Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9620/2008-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
LEGITIMIDADE
DIREITO AO BOM NOME
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - Uma coisa é saber se as partes são sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista; outra coisa, essencialmente distinta, é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito que condicionam o seu nascimento, o seu objecto e a sua perduração: a primeira indagação interessa à legitimidade das partes; a segunda à procedência da acção.
II - A divulgação das avarias ocorridas num veículo automóvel através de autocolantes neste apostos ou de um blogue criado para o efeito na Internet, com a utilização da expressão “pesadelo”, atenta contra o bom nome comercial do agente comercial da marca desse veículo, sendo de entender para lá dos limites da boa fé e mais ainda quando se discute, porque ainda não apurado, onde está a sua génese: se num qualquer defeito de fabrico, se na sua deficiente utilização.
III - Existindo colisão de deveres que recaiam sobre a mesma pessoa, caberá ao agente dar prevalência ao mais importante; essa supremacia é determinada, naturalmente, pelo valor do bem ou interesse que visa prosseguir ou proteger. Não se nos oferecem dúvidas que no conflito entre direitos patrimoniais e contratuais e direitos de personalidade a prevalência deve fazer-se por estes.
C.V.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
S, SA, e outros Intentaram contra R, Ldª e outro procedimento cautelar comum, pedindo que se determine:
- a notificação dos requeridos para que, de imediato, retirem o seu blogue do site http:// pesadelovolkswage.blosg.sapo.pt;
- a notificação dos requeridos para que, de imediato, retirem de circulação na via publica a viatura da marca Volkswagen, modelo Touareg V10 TDI, de matrícula VJ, com os dizeres melhor descritos nos autos;
- a notificação dos requeridos para, se absterem de praticar actos publicitários, sejam eles de que natureza forem, com referência à viatura dos autos ou não, capazes de ofender, difamar ou de qualquer forma colocar em causa ou prejudicar o bom-nome e prestígio da marca Volkswagen e das requerentes;
- a fixação, nos termos do disposto no nº 2 do art. 384 do CPC, de uma sanção pecuniária compulsaria, no valor diário não inferior a €1.000,00 por cada dia de incumprimento dos requeridos;
- a notificação da empresa "S, SA”, para, nos termos da lei, e de imediato, retirar ou impossibilitar o acesso à informação contida no sitio http:// pesadelovolkswagen. blogs .sapo. pt.
Para tanto, alegaram, em síntese, que os requeridos têm vindo a adoptar comportamentos que visam ofender a sua imagem e o seu bom nome, bem como da marca Volkswagen, com o que lhe causam grandes prejuízos.

Citados, os requeridos deduziram oposição, defendendo-se por excepção e impugnação.

Após audiência final para a produção da prova testemunhal arrolada pelas partes, o Sr. Juiz a quo deferiu a providência peticionada, ordenando a intimação dos requeridos a:
- retirarem, de imediato, de circulação na via pública, o veículo marca Volkswagen, modelo Touareg V10 TDI, matrícula VJ com os autocolantes nele apostos, e com os dizeres referidos no nº 22 dos Fundamentos de Facto;
- procederem, no prazo de 10 dias, à substituição do nome do blogue http://pesadelovolkswagen.blogs.sapo.pt., eliminando a expressão "pesadelovolkswagen";
- absterem-se de praticar actos publicitários, com referência àquele veículo, susceptíveis de colocar em causa ou prejudicar o bom-nome e o prestígio da marca Volkswagen e das requerentes.
Fixou-se ainda ao 2º requerido a sanção pecuniária compulsória de € 1.000,00, por cada dia de desrespeito desta intimação.

Inconformados com a decisão, dela os requeridos interpuseram recurso, cujas conclusões, devidamente resumidas - art. 685º-A, 1 do CPC, na redacção introduzida pelo DL 303/2007, de 24/8 -, se traduzem nas seguintes questões colocadas à apreciação deste tribunal:
- a ilegitimidade do 2º requerido;
- a licitude da sua conduta;
- os vícios formais da decisão recorrida;
- a deficiência da decisão de facto.

As apeladas contra-alegaram, pugnando pela manutenção do julgado.

O tribunal recorrido teve como assentes os seguintes factos:
(…)
Numa 1ª questão, questionam os recorrentes a decisão de considerar parte legítima para a causa o 2º requerido.
Que dizer?
