Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
321/05.6TMFUN-C.L1-7
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
ALTERAÇÃO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DIREITO A RESERVA SOBRE A INTIMIDADE
PROVAS
GUARDA DE MENOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. No âmbito da OTM (art. 157º), nos termos do art. 385º, do CPC, aplicável ao caso, por força do disposto no art. 161º, da OTM, o tribunal pode deixar de ouvir o requerido, se a sua audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência, sendo o requerido notificado da decisão que a ordenou, após a sua realização.
2. A recusa de um meio de prova deve ser sempre fundamentada, sendo certo que o direito processual civil português não contém, nenhuma norma que regule especificamente a inadmissibilidade da chamada prova ilícita (ilicitude material).
3. No que toca a certos direitos fundamentais, (como será o caso do direito à intimidade), perante uma eventual colisão de direitos, a admissibilidade do meio de prova deve ser encontrada à luz da ponderação dos interesses em jogo, averiguando, caso a caso, qual o direito fundamental atingido e as circunstâncias que rodearam a actuação «lesiva».
4. No que respeita à guarda, as crianças devem ser confiadas ao progenitor que demonstre ter mais condições para garantir o seu desenvolvimento harmonioso, numa atmosfera de afecto e segurança moral e material.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


1. A veio requerer a alteração da regulação do poder paternal dos menores D e E contra C, pedindo a atribuição da respectiva guarda e a proibição de a requerida poder estar com os filhos.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

Apesar de ter acordado com a requerida que esta ficaria com a guarda dos menores, aquela acabou por lhe pedir que ficasse com os filhos, para poder ausentar-se para o B.

Durante a ausência desta, o requerente constatou que a mesma «facilitava a entrada na casa que habitava com os menores a pessoas referenciadas com o consumo de estupefacientes», «situação que se prolongava pela noite, sem respeito pelo sossego dos filhos, sendo frequentes as discussões em voz alta e com uso de termos impróprios».

Na cada da requerida foram encontrados produtos habitualmente utilizados pelos consumidores de estupefacientes.

Em face disso, a PSP deslocou-se à referida casa e elaborou auto de notícia.

2. Posteriormente, em 15/9/2006, o requerente apresentou um requerimento (fls. 15) pedindo a fixação de um regime provisório, por forma a impedir a requerida de se ausentar da M, sem autorização do tribunal, bem como de ir buscar os filhos à escola, alegando que «existe um risco sério para os menores, dado que a progenitora deambula com grupos de delinquentes e toxicodependentes.»

3. Foi solicitado à PSP que averiguasse da veracidade dos factos relatados a fls. 15 – despacho de fls. 19.

4. A PSP forneceu as informações que constam de fls. 36 e ss., tendo anexado uma descrição das diligências efectuadas, concretamente um «relatório de vigilância».

5. Atendendo às informações policiais, foi proferido despacho, ao abrigo do disposto no art. 157º, da OTM, fixando um regime provisório, atribuindo-se a guarda dos menores ao pai e estabelecendo um regime de visitas à mãe – cf. fls. 45, 69, 153 e 174.

6. Teve lugar a conferência de pais, sem ter sido possível obter qualquer acordo. Foi elaborado relatório social – cf. fls. 102 e ss e 181 e ss.

7. A final, realizado o julgamento, foi proferida sentença que regulou o exercício das responsabilidades parentais da seguinte forma:

“Os menores D e E ficam confiados à guarda e cuidados do progenitor A, a este se deferindo o exercício do poder paternal.

A progenitora terá os menores na sua companhia nos seus dois dias de folga, conduzindo o progenitor à casa da mãe após a actividade escolar daqueles, indo buscá-los, de regresso, pelas 20 horas do segundo dia, responsabilizando-se a progenitora pela condução dos filhos à escola no dia seguinte.

A mãe terá menores na sua companhia, alternadamente, nos períodos festivos seguintes:

- Véspera e noite de Natal, entre as 10 horas do dia 24 de Dezembro e as 11 horas do dia 25 de Dezembro;
- Véspera e noite de Ano Novo, entre as 10 horas do dia 31 de Dezembro e as 12 horas do dia 1 de Janeiro.

O regime de alternância fixado levará em conta que, nos anos ímpares, a Véspera e Noite de Natal serão passados com a mãe e com o pai o Dia de Natal.

Os menores passarão com a progenitora o Dia da Mãe, bem como o dia de aniversário desta.

