13/1/2010 veio requerer a declaração da insolvencia de “P” – Pinturas Lda, correndo termos o respectivo processo no 1º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, onde foi já declarada a respectiva insolvência por sentença de 13/8/2010.
13- A fls 42 dos autos consta um escrito datado de  22/03/2010 que tem por assunto “cedência de créditos”, e em que  “R” & Filhos. SA, declara dirigindo-se à A., que, do valor cedido pela “P”, € 21.413,63 não se encontram vencidos, por dizerem respeito a retenções de garantia e que não aceita o débito de € 6.168.62, relativo a juros.
14- A fls 43 dos autos consta um escrito datado de 26/04/2010,que tem por assunto “suspensão de actividade”, e em que  “R” & Filhos. SA. comunica ter sido citado para acção de declaração da sua insolvência.
15 - A fls 45 consta um escrito datado de 26/02/2010 dirigido à “P” em que “S” & Filhos SA", declara que não aceita a cedência do crédito solicitada, por não estar vencido, por falta de "medição de obra", por respeitar a trabalhos não executados em consequência do abandono da obra pela “P”, e que em 30/10/2009, havia comunicado à “P” que iria imputar-lhe todos os custos "para assegurar a conclusão dos trabalhos e entrega da obra".

IV – Das conclusões das alegações resultam para apreciação as seguintes questões:
- Saber se a sentença recorrida enferma de nulidade nos termos da al b) do nº 1 do art 668º CPC por falta de especificação, quer dos factos, quer do direito que justificam a decisão.
- Saber se a acção, ao invés de ter sido tida como improcedente logo em sede de despacho saneador, deveria ter prosseguido, com imediata selecção da matéria de facto a provar, ou com eventual recurso a despacho de aperfeiçoamento nos termos do art 508º/3 CPC, na medida em que se deverá entender, na opinião do apelante, que a  matéria de facto alegada contém os elementos essenciais para se lograr a responsabilização dos RR. – ao menos, dos que sejam sócios ou gerentes da “P” – em função da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais.

1 - Entende a A. apelante que a sentença recorrida enferma de nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, invocando a al b) do nº 1 do art 668º CPC.
È verdade, como acima se fez notar, que o Exmo Juiz a quo não especificou os factos que o confronto dos articulados e a junção com eles de documentos permitiriam ter como já adquiridos, o que acabou por ser feito por este tribunal.
Não obstante essa omissão  - que, de todo o modo, agora se supriu - a verdade é que o Exmo Juiz a quo não proferiu a decisão da improcedência da acção de que apelante ora recorre à margem de qualquer factualidade. Apenas prescindiu de a elencar no momento e espaço próprio, na medida em que teve como pressuposto da decisão, a circunstância de que, mesmo que a A. lograsse provar toda a factualidade que invocara na petição - e que, de forma quase exaustiva o Exmo Julgador já  reproduzira na relatório da sentença -  ainda assim, não poderia obter a condenação dos RR, visto que aquela factualidade não se subsumiria ao disposto no art 78º/1 CSC, norma invocada pela A. para o efeito.
Diz-se, com efeito, na sentença em análise: «Caso a A. lograsse provar todos os factos materiais alegados na petição (muito do alegado neste articulado é matéria conclusiva e de direito), ainda assim, sempre a sua pretensão estria votada ao insucesso, desde logo por falta da alegação da prática, por qualquer dos RR., de qualquer facto susceptível de integrar o primeiro dos pressupostos de que, quer o art 483º/1 CC (quanto a todos os RR.), quer o art 78º/1 CSC (neste caso apenas quanto aos RR. administradores da “P”) fazem depender a procedência da presente acção intentada com fundamento na responsabilidade civil extra-contratual ou aquiliana: o facto ilícito».
 Daí que, não possa falar-se da nulidade da sentença em apreço, tanto mais que a mesma implicaria a omissão em absoluto da enunciação dos factos pertinentes para a conclusão jurídica impedindo o funcionamento do silogismo judiciário em que se analisa a estrutura da sentença, o que já se viu que acabou por não suceder. O juiz enunciou-os, embora no relatório da sentença, movido pelo pressuposto acima referido.
   
