Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1041/2005-9
Relator: CARLOS BENIDO
Descritores: REGISTO CRIMINAL
TRANSCRIÇÃO
DETENÇÃO DE ARMA NÃO MANIFESTADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Verificada a primaridade do arguido, a confissão parcial e o facto de resultar provado não haver juízo de prognose negativo em relação à prática de futuros crimes, condenado que aquele foi pela prática de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, é de conceder provimento determinando-se a não transcrição da pena no registo criminal e não apenas a respectiva não transcrição para os efeitos do artº 11º da Lei nº 57/98, de 18/08
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

1– RELATÓRIO

No âmbito do processo comum colectivo n° 58/01.5TAMTA, do 1° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Moita, por decisão de 19-03-04, foi o arguido (N) condenado pela prática de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, p. e p. pelo art° 6°, da Lei n° 22/97 (redacção originária), na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos. Na mesma decisão foi ordenada a remessa de boletim ao registo criminal.

Em 12-04-04 o arguido requereu, ao abrigo do art° 17°, n° 1, da Lei n° 57/98, de 18/08, a não transcrição da referida condenação para o Certificado de Registo Criminal.

Por despacho de 7-06-04 foi deferido parcialmente o requerido, determinando-se a não transcrição da respectiva condenação apenas nos certificados a que alude o art° 11°, da Lei n° 57/98, de 18/08.

Inconformado com este despacho, recorreu o arguido, concluindo:

1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls., datado de 7/06/2004, na parte em que indefere ao Recorrente a requerida não transcrição para o respectivo certificado de registo criminal da condenação sofrida nos autos, nos termos do Art. 17, n° 1 da Lei n° 57/98, de 18/08, para os fins previstos pelos Arts. 11° e 12° do mesmo diploma;
2.O presente recurso tem como fundamento o Art. 410°, n° 1 do C.P.P.;
3. O Arguido entende reunir todas as condições para ver-lhe deferida a referida pretensão, porquanto era primário até à condenação dos autos, é pessoa bem inserida social, familiar e profissionalmente, os factos que deram origem à intervenção nos presentes autos e as circunstâncias que rodearam a infracção devidamente apuradas em audiência, permitem concluir que tal foi um acto isolado no seu percurso de vida.
4. E nada indicia que a sua personalidade seja propensa à prática de novos ilícitos;
5. O Arguido é caçador, actividade que praticava com regularidade antes da retenção da respectiva licença e espingardas de caça ao abrigo dos presentes autos, o que muito preza e que desejaria manter;
6. A transcrição da condenação para o seu certificado de registo criminal impedirá o Arguido de preencher todos os requisitos e condições impostas pelos Arts. 1° e 2° da Lei n° 22/97, de 27/06, que regula o regime do uso e porte de arma, o que lhe inviabilizará a renovação da licença de que ora é titular.
7. Do despacho recorrido só consta a devida fundamentação quanto à decisão de deferir a não transcrição para os fins de emprego, nos termos do Art. 11° da Lei 57/98;
8. Não refere quais os motivos, de facto e de direito, que sustentam a decisão constante da parte final do mesmo, em que determina, a contrario, que para os efeitos do Art. 12° do supra referido diploma a não transcrição não poderia operar.
9. Por isso, o despacho viola o dever de fundamentar as decisões judiciais, previsto pelo Art. 158° do C.P.Civil, com aplicação ao processo penal ex vi do Art. 4° do C.P.P., sendo a nulidade do mesmo a sanção cominada na lei para tal vício - Arts. 374°, n° 2 e 379°, n° 1, al. a), ambos do C.P.P..
10. Para além do mais, entende o Arguido que o cumprimento do douto despacho sob recurso implicará para si o cumprimento de uma verdadeira pena acessória, para além daquela em que foi condenado no douto acórdão proferido nos autos, o que não se mostra de forma alguma admissível.
11. É que a transcrição da condenação sofrida para o registo criminal do Arguido inviabilizará a renovação da licença de uso e porte de arma de caça de que é titular, impedindo-o de deter tais armas e de praticar tal actividade;

12. Ora se no julgamento da sua conduta e na determinação da sanção penal a aplicar-lhe, tendo em conta toda a prova produzida e todas as condições pessoais e sociais do Arguido trazidas aos autos, o Julgador não entendeu aplicar-lhe qualquer sanção acessória, ou condição para a suspensão da pena, nos termos do Art. 65°, n° 2 do C.P.P., não poderá qualquer penalização desta natureza ser agora imposta por simples despacho, como o faz a decisão recorrida.