No dia de aniversário dos menores, estes almoçarão, alternadamente, com o pai e com a mãe.

A mãe terá ainda a companhia dos filhos, durante 15 dias consecutivos, coincidentes com o respectivo período de férias laborais e férias escolares de Verão, devendo avisar o pai destes com, pelo menos, 60 dias de antecedência, qual o período em que pretende gozar as suas férias com os filhos.

Ao regime das visitas poderá ser estabelecido acordos pontuais que possam satisfazer melhor os desejos de todos e manter o maior contacto possível dos menores com a progenitora.

A mãe contribuirá com uma prestação alimentícia de 120€, sendo 60€ para cada menor, que entregará ao pai, por qualquer meio idóneo de pagamento, até ao dia 8 do mês a que disser respeito, actualizável, anualmente, e com efeitos a partir de Janeiro de 2009, na proporção da taxa de inflação que venha a ser divulgada pelo INE, para os preços no consumidor, referente ao ano anterior.

8. Inconformada, apela a requerida, a qual, em síntese conclusiva, diz:

Os requerimentos de fls. 15, 31 a 35 influíram necessariamente na convicção do tribunal e não foram notificados à requerida;

A recorrente não teve hipótese de exercer uma defesa minimamente condigna;

A PSP, ao vigiar a recorrente, a mando do tribunal, está a violar o direito à intimidade da vida privada e familiar;

A sentença é nula, nos termos do art. 668º, nº 1, al. d), do CPC, por não se ter pronunciado sobre os pontos 1 a 19, das alegações apresentadas pela requerida;

Não estão verificados os pressupostos enunciados no art. 182º, nº 1, da OTM, de que depende a alteração da regulação do exercício do poder paternal;

A criança, na 1ª infância, não deve, salvo circunstâncias excepcionais, ser separada da mãe;

A mãe é uma pessoa capaz e idónea para ficar com a guarda dos filhos, como consta dos relatórios sociais;

A recorrente pediu esclarecimentos à técnica do serviço social, mas não ficou esclarecida; sem uma resposta inequívoca, a recorrente não pode pedir outros exames ou juntar elementos que os contrariassem;

O Tribunal não admitiu a junção aos autos de uma gravação áudio em que o menor B refere que a madrasta lhe bate, prova que era necessária tendo em vista a prolação de uma decisão adequada ao caso concreto;

A sentença recorrida viola, além do mais, o princípio VI, da Declaração dos Direitos da Criança, os princípios do contraditório e da igualdade, o disposto no art. 18º e 26º, da CRP.

9. Nas contra-alegações, o Ministério público pronuncia-se pela manutenção da decisão.

10. Cumpre apreciar e decidir.

11. Está provado que:

Por acordo homologado judicialmente em 7 de Março de 2006, cuja decisão transitou em julgado, foi estabelecido o regime do exercício do poder paternal relativo aos menores D e E, no sentido dos mesmos ficarem confiados à guarda da mãe, radicando o exercício do poder paternal em ambos os progenitores, estabelecendo-se um regime de visitas ao pai e ficando este obrigado, a título de alimentos aos menores, com o pagamento da prestação bancária da fracção onde habitam os menores, as despesas com os consumos de água, electricidade, gás, as despesas escolares, com frequência, equipamento e material e ainda as despesas médicas. O abono de família devido aos menores era recebido pela mãe.

Estabeleceu-se, ainda, que em caso de ausência da requerida para o B, de onde é natural, os menores ficariam com o pai durante o período que perdurar essa ausência.

Por razões não completamente esclarecidas, mas relacionadas com um relacionamento afectivo com um indivíduo com adição a estupefacientes e conectado com práticas criminais, a requerida viria a deslocar-se para o B logo após a celebração do acordo e regressou em Maio de 2006.

Este relacionamento terá sido marcado pela conflituosidade entre ambos, a que os menores em alguns momentos terão assistido.

A requerida, aquando o seu regresso, deparou-se com uma situação de incumprimento por parte do requerente, sendo escassos os contactas com os seus filhos, embora mantivesse contacto telefónico diário com eles.

A 14 de Novembro de 2006, foi decretado judicialmente um regime provisório de regulação do exercício do poder paternal, no qual foi alterado a guarda dos menores que foi atribuída ao requerente, com estabelecimento de um regime de visitas e fixação de uma pensão de alimentos.