Tão pouco se mostra legitimo - e menos ainda - acusar a sentença recorrida de nulidade por falta de especificação dos fundamentos de direito, sendo despropositado afirmar-se, como o faz o apelante, que «nada se expendeu sobre a subsunção dos factos às normas jurídicas indicadas pela A. na petição inicial».
Desde logo, porque as únicas normas jurídicas invocadas pelo A. na petição com vista à subsunção da factualidade alegada, foram as dos arts 483º/1 CC e as dos arts 64º e 78º/1 CSC, esta referente aos deveres fundamentais que devem ser observados pelos gerentes ou administradores da sociedade, aquela referente à responsabilidade destes para com os credores da sociedade pela inobservância das disposições legais ou contratuais destinadas à sua protecção.
Ora, as considerações tecidas na sentença recorrida, assentam, precisamente, na análise desta norma do art 78º/1 CSC, resultando a improcedência da acção – com a consequente absolvição dos RR. do pedido (e não da instância, como, certamente, por lapso, se refere na conclusão 7ª)  - da circunstância do Exmo julgador ter entendido que os factos alegados pela A. não obteriam subsunção nesta norma,  não sendo sequer caso para se lançar mão do despacho de aperfeiçoamento.
Por isso, muito longe anda a sentença recorrida da censura implicada na arguição da nulidade em apreço que, pura e simplesmente, não se verifica.

2 - O que sucedeu foi que o Exmo Juiz da 1ª instância, tendo analisado criteriosamente os pressupostos de aplicação daquela norma do art 78º/1 CSC relativamente aos factos alegados pela A., tendo vindo a concluir que, sendo a responsabilidade aí prevista, uma responsabilidade subjectiva, por exigir que haja um comportamento culposo por parte do gestor ou administrador e porque a A. nenhum comportamento ilícito tinha imputado a qualquer dos RR., não podendo por isso lograr a responsabilização dos mesmos por tal via, não procedeu, subsequentemente, à análise dos factos alegados à luz do instituto da desconsideração da personalidade colectiva.
Repare-se, no entanto, que a A. não chega a invocar na sua petição este instituto, limitando-se - e apenas no último artigo da petição (art 72º) - a propósito da norma do art 82º/2 al b) do CIRE, a referir “em passant” a «desconsideração da personalidade jurídica e/ou da autonomia do património da sociedade que venha a ser declarada insolvente». Concretamente refere: «Tais direitos podem ser exercidos, mesmo no caso de ser declarada a insolvência da sociedade, conforme se encontra consagrado no art 82º/2 al b) CIRE, caso em que o Administrador da insolvência representa – e age no interesse - dos credores, o que bem demonstra que, nem a insolvência da “P” determinaria a caducidade dos direitos dos credores, relativamente aos administradores ou gerentes, por actos de administração danosa, e bem assim desconsideração da personalidade jurídica e/ou da autonomia do património da sociedade que venha a ser declarada insolvente».

Dispõe o art 660º/2 CPC que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, e que não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Não tendo sido suscitada pela A. a questão da aplicação à situação fáctica que traz aos autos do instituto da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais, não tinha o Exmo Juiz que proceder à análise dos factos à luz deste instituto. [1]
È verdade, porém, que – promovendo a prévia audição das partes, nos termos do art 3º/3 CPC - o poderia ter feito, na medida em que o juiz não está sujeito às alegações das partes, desde logo, no tocante à indagação (e não apenas à interpretação e aplicação) das regras de direito - art 664º CPC [2].
O que significa nas palavras de Alberto dos Reis [3] «que o juiz é livre na busca e escolha da norma jurídica que considera adequada. O autor ou o réu invoca determinada disposição legal; se o juiz entender que tal disposição não existe ou que, apesar de existir, não é a que se ajusta ao caso concreto em litígio, põe completamente de parte a indicação feita pela parte e vai buscar a regra de direito que, em seu modo de ver, regula a espécie de que se trata». Assim o juiz «pode e deve suprir ex officio as deficiências ou inexactidões das partes no tocante quer à qualificação jurídica do facto, quer à interpretação e individuação da norma». E conclui: «É livre o tribunal na qualificação jurídica dos factos, contando que não altere a causa de pedir».
Há, porém, como o mesmo autor adverte [4] , que não confundir a causa de pedir – acto ou facto jurídico de que procede a pretensão feita valer - com a qualificação, que é «o aspecto ou o prisma jurídico» sob o qual aquele acto ou facto jurídico vai ser encarado.

