Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2249/2005-9
Relator: GOES PINHEIRO
Descritores: PROCESSO SUMARISSIMO
REGISTO CRIMINAL
TRANSCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - É de conceder provimento ao recurso da decisão que, em processo sumaríssimo, indeferiu a pretensão do arguido de que não fosse transcrita a condenação no registo criminal, com fundamento no disposto no artº 17º, nº 1, do DL 57/98, de 18/8.

II – O fundamento encontrado pelo tribunal recorrido (ter já ocorrido o trânsito em julgado do despacho a que se reporta o artº 379º do C.P.P.) não colhe uma vez que “...seria de todo inadmissível que, em processo sumaríssimo, essa providência não pudesse ser aplicada em despacho posterior, a pretexto do imediato trânsito em julgado da decisão condenatória, quando aquele tipo de processos se destina, precisamente, ao julgamento de crimes em que não deve ser aplicada pena ou medida de segurança privativas de liberdade (artº 392ºA do C.P.P.), ou seja, de crimes de muito reduzida relevância do ponto de vista ético-jurídico”
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

No 1° Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa foi, em processo sumaríssimo (nuipc 1435/02.0SIL), por despacho de 6/01/2004, aplicada ao arguido (F), pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. nos artigos 292°, n° 1 e 69°, n° 1, alínea a), do Código Penal, a pena de 90 dias de multa á taxa diária 3,00 Euros e, bem assim, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 4 meses.

No dia 13/10/2004 apresentou o arguido requerimento no qual solicitou o pagamento da multa em prestações e ainda que fosse ordenada a não transcrição, no registo criminal, da decisão condenatória.


O Senhor Juiz acolheu a primeira das pretensões formuladas pelo arguido, mas não a segunda, indeferindo, nessa parte o requerido, com fundamento em que decisão condenatória transitara em julgado no próprio momento da sua prolação, nos termos do artigo 397°, n° 2, do C.P.P. e o requerimento em causa dera entrada em juízo já depois de verificado esse trânsito.


Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, formulando na motivação que apresentou as seguintes conclusões:
I - O Tribunal a quo entendeu que o facto de, em processo criminal sumarissimo, o despacho que aplica a pena transitar imediatamente em julgado, implica, por si só, a impossibilidade de o Tribunal se pronunciar sobre o requerimento de não transcrição da decisão no certificado de registo criminal (CRC) do arguido, requerimento feito no próprio dia em que foi notificado do Douto Despacho que aplicou a pena de multa.
II. Em primeiro lugar, não é compreensível, nem admissível, a dualidade de critérios do Tribunal, que deferiu o pedido de pagamento da multa em prestações, mas indeferiu o pedido de não transcrição no registo criminal, sendo que os dois requerimentos foram formulados simultaneamente.
III. A decisão sob recurso viola frontalmente o artigo 17°, n.°1, da Lei n.° 57/98, de 18 de Agosto, que tem por estatuição uma extensão do poder jurisdicional do Tribunal que aplique uma pena aí prevista, permitindo a esse Tribunal, mesmo depois do proferimento da sentença, que decida, em despacho, sobre a não transcrição da decisão condenatória no registo criminal.
IV. A interpretação restritiva do artigo 17°, n.° 1, da Lei n.° 57/98, feita pelo Tribunal, viola o artigo 9°, n.° 3, do Código Civil.
V. Viola igualmente o artigo 40°, n.° 1, parte final, do Código Penal, ao não terem atenção, na interpretação da lei processual penal, as exigências de prevenção especial, que desaconselham a transcrição, no registo criminal, de decisões de escassa relevância jurídico-penal, mas com grande relevância ao nível da condição social e profissional do arguido.
VI. Viola igualmente o artigo 4° do Código de Processo Penal, ao aplicar acriticamente, e sem considerar as exigências especiais da lei processual penal, os artigos 666° e seguintes do Código de Processo Civil, os quais, num dado entendimento ,contemplam todos os casos de extensão do poder jurisdicionaI do Tribunal depois do proferimento da decisão final.