A requerida reside presentemente em união de facto com o actual companheiro, relação que perdura desde o início do corrente ano.

Residem num apartamento arrendado, tipologia Tl que apresenta boas condições de habitabilidade e conforto. O apartamento situa-se a 200 metros da casa que o requerente ainda habita.

A requerida exerce a função de empregada de mesa, com vinculação laboral a prazo, tendo como horário de trabalho entre as 16h30m até às 00h.30m, folgando rotativamente dois dias por semana. Aufere um rendimento de cerca de 560€, acrescido de gratificações o que lhe permite um rendimento médio de 750€.

O percurso profissional da progenitora caracteriza-se pela instabilidade intercalada com situação de desemprego; esteve numa agência de viagens, trabalhou como operadora de vendas pelo telefone e trabalhou escassos dias num bar nocturno.

O companheiro, também natural do B, trabalha na área da construção civil, não tendo sido apurados os seus rendimentos.

A requerida sempre manteve um bom relacionamento afectivo com os filhos e estes mantêm uma interacção materno-filial terna, carinhosa e segura com aquela.

Beneficia de apoio do companheiro para a estabilização do estilo de vida e para exercer as funções parentais quando está com os filhos, sendo que estes mantêm com aquele uma relação positiva e de aceitação.

O requerente habita em apartamento próprio, o qual apresenta boas condições de habitabilidade e conforto. A menor E divide o quarto de dormir com a filha da actual companheira do requerente e o menor D tem quatro individual. O casal tem um filho em comum.

Em breve irão mudar para uma moradia, actualmente em final de construção, com boas condições habitacionais e índices de conforto e lazer. Os menores conhecem a casa e mostram-se agradados com a mudança.

O requerente desenvolve a actividade de Engenheiro, declarando auferir mensalmente um vencimento de 1550€. A actual companheira aufere um vencimento de 1.500€.

Mantém uma boa relação afectiva com os filhos. Assume as tarefas de levar e ir buscar os filhos à escola, contactar com as educadoras, levá-los ao médico, à terapia da fala e outras actividades lúdicas dos menores. Em conjunto com a companheira articulam de modo organizado as tarefas domésticas e parentais.

Mostra-se um progenitor preocupado com o bem-estar dos filhos, com um registo de gestão do quotidiano com regras, hábitos e limites, oferecendo a estes estabilidade, segurança e previsibilidade.

O menor D frequenta o 1° ano do 1° Ciclo, apresentando um desenvolvimento global adequado à sua idade, com excepção da linguagem, tendo, todavia, intervenção especializada. É aluno assíduo e comparece sempre com boa higiene e organização.

A menor E frequenta o Infantário e apresenta um nível de desenvolvimento consentâneo com os parâmetros normativos da sua idade.

Segundo o parecer da Exma. Técnica do IRS, responsável pela elaboração do último relatório, o requerente parece, no momento, manter condições mais favoráveis, quer no plano funcional, quer no plano afectivo, para garantir o desenvolvimento da personalidade dos menores, em relação à requerida.

12. Das invocadas nulidades

Alega a recorrente que os requerimentos de fls. 15, 31 a 35  influiram necessariamente na convicção do tribunal e não foram notificados à requerida, pelo que não teve hipótese de exercer uma defesa minimamente condigna.

Vejamos.

Com a apresentação do requerimento de fls. 15,[1] o requerente tinha em vista, como já se referiu no relatório, a fixação de regime provisório que impedisse a requerida de ir buscar os filhos à escola e de se ausentar com os mesmos da M.

Na sequência desse requerimento, solicitou-se à PSP que averiguasse a veracidade dos factos relatados (ao contrário do que alega a requerida, o tribunal não especificou as diligências a realizar) após o que foi proferido despacho, ao abrigo do disposto no art. 157º, da OTM.

Ora, este preceito autoriza o tribunal a decidir, a título cautelar e provisório, em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, relativamente a matérias que devam ser apreciadas a final, de forma a salvaguardar a protecção e defesa do superior interesse do menor (podendo, nos termos da lei, mandar proceder às diligências necessárias).

Estamos, assim, perante uma providência cautelar, provisória e urgente, cuja finalidade e estrutura se assemelha à dos procedimentos cautelares, previstos na Lei Processual Civil (cf. arts. 381º e ss, do CPC).

