Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
104/2008-7
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: ARRENDAMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
FUNDAMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/23/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Conforme se estabelece no art. 59º, nº1, do NRAU, este regime aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.

Conforme preceitua o art. 26º, do NRAU, aplicável ao caso dos autos, por força do disposto no art. 28º, os contratos para fins não habitacionais celebrados antes de 5 de Outubro de 1995, data da entrada em vigor do DL 257/95, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades ai previstas.

Porém, relativamente à validade, atendendo ao disposto no art. 12º, nº2, do CC, os negócios jurídicos válidos face à lei vigente, no momento da sua conclusão, não verão essa validade e a correspondente eficácia afectada pela entrada em vigor de uma nova lei que passe a exigir outros requisitos de substância ou de forma, que não preenchem por não serem necessários na data da sua conclusão.

Da mesma forma, atento o disposto no art. 12º, nº2, do CC, no que toca aos fundamentos de resolução, há que distinguir: os fundamentos resolutivos ocorridos e completados no domínio de vigência da lei anterior continuarão a ser regidos por ela; os fundamentos resolutivos, iniciados durante a vigência da lei anterior e que se prolonguem para o império da lei nova – sem que o senhorio tenha até então suscitado a resolução do contrato – submetem-se ao disposto no art. 1083º, do NRAU, apesar de o facto resolutivo vir de trás.

O art. 1072º, nº1, do CC impõe ao arrendatário a obrigação de usar efectivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano. E no nº2 deste artigo prevêem-se os casos em que é lícito ao arrendatário, em determinadas circunstâncias, não usar a coisa.

Não sendo alegado, nem provado o requisito temporal a que se alude na al.d), do nº2, do art. 1083º, do CC, não se verifica fundamento de resolução do contrato de arrendamento.

(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1. J e E, M e V intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra L que seja declarado resolvido o contrato de arrendamento, e que a ré seja condenada a entregar o locado livre e desocupado de pessoas e bens.

Para tanto alegam, em síntese, que:

Por contrato verbal, o pai dos AA. deu de arrendamento à Ré, no ano de 1976, para que esta utilizasse como armazém do seu estabelecimento comercial de mercearia, o prédio urbano sito na Rua .

O prédio em causa encontra-se em ruínas, tendo a ré, desde há alguns anos a esta parte, diminuído a sua actividade comercial.

À data da petição inicial, não existe qualquer movimento de pessoas ou bens no locado, permanecendo o mesmo fechado a cadeado.

2. Citada a ré, apresentou contestação que foi mandada desentranhar, por extemporânea.

3. Foi proferido despacho declarando confessados os factos articulados pelos autores.

4. Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.

5. Inconformados, apelam os autores, os quais, em conclusão, dizem:

A sentença recorrida é nula, pois ao considerar – como se fez na sentença recorrida - que a falta de obras de conservação, a cargo dos autores, poderia ter contribuído para que a totalidade da cobertura do imóvel tenha desabado, está o tribunal a quo a pronunciar-se sobre uma questão que não lhe foi colocada pelas partes.

Em todo o caso, a eventual obrigação de realização de obras pelos senhorios teria de ser aferida de harmonia com o princípio da equivalência das atribuições patrimoniais de que há manifestação no artigo 237 O do Código Civil, sendo de atender, neste caso, que a ré paga uma renda de € 12, 80.

Além disso, os recorrentes nunca foram notificados pela ré para realizarem quaisquer obras, porque aquela simplesmente não utiliza o objecto locado, mantendo-o encerrado, fechado a cadeado, e no estado de ruína em que se encontra.

A sentença não se encontra suportada em factualidade dada como provada, além de que constam do processo elementos cuja ponderação conduziria necessariamente a uma decisão diferente da que agora se impugna.

Conforme consta da sentença recorrida ficou provado que o imóvel arrendado se encontra sem a totalidade da cobertura, em ruínas, totalmente inutilizado e em avançado estado de degradação, mantendo a Ré o espaço encerrado de forma continuada.

O arrendamento do imóvel, propriedade dos autores, abrange o seu uso como armazém de guarda ou depósito de mercadorias relacionadas com a actividade comercial da ré, sendo patente, através das fotografias juntas aos autos, que o mesmo não é em absoluto utilizado. Inclusive, podemos afirmar que o objecto do contrato de arrendamento não existe.

Foi dado por provado que o imóvel se encontra fechado a cadeado, pelo que, obrigatoriamente, está verificada a condição base para a resolução do contrato de arrendamento celebrado com a ré, designadamente o encerramento da actividade desenvolvida no espaço locado .