Segundo o critério legal, o réu será parte legítima se tiver interesse em contradizer, exprimindo-se este pelo prejuízo derivado da procedência da acção (art. 26º, 1 e 2 do CPC).
Por outro lado e consagrando a concepção que, de há muito, vinha sendo maioritáriamente sufragada pela jurisprudência, com a reforma processual de 1995 estabeleceu-se que as partes só devem considerar-se ilegítimas quando, tomada a relação jurídica material controvertida, tal como a configura o autor na petição inicial, elas não sejam os sujeitos desta (citado art. 26º, nº 3, na redacção introduzida pelo Dec-Lei nº 29-A/95, de 12/2). Seja e no dizer de Miguel Teixeira de Sousa, “a legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como o apresenta o autor” ( “A Legitimidade Singular em Processo Declarativo”, in BMJ nº 292, pág. 105).
Distingue-se, pois, a legitimidade das chamadas condições da acção.
A legitimidade, enquanto pressuposto processual, respeita às condições impostas ao exercício de uma situação subjectiva em juízo e as condições da acção referem-se aos aspectos dos quais depende a obtenção da tutela jurisdicional requerida (cfr. Ac. do STJ de 4-2-97, BMJ 464-545).
Seja e no ensinamento de Antunes Varela, "uma coisa é saber se as partes são sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista. Outra coisa, essencialmente distinta, é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito que condicionam o seu nascimento, o seu objecto e a sua perduração.
A primeira indagação interessa à legitimidade das partes; a segunda à procedência da acção."(in Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 134).
Em conclusão, à legitimidade, tal como hoje a lei adjectiva a concebe, interessa saber quem são os sujeitos da relação material controvertida, tal como o A. a configura, pertencendo ao mérito da causa saber se essa relação existe ou não existe.
Articuladas sumáriamente estas noções, passemos ao concreto dos autos.
Estamos perante uma providência cautelar em que se pretende fazer cessar determinados comportamentos que as requerentes imputam, não só à 1ª requerida, como ao 2ª requerido, por si e na qualidade de sócio e em representação da primeira (cfr. itens 35º e sgs. do requerimento inicial), pelo que a legitimidade do requerido deriva, desde logo, do facto de as requerentes lhe imputarem directamente comportamentos violadores dos seus direitos e daí o seu interesse directo em contradizer, sobrando para o domínio do mérito saber-se se as requerentes detêm ou não os direitos que contra ele se arrogam, nomeadamente por este, alegadamente, apenas ter agido na qualidade de representante da 1ª requerida.
Arrumada esta primeira questão, conhece-se agora, por imperativo de ordem lógica, da questão de facto.
Adiantam os recorrentes que foram dados como provados factos apenas relatados pelas testemunhas das requerentes, dependentes profissionalmente destas e que, por isso, relataram apenas a versão dos acontecimentos que a estas interessava, desprezando-se prova pericial junta aos autos e não se apreciando devidamente documentação, igualmente inserida nos autos.
Por força dos princípios da imediação e da oralidade, consagrados no nosso sistema, a regra-base, em matéria probatória, é a da inalterabilidade pela Relação da resolução da matéria de facto operada pela 1ª instância.
Esta regra sofre, no entanto, os desvios constantes do nº 1 do art. 712º do CPC.
Por via deles, a decisão factual da 1ª instância só pode ser alterada pela Relação:
“a) se do processo constarem todos os elementos de prova que servirem de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 685º-B, a decisão com base neles proferida;
b) se os elementos fornecidos pelo processo impuserem uma resposta diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a resposta assentou;”.
Prevê-se, pois, que o processo contenha todos os elementos de prova que servirem de base à decisão do tribunal recorrido, o qual aprecia conjuntamente toda a prova produzida, de forma livre, isto é, segundo a sua experiência e prudência e sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos (Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol IV, pág. 544), ou que o processo contenha elementos probatórios cujo valor não pode ter-se contrariado por qualquer das outras provas produzidas nos autos. É o caso, no dizer do Prof. Manuel de Andrade (Noções Fundamentais, pág. 209), de o tribunal a quo ter desprezado a força probatória de documento não impugnado nos termos legais.
