Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2476/2004-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: PODER PATERNAL
CONFIANÇA JUDICIAL DE MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/01/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: Desde que o interesse do menor o reclame, este poderá ser confiado aos cuidados de terceira pessoa, ainda que existam progenitores em condições que possam exercer o poder paternal.
O conceito de interesse do menor tem de ser entendido em termos suficientemente amplos de modo a abranger tudo o que envolva os legítimos anseios, realizações e necessidades daquele e nos mais variados aspectos: físico, intelectual, moral, religioso e social. E esse interesse tem de ser ponderado casuisticamente em face de uma análise concreta de todas as circunstâncias relevantes.

A entrega do menor a terceira pessoa terá de ser vista como uma exigência quando haja perigo para a segurança, saúde, formação moral e educação do menor, nos termos do art. 1918º do CC.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.
No Tribunal de Família e Menores da Comarca de Vila Franca de Xira, o Ministério Público instaurou a presente acção tutelar comum, relativamente à menor A. C., nascida a 09.07.1992, contra M. S., C. R. e J. C., moradoras em Benavente, pedindo que a menor seja confiada aos requeridos Clotilde e José.
Para o efeito alega, em síntese, que o pai da menor é já falecido e que a menor vive com os requeridos C. R. e J. C., que são os seus avós maternos, com os quais tem vivido desde o nascimento, excepto por curto período em que foi entregue, por decisão judicial, à requerida M. S., sua mãe, mas, logo de seguida restituída aos avós por decisão da própria mãe.
Prosseguiram os autos os seus trâmites, procedendo-se a audição dos requeridos avós e da menor, manifestando estes adesão à pretensão do Ministério Público.  Foram juntos documentos e a relatório social.
A mãe da menor faltou a todas as convocatórias.
Por fim, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente.
Inconformado com a decisão, veio o Ministério Público interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
 (…)
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde foram colhidos os legais vistos, pelo que, nada obstando ao conhecimento da apelação, cumpre decidir.
A questão a resolver é a de saber se a menor deve ser entregue aos cuidados dos avós, com quem tem vivido desde o nascimento.

II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
(…)