VII. Com efeito, como é entendimento corrente, as exigências de segurança que, em última análise, fundamentam institutos como o caso julgado e o esgotamento dos poderes jurisdicionais do Tribunal, são de diminuta relevância n o Processo Penal, no qual estão em causa interesses superiores, que se prendem com a liberdade e dignidade, em todas as suas normas, do arguido.
VIII. E em qualquer caso, não é correcta a interpretação dos artigos 666.° e seguintes do CPC que conclua que esses artigos contemplam as únicas hipóteses de manutenção do poder jurisdicional do Tribunal depois da decisão final da causa, conforme já decidiram os nossos tribunais superiores (cfr. arestos indicados acima).
IX. Pelo contrário, deve entender-se que os artigos 666° e seguintes do CPC permitem a manutenção de poder jurisdicional sobre aspectos "marginais" relativamente ao objecto principal do processo no qual se pronuncia a decisão final.
X. Um desses aspectos marginais é, efectivamente, a decisão sobre a não transcrição no registo criminal.
XI. O artigo 17°, n.° 1, da Lei n.° 57/98, é lei especial relativamente aos artigos 666° e seguintes do CPC, permitindo uma extensão do poder jurisdicional após a decisão final, em processo penal, incluindo em processo sumarissimo.
XII. Qualquer inscrição de sentença condenatória no registo criminal constitui uma restrição a diversos direitos fundamentais - dignidade pessoal e social, ao bom nome, reputação e imagem, o direito à não discriminação, o direito à livre escolha da profissão e do acesso ao trabalho (cfr. artigos 1°, 2°, 13°, n.° 1, 26°, n.° 1, 47°, n.° 1, e 58°, n.° 1, da CRP) -, pelo está sujeita ao regime do artigo 18° da C.

XIII. A interpretação feita pelo Tribunal a quo do artigo 17°, n.° 1, da Lei n.° 57/98, é materialmente inconstitucional, por violação do princípio da máxima eficácia dos direitos fundamentais, que decorre dos artigos 1°e 2° (dignidade da pessoa humana e valor superior da sua liberdade), e 18° (proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais) da Constituição da República Portuguesa, dado que, entre duas interpretações possíveis da lei, efectuou unia interpretação que objectivamente prejudica os direitos fundamentais referidos na conclusão anterior, quando poderia ter validamente optado pela interpretação que maximizaria esses direitos.
XIV. Da mesma forma, a interpretação referida, ao não escolher, de entre duas interpretações possíveis da lei, aquela que permitiria uma pronúncia sobre o mérito do requerimento apresentado pelo arguido, violou o direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20° da CRP, nos termos do qual, como vem sendo admitido, devem preferir-se as decisões sobre matéria, em detrimento das decisões sobre forma (podendo ver-se neste sentido, como elemento interpretativo, o artigo 7° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), pelo que também por esta razão, a interpretação da norma feita pelo Tribunal padece de inconstitucionalidade material.
XV. A decisão sob recurso padece igualmente de nulidade, nos termos do artigo 668°, n.° 1, alínea c), do CPC, na medida em que existe contradição entre a prolação de uma decisão, após o trânsito em julgado, sobre a forma de execução da pena de multa aplicada (o Tribunal a quo deferiu o requerimento de pagamento faseado da multa), e a recusa de decisão sobre uma outra questão, relacionada com um outro aspecto da execução dessa pena (não transcrição no registo), quando os dois requerimentos foram apresentados simultaneamente pelo arguido.

Nestes termos requer-se que o presente recurso seja julgado totalmente
procedente, revogando-se o Douto Despacho recorrido, e substituindo-se o mesmo por um outro que aprecie o mérito do requerimento de não transcrição no registo criminal do despacho condenatório, nos termos do artigo 17°, n.° 1, da Lei n.° 57/98, de 18 de Agosto, correctamente interpretado, o que deverá ser feito no respeito do carácter subsidiário e restritivo de direitos fundamentais, que assume a transcrição de sentenças condenatórias no registo criminal do arguido.

Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, sustentando a procedência do recurso.

Nesta instância, o Ex.mo Procurador Geral-Adjunto emitiu douto parecer no mesmo sentido.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

Dispõe o artigo 17°, n° 1, do Decreto-Lei n° 57/98, de 18/8, que os tribunais que condenem em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respectiva sentença nos certificados a que se referem os artigos 11° e 12° deste diploma.


Os certificados a que se referem os artigos 11 ° e 12° são os requeridos por particulares para fins de emprego e os requeridos por particulares para outro fins, respectivamente.

O Senhor Juiz recusou a pretensão do arguido, formulada ao abrigo daquela norma, não baseado em razões de fundo, mas, apenas, na sua intempestividade.

No entendimento do Senhor Juiz, apesar de o preceito expressamente admitir que a ordem de não transcrição da sentença naqueles tipos de certificados de registo criminal seja dada em despacho posterior à sentença, impor-se-ia, em qualquer caso o respeito pelo caso julgado. E s e o juiz, na sentença ou despacho equivalente, omitiu a ordem de não transcrição, transitada aquela, não seria já possível proferir a mesma. Mais: transitando o despacho que aplica a sanção, no processo sumaríssimo, com a sua simples prolação (artigo 397° do C.P.P.) nessa espécie de processo estaria sempre vedado apreciar a questão em despacho posterior.
Ora, tal interpretação não tem o mínimo apoio na letra da lei e contraria frontalmente o seu espírito.
Na verdade, contra o que parece ser o entendimento do Senhor Juiz (e também o do requerente), a providência prevista na norma não se traduz na omissão da inscrição da condenação no registo criminal do arguido, mas apenas na omissão da referência à condenação nos certificados de registo criminal que sejam pedidos para aqueles fins.
Logo, a ordem para que, em tais certificados, seja omitida a referência à condenação, não contende, de modo algum, com o caso julgado que se forma sobre a simples ordem de remessa de boletim ao registo criminal para inscrição, ali, da condenação proferida.
Poder-se-ia pôr é a questão de saber se, com a decisão condenatória e a ordem de remessa do boletim ao registo criminal não fica esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria, em termos de não poder o mesmo ordenar posteriormente a não transcrição da condenação nos certificados do tipo mencionado.
Mas a lei, aí, é clara: não o tendo feito na sentença (ou despacho equivalente) pode sempre o juiz, em despacho posterior, ordenar essa transcrição.
Por outro lado, como facilmente se intui, a medida prevista na norma em causa visa evitar a estigmatização de quem sofreu uma condenação por crime sem gravidade muito significativa (pena não superior a um ano de prisão ou pena não privativa da liberdade) e as eventuais repercussões negativas que a divulgação dessa condenação poderia acarretar, designadamente no acesso ao emprego, concorrendo assim para a reintegração social do delinquente.

Ora, seria de todo em todo inadmissível que, em processo sumaríssimo, essa providência não pudesse ser aplicada em despacho posterior, a pretexto do imediato trânsito em julgado da decisão condenatória, quando aquele tipo de processo se destina, precisamente, ao julgamento de crimes em que não deva ser aplicada pena ou medida de segurança privativas da liberdade (artigo 392°-A do C.P.P.), ou seja, de crimes de muito reduzida relevância do ponto de vista ético jurídico.


Tem, assim, de considerar-se tempestivo o requerimento e, em consequência, deverá o Senhor juiz conhecer do mesmo.

*
Termos em que se decide, no provimento do recurso, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que conheça da pretensão apresentada pelo recorrente.

Sem custas.

Lisboa, 19/05/05

Goes Pinheiro
Silveira Ventura
Margarida Vieira de Almeida