Por outro lado, não cabendo nas excepções à imodificabilidade das decisões da 1ª instância, as chamadas regras de experiência, os juízos de probabilidade ou princípios de lógica, em última análise, as presunções judiciais (cfr. art. 351º do C.Civil), o que será necessário, no dizer de Rodrigues Bastos, é que se verifique uma certeza jurídica quanto ao valor probatório dos elementos de prova existente no processo, para, com base neles, alterar as respostas aos quesitos ao abrigo da alínea b). É semelhante a situação prevista na alínea c), com a única diferença que neste caso o elemento probatório que permite a alteração é um documento que não existia no processo quando o tribunal respondeu à matéria de facto (cfr, Notas, vol III, pág. 336).
Revertendo para o caso dos autos, temos que se procedeu à recolha oral de depoimentos de testemunhas, o que juntamente com a documentação produzida, foi decisivo para a convicção do tribunal, conforme se alcança da fundamentação lavrada, pelo que está excluída, sem mais, a previsão da al. a), do citado art. 712º do CPC.
Também não tem aplicação a al. c), tanto quanto é certo que não foi apresentado qualquer documento superveniente, relevante ou não para o efeito pretendido.
Resta a al. b), já que os recorrentes, censurando a valoração dos depoimentos das testemunhas das requerentes, aludem a prova pericial e documental inserida nos autos.
A lei não impõe para a prova da factualidade que se questiona qualquer formalidade especial que, de resto, nem se alega tenha sido produzida nos autos.
Faz-se um referência meramente enunciativa (e só nas conclusões da alegação) a documentos juntos aos autos, para se concluir pela ignorância pelo tribunal de factos essenciais à justa composição do litígio, todavia, nem se concretizam tais factos, nem se identificam os documentos que supostamente os suportam, a prejudicar, desde logo e por aqui, qualquer juízo de censura á decisão de facto (citado art. 685º-B do CPC).
Quanto à prova pericial, a lei apenas enumera os casos em que ela pode ter lugar, mas não impõe que os respectivos factos só possam ser provados através desse meio, antes a sujeita à livre apreciação do tribunal ( arts. 388º e 389º do C.Civil).
Não se desconhece que a antiga máxima de que "o juíz é o perito dos peritos", ligada à convicção de que, não obstante os conhecimentos especiais dos peritos, o julgador está apto a efectuar o controlo do raciocínio destes, tende a ser repensada face à cada vêz mais crescente especialização dos variados domínios científicos. Mas já parece incontroversa, a partir de factos diferentes dos que aceitou o perito ou dos demais elementos úteis de prova existentes nos autos, a possibilidade de sindicância do juízo pericial ou o afastamento deste, ao nível dos dados de facto que serviram de base ao parecer científico (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, C.Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., págs. 338 e 339 e ainda o último autor, ob. cit., pág. 583).
Temos, assim, que quer a prova documental, quer a prova pericial dos autos não representam mais do que simples elementos coadjuvantes da prova em geral, sujeitos, enquanto tais, a ser compaginados pelo tribunal com os demais elementos recolhidos, sem qualquer preferência ou hierarquia e sempre sujeitos ao princípio da livre apreciação.
Este princípio, consagrado no art. 655º do CPC, significa que a prova é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios preestabelecidos (cfr. Alberto dos Reis, ob. cit., IV, pág. 544).
Ainda de harmonia com este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgado quanto à natureza de qualquer delas (cfr. A. Varela, obra citada, pág. 455); o tribunal responde em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, o que, com se disse, não é o caso.
Da conjugação entre a regra geral - princípio da "prova livre" - e a excepção - princípio da "prova legal" -, resulta que "...o princípio da prova livre encontra o seu terreno de eleição na esfera da prova testemunhal, da prova por arbitramento e da prova por inspecção judicial (actuais arts. 396º, 388º e 391º do CC); o princípio da prova legal acomoda-se melhor à avaliação da prova documental e da prova por confissão (actuais arts. 358º, 371º e 376º do CC)" ( Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 569).
E se assim é, também nada adianta aos recorrentes desvalorizar os depoimentos das testemunhas das requerentes, na medida em tal contraria aquele primeiro princípio - da "prova livre".
Em última análise, o que os recorrentes pretendem é atacar a decisão factual, deixando entender que não deviam ter sido dados como provados certos factos e, ao invés, deveriam ter sido dados como provados outros que o não foram.
Será essa a sua convicção, mas está-lhes absolutamente vedado suscitar o problema: o sistema da livre apreciação da prova impede-o.
