Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
725/06.7TBTVD-I.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: INSOLVÊNCIA
IMPUGNAÇÃO
RESOLUÇÃO
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: – Na acção de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, é ao impugnante que incumbe o ónus de provar que não se verificaram os pressupostos de tal resolução.
– É lícito ao julgador, com base em factos conhecidos e demonstrados nos autos, presumir um outro facto que com aqueles se mostra numa relação de concordância lógica, de acordo com as regras da experiência.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Veio Banco instaurar acção de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, contra Massa Insolvente da C. Lda pedindo que seja declarada nula e de nenhum efeito a resolução operada pelo administrador da insolvência, através de carta datada de 28/9/2006, da dação em cumprimento da insolvente ao A, de um imóvel.
Alega e em síntese que a dação não foi prejudicial à massa insolvente e que não actuou de má fé, por entender, quanto ao primeiro aspecto, que sem a dação sempre subsistiria a hipoteca registada a seu favor o que teria por consequência a atribuição ao A de preferência no pagamento do valor do seu crédito pela venda do imóvel, em sede de eventual insolvência. Quanto ao segundo aspecto, desconhecia se, à data da dação, existiam outros credores da insolvente que pudessem ser prejudicados com aquela. Aliás, desconhecia até que a a insolvência fosse iminente, confiando na possibilidade da insolvente poder, a médio prazo, solver as dívidas que tinha para com o Banco.

A Ré contestou alegando que a dação foi prejudicial à massa e que o Banco actuou de má fé ao celebrar o negócio.

A acção seguiu os seus termos, vindo a realizar-se o julgamento e a ser proferida sentença, que julgou a acção improcedente absolvendo a Ré do pedido.

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Inconformado, recorre o Banco , concluindo que:
– Nestes autos, cabia à Ré o ónus de alegar e provar os factos constitutivos do direito de resolução da dação em pagamento da “Q”, em benefício da massa insolvente.
– Assim, teria a Ré de provar que o A. actuou de má fé ao outorgar a escritura da dação, isto é, que o Banco sabia que a C se encontrava em estado de insolvência ou que conhecia que a dação era prejudicial à massa, e que a C se achava em situação de insolvência iminente ou que conhecia o início do processo de insolvência, isto nos termos do art. 120º nºs 4 e 5 do CIRE.
– Não foi produzida qualquer prova de que o Banco, na data de outorga da escritura de dação, soubesse que a C já se havia apresentado à insolvência, pelo que não devia ter sido dado como provado o nº 6 da base instrutória.
– Foi a Ré que prescindiu, entre outros, dos depoimentos da testemunha D, funcionário do A. bem como da sócia-gerente da Ré, F, as pessoas que pelo conhecimento directo dos factos melhor poderiam ter esclarecido a matéria de tal artigo 6º.
– Foi pois a Ré que impossibilitou a possibilidade de se fazer prova directa sobre tal artigo da base instrutória o que, só por si e na falta de qualquer outra prova, deveria ter determinado que tal quesito fosse dado como “não provado”.
– Do testemunho de G, funcionário do A, resultou que o Banco apenas teve conhecimento do processo de insolvência da C em momento posterior ao da outorga da escritura da dação.
– A presunção judicial de que se socorreu o Mº juiz a quo é, no caso, inadmissível.
– Por outro lado, devia ter sido dada como provada a matéria dos quesitos 1º, 2º e 3º, face ao depoimento da testemunha G, funcionário do A.

A Ré contra-alegou defendendo a manutenção da sentença recorrida.