Nos termos do art. 385º, do CPC, aplicável ao caso, por força do disposto no art. 161º, da OTM, o tribunal pode deixar de ouvir o requerido, se a sua audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência, sendo o requerido notificado da decisão que a ordenou, após a sua realização.

Ora, no caso que analisamos, dada a sensibilidade da matéria alegada pelo requerente, bem como o pedido formulado, a audiência prévia da requerida poderia comprometer a finalidade da providência, pelo que se impunha proferir decisão, sendo o contraditório observado posteriormente, como a lei expressamente prevê.

É, assim, de concluir não ter sido violado o princípio do contraditório (cf. art. 3º, nº2, do CPC), nem cometida qualquer nulidade.

Acresce que:

Ainda que se tivesse cometido irregularidade, susceptível de configurar nulidade, constata-se que a mesma não foi arguida nos termos e dentro do prazo previsto nos arts. 201º e 205º, do CPC.

Na verdade, a requerida foi citada para os termos desta acção em 24/9/2006 (cf. fls. 29), praticou actos processuais (tendo inclusive, em 9/10/2006, respondido ao requerimento inicial), foi notificada do despacho que fixou o regime provisório e marcou a conferência de pais (fls. 45, 46, 48 e 49), esteve presente, em 14/12/2006, na referida conferência, acompanhada pelo seu Exmo. Mandatário (fls. 48,49 e 68), e nunca arguiu qualquer nulidade.

Neste contexto, em 15/1/2007, quando veio – pela 1ª vez – suscitar a questão da violação do princípio do contraditório e do respeito pela igualdade das partes, por não ter sido notificada da apresentação do referido requerimento, bem como a nulidade do despacho que fixou o regime provisório, eventual nulidade cometida sempre seria de considerar sanada, atendendo ao regime de arguição de nulidades estabelecido no art. 205º, do CPC.

Da mesma forma, após a apresentação do requerimento de fls. 71 e ss., a omissão de despacho sobre estas questões, a constituir nulidade, teria que ser arguida, de harmonia com a regra estabelecida no citado art. 205º, do CPC e, mais uma vez, não foi. Consequentemente, eventual nulidade cometida, é de considerar sanada.

13. Da violação do direito à intimidade da vida privada

Sustenta a recorrente que a PSP, ao vigiar a recorrente, violou o direito à intimidade da vida privada e familiar, estando, com isso, segundo se crê, a pôr em causa a validade daqueles elementos de prova.

Ora bem.

Como acima se referiu, na sequência de um requerimento apresentado pelo pai dos menores, o Tribunal solicitou à PSP que averiguasse a veracidade dos factos ali relatados, sem ter, contudo, concretizado as diligências a realizar.

A PSP forneceu as informações solicitadas e anexou um «relatório de vigilância».

Foi, então, proferido o despacho de fls. 45. Note-se, porém, e desde já, que este despacho, embora remeta para as informações policiais, não refere expressamente o “relatório de vigilância”, pelo que nem sequer pode afirmar-se, com a indispensável segurança, que este tenha sido utilizado como elemento de prova indiciária para a decisão em causa.

Em todo o caso, deste despacho não foi interposto recurso. Ora, quando se entenda que o juíz admitiu um meio de prova proibido pela lei substantiva a situação não se enquadra no art. 201º, do CPC (visto que não está em causa um error in procedendo), daí que a parte só possa reagir contra a ilegalidade cometida através do competente recurso.[2]

Transitada em julgado aquela decisão, a verdade é que a lei processual civil não contempla a possibilidade de revisão com fundamento na utilização de elemento probatório obtido de modo ilícito – cf. art. 771º e ss do CPC.

Está, pois, precludido o conhecimento desta questão.

Ainda assim, de forma necessariamente breve, dir-se-á:

O art. 515º, do CPC determina que “o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las (…)”.

Trata-se da consagração do princípio da aquisição processual. Daqui decorre que a recusa de um meio de prova deve ser sempre fundamentada, sendo certo que o direito processual civil português não contém, nenhuma norma que regule especificamente a inadmissibilidade da chamada prova ilícita (ilicitude material).

Sobre a questão, no direito comparado, várias soluções doutrinárias têm sido adiantadas, confrontando-se as teses favoráveis à admissibilidade, à inadmissibilidade e as chamadas teses mistas.[3] O panorama revela-se, porém, pouco claro, dada a ausência de regulamentação legislativa sobre o assunto, na generalidade dos ordenamentos jurídicos.