É, pois, por tudo o que se deixou dito, inatacável a decisão factual do tribunal recorrido e mais ainda porque, produzida que foi, como supra se disse, oralmente prova perante esse tribunal, sempre seria, desde logo, impossível a este, ao contrário do que naquele se fez, apreciar conjuntamente toda a prova produzida e, em conformidade, alterar a decisão de facto.
Ainda neste segmento, fazem os recorrentes alusão, bem que meramente sinóptica, à ausência ou deficiência da fundamentação da decisão de facto.
O dever de fundamentar a decisão sobre a matéria de facto foi introduzido pelo Código de 1961, restringido embora às respostas afirmativas, seja, à factualidade dada como provada.
Com a entrada em vigor do DL 39/95, de 15/2, esse dever alargou-se a toda a matéria de facto, passando a impor-se ao julgador que analise criticamente as provas e especifique os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (art. 653º, 2 do CPC).
Este sistema foi mantido na versão revista do Código.
De resto, tal dever tem consagração constitucional: “as decisões dos Tribunais são fundamentadas nos casos previstos na lei” (art. 208º da CRP).
Para Teixeira de Sousa, “o Tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do Juiz mas a permitir que o Juiz convença terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o Juiz passa de convencido a convincente” (Estudos, pág. 348).
No fundo, o grande objectivo é credibilizar e dar transparência às decisões judiciais.
Com o sistema actual, terá ficado definitivamente ultrapassada parte substancial da nossa jurisprudência, para quem bastaria a simples menção dos meios de prova, pois que o grau de exigência, relativamente à indicação dos motivos que tornaram credíveis esses meios, é dificilmente defensável, sendo que a eventual insuficiência da indicação de tais motivos também não acarretaria nenhuma sanção (cfr. Ac. do STJ de 2-2-93, CJ, STJ, I, 123).
Refira-se, aliás, que esta corrente estava, ao tempo, em absoluta conformidade com a lei vigente, pois o então nº 3 do art. 712º do CPC apenas aludia à “…menção, pelo menos, dos meios concretos de prova em que se haja fundado a convicção do julgador”.
Hoje não é assim.
Diz o nº 5 daquele preceito: “Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o tribunal da 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a produção da prova, quando necessário”.
Ainda assim, como se vê, a sanção para a motivação deficiente é apenas a repetição da fundamentação.
Mas não só: exige-se também que ela se reporte a um facto essencial para o julgamento da causa e que haja pedido da parte nesse sentido.
No caso dos autos, não se entende como os apelantes podem validamente falar em ausência ou sequer deficiência de fundamentação.
O Sr. Juiz fundamentou a sua decisão e fê-lo até de forma bastante pormenorizada, fazendo referência aos depoimentos das testemunhas em que alicerçou a sua convicção, resumindo o seu teor, analisando-os e valorando-os criticamente e relacionando-os com os factos que lhe respeitavam e isto mesmo fazendo com a documentação junta aos autos que para o efeito se entendeu pertinente.
Seja, independentemente da bondade ou não da fundamentação - que interessa apenas aos casos em que está em causa a alteração da decisão factual - é de todo evidente que ela se mostra conforme com a exigência legal.
De resto - e aqui decisivamente - sempre é certo que os apelantes não peticionam a repetição da fundamentação e essa é, como vimos, a única consequência legal para a fundamentação eventualmente deficiente.
Numa outra questão, defendem os recorrentes a licitude da sua conduta, até porque estavam a actuar no exercício de um direito que lhes assistia.
Diferentemente da culpa que se traduz no juízo de censura sobre a actuação do agente, valorando subjectivamente o comportamento deste, a ilicitude dirige-se ao comportamento do autor do facto sob um prisma objectivo, enquanto violação de valores defendidos pela ordem jurídica, podendo, como se colhe do art. 483º do CC, revestir duas modalidades:
- a violação de um direito de outrem, ou seja na infracção de um direito subjectivo (estando aqui especialmente incluídos os direitos absolutos, nomeadamente os direitos reais e os direitos de personalidade);
- a violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
As causas gerais de ilicitude, ainda que sem regulamentação expressa na lei civil, atém-se ao cumprimento de deveres jurídicos ou ao regular exercício de direitos e daí que, como referem Pires de Lima e Antunes Varela, a afirmação ou divulgação de um facto pode não ser ílicita “se corresponder ao exercício de um direito ou faculdade ou ao cumprimento de um dever, como se for feita em depoimento de parte ou de testemunha, num inquérito oficial” (ob. cit., 4ª ed., pág. 486).