Ora, não tendo o Exmo Juiz encarado a causa de pedir na acção sob o prisma do instituto da desconsideração da pessoa colectiva – o que já se viu que não tinha que fazer, ainda que o pudesse ter feito – e porque os recursos servem para reapreciar questões já apreciadas e não questões novas – dir-se-ia que a apelante não poderia colocar a este tribunal de recurso a questão em causa.

Seria assim, “tout court” se, em última análise, o instituto da desconsideração da personalidade colectiva não radicasse, como radica, no instituto do abuso de direito  que, como é sabido, é  de conhecimento oficioso.[5]
  Refere Menezes Cordeiro a este respeito[6]: «O abuso do instituto da personalidade colectiva é uma situação de abuso de direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificada a propósito da actuação do visado, através de uma pessoa colectiva. No fundo, o comportamento que suscita a penetração vai caracterizar-se por atentar contra a confiança legitima (venire contra factum proprium, supressio ou surrectio) ou por defrontar a regra da primazia da materialidade subjacente  tu quoque ou exercício em desiquilíbrio)». Acrescentando, no entanto: «O atentado à boa fé deve sr muito nítido, para justificar o levantamento».
Refere também Brito Correia [7]  que a responsabilidade por desconsideração da personalidade colectiva pode fundamentar-se no art 334º do CC, sobre o abuso de direito, entendendo que a generalidade das pessoas têm o direito de constituir pessoas colectivas e de exercer actividades por intermédio delas, mas que esse direito tem “limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
 
Assim, e colocada como a questão está no presente recurso, deverá, pois, este tribunal aprecia-la.

Radica a chamada desconsideração da personalidade colectiva - também dita “superação” - numa concepção substancialista da personalidade colectiva; por outras palavras, uma concepção não absolutizadora da personalidade jurídica e consequente autonomia patrimonial. Por isso, «a desconsideração como instituto jurídico autónomo não é um fenómeno relativo à personalidade jurídica, mas sim à responsabilidade limitada …».
Nas palavras de Coutinho de Abreu [8]  «as sociedades – pessoas jurídicas - são (…) autónomos sujeitos de direito; estão “separadas” dos seus membros (sócios) – outros autónomos sujeitos de direito. Todavia essa separação não deve obnubilar-nos. A sociedade não vive por si e para si, antes existe por e para o(s) sócio(s); destes é ela instrumento (…) Por outro lado, o património da sociedade não está ao serviço de interesses da pessoa jurídica “em si”, mas sim do(s) sócio(s). Ora, é esta substancialista consideração da personalidade colectiva que abre vias para a “desconsideração” da mesma num ou noutro caso; é o tomar em conta do substracto pessoal e/ou patrimonial da sociedade que induz, por vezes, a “levantar o véu”[9] da personalidade, a derrogar o chamado “princípio da separação”». E define este autor a desconsideração da personalidade colectiva das sociedades como «a derrogação ou não observância da autonomia jurídico-subjectiva e/ou patrimonial das sociedades em face dos respectivos sócios».
 
Doutrina e a jurisprudência têm, de um modo geral, agrupado as condutas societárias reprováveis que podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade [10] autonomizando três situações: a confusão ou a promiscuidade entre as esferas jurídica da sociedade e as dos sócios; a subcapitalização da sociedade, seja originária, seja superveniente, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; e as relações de domínio grupal [11].
Em todas estas situações se verifica que a personalidade colectiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios. [12] 
Ou, como refere Pedro Cordeiro [13] «a própria sociedade (pessoa colectiva) desvia-se da rota traçada pelos ordenamento jurídico, optando por um comportamento abusivo e fraudulento que não pode ser tolerado na utilização funcional da sociedade»,  sendo «a sociedade  utilizada para mascarar uma situação, servindo de  véu para encobrir uma realidade».
Já Coutinho de Abreu [14] evidencia o denominador comum a estas situações, referindo que nesses “casos de responsabilidade” «a regra da responsabilidade limitada (ou de não responsabilidade por dividas socais) que beneficia certos sócios (de sociedades por quotas e anónimas, designadamente) é quebrada».