Há, porém, quem entenda que o disposto no art. 32º, nº8, da CRP, sob a epígrafe «garantias de processo criminal», no qual se estabelece que «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações» é de aplicar analogicamente ao processo civil, atendendo a que «no caso omisso procedem as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei» (art. 10º, nº2, CC).[4]

Não é, contudo, uma solução inteiramente pacífica, sobretudo se tivermos em conta que a lei ordinária continua a consagrar diferentes soluções no âmbito do processo penal e do processo civil que deixariam de se justificar se a norma constitucional fosse de aplicação imediata a todos os ramos do direito.

Parece assim mais adequado, pelo menos no que toca a certos direitos fundamentais[5], (como será o caso do direito à intimidade), perante uma eventual colisão de direitos, encontrar a solução à luz da ponderação dos interesses em jogo, averiguando, caso a caso, qual o direito fundamental atingido e as circunstâncias que rodearam a actuação «lesiva».[6]

Note-se que, mesmo aqueles que aceitam a aplicação analógica do art. 32º, nº8, da CRP, defendem que só seria abusiva, em termos de obstar à admissibilidade da prova, quando se não tenha visado a sua utilização como meio probatório. Ora, nessa medida, a questão desloca-se do plano da admissibilidade para o da valoração.[7]

Nesta perspectiva, não decorrendo da lei a proibição absoluta de admissibilidade daquele elemento de prova, considerando a espécie de providência requerida e os seus fundamentos, bem como as circunstâncias em que foi obtido o aludido elemento de prova, fazendo, por sua vez, como se impõe, o confronto dos interesses em litígio, inclinamo-nos para reconhecer a sua admissibilidade.

14. Pretende a recorrente que a sentença é nula, nos termos do art. 668º, nº 1, al. d), do CPC, por não se ter pronunciado sobre os pontos 1 a 19, das suas alegações.

Sem razão.

Efectivamente, na presente acção, a sentença tem apenas que se pronunciar sobre a guarda dos menores, o regime de visitas e a pensão de alimentos.

Foi o que sucedeu no caso que analisamos, não enfermando, por isso mesmo, a sentença, da invocada nulidade.

15. Sustenta a recorrente que o Tribunal devia ter admitido «a junção aos autos de uma gravação áudio em que o menor D refere que a madrasta lhe bate», prova que era necessária tendo em vista a prolação de uma decisão adequada ao caso concreto».

Em primeiro lugar, é de notar que a recorrente não levanta agora quaisquer objecções à aludida prova, sendo certo que a sua admissibilidade nos colocaria perante a problemática que atrás se enunciou.

De todo o modo:

Sobre o requerimento em que se pedia a admissão da dita gravação foi proferido o despacho de indeferimento que consta da acta de audiência e julgamento. Este despacho não foi impugnado. Tendo transitado em julgado, não pode, sob pena de ofensa do caso julgado, ser, agora, de novo, reapreciada a questão.

Note-se, por outro lado, que, não tendo sido impugnada a decisão de facto, é de considerar definitivamente fixada a matéria de facto, tal como se decidiu na sentença recorrida.

16. Relativamente aos esclarecimentos pedidos à técnica que elaborou os relatórios sociais.

A recorrente apresentou, oportunamente, um requerimento a pedir que a técnica do IRS prestasse esclarecimentos – fls.120 e ss.

Sem prejuízo de se considerar que a maior parte dos aludidos «esclarecimentos» mais não são do que comentários sobre o dito relatório, certo é que o Tribunal (talvez por isso mesmo) entendeu que o julgamento era a sede própria para discutir as questões suscitadas (cf. despacho de fls. 142).

Ora, no decurso do julgamento, a técnica do IRS prestou o seu depoimento. Não consta da acta nenhuma situação anómala reveladora de que não tenham sido prestados todos e quaisquer esclarecimentos solicitados (cf. fls. 204).

Consequentemente, nesta fase do processo, nem se vislumbra o alcance da alegação de que «pediu esclarecimentos à técnica do serviço social, mas não ficou esclarecida, e que, sem uma resposta inequívoca, a recorrente não pode pedir outros exames ou juntar elementos que os contrariassem».

Improcede, pois, a sua pretensão.