Assim, quem, no exercício de um direito próprio, viola um direito de outrem não actua, em princípio, ilicitamente.
Todavia, importa aqui ter sempre em conta o instituto do abuso do direito, pois quando o exercício de um direito extravasa ou contraria o fim deste, constitui-se, ele próprio, como um comportamento antijurídico.
Antes do actual Código Civil, já Manuel de Andrade defendia a existência de abuso de direito quando este era exercido “...em termos clamorosamente ofensivos da justiça”, mostrando-se “... gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade” (in Teoria Geral das Obrigações, pág. 63).
Actualmente e de acordo com o art. 334º do CC, "é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito".
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, adoptou-se neste preceito uma concepção objectiva de abuso de direito, uma vez que “... não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito: basta que se excedam esses limites” (in ob. cit., pág. 298 e RLJ, ano 114º., págs. 74 e 75)
Embora não seja pacífico que o preceito em análise haja consagrado a referida concepção objectiva (cfr., em sentido contrário, Castanheira Neves in Questão de Facto - Questão de Direito ou a Problemática Metodológica da Juridicidade, págs. 518 e segs.), uma coisa é certa: a lei não se contenta com qualquer excesso, pois ela há-de ser manifesto, de onde decorre que a existência de abuso de direito há-de ser facilmente apreensível.
Para Antunes Varela, não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, bastando que, objectivamente, se excedam tais limites.
Para que o exercício do direito seja abusivo é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os interesses que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
E sublinha: "se, para determinar os limites impostos pela boa fé, há que atender de modo especial, às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela pela preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei" (in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª ed. pág. 564 e segs.).
Por outro lado, o abuso do direito pressupõe logicamente a existência do direito (Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. e loc. citados).
No mesmo sentido, Baptista Machado: "O juiz tem que decidir primeiro claramente a questão de saber se o direito invocado existe ou não. Só no caso de concluir pela sua existência (não o caso inverso) lhe será lícito apreciar o exercício abusivo do mesmo direito" (in Parecer publicado na C.J., Ano IX, tomo 2, pág.17 e segs.).
Para Castanheira Neves, o abuso de direito é um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular que são ultrapassados (in ob. cit., pág. 526, nota 46).
Ainda no mesmo sentido, Coutinho de Abreu entende que haverá abuso de direito quando um comportamento aparentando ser exercido de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação dos interesses sensíveis de outrem (in Do Abuso do Direito, pág. 43).
Em última análise e na própria letra da lei, importa, como já se deixou dito, que o titular do direito exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido.
“Agir de boa fé é agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e, não proceder de modo a alcançar resultados opostos ao que uma consciência razoável poderia tolerar” (Ac do S.T.J. de 10-12-91, BMJ 412/459).
Segundo o mesmo Aresto, “os bons costumes entendem-se ... como um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e num certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam contrárias a laivos ou conotações , imoralidade ou indecoro social”.
Quanto ao fim social e económico do direito compreender-se-á que este varie consoante a natureza do direito: no caso específico de litígio contratual, como aqui importa, ele realizar-se-á pelo meio de tutela judicial adequado à defesa dos direitos e interesses contratuais - a respectiva acção judicial que, de resto, até já foi intentada.
Na atenção da factualidade que se provou, a conduta dos requeridos vai além do que seria normalmente adequado à denúncia de uma situação susceptível de enquadrar incumprimento contratual por parte das requerentes, visando antes o prejuízo destas, denegrindo a sua imagem e desacreditando o seu bom nome comercial, como resulta da ênfase que colocaram na expressão “pesadelo” aposta no veículo que circulavam em cima de um reboque e no nome do blogue que criaram na Internet, claramente a querer associar o relacionamento com as requerentes, no âmbito da sua actividade comercial, com a ideia de “pesadelo”, a significar problemas, dissabores e até sofrimento para quem optar pela compra das mercadorias que elas colocam no respectivo mercado.
Nesta medida, a divulgação das avarias ocorridas no seu veículo automóvel - até porque é discutível, porque ainda não apurado, onde está a sua génese: se num qualquer defeito de fabrico, se na sua deficiente utilização - não pode deixar de se entender como para lá dos limites da boa fé e, logo, reprovável.
