Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1219/2005-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: TESTAMENTO
HERANÇA
LEGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1 - Não pode buscar-se a interpretação do testamento no conceito jurídico que o testador utilizou, devendo o intérprete indagar qual era efectivamente a sua vontade, tendo ainda presente que não poderia este transmitir mais direitos ou direitos distintos daqueles que integravam a sua esfera jurídica.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

            I – RELATÓRIO

A e M vieram requerer se proceda a inventário por óbito de José e mulher, Maria, alegando ser a requerente herdeira de um dos descendentes do falecido.

Dos filhos de José e Maria, apenas Maria é viva, mas devido à sua idade (tem mais de 90 anos), estado de saúde e ainda porque reside em Taunton Massachussetts, tal como sua filha mais velha, justifica-se que seja a requerente designada como cabeça de casal.

Os restantes filhos dos inventariados já faleceram todos sem testamento, deixando como herdeiros os irmãos sobrevivos.

Foi proferido despacho que entendeu ser a requerente, de acordo com os termos do testamento, legatária e não herdeira de José, filho de João, isto porque nos termos do referido testamento aquele deixou à requerente a metade indivisa do prédio e não qualquer herança e com fundamento na falta de legitimidade dos requerentes, indeferiu o requerido.

Inconformados os requerentes agravam do despacho, apresentando as seguintes conclusões:

1. João, filho dos inventariados, nunca foi proprietário de ½ da casa, mas sim herdeiro de seus pais e irmãos pré-falecidos com direito a ½ da herança.

2. A herança foi e é constituída em exclusivo pela mesma casa.

3. O João quis deixar a Angela todos os direitos  que detinha sobre a casa como herdeiro  de seus pais e irmãos falecidos.

4. Esta interpretação encontra no testamento suficiente suporte textual.

5. A requerente Angela é herdeira e não legatária.

6. A classificação de um instituído como herdeiro ou legatário é o resultado de indagação feita pelo intérprete, não se impondo a feita pelo testamento.

            Não foram presentadas contra-alegações.

            Corridos os Vistos legais,

           Cumpre apreciar e decidir.


         Como se sabe, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões do Recorrente (arts. 684º, n.º 3 e 690º, nº 1 do CPC), estando, fundamentalmente em causa decidir se a requerente é legatária ou herdeira e assim averiguar da legitimidade para intentar processo de inventário.

            II - FACTOS PROVADOS:
1. Os inventariados deixaram como únicos herdeiros os filhos:

Lucília, falecida em 25.12.1976,

Manuel, falecido em 16.03.1981,

José, falecido em 02.03.1984,

João, falecido em 21.02.1995 e

Maria, viúva.
2. João fez testamento em 31.07.87 a favor da requerente.
3. Os irmãos de João, Lucília, Manuel e José faleceram no estado de solteiros sem descendentes e testamento.
4. Consta do testamento a fls. 10 e segs. que o falecido João deixa a Angela (...) os seguintes prédios: “primeiro: prédio (...); segundo: metade indivisa de um prédio sito à Vila de Velas (...); terceiro: prédio  (...)”.

            II – O DIREITO
  Nas suas alegações afirma a Agravante/Requerente que o testador pretendia deixar-lhe os direitos sucessórios sobre a herança que recebera dos pais e irmãos entretanto falecidos.
Considerando que apenas o testador e a irmã Maria Santa estavam vivos aquando do testamento, aquele detinha, portanto 50% da herança em causa e foi isso que pretendeu deixar à Requerente/Apelante.

1. A qualificação dos sucessores como herdeiros ou legatários tem decisivo relevo no que respeita à aceitação beneficiária da herança a que são chamados, pois são diversos os direito e obrigações inerentes a cada um, designadamente porque são os herdeiros que têm o direito a exigir a partilha (art. 2101º do CC).

Tendo presente o disposto no art. 2030º, nº 2 do CC, herdeiro é o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.

Assim, o legatário, mesmo que a herança não tenha sido partilhada, sabe aquilo a que tem direito, conhece o objecto ou o valor com que foi contemplado pelo testador, enquanto que o herdeiro só pela partilha vê concretizado o seu direito, tendo até lá uma mera porção ideal no montante hereditário[1].


2. Dispõe o n.º 1, do artigo 2187º do Código Civil que na “interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento". Ao passo que, em matéria de interpretação dos negócios jurídicos entre vivos, prevaleceu a teoria da impressão do destinatário (art. 236º, n.º 1).
Decorre da citada disposição legal que no testamento, cuja função é incorporar disposições de última vontade, o fim da interpretação deve encontrar-se na determinação da vontade real do testador. Todavia, a posição do legislador só se alcança devidamente se tivermos presente o n.º 2 do artigo 2187º, de acordo com o qual é admitida prova complementar, “...mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa".
No caso dos autos entendemos que a disposição testamentária em causa não se revela sequer ambígua ou com vários sentidos possíveis. De facto, o testador legou à requerente diversos bens: 2 prédios, isto é, os bens identificados em primeiro e terceiro lugar e ainda, “metade indivisa de um prédio urbano”, identificado em segundo lugar.
Diz a Agravante que o testador confundiu o seu direito a metade da herança com o direito a ½ indiviso da própria casa, isto porque a herança a partilhar é composta em exclusivo por uma casa da qual eram herdeiros o testador e sua irmã Maria Santa, ainda viva.
Ora, de acordo com os elementos constantes dos autos, não há dúvidas de que, quando fez o testamento, João e sua irmã eram os únicos herdeiros vivos dos inventariados e que tal herança era composta por um imóvel em Vila de Velas.
Assim, quando o testador faleceu, as partilhas relativas à herança dos inventariados não tinham sido feitas, pelo que não podia deixar à Requerente metade indivisa de um imóvel, simplesmente porque tal bem pertencia ainda à herança.
Em conclusão, o testador legou à Requerente dois imóveis e ainda “o direito a metade da herança” dos inventariados.
Diz a Requerente que, por via do testamento, tornou-se herdeira dos inventariados, isto porque o que o testador fez foi deixar a Angela todos os direitos que detinha sobre a casa como herdeiro de seus pais e irmãos.

            Não pode buscar-se a interpretação do testamento no conceito jurídico que o testador utilizou, devendo o intérprete indagar qual era efectivamente a sua  vontade, tendo ainda presente que não poderia este transmitir mais direitos ou direitos distintos daqueles que integravam a sua esfera jurídica.

Ora, sendo certo que a herança dos inventariados apenas é constituída por um bem e que eram titulares dessa herança o testador e uma irmã, o que foi deixado à requerente, o que o testador lhe quis deixar,  foi, não direito a ½ de uma casa, mas o direito e acção à herança de seus pais e irmãos pré-falecidos, herança essa que, por acaso, é constituída por uma casa.

Portanto, a Requerente é herdeira dos inventariados, razão por que os Requerente têm legitimidade para requerer se proceda a inventário.


            IV – DECISÃO
Neste termos, acorda-se em conceder provimento ao Agravo, revogando-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que, atendendo a que os Agravantes têm legitimidade para requerer o inventário por óbito de José e Maria, ordene o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Lisboa, 3 de Março de 2005.

(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)


[1] Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. I, 3ª ed. pag. 57.