Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6146/2008-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
ALIMENTOS
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1 - As regras da impenhorabilidade fixadas no n.º 1 do artigo 824º CPC deixaram de ser absolutas e passaram a estar sujeitas a um limite máximo e, em dadas circunstâncias, a um limite mínimo – o equivalente a um salário mínimo nacional – mas apenas quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não provenha de alimentos.
2 - Deste modo, o critério de determinação da parcela do rendimento do progenitor que não pode ser afectado ao pagamento coactivo da prestação de alimentos devidos ao menor não pode alcançar-se por equiparação ao montante do salário mínimo nacional, situação em que, de qualquer dos lados, fica em crise o princípio da dignidade da pessoa humana.
3 - Assim, até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimentos do que o requerido para providenciar às suas necessidades de auto – sobrevivência.
4 - Rejeitado o critério do salário mínimo nacional, estando em causa a realização coactiva da prestação alimentar em que o progenitor foi condenado para com o filho menor, deve atender-se, como valor de referência necessário a assegurar a sobrevivência do devedor, ao valor do rendimento social de inserção, que no subsistema de solidariedade social se assume como o mínimo dos mínimos compatíveis com a dignidade da pessoa humana.
G.F.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
            1.
            [M] deduziu, em 17 de Maio de 2007, contra [J], incidente de incumprimento da regulação do exercício do poder paternal, em relação a [I], quanto à obrigação de alimentos.

            O requerido foi notificado para os termos do requerimento, nos termos do artigo 181º, n.º 1, da OTM, nada tendo dito.

            Constando dos autos informação acerca da entidade patronal do requerido, o Ministério Público promoveu que se declarasse verificado o incumprimento e se ordenasse o desconto das prestações vencidas e das prestações vincendas no vencimento do requerido.

            O Tribunal a quo decidiu:
a) – Declarar verificado o incumprimento do requerido, relativamente à obrigação de alimentos, a favor do menor, no valor global (até Maio de 2007) de € 3 977,17;
b) – Determinar a notificação do Centro Nacional de Pensões para proceder ao desconto dos seguintes valores, a partir do primeiro processamento de vencimento, após a notificação da decisão:
1 - € 200, por conta dos alimentos (onde se inclui a comparticipação pelas despesas) vencidos, até perfazer o montante de € 3 977,17;
2 - € 162,48, (valor actual da pensão de alimentos), actualizável anualmente de acordo com a evolução do índice de inflação publicado pelo INE para o ano anterior, remetendo a quantia global para a requerente, sem quaisquer encargos para a mesma;
c) – Condenar o requerido no pagamento de € 249,40, a favor do estado, nos termos do artigo 181º, n.º 1, da OTM.

Inconformado apelou o requerido, formulando as seguintes conclusões:
1 – A decisão recorrida violou o disposto na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824º do CPC, porque os descontos a efectuar no vencimento do requerido excedem os valores mínimos previstos no artigo 824º, n.º 2 do CPC.
2 – O requerido aufere mensalmente o valor líquido de € 678,10, pelo que, em respeito ao disposto no n.º 2 do artigo 824º CPC, só o valor de € 252,10 poderá ser objecto de descontos no vencimento.
3 – O cálculo dos descontos efectua-se, tendo por base o valor líquido recebido e não o ilíquido, pois só desta forma se garante a impenhorabilidade de um valor igual ao ordenado mínimo nacional.
4 – Mesmo que se considere que o cálculo dos descontos deve ser feito tendo por base o valor ilíquido do vencimento, o que só por mera cautela de patrocínio se admite, ainda assim os descontos ordenados pelo Tribunal a quo violam o disposto na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824º do CPC.

O Ministério Público contra – alegou, aceitando que possa ser reduzido o montante mensal das prestações vencidas, para um montante que o tribunal considere justo e equitativo, diferindo no tempo o pagamento da dívida, tendo em conta, por um lado, o vencimento líquido que o requerido aufere e, por outro, a circunstância das necessidades actuais da menor se encontrarem acauteladas, por força dos descontos ordenados no vencimento do requerido no que concerne às prestações de alimentos vincendas.