17. Alega, ainda, a recorrente que não estão verificados os pressupostos enunciados no art. 182º, nº 1, da OTM, de que depende a alteração da regulação do exercício do poder paternal.

Mais uma vez não lhe assiste razão.

Conforme preceitua o citado artigo, a alteração de regime pode ficar a dever-se a alteração das circunstâncias. É precisamente com este fundamento que o requerente, pai dos menores, vem requerer ao tribunal a alteração da guarda – cf. factualidade articulada nos arts. 2º e ss do requerimento inicial.

Improcede, assim, a sua pretensão.

18. A questão da guarda

Nos presentes autos de alteração da regulação do exercício do poder paternal está essencialmente em causa a guarda dos menores e, por isso, as relações da criança com cada um dos pais, a interrelação com qualquer outra pessoa que possa afectar significativamente os interesses da criança são, obviamente, factores fundamentais na escolha do progenitor a quem atribuir a guarda.

Alega a recorrente que os filhos, atendendo à sua idade (à data do julgamento, o D frequentava o 1° ano do 1° Ciclo e a Carolina o Infantário), devem ser confiados à sua guarda.

Vejamos.

Preceituam os arts.180º da O.T.M[8]. e 1905º do C.C[9]. que o exercício do poder paternal será regulado de harmonia com os interesses do menor, podendo este, no que respeita ao seu destino, ser confiado à guarda de qualquer dos pais (guarda maternal ou paternal), de terceira pessoa ou de estabelecimento de educação ou assistência.

O critério legal, quase universal, para escolher a pessoa a quem será entregue a guarda da criança, verdadeiro "leitmotiv" de todo o direito dos menores, é o interesse da criança.

Trata-se de conceito jurídico indeterminado, isto é de conceito carecido de preenchimento valorativo – Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, pag. 177.

De facto,
" O mundo das relações familiares é de um género insusceptível de ser medido com o metro da regra jurídica", Nicolo Lupari apud Pedro de Albuquerque,  in "Autonomia da Vontade e Negocio Jurídico em Direito da Família", pag. 160.                

Assim, "se permite a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações, facultando-se uma espécie de osmose entre as máximas ético sociais e o direito, permitindo uma individualização da solução"Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pag. 114.                                 

Por outras palavras:

Para preservar a aplicação do direito de um dogmatismo e de um automatismo que não estão de acordo com a complexidade do real e a flexibilidade da vida, o legislador utiliza este conceito, indefinível mas expressivo, que traduz a evolução do Direito da Família no sentido do abandono de um modelo familiar único, a favor do reconhecimento da diversidade e da gestão de cada situação individual – cf. Jean Carbonnier, "Les Notions a Contenu Variable dans le Droit de la Famille", pag. 108.

Os primeiros estudos psicológicos consagrados às relações entre pais e filhos representavam uma mãe única responsável pela vida da criança, como se a mãe existisse sozinha com o seu filho, como se este não tivesse personalidade, como se a estrutura familiar, os companheiros de escola ou de bairro, o meio económico, a ecologia física e social, a religião, a organização dos tempos livres e, sobretudo, o universo semântico em que a criança mergulha, como se nada disto tivesse o mínimo papel no desenvolvimento da criança.

Daí a afirmação do Principio VI da Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovado pela Assembleia-geral da ONU em 20/11/59:

"A criança precisa de amor e compreensão para o desenvolvimento harmoniosos da sua personalidade. Deve, tanto quanto possível, crescer sob a protecção dos pais e, em qualquer caso, numa atmosfera de afecto e segurança moral e material; a criança na primeira infância não deve, salvo em circunstâncias excepcionais, ser separada da mãe".

É comummente aceite como justificação para este princípio a consideração de que a capacidade das mulheres para cuidarem dos filhos de tenra idade é decorrente da interacção de vários factores, entre eles o impulso biológico. Não deixa no entanto de ser uma imposição social, num certo contexto cultural.      

Segundo alguns autores, a maior idoneidade das mulheres para cuidar dos filhos deve-se ainda à sua maior capacidade para exprimir sentimentos e emoções. Será, por isso, natural que as crianças de tenra idade, completamente dependentes, se sintam melhor com um adulto que seja afectuoso, exprima sentimentos de ternura e tenha capacidade de sacrifício e de amor (cf. Maria Rosa Grimaldi, "L'Affidamento del minore al padre nella separazione e nel divorzio, Il Diritto di Famiglia e delle Persone", 1992, pag. 863).
                  