È a situação de subcapitalização superveniente da sociedade, que aqui nos interessa, por ser essa a que poderá estar em causa na situação fáctica dos autos.
 
A respeito da subcapitalização em sede de desconsideração da personalidade colectiva, distingue Coutinho de Abreu a subcapitalização nominal ou formal (não particularmente relevante nesta matéria e que tem lugar quando se verifica que a sociedade dispõe dos meios necessários ao exercício da sua actividade, resultando todavia tais meios, não tanto dos “capitais próprios” (fundamentalmente constituídos pelos bens correspondentes ao capital social e ás reservas) reconhecidamente insuficientes – mas sobretudo de empréstimos feitos pelos sócios), da material, que tem lugar «quando os capitais próprios são manifestamente insuficientes para a prossecução da actividade social e essa insuficiência não é suprida com empréstimos dos sócios».
 E acrescenta a este respeito: «Reconhece-se a legitimidade de os sócios actuarem através de sociedades que lhes proporcionam um risco limitado, o benefício ou privilégio da responsabilidade limitada. Porém, a limitação desse risco não deve ir ao ponto de a actividade social poder gerar benefícios apenas ou sobretudo para os sócios e gerar prejuízos principalmente para os credores sociais; a partilha dos riscos societários tem a sua medida, não podem os sócios alijar os seus e transferi-los para terceiros».

No artigo acima citado (nota 14) Coutinho de Abreu considera mesmo um outro grupo de “casos de responsabilidade” a merecer a aplicação da desconsideração da personalidade colectiva e que designa por “descapitalização provocada”. E refere:
«Imagine-se uma sociedade de responsabilidade limitada que tem problemas de liquidez (ou tê-los-á previsivelmente a curto prazo); os sócios (também administradores ou não, ou sendo alguns administradores, outros não) deslocam a produção (ou boa parte dela) para sociedade nova (com objecto idêntico ou similar) por eles constituída (intentando um “começar de novo” (…) a velha sociedade “já não dá nada” ) ou para sociedade já existente e de que eles são sócios; a primeira sociedade cessa a actividade ou diminui-a grandemente e a breve trecho fica exangue, impossibilitada de cumprir perante terceiros». E conclui: «Deve neste caso ser afirmada a desconsideração da personalidade jurídica da primeira sociedade, ser derrogada, ou não observada a regra da autonomia do património social (único a responder perante os credores da pessoa colectiva) em face dos (separados) patrimónios dos sócios e fazer responder estes (subsidiariamente) perante os credores sociais».

Questão imediata que se coloca, uma vez que se conclua pela pertinência da aplicação da desconsideração da personalidade colectiva, é a de saber que patrimónios individuais é que se deverão fazer responsabilizar.
 Com efeito, se, «desconsiderar significa derrogar o principio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que detrás actuam»[15], haverá, em cada caso, que apurar quem - dos sócios da sociedade devedora - está “por detrás” dos concretos actos que implicaram que essa sociedade «fosse aproveitada para fins que o legislador não previu, ou pelo menos não previu em toda a sua extensão»[16].  
Não pode é esquecer-se que, radicando em ultima análise, como acima se frisou, esta responsabilização directa e ilimitada dos sócios, no abuso do direito, este apenas implica a ilicitude do acto.
Mas a esta ilicitude, para se obter aquela responsabilização, tem de se somar a culpa destes (por dolo ou negligência), dano para os credores e nexo de causalidade entre aquele dano e o comportamento ilícito e culposo [17].

A este respeito, Coutinho de Abreu [18] faz notar que a responsabilização por via da desconsideração da personalidade colectiva é dos sócios, enquanto tais, e não dos gerentes.
E frisa: dos sócios das sociedades devedoras, não dos sócios das “sociedades novas”, ou destas mesmas sociedades.
No Código das Sociedades Comerciais [19],  ao contrapor o campo de aplicação  do art 78º/1, ao campo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade colectiva, refere: «Sujeitos responsáveis, segundo o art 78º/1, são os gerentes (de direito ou de facto), sejam sócios ou não sócios; os sócios gerentes respondem para com os credores sociais – verificados os pressupostos daquele preceito – enquanto gerentes (no exercício de funções de gestão e/ou representação, não enquanto sócios. Pela desconsideração da personalidade jurídica, somente sócios (enquanto tais) são atingidos, não gerentes; o sócio – gerente-  é responsabilizado por ser sócio, não por ser gerente. Estando em causa comportamentos dos gerentes (sócios) que entrem no campo de aplicação do art 78º/1, há que ir por aqui, não pela desconsideração da personalidade jurídica. Estando em causa certos comportamentos dos sócios (gerentes) – enquanto sócios - poderá ir-se pela desconsideração da personalidade colectiva».