13. Até porque o poder jurisdicional do douto Tribunal a quo foi esgotado com a prolacção do acórdão dos autos.

14. Acresce que o Arguido é comerciante, conforme resulta do ponto 102 do elenco dos factos provados no douto acórdão proferido, pelo que resulta evidente que a não transcrição da condenação sofrida para efeitos de emprego carece de qualquer efeito útil ao Recorrente, sendo que com o requerimento apresentado este pretendeu, precisamente, acautelar outros fins;

15. Pelo que, ao decidir como o fez, o douto despacho recorrido pretendeu aplicar ao arguido, à margem da condenação já sofrida e que cumpre, uma verdadeira sanção acessória;

16. Por isso, além do já referido, o douto despacho recorrido é violador das normas constantes do Art. 666° do C.P.C., ex vi o também já referido Art. 4° do C.P.P..

Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e por via dele ser a douta decisão recorrida revogada, na parte em que indefere ao Arguido, ora Recorrente, a requerida não transcrição para o certificado de registo criminal da condenação sofrida nos autos, para os fins previstos pelo Art. 12° da Lei n° 57/98, de 18/08 e, consequentemente, substituída por outra que defira na totalidade o requerido.

Respondeu o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, concluindo:

A) O art° 17° da Lei 57/98 de 18.08 permite ao Tribunal restringir a regra da transcrição das condenações em certificados requeridos por particulares para fins de emprego ( art° 11°) ou para outros fins (art° 12° ).
B) Mostram-se diferentes as exigências cautelares na emissão de certificados para fins de inserção laborai e certificados para outros fins, nomeadamente, para obtenção/ renovação de licenças para uso e porte de armas ( veja-se que o arguido não obstante ser titular de licença de uso e porte de arma de caça foi condenado pela prática de crime de detenção ilegal de arma de defesa ).

C) Deferindo o requerido e optando pela não transcrição apenas nos certificados para os fins a que aludem o art° 11° da Lei 57/98, o Tribunal exerceu a escolha que a lei lhe permite, sem que a não pronúncia sobre a não transcrição nos certificados para os fins a que aludem o art° 12° do mesmo diploma constitua qualquer falta de fundamentação da decisão.

D) Vigorando a regra da transcrição das decisões condenatórias nos certificados de registo criminal, ao limitar a não transcrição da condenação apenas nos certificados de registo criminal requeridos para fins de emprego o douto despacho recorrido limitou-se a conceder ao arguido um beneficio previsto na Lei e não a proferir qualquer condenação em sanção acessória, nomeadamente, proibição de obtenção de licença de uso e porte de arma.

E) O douto despacho recorrido não padece assim de qualquer vício.

Neste Tribunal a Ex.ma Procuradora- Geral Adjunta apôs o seu visto. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:


II—FUNDAMENTAÇÃO

Como é sabido, são as "conclusões" formuladas na motivação do recurso que definem e delimitam o respectivo objecto (arts. 403° e 412°, do CPP).

Como resulta das transcritas conclusões do recurso, são, fundamentalmente, três as questões que se nos colocam:
1- Pretensa nulidade do despacho recorrido por ter violado o disposto nos arts. 158°, do CPC e 374°, n° 2, do CPP, ex vi do art° 379°, n° 1, ai. a), deste último diploma;

2- Pretensa violação do disposto no art° 666°, do CPC;
3- Relativa ao próprio objecto do despacho recorrido e que consiste em saber se a pena em que o arguido foi condenado deve ou não ser transcrita nos certificados a que alude o art° 12° da Lei n° 57/98, de 18/08.
O despacho recorrido, na parte pertinente ao presente recurso, é do seguinte (transcrito) teor:
"(...)

Fls. 1248:

Veio o arguido (N) requerer a não transcrição da presente condenação para o Certificado de Registo Criminal, alegando, em suma, ser pessoa social, familiar e profissionalmente inserida, nada indiciando que a sua personalidade seja propensa à prática de ilícitos, sendo certo que é caçador, actividade que muito preza e desejaria manter.

O Digno Magistrado do Ministério Público , pronunciou-se no sentido de nada ter a opôr à não transcrição da condenação do arguido nos CRC requeridos para os fins previstos no art. 11 °. da Lei n°. 57/98.

Cumpre decidir:

Atenta a situação profissional do arguido, a posição assumida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, a ausência de quaisquer outros antecedentes criminais, para além da condenação nestes autos, a natureza do crime em que foi condenado, que não deixa de ser grave, e circunstâncias em que o praticou, leva-nos a concluir não haver, em princípio, qualquer perigo da prática pelo arguido de novos crimes.