Mas, ainda e sem prejuízo do sobredito, a sem razão do recorrente se revela se tivermos em conta o art. 335º do CC, onde se dispõe que “havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes “ (nº1) e “se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”(nº 2).
“De igual modo - como refere Almeida Costa -, não se verifica, em princípio, responsabilidade dos que actuam no cumprimento de um dever jurídico. Existindo colisão de deveres que recaiam sobre a mesma pessoa, caberá ao agente dar prevalência ao mais importante. Essa supremacia é determinada, naturalmente, pelo valor do bem ou interesse que visa prosseguir ou proteger”. Mas, “ a invocação do cumprimento de um dever como causa justificativa do incumprimento de outro só releva se o respectivo sujeito não contribuiu culposamente para a impossibilidade da satisfação de ambos” (in Direito das Obrigações, 9ª ed., págs. 520/521).
Não se nos oferecem dúvidas que no conflito entre os direitos patrimoniais e contratuais dos requeridos e os direitos de personalidade das requerentes ao seu bom nome e imagem comercial, a prevalência tem de fazer-se por estes, até porque, como observa Antunes Varela, “pouco importa que o facto afirmado ou divulgado seja ou não verdadeiro - contanto que seja susceptível, ponderadas as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade” (in ob. cit., págs. 567/568).
Por isso, mesmo a entender-se que aos requeridos assistia o direito de tornar públicas as avarias do veículo que adquiriram às requerentes, era sua obrigação fazê-lo sem denegrir o seu bom nome e imagem comercial, para mais a partir de factos cuja responsabilidade está ainda por apurar.
Não nos merece, pois, por aqui censura alguma a decisão recorrida que, igualmente, não está eivada dos vícios formais que se lhe apontam
Afloram os recorrentes a existência de contradição entre o teor das alíneas a) e b) do segmento decisório da decisão em crise.
Tal, todavia, não se verifica.
Na alínea a) deferiu-se, nuclearmente, ao que se peticionava sob a alínea b) do pedido do requerimento inicial, ordenando-se a retirada imediata de circulação do veículo em causa com os autocolantes nele apostos e com os dizeres referidos no ponto nº 22 da matéria de facto, onde se contêm as expressões que se entendeu atentarem contra os direitos das requerentes, nomeadamente “4 anos de pesadelo” e a identificação de um blogue onde se contém a expressão “pesadelo volskwagen” (alínea b) da decisão) e tal não contende com o facto de se manter o blogue e o seu conteúdo, desde que nele se não violem os direitos de personalidade das requerentes, como, de resto, em termos mais abrangentes, resulta do ordenado sob a alínea c) do segmento decisório, que não temos como obscura, pois, salvo o devido respeito, a leitura que, do decidido, um qualquer declaratário normal, seja, medianamente instruído e diligente (art. 236º, 1 do CC), forçosamente, fará é a de que não pode praticar actos que atentem contra o bom nome e o prestígio da requerentes, competindo-lhe a ele, como é apodíctico, distinguir entre o que é ou não lícito fazer.
O conjunto das pretensões das requerentes atêm-se, em última análise, à defesa do seu bom nome e prestígio comercial, no que lograram êxito com o que veio a decidir-se, não funcionando o peticionado na alínea e) do requerimento inicial como pretensão dirigida, directa e autonomamente, contra a empresa “S, SA”, mas antes como simples decorrência do restante peticionado e, por isso, não é de entender como decaimento das requerentes o facto de não se ter mandado proceder à notificação que nessa alínea do peticionado se requeria e daí que não haja lugar à reforma da decisão censuranda quanto a custas.
Por último na decisão recorrida não se dá como provada a representação da Volskwagen AC pela requerente S, como querem deixar transparecer os recorrentes quando, é certo, não afirmam, mas adiantam que “parece” que terá acontecido. Tal, porém, não aconteceu, nem pode retirar-se, sem mais, das referências à marca e sua representação do veículo em causa, que não podiam deixar de ser feitas, porque efectivamente de um veículo da marca “Volskwagen” se tratava e foi comercializado, sem que tal implicasse o conhecimento e decisão de qualquer questão relacionada com a sua empresa fabricante e, por isso, é deslocado falar-se em omissão de pronúncia e na nulidade que lhe serve de cominação.
Por tudo o exposto, na improcedência da apelação, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Lisboa, 17-12-2008
Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues