Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7063/2005-9
Relator: CID GERALDO
Descritores: INFIDELIDADE PATRIMONIAL
SOCIEDADE
SÓCIO
ASSISTENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I - Está em causa a prática de um crime de infidelidade p. e p. no artº 244º do C.P., de natureza semi-pública, relativamente a uma sociedade e verifica-se a invocação de prejuízos patrimoniais por virtude de actos praticados pelo arguido.

II – O MºPº decidiu-se pelo arquivamento do inquérito considerando, para além do mais, não estar o direito de queixa validamente exercido por ter sido apresentada a queixa por uma sócia e não pela sociedade.

III – Do despacho que admitiu a queixosa a intervir como assistente e que deferiu a abertura de instrução concomitantemente requerida interpôs recurso o arguido, recurso este que merece provimento uma vez que “...estando em causa um alegado crime de infidelidade administrativa relativamente a interesses patrimoniais da sociedade, é o património desta o bem jurídico tutelado pela incriminação e, como tal, será esta a titular do interesse imediata e directamente tutelado pela norma incriminadora”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9.a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

1 - No processo n° 307/04.8TAPDL, do 10 Juízo do Tribunal da Comarca de Ponta Delgada, (M) apresentou queixa crime contra (L), imputando-lhe a prática de factos susceptíveis de integrar um crime de infidelidade do art. 2240 do C. Penal.

Concluído o inquérito o magistrado do Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, considerando, para além de mais, que a queixosa não tinha legitimidade para deduzir a queixa pelo crime de infidelidade p. e p. pelo art. 224º do C.P., de natureza semi-públíca, ainda que na qualidade de sócia uma vez que, a haver prejuízo, o mesmo incidiria sobre o património da sociedade que não se confunde com o património dos sócios.

No seguimento deste despacho a queixosa requereu a intervenção como assistente e a abertura de instrução, tendo por objecto a legitimidade do exercício do direito de queixa, alegando em síntese, que a queixosa na qualidade de sócia tem legitimidade para o exercício do direito de queixa enquanto detentora de uma quota-parte do património da sociedade lesada sobre o citado requerimento recaiu despacho de fls. 19 dos presentes autos que admitiu a intervenção de (M) na qualidade de Assistente e deferiu a abertura de instrução.
Deste despacho recorre o arguido alegando que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que declare a ilegitimidade da queixosa para se constituir assistente.
Nas alegações de recurso o arguido considerou sucintamente que o bem
jurídico protegido pelo crime de infidelidade, no caso dos autos, é o património da sociedade lesada e não o património dos sócios, uma vez que é o património da sociedade que é directamente afectado pela conduta do arguido e, por isso, só ela tem legitimidade para se constituir como assistente
O magistrado do Ministério Público apresentou a sua resposta defendendo que a queixosa (M) não tem legitimidade para participar criminalmente contra o arguido pela prática do crime de infidelidade em virtude de não intervir nos autos na qualidade de legal representante da sociedade ofendida, pelo que a decisão recorrida deverá ser revogada devendo ser substituída por outra que não admita a queixosa a intervir nos autos como assistente.

Contra-alegou a Assistente (M), entendendo que a legitimidade da sociedade enquanto pessoa jurídica para se constituir assistente, não afasta a dos seus sócios que mais não são do que co-proprietários daquela, ou seja, o facto da sociedade ser uma pessoa jurídica autónoma dos seus sócios, em nada anula que o seu património é propriedade dos seus sócios na justa proporcionalidade das suas quotas. Assim sendo, toda e qualquer lesão do património, como foi o caso concreto, traduz-se numa lesão efectiva do património dos sócios, sendo que estes têm aqui um interesse directo. E, no caso concreto, em que a maioria do capital da Cybermap, é detida pelo arguido e pela sua esposa, é óbvio que a sociedade, detida na sua maioria por estes sócios, jamais iria fazer uso do direito de queixa que lhe assiste. Pergunta-se então se assim sendo, ficará vedado a um sócio minoritário o direito de queixa pelo crime previsto e punido pelo art° 224º do CP. O entendimento perfilhado pelo recorrente, permite que tal como neste caso concreto, os sócios maioritários
gozassem de imunidade perante este e outros tipos legais de crime, na medida em que a detenção da maioria do capital lhes permite determinar a vontade da sociedade, que no caso concreto seria de não apresentar queixa. Parece assim óbvio que à recorrida, cabe um interesse directo ou ainda que reflexo ou indirecto, merecedor da tutela jurídica e em concreto da tutela penal. Ao entender-se em sentido diverso, está o tribunal a violar o princípio do acesso ao direito e à justiça, plasmado na primeira parte do n°1 do art° 20º da C.R.P., ao impedir que os sócios minoritários gozem de tutela jurídico penal sobre os crimes praticados pelos sócios maioritários, pelo que o entendimento de que o art° 68º n° l aI. a) do CP que negue o acesso aos tribunais no caso concreto, viola o disposto na primeira parte do n° 1 do art° 20º da CR.P., pelo que se argui a inconstitucionalidade material desta norma caso tal entendimento venha a ser perfilhado.
Neste Tribunal, o Sr.. Procurador-geral adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

2. - Em conformidade com o art. 68 nº1 al. a) CPP podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos.
Tomando como ofendidos apenas os titulares dos interesses que a lei quis proteger consagrou-se, ou melhor, manteve-se consagrado o conceito estrito de ofendido que a doutrina e a jurisprudência formularam sem divergências de maior no domínio do CPP de 1929 (cfr. V.g. na doutrina Beleza dos Santos, "Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal", RLJ, ano 57, Figueiredo Dias, "Direito Processual Penal", 1° voI., p.505-506 e 512-513; Cavaleiro de Ferreira, "Curso de Processo Penal", I, p. 129; com significado, na jurisprudência, o Ac. do STJ de 66.1.5, BMJ 153-133).

Neste conceito de ofendido não cabem, por isso, o titular de interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de interesses morais. Podem estes ser lesados e nessa qualidade sujeitos processuais como partes civis mas não constituir-se assistentes.

Ora, esta circunstância desde logo afasta a possibilidade de a queixosa vir a constituir-se assistente.