III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.
Pede na acção o ilustre magistrado do Ministério Publico que a menor A. C. seja entregue aos cuidados dos avós maternos, os ora requeridos J. C. e C. R., com quem a menor sempre tem vivido desde que veio a este mundo, no dia em 9 de Julho de 1992.
Não se suscita dúvida de que o poder paternal relativo à menor A. C. cabe, por força da lei (art. 1904º do Código Civil) à respectiva mãe, a requerida M. S., atendendo ao facto de seu marido e pai da menor haver falecido, até antes da menor ter nascido.
Sucede, todavia, que a menor sempre tem estado aos cuidados dos avós, não tendo vindo a mãe a exercer as funções inerentes ao poder paternal, nem mostrando até interesse e vontade nesse sentido, pois que não contribui para o sustento da filha e só esporadicamente com ela se relaciona, apesar de viver na mesma rua. A própria mãe da menor aceita a conveniência de aquela continuar junto dos avós. De resto, tendo a menor vivido uns dias com a mãe, em 1998, por vontade desta última voltou para companhia dos avós. E é com estes que a menor Augusta gosta de viver.
Acresce que os avós, estando disponíveis para ter consigo a menor,  têm vindo a acompanhar a sua actividade escolar e a prover às suas necessidades, para o que dispõem de condições bastantes, nomeadamente algum desafogo financeiro e espaço próprio para a acolher na sua casa de habitação. Condições de que a mãe não parece dispor, até por estar a trabalhar e a viver com um companheiro e um filho de ambos, ainda criança.
Do que decorre que a menor A. C., por vontade de todos sem excluir a sua, tem estado de facto confiada aos avós maternos e todos desejam que esta situação se mantenha, o que também parece ser do inteiro interesse da mesma menor.
Note-se que não é objecto da presente acção, nem para tal parece existir justificação, inibir a mãe do exercício do poder paternal, mas tão só dar cobertura legal à situação factual da confiança da menor aos avós.
Sem prejuízo do exercício do poder paternal na parte não prejudicada, o art. 1907º/1 do CC prevê a possibilidade de o filho menor ser confiado a terceira pessoa, obviamente quando o interesse do mesmo menor o imponha. No mesmo sentido e de modo mais explícito, estabelece o art. 180º/1 da OTM que o exercício do poder paternal será regulado de harmonia com os interesses do menor, podendo este, no que respeita ao seu destino, ser confiado à guarda de qualquer dos pais, de terceira pessoa ou de estabelecimento de educação ou de assistência. E o n.º 4 do mesmo normativo reportando-se à eventualidade de o menor ser confiado a terceira pessoa, ou a estabelecimento de educação ou de assistência, prevê a atribuição do poder paternal a um dos progenitores na parte não abrangida pelos poderes e deveres para o adequado desempenho das funções da entidade a quem o menor for confiado.
Quer dizer: desde que o interesse do menor o reclame poderá este ser confiado aos cuidados de terceira pessoa, ainda que o menor possua algum dos progenitores em condições de lhe caber o exercício do poder paternal. O que importa é que se aconselhe a confiança do menor a pessoa diferente do progenitor. Sendo que o conceito de interesse do menor tem de ser entendido em termos suficientemente amplos de modo a abranger tudo o que envolva os legítimos anseios, realizações e necessidades daquele e nos mais variados aspectos: físico, intelectual, moral, religioso e social. E esse interesse tem de ser ponderado, casuisticamente, em face de uma análise concreta de todas as circunstâncias relevantes a conhecer do caminho indicado para a sua realização.
A solução da entrega do menor a terceira pessoa terá até de ser vista como uma exigência quando haja perigo para a segurança, saúde, formação moral e educação do menor, tal como previne o art. 1918º do CC, que também nessa situação, e até por maioria de razão, admite a entrega do menor a terceira pessoal, mesmo que aquele perigo não constitua fundamento para a inibição do exercício do poder paternal.
Ora, na situação da menor dos autos todas as circunstâncias aconselham que se mantenha a confiança daquela aos cuidados dos avós, como estes aceitam, a menor deseja e a mãe considera conveniente. De resto não tem esta acção por objectivo modificar a situação de facto existente, nem faria sentido modificar o que quer que fosse quando os interesses da menor, com o beneplácito de todos, convergem no sentido de a manter e de a proteger em face da lei.
Existe uma situação de facto, quanto ao desempenho do poder paternal em relação à menor, que no seu interesse importa ser mantido, mas a que é necessário dar cobertura legal, para que os interesses da menor sejam devidamente acautelados. Na verdade, merece concordância a alegação do Ministério Público quando diz que a confiança judicial da menor aos avós é uma  exigência decorrente de imperativos do quotidiano  -  legitimação dos avós acompanharem o seu percurso escolar, poderem inscrevê-la nos seus serviços sociais de saúde e inseri-la no seu agregado para efeitos tributários -  como também para acautelar as regalias a que a menor tenha direito.
E não será despiciendo acrescentar que não podendo, ou não querendo, os progenitores assumir a plenitude do exercício do poder paternal e a haver uma partilha em tal exercício, por regra, serão os avós as pessoas que estarão em melhores condições para suprirem as faltas ou omissões daqueles. É que, consciente da importância da família na formação e crescimento do menor, a nossa lei até consagra (no art. 1887º-A do CC) o direito de o menor se relacio­nar com os ascendentes, reconhecendo-lhe, assim, direito ao conhecimento e à relação com uma família alargada, que se não confine à estrita ligação com os seus progenitores. Esta norma, para além de significar um direito do menor ao convívio com os avós também significa um direito destes ao convívio com o menor.
Como assinala Maria Clara Sottomayor, “a lei pre­tende tutelar a expressão de amor e de afecto entre os membros da família, a importância da ligação afectiva e do auxilio mútuo entre as gerações”[1].
E a lei não faz mais do que ir ao encontro das realidades da vida, já que  não raros são os casos, por variadas razões, em que os avós são chamados a assumir as responsabilidades pelos netos, por serem os entes mais próximos e capazes para a sua custódia e auxílio no crescimento.
Certo é que em qualquer caso, a relação entre avós e netos merece a tutela da lei, por o interesse do menor assim o exigir, que vai no sentido de proteger e incentivar tal relação, como constitutiva de uma “grande família”, onde a criança, ou o menor, possa crescer em união com aqueles que a precederam e lhe deram a vida, sobretudo se esse relacionamento for positivo para o seu desenvolvimento psicossomático e moral, como, por regra, sucederá.
O caso dos autos parece espelhar tal situação, pelo que se entende que o Ministério Público tem razão ao pugnar pela procedência da acção e do recurso, por não haver obstáculo legal à confiança da menor aos cuidados dos avós, antes se aconselhando tal confiança na perspectiva dos respeitáveis interesses daquela.
Afinal se os avós tem vindo a assumir as obrigações inerentes à confiança da menor Augusta, suprindo as omissões da progenitora no exercício do poder parental, parece da mais elementar justiça que se lhes reconheça o direito à sua custódia, para que esta, sendo legítima,  também deva ser havida por legal.

Procedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de revogar a decisão recorrida e de dar procedência à acção.

IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento à apelação e revoga-se a sentença recorrida, julgando-se a acção procedente por provada e ordenando a confiança da menor A. C., nascida a 09.07.1992, aos seus avós maternos J. C. e C. R.

Sem Custas.

Lisboa,  1 de Abril de 2004. 

PEREIRA RODRIGUES
FERNANDA ISABEL PEREIRA
MARIA MANUELA GOMES
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[1] in “Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio”, pg. 119-120.