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Foi dado como provado que:
1) Através da inscrição G-3, Ap. , encontrava-se registada a favor da sociedade C a aquisição, por compra, do direito de propriedade sobre prédio rústico, composto de terreno de cultura arvense, sito na Q, freguesia , descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº da dita freguesia.
2) Por escritura pública outorgada a 9/3/2006, a C declarou dar ao Banco e este declarou aceitar, o prédio referido em 1), livre de pessoas e bens e de ónus e encargos, à excepção do arresto registado sobre o dito imóvel pela inscrição F, pelo preço de € 784.600,00, a título de dação em cumprimento, para pagamento parcial, no dito valor da dação, das dívidas indicadas na escritura, no total de € 2.095.541,10.
3) A dação em pagamento foi celebrada por D e E, enquanto procuradores simultaneamente do A e da C.
4) A insolvência da C foi decretada por sentença de 20/3/2006 a requerimento da própria C, entrado em juízo em 24/2/2006.
5) Através da inscrição C-2, Ap. foi registada hipoteca voluntária a favor do Banco H para garantia de um empréstimo e até ao montante máximo de 483.000.000$00, sobre o prédio referido em 1).
6) Por inscrição C-3, , foi registada hipoteca voluntária a favor do Banco para garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas e a assumir, até ao montante máximo de € 1.250.536,21, sobre o prédio referido em 1).
7) Através da inscrição G-4, Ap. e averbamentos Av. 1, Ap., A. 2, Ap., Av. 3, Ap. e Av. 4, Ap. encontra-se definitivamente registada a favor do Banco A. a aquisição do prédio mencionado em 1), por dação em cumprimento.
8) No dia 28/12/2004 o Banco A celebrou com a C um Contrato de Reestruturação de Créditos.
9) Em 16/2/2005 a C deliberou em Assembleia-Geral Extraordinária a sua apresentação à insolvência.
10) Em 23/2/2006, a generalidade dos activos da insolvente foi arrestada no processo nº do 2º Juízo do Tribunal Judicial, a requerimento do credor I, arresto que se prolongou pelos dias 24 e 27 subsequentes e nos dias 1 e 2 de Março.
11) Por carta registada com A/R datada de 28/9/2006, enviada pelo Administrador da Insolvência ao ora A, foi este notificado “de acordo com o determinado no art. 123º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 120º do mesmo Código, da resolução, em benefício da massa insolvente da C – Lda, da dação em cumprimento do prédio rústico denominado Q (...) efectuada pela insolvente a favor dessa instituição, em 16/2/2005, de acordo com os documentos que se encontram em seu poder”.
12) Os intervenientes mencionados em 3) eram ambos trabalhadores do Banco A.
13) Na data de celebração da escritura de dação o Banco A. sabia que a C se tinha apresentado à insolvência.
14) Consta do relatório pericial de fls. 162 e seguintes que o prédio referido em 1) tem e tinha em 28/12/2004 e 9/2/2006 um valor de € 1.047.431,00.
15) Foram incluídos na lista provisória de credores, créditos não reclamados de trabalhadores de valor não inferior a € 76.000,00.

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Cumpre apreciar.
A questão essencial colocada pela recorrente consiste em impugnar a resposta dada pelo tribunal a quo relativamente ao quesito 6º.
A resposta, relembre-se, foi:
“Na data de celebração da escritura de dação, o Banco A. sabia que a “C” se tinha apresentado à insolvência”.

Insurge-se o Banco ora recorrente por entender que não foi feita prova deste facto, tendo, ao invés, a sua testemunha E mostrado que tal conhecimento não existiu.
Reapreciada a prova testemunhal – apesar da péssima qualidade sonora, sobretudo no tocante às duas primeiras testemunhas – devemos desde já dizer que discordamos da posição do recorrente.
A testemunha E, que participou na outorga da escritura, apenas estaria em condições de expressar o seu próprio desconhecimento relativamente à apresentação à insolvência da C.
Acresce que o depoimento desta testemunha nos suscita algumas reservas, sobretudo pelo modo como persistiu em afirmar que a mencionada escritura tivera lugar na data que nela consta, ou seja, 9/2/2006.
E isto porque esta data não é verdadeira. Ouvido o notário que celebrou a escritura, veio o mesmo reconhecer que a data da mesma foi 9/3/2006. Ora, esta diferença temporal está muito longe de ser irrelevante: é que, entretanto, em 24/2/2006 a C apresentou-se à insolvência.
Não deixa de causar estranheza que um notário certifique algo de totalmente inverídico e que a testemunha E, que mostrava recordar-se perfeitamente da data da escritura tenha insistido que esta fora realizada em Fevereiro.
Certamente por mera coincidência, essa data de Fevereiro era manifestamente favorável ao Banco A. já que anterior à apresentação da empresa à insolvência.

Resultou do depoimento da testemunha J, antigo director do Banco, que este se procurou inteirar das condições da C, do seu património, face ao avultado montante da dívida que esta contraíra com o Banco . Isto até finais de 2004, momento em que a testemunha deixou o Banco.