É patente, através das fotografias juntas aos autos, que o imóvel arrendado não se degradou, ao ponto de haver desabado o telhado em poucos meses, muito pelo contrário, tal destruição resulta do decurso de tempo sem qualquer utilização ou destino.

A ré, com a sua negligência, provocou a situação de degradação do locado, não lhe dando qualquer utitilidade, e em consequência, cancelou a actividade antes exercida, nomeadamente de armazém.

Atenta a matéria dada por provada, a decisão só poderia ter sido no sentido de mandar proceder a acção interposta pelos ora Recorrentes, declarando, em consequência, a resolução do contrato de arrendamento destinado a comércio celebrado com a Recorrida.

6. Não há contra-alegações.

7. Cumpre apreciar e decidir.

8. Está provado que:
        
Pela Ap.  de 2007/08/02 encontra-se inscrita a favor dos AA., a aquisição, por sucessão hereditária de S, do prédio urbano, constituído por um edifício com área total de 82 m2, coberto de telha destinado a comércio, sito na Rua, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o  e inscrito na matriz predial urbana sob o art. .

Por acordo verbal, realizado em 1976, o prédio identificado em 1., foi dado de arrendamento pelo pai dos AA., S, à Ré, para que esta o utilizasse como armazém do seu estabelecimento comercial de artigos de mercearia, mediante o pagamento de uma renda mensal de € 12,80 (doze ouros e oitenta Cêntimos).

O prédio referido em 1. encontra-se sem a totalidade da cobertura, em ruínas, totalmente inutilizado em avançado estado de degradação.

A Ré, desde há alguns anos, diminuiu a sua actividade comercial, mantendo o prédio referido em 1. encerrado de forma continuada.

8.1. No que toca à matéria de facto dada como provada duas considerações se impõem:

Em primeiro lugar o segmento constante do último ponto dos factos provados («encerrado de forma continuada»), não faz parte do elenco dos factos alegados na p.i. Na verdade, na parte final da petição inicial, em sede de fundamentação de direito, consta que «não nos podemos esquecer que o facto de a ré manter encerrado o locado é um facto continuado que ainda não cessou». Evidentemente, tal afirmação, por consubstanciar uma conclusão de direito, não pode deixar de ser considerada não escrita.

8.2. Por outro lado, por não impugnado, considera-se ainda provado que:

“À data da propositura da acção, não existe qualquer movimento de pessoas ou bens no locado, permanecendo o mesmo fechado a cadeado.”

9. Da nulidade da sentença

Alegam os apelantes que a sentença é nula, nos termos do disposto no art. 668º, nº1, al. d), do CPC, por se pronunciado sobre uma questão que não lhe foi colocada pelas partes.

Não é, contudo, assim.

Na verdade, a nulidade em causa reporta-se a «questões» e não a «motivações», já que o juíz é livre na interpretação e aplicação do direito, apenas tendo que se pronunciar sobre as pretensões formuladas pelas partes, considerando o pedido e a causa de pedir.

Ora, no caso concreto, o juíz a quo desenvolveu uma determinada argumentação jurídica que poderá configurar erro de julgamento, mas não nulidade de sentença.

Tão pouco enferma de qualquer outra nulidade de sentença, designadamente das previstas nas alíensas b) e c), pois não só contém a especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, como não se vislumbra contradição entre os fundamentos e a decisão.

10. Na presente acção de despejo pede-se a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento no não uso do locado.

Atendendo a que o contrato foi celebrado em 1976 e que a acção deu entrada em juízo em 30/5/2008, cumpre, desde já, e antes de mais, saber se – in casu – é aplicável o novo regime do arrendamento urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro.

A este respeito, estabelece-se no art. 59º, nº1, da citada Lei que o NRAU se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.

Trata-se, aliás, de norma que se harmoniza com o princípio vigente no nosso ordenamento sobre a aplicação das leis no tempo – cf. art. 12º, do CC.

A lei ressalva, porém, algumas excepções. Uma delas é relativa aos contratos não habitacionais celebrados antes do DL 257/95, de 30 de Setembro. Estes contratos, como o dos autos, regem-se então pelo disposto nos arts. 27º e ss., do NRAU, normativos que contêm disposições de direito transitório material relativamente à actualização das rendas, restituição por benfeitorias, realização de obras (art. 1º, nº2, do RJOPA), transmissão por morte e denúncia do contrato pelo senhorio.

Ou seja:

Conforme preceitua o art. 26º, do NRAU, aplicável ao caso dos autos, por força do disposto no art. 28º, os contratos para fins não habitacionais celebrados antes de 5 de Outubro de 1995, data da entrada em vigor do DL 257/95, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades antes referidas.

Importa, porém, ter presente o nº2, do art. 12º, do CC, onde se estabelece que, quando a (nova) lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos.