Já entre os sócios, enquanto tais, e no campo da desconsideração da personalidade colectiva, não deixa de distinguir entre os sócios, ao referir que estando em causa «manifesta ou qualificada subcapitalização material» que se mostre «originária ou inicial (a desproporção anormal entre o capital social e a actividade que os sócios se propõem desenvolver através da sociedade é evidente logo que esta nasce)», «responderão (subsidiaria) mas ilimitadamente todos os sócios»; mas nos casos de subcapitalização superveniente só responderão subsidiária e ilimitadamente os sócios «controladores» da sociedade [20] [21]

Feitas estas considerações genéricas a respeito do instituto cuja aplicação está em causa, importa agora considerar as concretas alegações da A.
Assim:
A A. alegou ser credora da “P” pelo valor de € 142.821,99 em função de serviços que lhe prestou em 2008 e 2009 – arts 8º e 9º
Porque ela, A., é uma pequena empresa de reduzidos recursos financeiros que executa subempreitadas, e se debatia com graves dificuldades financeiros em função da dívida da “P”, viu-se obrigada a aceitar a cedência de créditos da “P” sobre a “R” & Filhos, S.A., a “S” & Filhos S.A, e a “T”, Sociedade de Construção SA, que esta lhe impôs, e que tiveram lugar em 30/6/2009, em 30/9/2009 e em 30/12/2009.
No entanto a “P” tinha conhecimento de que não possuía créditos vencidos sobre essas três sociedades que lhe permitissem, através da respectiva cessão, pagar a dívida à Autora. – art 35º

 A conduta dos réus teve por fito e fim prorrogar o incumprimento da “P”, através de esquemas fraudulentos, enquanto "tratavam" de delapidar o respectivo património, como efectivamente fizeram – arts 36º e 37º
A “P”, relativamente ao exercício do ano de 2009, declarou um volume de negócios de € 2.940.943,30. – art 39º
A A., apesar das múltiplas diligências que efectuou para cobrança da dívida, não conseguiu localizar qualquer património de que a “P” fosse proprietária.- art 40º
 A “P” cessou toda a actividade – art  41º
Está a ser executada no valor total de € 178.603,11, em diversas execuções fiscais - art 42º
Tem em curso acções no Tribunal do Trabalho de Lisboa instauradas por trabalhadores a reclamarem créditos emergentes dos contratos de trabalho, alegando que a “P” vem transferindo os contratos de trabalho para outra sociedade -.art 43º
 O património da “P” foi delapidado e transferido para outras sociedades, por forma a que os credores não conseguiram satisfazer os seus créditos – art 44º
A “P” transferiu parte do seu património para a  "“Q” - Revestimentos e Pinturas, Lda.", que foi constituída em 22/10/2009 - art. 45º
 Os sócios desta sociedade são filhos do accionista e administrador da “P”- “I” - art 46º.
A “Q” está a laborar nas instalações que anteriormente pertenciam à “P” - art 47º
E desenvolve a mesma actividade que esta anteriormente desenvolvia – art 47º
A pessoa que assina os cheques da “Q” é “I”, que era o Administrador da “P” – art 48º.
A pessoa que figura como representante legal na declaração de IRC referente ao exercício de 2009, apresentada em 31/5/2010 pela “P”, é o 7° Réu, “H”. – art 49º
A “Q”, apresentou em 2009 "proveitos" do exercício no valor de € 119.448,16.
 “O”, 13° R., é Técnico Oficial de Contas da “Q”, desde a constituição desta sociedade, e assinou a declaração de IRC (Modelo 22) desta sociedade e a  da “P”, relativas ao exercício de 2009, ambas apresentadas em 31/5/2010 – art 51º
 A  “P” tem em curso um processo de insolvência, que corre termos no Tribunal de Comércio de Lisboa. 1° Juízo, processo n° .../10.9TYLSB – art 52º
“I”, em conluio com os demais RR. constituiu a “Q”, por ele totalmente controlada através da qual exerce a actividade que constituía o objecto social da “P”  - art 63º
Os RR. “J”, “L”, “M” e “N”, com o necessário acordo dos demais RR. delapidaram todo o activo da “P” que integraram na património da “Q”, visando frustrar os direitos dos credores –  art 64º
Os RR “F”, “G”, “H”, “I” “J” “L”, “M” e “N” -   5º a 12º RR. – têm todos entre si relações de parentesco.