É certo, por outro lado, que nenhuma das testemunhas ouvidas estava em condições de confirmar ou desmentir directamente o teor do quesito 6º.
Daí que o recorrente venha alegar que o ónus da prova era da Ré, nos termos do art. 342º do Código Civil.
Está questão, que é já um problema de direito e não de facto, adquire assim um maior relevo dada a precaridade da prova testemunhal, no que toca ao conhecimento ou desconhecimento do Banco A. da apresentação da C à falência.
Relembre-se que, nos termos do art. 120º do CIRE, podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados nos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência. Contudo, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se traduz, entre outras circunstâncias, no conhecimento do início do processo de insolvência.

Uma vez que não se discute que a dação em cumprimento constituiu um negócio jurídico prejudicial para a massa insolvente, o problema é o de saber se o Banco conhecia – ou não - tal apresentação da C à insolvência.
A resolução da dação em cumprimento veio a ser declarada pelo administrador da massa insolvente. Os presentes autos constituem a impugnação dessa resolução pelo Banco Comercial, na qualidade de outorgante e beneficiário da escritura da dação.

Dito isto, a quem cabe o ónus da prova numa acção de impugnação da resolução?
No caso de a resolução ser exercida por via de acção, nos termos do art. 126º nº 2 do CIRE, é manifesto que é ao administrador da insolvência que incumbe provar os pressupostos de tal resolução.
A acção de impugnação, contudo, constitui uma reacção à declaração de resolução, e, naturalmente terá de ser proposta por quem haja sido afectado por tal resolução. Aqui o que está em causa é demonstrar que não existiram os pressupostos que permitiriam a resolução do negócio jurídico, nomeadamente por o mesmo não ser prejudicial à massa insolvente ou por inexistir má fé da entidade que celebrou o negócio com a insolvente.
O autor é aqui a parte que pretende impugnar a resolução e obter, como consequência, a validade do acto jurídico praticado e dos seus efeitos. Está pois em causa a demonstração de que não ocorreram os pressupostos exigíveis para a resolução.
Sendo assim, é à parte que impugna a resolução que cabe alegar e provar todos os factos extintivos do direito de resolução invocado pelo administrador da insolvência – ver Gravato Morais, “A resolução em benefício da massa insolvente no CIRE”, pág. 167.
Ou seja, o Banco tinha de alegar, além do mais, que a dação em cumprimento não foi prejudicial à massa insolvente e que não existiu má fé da sua parte. E, além de o alegar, tinha também, em nosso entender, o encargo de o provar, nos termos do art. 342º nº 2 do Código Civil.
Mas mesmo que assim se não entenda e que se confira à Ré massa insolvente o ónus de provar os pressupostos da resolução, pensamos que se justifica a resposta dada ao quesito 6º.
Como dissemos, os depoimentos testemunhais não permitem alcançar directamente a conclusão de que o Banco tinha conhecimento, ao celebrar a dação, da apresentação da C à insolvência. Também não permitem, é certo concluir que a desconhecia.
Devemos contudo ter em atenção um conjunto de circunstâncias que, a nosso ver, permite sufragar a decisão factual tomada pelo Mº juiz a quo.

A C apresentou-se à insolvência em 24/2/2006.
O conhecimento de que a empresa se apresentou à insolvência é requisito bastante para fundamentar a má fé, nos termos do art. 120º nº 5 c) do CIRE.
Tendo sido celebrada em 9/3/2006 a dação em cumprimento, a data constante da escritura é a de 9/2/2006 – anterior à apresentação da C à insolvência.
Que o notário tenha cometido um tal erro, como reconheceu, já é surpreendente. Mas que o Banco, outorgante na dita escritura, reafirme tal data de 9/2/2006 torna-se inexplicável. O Banco não podia ignorar a data em que celebrou a escritura, até porque os outorgantes foram dois funcionários do próprio Banco, em representação deste e da C.

De acordo com o depoimento das ex-trabalhadoras da C, L e N, desde 2002 pelo menos que a situação financeira da C se degradou, começando os ordenados a serem pagos com atrasos.
Em 2005, a C deixou de de distribuir a areia que extraía, passando a efectuar apenas tarefas de extracção, tendo na altura saído muitos dos seus funcionários, nomeadamente os motoristas encarregados da distribuição.
Em 22 ou 23 de Fevereiro de 2006 os restantes trabalhadores cessaram o seu trabalho para a C.