Ainda que nos ocupássemos da determinação do interesse jurídico-penal a que a aplicação daquele conceito de ofendido poderia levar no caso concreto, mesmo que procurássemos precisar qual o bem jurídico que as normas invocadas protegem o certo é que sempre depararíamos com a questão da titularidade desse bem. Ainda que não pública ou não exclusivamente publica ela não seria decerto pertença da queixosa mas sim da sociedade de que era sócia.
Admitindo, que o interesse protegido nos crimes de infidelidade não é só o património do titular afectado directamente com a conduta do arguido mas também a "confiança no tráfico jurídico" (José António Barreiros, Crimes Contra o Património, V.L., 1996,211), sempre haveria de concluir-se que, no caso concreto, o património que está em causa, aquele que merece a protecção da norma é evidentemente o da sociedade "Cybermap, Lda." da qual era gerente a queixosa e não, claro está, de uma forma directa o património desta na qualidade de sócio. Lesada seria, por conseguinte, a sociedade e não, directamente, qualquer dos seus sócios. O direito aos ganhos da sociedade, bem como o direito ao seu bom-nome e à sua valorização, enquanto factores de valorização da quota são decerto respeitáveis e atendíveis mas são apenas interesses mediatos ou indirectos dos sócios.
Neste sentido, decidiu v. g. o Ac. ReI. de Coimbra de 90.5.23, CJ 3/90-73 (precisamente em relação a um crime de infidelidade), seguindo aliás o ensinamento de Figueiredo Dias, no domínio do CPP 1929, ensinamento esse que, como já se deixou dito continua inteiramente válido. Partindo do conceito de ofendido a que já se aludiu conclui aquele Autor ("Direito Processual Penal, I, p. 513) que: "Não podem deste modo intervir no processo penal como assistentes, v. g. o mero detentor ou possuidor da coisa furtada ou descaminhada, uma vez que o interesse protegido pela incriminação do furto ou do abuso de confiança é só o do proprietário; o enganado, se não for simultaneamente o patrimonialmente lesado por um crime de burla; o processualmente lesado por um falso testemunho, por isso que a incriminação protege só o interesse da administração da justiça; o sócio de uma sociedade por quotas por crime patrimonial cometido contra a
sociedade como tal;". Neste sentido cfr. Ac. da RL de 10/04/91, Base de Dados da DGSI, n° JTRLOOO 1790 1 "(...). Se o titular do interesse assim definido é uma sociedade o sócio não pode constituir-se assistente".
Aliás, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem-se orientado no sentido de negar aos sócios legitimidade para se constituírem assistentes nos processos em que a ofendida é a sociedade - Ac. STJ, de 20 de Janeiro de 1998, Col. Jur., Ano VI, Tomo I- 1998, pág. 164.
De facto, sendo a sociedade pessoa jurídica distinta dos sócios, os seus
interesses, designadamente patrimoniais são diferentes dos interesses dos sócios individualmente considerados de forma que a afectação daqueles só de forma mediata e indirecta poderão constituir prejuízo para estes.
Ora, estando em causa um alegado crime e infidelidade administrativa
relativamente a interesses patrimoniais de sociedade, é o património desta o bem jurídico tutelado pela incriminação e, como tal, será esta a titular do interesse imediato e directamente tutelado pela norma incriminadora.
É certo que no caso de infidelidade administrativa relativamente a sociedade, qualquer dos sócios da sociedade em causa poderá ter sofrido danos da actuação do arguido, podendo defender-se que a confiança depositada no agente pelos sujeitos passivos do crime é também tutelada pela norma incriminadora, na medida em que esta valora expressamente esta situação ao acrescentar ao tipo a quebra dessa confiança depositada naquele que, por lei ou por acto jurídico, ficou encarregue de dispor dos interesses patrimoniais alheios causando lhes intencionalmente prejuízo importante com grave violação dos seus deveres.

Só que esses prejuízos serão uma consequência indirecta ou reflexa da mesma actuação, tal como poderão ter tido prejuízos por exemplo os trabalhadores que eventualmente poderiam ter perdido o posto de trabalho, em consequência da actuação do arguido, pelo que aceitar-se o entendimento de que os sócios da sociedade seriam protegidos de modo particular pela incriminação, constituindo a violação daquela relação de confiança um dos objectos imediatos deste crime, acarretaria,
necessariamente, uma ampliação do conceito de ofendido, para efeitos de direito penal, podendo, no caso concreto, abranger todos os titulares de direitos que assentaram os seus interesses e expectativas naquela relação de confiança, como por exemplo, os credores da sociedade, não se vislumbrando qualquer inconstitucionalidade material do artº 68°, nº l aI. a) do CPP, nomeadamente a invocada pela queixosa, por violação da primeira parte do n° 1 do art° 20° da C.R.P.
Assim sendo, imputando-se ao arguido o crime de infidelidade administrativa pela administração da sociedade Cybermap, L.da, era esta e não os sócios a única titular do interesse directa e imediatamente protegido pela incriminação: o seu património.
Por isso, só esta podia constituir-se assistente, por só ela preencher a previsão do artigo 68°, n.o 1, al. a) do Código de Processo Penal.
Assim, em virtude de a queixosa (M) não intervir nos autos na qualidade de legal representante da sociedade ofendida, não tem legitimidade para participar criminalmente contra o arguido pela prática do crime de infidelidade, nem tem, na invocada qualidade de sócia da sociedade pretensamente ofendida, legitimidade para se constituir
assistente, estando-lhe, por isso, igualmente vedada a possibilidade de requerer a abertura de instrução.

3. - Em face do exposto decide-se conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que não admita a queixosa a intervir nos autos como assistente. Sem custas.

Lisboa, 22 de Setembro de 2005

Cid Geraldo
Trigo Mesquita
Maria da Luz Batista