Cumpre decidir:
2.
Na 1ª instância, consideraram-se provados os seguintes factos, com suficiente relevância para a boa resolução da situação jurídica sub judice.
1 – [I] nasceu a 6 de Fevereiro de 1996, sendo filha da requerente e do requerido.
2- No âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento, que correu termos na 2ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, relativo aos aqui requerente e requerido, foi homologado, a 7 de Junho de 2005, acordo de regulação do exercício do poder paternal, de que constam, além do mais, as seguintes cláusulas:
“3ª – O pai pagará à mãe, até ao dia 5 de cada mês, a título de pensão de alimentos, a quantia de € 150 (cento e cinquenta euros) mensais, actualizável anualmente de acordo com índices de inflação fixados pelo INE, tendo esta actualização início em Janeiro de cada ano, por depósito em conta da (...);
4ª – O pai procederá ainda à entrega à menor das quantias recebidas a título de abono de família, por crédito da conta bancária acima indicada;
11ª – As despesas de saúde, vestuário, educação e actividades de tempos livres serão suportadas conjuntamente”;
3 – O requerido não procedeu ao pagamento da pensão de alimentos correspondente aos meses de (i) Julho a Dezembro, ambos de 2005; (ii) Janeiro a Dezembro, ambos de 2006; (iii) Janeiro a Maio, ambos de 2007.
4 – O requerido não entregou à menor os abonos de família por si recebidos e devidos àquela, desde a data do divórcio.
5 – À menor foram prestados os seguintes serviços médicos: (i) montagem articular semi – funcional, no dia 13/12/2006, no valor de € 923; (ii) aparelho fixo superior, na mesma data, no valor de € 63,60; (iii) aparelho fixo e controlo de aparelho fixo, a 10/05/2007, no valor global de € 67,54.
6 – O requerido trabalha no Centro Nacional de Pensões, onde aufere o vencimento mensal ilíquido de € 725,39.
3.
Tendo em conta as conclusões do recorrente, a questão que se coloca consiste em saber se os descontos a efectuar no vencimento do requerido não podem exceder os valores mínimos previstos no artigo 2º do artigo 824º do CPC ou se, pelo contrário, estando em causa a realização coactiva da prestação alimentar em que o progenitor foi condenado para com o filho menor, deve atender-se, como valor de referência necessário a assegurar a sobrevivência do devedor, ao valor do rendimento social de inserção, que no subsistema de solidariedade social se assume como o mínimo dos mínimos compatíveis com a dignidade da pessoa humana.
4.
Estamos perante um processo por incumprimento de regulação do exercício do poder paternal, em que requerente e requerido, na sequência da dissolução do seu casamento por mútuo consentimento, acordaram, além do mais, que a menor ficava confiada à mãe que exerceria o poder paternal, obrigando-se o pai/requerido a pagar à mãe, até ao dia cinco de cada mês, a quantia de cento e cinquenta euros mensais, actualizável anualmente de acordo com os índices da inflação fixados pelo INE, tendo essa actualização início em Janeiro de cada ano, por depósito em conta da Caixa Geral de Depósitos, da agência do Casal de S. Brás, ficando ainda obrigado à entrega à menor das quantias recebidas a título de “Abono de Família”, por crédito na aludida conta bancária.

O acordo foi homologado em 7 de Junho de 2005, contudo o requerido não cumpre, nem nunca cumpriu (à excepção de um único mês) essa obrigação, pelo que, nos termos da sentença, a dívida de alimentos ascendia em Maio de 2007 (data do requerimento) a € 3.532,43 e, por seu turno, metade das despesas médicas documentadas ascendia a € 527,09, ou seja o total da dívida ascendia a € 4.059,50, valor esse que se circunscreveu a € 3.977,17, conforme peticionado.

Uma vez que o requerido trabalha no Centro Nacional de Pensões, onde aufere o vencimento mensal ilíquido de € 725,39, a sentença condenou o requerido a pagar € 200 mensalmente, por conta dos alimentos vencidos até perfazer o montante de € 3.977,17 e € 162,48 (valor actual da pensão de alimentos), actualizável anualmente de acordo com a evolução do índice de inflação publicado pelo INE para o ano anterior.

Quanto aos abonos de família, embora tivesse ficado comprovado que os mesmos têm sido creditados ao requerido e que este não procedeu ainda à entrega à menor de tais quantias, a sentença relegou para momento posterior a decisão sobre esta matéria, pois que, à data da sentença, não constava dos autos o valor entregue ao requerido desde Junho de 2005 até Maio de 2007 (cfr. fls. 47).

O requerido discorda da sentença, pois que, operada a adjudicação ordenada – que visa, a um tempo, a cobrança das prestações vencidas e o pagamento das prestações vincendas - o seu rendimento reduzir-se-á a € 362,91, valor inferior ao salário mínimo nacional.

Como o requerido não tem outros proventos conhecidos, sustenta que os descontos a efectuar no seu vencimento não poderão exceder os valores mínimos previstos no n.º 2 do artigo 824º do CPC, pelo que os valores objecto de desconto deverão, em seu entender, ser reduzidos em respeito ao disposto na aludida norma.

Delimitada a tese do recorrente, importa saber se os descontos a efectuar no vencimento do requerido não podem exceder os valores mínimos previstos no artigo 2º do artigo 824º do CPC ou se, pelo contrário, estando em causa a realização coactiva da prestação alimentar em que o progenitor foi condenado para com o filho menor, deve atender-se, como valor de referência necessário a assegurar a sobrevivência do devedor, ao valor do rendimento social de inserção, que no subsistema de solidariedade social se assume como o mínimo dos mínimos compatíveis com a dignidade da pessoa humana.

Dispõe o artigo 189º da OTM, a propósito dos meios de tornar efectiva a prestação de alimentos, o seguinte:
1 – Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida dentro de dez dias depois do vencimento observar-se-á o seguinte:
a) – Se for funcionário público ser-lhe-ão deduzidas as quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade competente.

Foi com base nesta norma que foi solicitado ao Centro Nacional de Pensões que se deduzisse as quantias fixadas pelo Tribunal a quo no vencimento do requerido.

Esta norma não respeita a um acto de penhora em sentido próprio (artigos 821º e seguintes do CPC). Visa a realização coactiva da prestação de alimentos a menor, através de um procedimento executivo sumário (frequentemente denominado pré – executivo), ou seja, sem instauração de uma acção executiva e, portanto, sem as formalidades da penhora e no qual o montante deduzido no rendimento do devedor é adjudicado ao credor peticionante sem chamamento dos credores concorrentes.

Aliás, basta ler a norma do n.º 2 do artigo 824º CPC para se concluir que a mesma se não aplica quando o crédito exequendo seja de alimentos.

Assim, as regras da impenhorabilidade fixadas no n.º 1 do artigo 824º CPC, as quais correspondem no essencial às estabelecidas no n.º 1 do artigo 824º, na reforma de 1995/1996, deixaram de ser absolutas e passaram a estar sujeitas a um limite máximo e, em dadas circunstâncias, a um limite mínimo – o equivalente a um salário mínimo nacional – mas apenas quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não provenha de alimentos.

Quer-nos, porém, parecer que, na perspectiva do recorrente, a diversa natureza do acto judicial é irrelevante. O que conta é tratar-se de uma providência judicial de apreensão e afectação de certa parcela de rendimentos periódicos (vencimentos mensais) à satisfação coerciva de dívidas do seu titular, com a consequente possibilidade de a diminuição do respectivo rendimento disponível lhe não permitir a satisfação das necessidades básicas em termos compatíveis com a dignidade da pessoa humana.

Ao contrário, porém, do pretendido pelo recorrente, o Tribunal tem de ocupar-se deste problema em toda a sua extensão, ou seja, na perspectiva do progenitor como também na do seu filho menor.

“O princípio da dignidade da pessoa humana não pode aqui ser lançado a um só prato da balança, uma vez que a insatisfação do direito a alimentos atinge directamente as condições de vida do alimentando e, ao menos no caso das crianças, comporta o risco de pôr em causa, sem que o titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida, pelo menos o direito a uma vida condigna”[1].

Por isso se entende no aludido acórdão do Tribunal Constitucional que o critério de comparação com o salário mínimo nacional não é o adequado para determinar a proibição de penhora nesta situação em que, (na medida inversa da protecção ao devedor), também o princípio da dignidade da pessoa do filho pode ser posto em causa pelo incumprimento, por parte do progenitor, de uma obrigação integrante de um dever fundamental para com aquele.

Deste modo, o critério de determinação da parcela do rendimento do progenitor que não pode ser afectado ao pagamento coactivo da prestação de alimentos devidos ao menor não pode alcançar-se por equiparação ao montante do salário mínimo nacional, situação em que, de qualquer dos lados, fica em crise o princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimentos do que o requerido para providenciar às suas necessidades de auto – sobrevivência.
Rejeitado o critério do salário mínimo nacional, tem-se defendido que o ordenamento jurídico oferece um outro referencial positivo que pode ser usado como critério orientador do limite da “impenhorabilidade” para este efeito, ou seja, o do rendimento social de inserção criado pela Lei n.º 13/2003, de 21 de Maio, e regulamentado pelo DL n.º 283/2003, de 8 de Novembro e pela Portaria n.º 105/2004, de 26 de Janeiro, que corresponde à realização, na sua dimensão positiva, da garantia do mínimo de existência.

Deste modo, embora seja muito discutível que, em situações deste género, a fixação normativa de um limite quantificado leve vantagem, na optimização da situação harmónica do conflito, sobre a maior adaptabilidade às circunstâncias que resulta das técnicas das cláusulas gerais ou dos conceitos indeterminados, afigura-se-nos ser este o valor do rendimento que teria de considerar-se como correspondente ao mínimo necessário a assegurar a auto – sobrevivência do devedor quando esteja em causa a realização coactiva da prestação alimentar em que o progenitor tenha sido condenado para com o filho menor.

Ora, na presente situação, a sentença procurou conciliar os interesses do filho com os direitos/deveres do pai.

Não será despiciendo recordar que o requerido não cumpre nem nunca cumpriu, à excepção de um único mês, a obrigação alimentar, devendo-se ao menosprezo pelos direitos do filho o acumular das prestações vencidas.

Mais. O requerido nunca depositou na conta referida no acordo de regulação paternal o abono de família da menor, quantia essa que foi creditada conjuntamente com o vencimento do requerido e que naturalmente este terá de repor por lhe não ser devida, nos moldes em que o Tribunal a quo vier a determinar, uma vez que já encontram explicitados nos autos os montantes dessas prestações.

Assim, tendo em conta o vencimento do requerido, as prestações vencidas e vincendas fixadas a favor do menor e o valor do rendimento social de inserção, a sentença recorrida não merece qualquer censura.
5.
Pelo exposto, na improcedência da apelação confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Lisboa, 25 de Setembro de 2008
Manuel F Granja da Fonseca
Fernando Pereira Rodrigues
Maria Manuela dos Santos Gomes
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[1] Acórdão n.º 306/05, Processo 238/04, 3ª Secção, Tribunal Constitucional