Destas alegações – e apesar de algumas apenas se terem tornado mais compreensíveis em função das alegações de recurso, como a constante do art 36º - resulta, em resumo, que sendo a “P” em 2009 devedora à A. da quantia de € 142.821,99, lhe impôs, nesse ano, como forma de pagamento desse crédito, três cessões de créditos, sobre três suas alegadas devedoras, dizendo-lhe que esses créditos estavam vencidos, eram líquidos e exigíveis, sabendo no entanto que não possuía créditos vencidos sobre duas dessas alegadas devedoras. Esta conduta – com as inerentes demoras até a A. se aperceber da inexistência de parte daqueles créditos –  teve como  propositado fim, por parte da totalidade dos RR, que se achavam entre si e para esse efeito, conluiados, o de prorrogar o incumprimento da “P”, tratando-se de uma mera manobra destinada a que os RR. – sendo que, os 5º a 12º têm todos entre eles relações de parentesco - conseguissem nesse entretanto delapidar e transferir para outras sociedades o património da “P”. Tendo designadamente, transferido património para a sociedade “Q”, constituída em Outubro de 2009, e cujos sócios são filhos de “I” que foi administrador da “P” e que, ao assinar agora cheques da “Q”, age como seu gerente de facto. Sendo que a “Q” labora nas instalações que pertenciam à “P”, desenvolve a mesma actividade que esta desenvolvia, e eventualmente com trabalhadores que pertenciam àquela.    

Para o que agora releva – e que é essencialmente saber se a acção, ao invés de ter sido julgada desde já como improcedente, deveria prosseguir - é obviamente irrelevante que parte dos factos alegados possam não ser verdadeiros, como o referem os RR. contestantes “H”, “G”, “N”, “I”, “L” e “J”.

Desde já se salientando que, como o faz relevar Coutingo de Abreu [22], «não devem beneficiar da referida responsabilidade ilimitada dos sócios – a que conduz a desconsideração da personalidade colectiva - os credores (…) que conheciam a situação de subcapitalização e/ou assumiram voluntariamente, com escopo especulativo, os riscos», sendo por isso relevante apurar se, efectivamente, as alegadas cedências de créditos foram “impostas” à A., ou, ao invés, “impostas” por ela à “P”.

Como será, apesar de tudo, neste momento, precipitado, afastar réus da demanda, pese embora, como acima se referiu, só faça sentido a responsabilização dos que sejam (ou tivessem sido aquando do “conluio”? ) sócios da “P”, não podendo  o instituto da  desconsideração da personalidade colectiva lograr, senão, a superação do património da sociedade devedora e não, como o refere Coutinho de Abreu, a da nova sociedade.
  
Com o que se veio de dizer, acaba de se assumir que a petição contém, apesar de tudo (e, sobretudo, da fragilidade da alegada “manobra” referente à utilização das cessões de créditos consabidamente inoperantes para o pagamento da dívida à A., para, nesse entretanto, “delapidarem” e “transferirem” o património da “P” para a “Q”)  – os factos essenciais à prossecução da acção para se apurar de uma possível desconsideração da personalidade colectiva da “P” e respectivas consequências.
Com efeito, apesar de não se verificando denominadores comuns entre os sócios daquela sociedade e os da “Q”, não pode deixar de se admitir em abstracto e em   sede de despacho saneador, que as alegadas relações de parentesco entre uns e outros, a circunstância de desenvolverem a mesma actividade social nas mesmas instalações, eventualmente com trabalhadores comuns, tendo os RR., ou pelo menos os que na “P” decidiam, feito  transitar património daquela sociedade para esta, e em face da possibilidade de “I” agir como gerente de facto da “Q”, possam corresponder a  factos bastantes para - provando-se – poderem vir a  integrar um verdadeiro abuso do direito da personalidade colectiva da “P”, tornando todos ou alguns dos sócios desta como responsáveis pela (parte) da dívida da A. que não tenha sido satisfeita com os créditos cedidos.[23]