Actualmente, porém, a sociedade tende a evoluir para uma interfungibilidade de papéis entre o homem e a mulher. Caminha-se, claramente, para a reciprocidade de afectos e daí a tendência para a colaboração de ambos os progenitores em todas as funções da família, sem se reduzir o homem a uma função de segurança económica e a mulher a uma função doméstica. Se o homem vai perdendo o monopólio da carreira profissional, a mulher vai perdendo o monopólio da função doméstica e do papel de guardiã em relação aos filhos.

Ao pai tradicional que tem uma relação distante com os filhos, pouco envolvido na educação destes e menos capaz de exprimir emoções, tende hoje, a suceder, pelo menos em certos estratos sociais, em que ambos exercem uma actividade profissional, um pai que quer assumir um papel activo relativamente aos filhos (são os chamados "novos pais" - cf. Hughes Fulchiron, "Autorité Parental et Parents Désunis", pag.20).

Em todo o caso, saber qual dos progenitores através da interacção, companhia e acção recíproca preenche as necessidades psicológicas e físicas da criança, ou seja, medir a intensidade das relações afectivas entre pais e filhos é consabidamente uma questão que se reveste de grande complexidade, sendo certo que a ligação da criança aos pais está sujeita a evolução no tempo e, muitas vezes, as diferenças relacionais são subtis e de difícil apreensão.

No caso em análise:

Considerando a factualidade apurada (num passado não muito distante, a requerida viveu uma situação relacional com um indivíduo com adição a estupefacientes e conectado com práticas criminais, marcada por conflitualidade a que os menores terão assistido; o plano profissional é marcado por alguma precariedade e instabilidade: alterna situações de desemprego, com trabalhos vários, em agência de viagens, operadora de vendas pelo telefone e, embora por pouco tempo, num bar nocturno; à data da sentença trabalhava como empregada de mesa, com vinculação laboral a prazo, tendo como horário de trabalho entre as 16h30m até às 00h.30m, folgando rotativamente dois dias por semana), bem como a necessidade de dar aos menores estabilidade emocional e de os não fazer sentir-se alvo de disputa, entende-se que, pelo menos, por ora, o pai apresenta melhores condições para proporcionar aos filhos o bem estar indispensável ao seu desenvolvimento harmonioso, devendo por isso ser confiados à sua guarda, sem prejuízo de manterem com a mãe convívios regulares, tal como decidido na sentença recorrida.

19. Nestes termos, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante.
                                                           Lisboa, 9 de Junho de 2009

                                                           Maria do Rosário Morgado
                                                           Rosa Ribeiro Coelho
                                                           Amélia Alves Ribeiro

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[1] Referimos apenas este requerimento, já que o texto apresentado a fls. 31 e ss. não passa de uma mera exposição, em estilo epistolar, dirigida ao Juiz do processo e que, de um ponto de vista técnico, não pode considerar-se uma peça processual.
[2] Cf. Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, 148.
[3] Cf. Isabel Alexandre, ob. cit., 160.
[4] Isabel Alexandre, ob.cit., 233 e ss. Porém, em sentido contrário se pronuncia o Juíz Conselheiro Dr. Salazar Casanova, Provas Ilícitas em Processo Civil, Março 2003, Comunicação apresentada no âmbito de acção de formação no CEJ.
[5] Na verdade, no campo dos direitos fundamentais pode dizer-se que há uns «mais fundamentais que outros»; uns, não sofrem qualquer limitação, como o direito à vida e à integridade física; outros, sendo fundamentais, como o direito à intimidade e à inviolabilidade do domicílio, admitem limitações. Faz, por isso, sentido distinguir as provas absolutamente inadmissíveis, das relativamente inadmissíveis.
[6] A este respeito, escreve o Juíz Conselheiro Salazar Casanova, estudo cit., pag. 54: “quando estão em causa certos direitos fundamentais (v.g. intromissão na vida privada) não decorre da lei a proibição absoluta de admissibilidade da prova que, em função das circunstâncias como foi obtida, será ou não valorizada pelo tribunal.”
[7] Cf. Isabel Alexandre, ob.cit, 250 e ss
[8] Aplicável por força do disposto no art. 182º, nº 4, da OTM.
[9] Na redacção anterior à introduzida pela Lei 61/2008, de 31 de Outubro, por ser a aplicável ao caso dos autos.