Daqui decorre que os negócios jurídicos válidos face à lei vigente no momento da sua conclusão não verão essa validade e a correspondente eficácia afectada pela entrada em vigor de uma nova lei que passe a exigir outros requisitos de substância ou de forma, que não preenchem por não serem necessários na data da sua conclusão.

Nesta conformidade, no caso que analisamos, há que considerar válido o contrato de arrendamento celebrado verbalmente entre as partes, muito embora não tenha sido celebrado por escritura pública[1], pois o vício de forma de que padece, face à lei vigente à data da sua celebração, não é de conhecimento oficioso, só podendo a respectiva nulidade ser arguida pelo locatário, e não foi.

Da mesma forma, atento o disposto no art. 12º, nº2, do CC, no que toca aos fundamentos de resolução, há que distinguir: os fundamentos resolutivos ocorridos e completados no domínio de vigência da lei anterior continuarão a ser regidos por ela; os fundamentos resolutivos, iniciados durante a vigência da lei anterior e que se prolonguem para o império da lei nova – sem que o senhorio tenha até então suscitado a resolução do contrato – submetem-se ao disposto no art. 1083º, do NRAU, apesar de o facto resolutivo vir de trás[2]

É precisamente nesta última hipótese que se enquadra o caso dos autos (como refere o apelante, o facto de a ré manter encerrado o locado é um facto continuado, que ainda não cessou).

11. Vejamos, então, se face aos factos dados como provados, é de considerar verificado o fundamento de resolução a que alude o art. 1083º, nº2, al. d), do NRAU.

O art. 1072º, nº1, do CC impõe ao arrendatário a obrigação de usar efectivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano. E no nº2 deste artigo prevêem-se os casos em que é lícito ao arrendatário, em determinadas circunstâncias, não usar a coisa.

Fora do quadro de excepção previsto no nº2 do artigo citado, a consequência do não uso será a resolução do contrato, nos termos do art. 1083º, nº2, al.d), do CC, no qual se prescreve que «qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte (nº1); é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio, o não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no nº2, do art. 1072º» (nº2, al. d).

É de salientar que o senhorio só poderá fazer valer o direito à resolução se a falta de uso do imóvel se prolongar por mais de um ano e, para além desse período, se não for justificada, por alguma das circunstâncias referidas nas alíneas do nº2, do art. 1072º, CC.[3]

Ora, decorre da factualidade provada que os autores não alegaram, nem provaram, o requisito temporal a que se alude na al.d), do nº2, do art. 1083º, do CC.

Na verdade, apenas se provou que «o estabelecimento comercial vem diminuindo a sua actividade, há alguns anos» (o que é manifestamente insuficiente para caracterizar o «não uso», como fundamento resolutivo) e que «à data da propositura da acção, não existe qualquer movimento de pessoas ou bens no locado, permanecendo o mesmo fechado a cadeado» (sem que tenha sido alegado e provado o requisito temporal de que a lei faz depender a resolução).

Em suma: os autores não lograram provar a violação pela arrendatária do dever de usar efectivamente a coisa, para o fim do contrato, não deixando de a usar por mais de um ano.

A acção não pode, pois, deixar de improceder.

Evidentemente que as causas que poderiam ser havidas como factos impeditivos da resolução do contrato (cf. art. 1072º, nº2, do CC), sendo matéria de excepção, teriam que ser alegadas e provadas pela ré/arrendatária.

Não sendo esse o caso dos autos (trata-se, convém recordar, de uma acção não contestada), está vedado ao tribunal especular acerca das razões que estarão na base das ocorrências dadas como provadas, no que toca ao estado físico do prédio, e, sobretudo, estabelecer um nexo de causalidade entre a omissão dos deveres do senhorio, tendentes a proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa e as condições físicas do arrendado.

Improcede, pois, o recurso.

13. Nestes termos, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar a sentença recorrida (embora com diversa fundamentação).

Custas pelos apelantes.



Lisboa, 23 de Junho de 2009



(Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado)


(Rosa Maria Ribeiro Coelho)



(Amélia Ribeiro)

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[1] À data da sua celebração estava em vigor o disposto no art. 1029º, nº1, al. b), do CC que prescrevia a obrigatoriedade de os arrendamentos para comércio serem reduzidos a escritura pública. Porém, no seu nº3, introduzido pelo DL 67/75, de 19 de Fevereiro, determinava-se que a falta de escritura pública é sempre imputável ao locador e a respectiva nulidade só é invocável pelo locatário, que poderá fazer a prova do contrato por qualquer meio.
[2] Cf. Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, 1014.
[3] Cf. Maria Olinda Garcia, A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano, 2006, 17.