Note-se que o facto da “P” ter pendente processo de insolvência, tendo, ao que parece, sido já declarada a sua insolvência, não afecta este possível resultado, pois o que a pendência daquele processo afasta é a legitimidade dos credores para a acção  autónoma a que se refere o art 78º/1 CSC. Neste sentido mostra-se muito claro o art   82º/2 b) CIRE que se deverá entender como tendo revogado tacitamente o nº 4 do art 78º/1 CSC [24], pois que  na pendência do processo de insolvência é o administrador da mesma quem tem legitimidade exclusiva para «propor e fazer seguir as acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à insolvência».
Na verdade, o resultado pretendido pela A. não afecta o património social da “P”, mas o dos respectivos sócios, em nada podendo ferir o princípio da par conditio creditorum que inspira a solução daquela al b) do nº 2 do art 82º CIRE

Por outro lado, não pode deixar de se referir que tem razão o Exmo Juiz a quo quando refere que muitas das alegações contidas na petição inicial têm carácter conclusivo.
Ora, o despacho de aperfeiçoamento tal como está gizado no nº 3 do artt 508º CPC tem também como objectivo o de potenciar à parte a quem é dirigido proceder ao esclarecimento, à explicitação dos conceitos de direito e/ou conclusivos utilizados [25].
Deverá assim, segundo se crê, ser a A. convidada nos termos dessa disposição legal para explicitar, pelo menos, o alegado nos arts 43º, 44º e 45º da petição no sentido de esclarecer se os trabalhadores que intentaram acções contra a “P” alegam a transferência de contratos de trabalho, concretamente, para a “Q”, de que concreto(s) modo(s) foi  “delapidado”  o património da “P”, para que sociedades foi o mesmo “transferido”, e que concreto património dessa sociedade foi transferido para a “Q”, alegando-se datas e formas dessa transferência.


V- Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar procedente a apelação, revogar a sentença recorrida, e ordenar a prossecução da acção com a prolação de despacho de aperfeiçoamento destinado ao esclarecimento, pelo menos, das alegações acima referidas.

Sem custas.
           