Perante um tal cenário e face às sucessivas diligências do Banco visando garantir e satisfazer mesmo que parcialmente o seu crédito, desde hipoteca, penhor, reestruturação do débito, promessa de dação, não é credível que o mesmo Banco desconhecesse a situação calamitosa da C, que em meados de Fevereiro atingiria a cessação de actividade.

Tal como não é credível que o Banco desconhecesse que em 23/2/2006 a generalidade dos activos da C foi arrestada a requerimento de um outro credor, a I.
Mesmo que o Banco não tivesse conhecimento – por uma pouco crível falta de diligência na salvaguarda dos seus próprios interesses – da apresentação da C à insolvência, não podia de modo algum ignorar que a empresa estava, objectivamente, numa situação de insolvência de facto, nos termos do art. 120º nº 5 a) do CIRE – ver anotações de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, pág. 433.

Mas se, pelo contrário, e como o bom senso e a normalidade da vida recomendam, concluirmos que o Banco tinha perfeito conhecimento, não só da insolvência de facto mas também da apresentação da empresa à insolvência, faz todo o sentido que o Banco celebre a escritura de dação em cumprimento. E a própria data erroneamente aposta e certificada em tal escritura – data errónea, como vimos – se ajusta a esse objectivo de dar a ideia de que a dação foi anterior à apresentação à insolvência.
Contudo, foi posterior, ocorrendo numa altura em que a C já não tinha trabalhadores ao seu serviço, não desenvolvia qualquer actividade, deliberara apresentar-se à insolvência e vira os seus activos arrestados.

Não estamos propriamente a falar de um credor particular pouco atento, mas de uma poderosa instituição de crédito, pronta a fazer face a situações como a dos autos, ou seja, créditos não satisfeitos. As quantias envolvidas, por outro lado, estão longe de ser insignificantes.

O recorrente insurge-se contra aquilo que considera ter sido uma inadmissível presunção judicial do Mº juiz a quo.
“Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” - arts. 349º e 351º do Código Civil.
Perante as diversas diligências que o Banco foi tomando para garantir e satisfazer o seu avultado crédito sobre a C, é impossível dizer-se que o mesmo Banco não acompanhasse a evolução económica desastrosa desta empresa. Pelo contrário, quanto mais problemática a situação se tornava mais cuidadosas eram as medidas tomadas pelo Banco para garantir ao menos parte do seu crédito.
É logo após a apresentação à insolvência que o Banco celebra a escritura de dação – escritura em que a própria C está representada por um funcionário do Banco – e, a coberto da data inserta na escritura, vem invocar essa mesma data, anterior à apresentação à insolvência, na petição inicial dos presentes autos.
A própria testemunha E, funcionário do Banco e que na escritura actuou como representante da C, insistiu na mencionada data de 9/3/2006, mesmo quando confrontada com documentos que a inviabilizavam, a procuração e o substabelecimento juntos aos autos.

Ora, o juiz pode e deve socorrer-se de factos provados e das regras de experiência, para com eles alcançar um outro facto, não directamente comprovado. Trata-se, no fundo, de estabelecer uma relação lógica entre factos, uns conhecidos e provados, outro não, criando uma factualidade real e coerente. Neste sentido, ver Acórdão da Relação de Évora, de 6/10/83, CJ 1983, IV, pág. 351.

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Diga-se ainda quanto à atitude da Ré de prescindir dos depoimentos de diversas testemunhas, que não se percebe as razões que levam o Banco recorrente a insurgir-se. O Banco poderia ter indicado tais pessoas para fazer a prova que lhe convinha, nomeadamente a ex-sócia gerente da C. Se o não fez, não poderia estar à espera que fosse a outra parte a oferecer-lhe tais meios de prova.
Aliás, e a propósito de comportamento processual, é bom não esquecer que o recorrente, quer na petição inicial quer posteriormente – mesmo no decurso do julgamento – insiste na data de 9/3/2006 como a da celebração da escritura em que ele próprio interveio, quando tal data não é verdadeira, tendo a escritura sido celebrada em 9/2/2006.

Conclui-se assim que:
– Na acção de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, é ao impugnante que incumbe o ónus de provar que não se verificaram os pressupostos de tal resolução.
– É lícito ao julgador, com base em factos conhecidos e demonstrados nos autos, presumir um outro facto que com aqueles se mostra numa relação de concordância lógica, de acordo com as regras da experiência.


Assim e pelo exposto julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 24 de Setembro de 2009

António Valente
Ilídio Martins
Teresa Pais