Lisboa, 29 de Março de 2012

Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto
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[1] Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil anotado», 1981, V, p 143. Refere: «Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que segundo as várias vias à partida plausíveis da solução do pleito – art 511º/1 - as parte tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido.
[2] «Código de Processo Civil anotado», Lebre de Freitas/ Montalvão Machado/ Rui Pinto, II,  anotação ao 467º: «A fundamentação de direito, não tendo embora função individualizadora da pretensão, não deixa de constituir um ónus , na medida em que o autor, se não fizer, no mínimo, a indicação da norma jurídica ou do principio jurídico que tenha como aplicável , não poderá vir aarguir a nulidade da sentença que venha a ser proferida, sem previa audição das partes , com fundamento jurídico que elas não tenham anteriormente considerado.
[3] Código de Processo Civil anotado», 1981, V, p 93
[4] - Obra citada, p57
[5] A regra de que é vedado suscitar em recurso questões novas não é aplicável ao abuso de direito, que é de conhecimento ofícios – RC 20/4/93, B 426º-540; A apreciação do abuso de direito pode ter lugar oficiosamente, pois está em causa um principio de interesse e ordem pública – Ac RC 15/10/91, B 410º-882; O abuso de direito é de conhecimento oficioso do tribunal. A regra de que nos recursos é vedado decidir problemas novos não pode deixar de ser afastada, se houver obrigatoriedade de conhecimento ofícioso de determinada questão – Ac RL 15/3/1988, B 375º-435; A circunstância de as partes não terem alegado o abuso de direito não obsta ao seu conhecimento oficioso apenas no tribunal superior – Ac RC 17-11-1987, CJ V, 34
[6]«Manual do Direito das Sociedades» I, 370
[7]  «»Direito Comercial», II, Sociedades Comerciais, 1989, ed AAFDL p 227, 230, 245, 240 e 242
[8] «Curso de Direito Comercial», II, 3ª Ed, 176 e ss
[9] O fenómeno começou por ser designado nos EUA (país onde primeiro surgiu) por “piercing the veil”.
[10] Coutinho de Abreu, obra citada; este autor começa, no entanto, por distinguir dois grupos de casos : os que designa como casos de imputação e os que designa como casos de responsabilidade, sendo nestes que autonomiza as acima referidas situações, evidenciando que são estes que mais directamente  interessam no instituto em causa.
[11] Diz-se no Ac STJ 3/2/2009, in www.dgsi.pt (Paulo Sá): «Para além destas situações  também se podem perfilar outras em que a sociedade  comercial é utilizada pelo sócio  para contornar uma obrigação  legal ou contratual que ele, individualmente, assumiu, ou para encobrir  um negócio contrário á lei, funcionado como interposta pessoa»
[12] Menezes Cordeiro, «O Levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial» 2000, p 122
[13] «A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comercias»,  73, nota 75
[14] «Direito das Sociedades em Revista», Março de 2010, Ano 2, Vol 3º
[15] Pedro Cordeiro, obra citada, p 13 
[16] De novo Pedro Cordeiro, p 18, 20
[17] No caso de descapitalização provocada é violado o dever de lealdade - o dever que impõe que cada sócio não actue de modo incompatível com o interesse social ou com interesses de outros sócios relacionados com a sociedade
[18] Artigo citado e «Código das Sociedades Comerciais anotado»   
[19]  «Código das Sociedades Comerciais em Comentário»  I, anotação ao art 78º C Com
[20] Curso de Direito Comercial , II,ed , 182
[21] Ainda a este respeito, cfr Ac R P  26/6/2007 (Afonso Correia),C II, 137, onde se diz:« Qual a bitola do abuso (institucional) e a fronteira do não abuso? Quando podemos afirmar com segurança que o comportamento dos sócios foi abusivo? Para ajudara resolver esta indefinição, temos defendido que a relevância do abuso carece do requerimento de uma actuação em fraude à lei. Nesta está abrangida a existência de um efeito prejudicial a terceiros. Logo interessará sempre visualizar na conduta do agente (sócio) uma combinação de actos, ainda que formalmente lícitos, par atingir um fim ilegítimo, visível num resultado danoso: o desfavorecimento dos interesses de autonomia e suficiência económica patrimonial da sociedade que se actualiza no momento da insatisfação dos direitos creditícios, resultado da delapidação do património social».
[22] - «Curso de Direito Comercial», p 182, em  nota
[23] Veja-se o Ac R P de 15 /10/2001, (Fonseca Ramos) in CJ, IV, 216 em cujo sumário se diz.:«I- Actuam com abuso de direito da personalidade colectiva que a lei empresta às sociedades comerciais, desvirtuando a finalidade da respectiva atribuição, os sócios gerentes de uma sociedade comercial que, esvaziando o património social desta e fazendo cessar por completo a sua actividade, constituem uma nova sociedade, com os mesmos sócios, o mesmo objecto social, os mesmos empregados, obrigando-se com as mesmas assinaturas, e com a sede no mesmo local, só para privar os credores daquela de poderem satisfazer os seus créditos. II- Sendo assim , é legitima a derrogação do principio da separação entre o ente societário e as pessoas que em nome e representação dele actuam, podendo os credores pedir o arresto sobre os bens que constituem o património pessoal daquelas ( no caso os sócios gerentes) verificados os requisitos de tal providência cautelar»
[24] Coutinho de Abreu, »Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades», 2ª ed, IDET, 82
[25] - Neste sentido, Abrantes Geraldes, «Temas da Reforma do Processo Civil», II 4ª ed, p 75/76: « A alusão efectuada pela lei às imprecisões da matéria de facto anda ligada à deficiente concretização, nomeadamente quando não é respeitada a distinção entre matéria de facto e de direito, quando são feitas afirmações de pendor conclusivo ou quando a versão apresentada suscita algumas dúvidas, embora sem tornar em ininteligível a posição assumida».