Assim sendo, conjugado todo o supra referido, ao abrigo do disposto no art. 17°. da Lei n°. 57/98, de 18/08, determino tão só a não transcrição da respectiva condenação nos certificados a que alude o art. 11°. do mesmo diploma".

Apreciemos cada uma das três identificadas questões:
1- Quanto à pretensa nulidade do despacho recorrido por ter violado o disposto nos arts. 158°, do CPC e 374°, n° 2, do CPP, ex vi do art° 379°, n° 1, al. a), deste último diploma:
Contrariamente ao referido pelo recorrente, o art° 158°, do CPC (dever de fundamentar a decisão) não tem aplicação ao caso, urna vez que o CPP não é omisso nesta matéria.
Com efeito, reza o art° 97°, n° 4, do CPP (na redacção resultante da Lei n° 59/98, de 25/08), que "os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".


Ora, perante o teor do aludido despacho, atrás transcrito, é evidente que o mesmo não dá cabal cumprimento ao disposto no art° 97°, n° 4, do CPP, já que não especifica, suficiente e patentemente, os necessários motivos de facto e de direito da decisão no que tange ao indeferimento do requerido relativamente à não transcrição nos certificados a que alude o art° 12° da Lei n° 57/98, de 18/08.

Constituirá tal omissão a invocada nulidade?
Parece que não.

Com efeito, nem no art° 97°, do CPP, nem em qualquer outro, se estipula a consequência para a falta de fundamentação dos actos decisórios.

Como referem Simas Santos e Leal Henriques na anotação ao art° 97°, in "Código de Processo Penal", Anotado, I Vol., 2004, pág. 508, "(...) não se fundamentando nem motivando o acto, quando o deva ser, as consequências são as seguintes: -despacho- irregularidade (arts. 118°, n° 2 e 123°, ambos do CPP), - sentença (ou acórdão)- nulidade relativa (arts. 379°, n° 1, al. a), 121° e 122°)".

Ora, constituindo a falta de fundamentação do mencionado despacho mera irregularidade e não tendo esta sido arguida, como não foi, no prazo e nos termos previstos no art° 123°, do CPP, teria de se considerar já sanada no momento em que o recurso foi interposto.

Não o tendo feito, como os autos revelam, a questão perdeu todo e qualquer relevo.


2- Quanto à pretensa violação do disposto no art° 666°, do CPC:

Entende o recorrente que o despacho recorrido ao limitar a não transcrição nos certificados de registo criminal requeridos nos termos e para os efeitos do art° 11° da Lei n° 57/98, de 18/08, inviabiliza a renovação da licença de uso e porte de arma de caça de que é titular, pelo que o referido despacho pretendeu aplicar ao arguido, à margem da condenação sofrida por este, uma sanção acessória, violando assim o disposto no art° 666°, do CPC, aplicável ex vi do art° 4°, do CPP.

Tal invocação é perfeitamente descabida. Com efeito, o despacho recorrido ao limitar a não transcrição da condenação para os certificados de registo criminal requeridos apenas para fins de emprego, não aplicou qualquer sanção acessória ao recorrente.


Como muito bem refere o Ex.mo Magistrado do Ministério Público junto do tribunal "a quo" 'foi o próprio recorrente que ao cometer um ilícito criminal pelo qual foi condenado por decisão transitada em julgado e que implica por regra a sua consignação no registo criminal, que se colocou na posição de não poder vir a preencher as condições legais para a obtenção/renovação de licença de uso e porte de arma de caça.

O Tribunal a quo limitou-se pois a conceder ao arguido um beneficio previsto na Lei e não a proferir qualquer condenação em sanção acessória"

Nos termos expostos, improcede tal questão.

3. Quanto ao próprio objecto do despacho recorrido:

Do n° 1, do art° 1°, da Lei n° 57/98, de 18/08 (Lei de Identificação Criminal) resulta que "a identificação criminal tem por objecto a recolha, o tratamento e a conservação de extractos de decisões e de comunicações de factos referidos no artigo 5° provenientes de tribunais portugueses, e de tribunais estrangeiros, relativamente a portugueses e a estrangeiros residentes em Portugal neles julgados, com o fim de permitir o conhecimento dos seus antecedentes criminais".

No art° 2° consagra-se o princípio da legalidade, autenticidade e veracidade do registo, por forma a reflectir e dar a conhecer os antecedentes criminais dos cidadãos.

Do art° 5°, n° 1, al. a) da referida Lei infere-se que, constitui regra geral a inscrição nos certificados de registo criminal de todas as decisões que apliquem penas.

A não transcrição das decisões, nos termos do art° 17°, n° 1, constitui uma excepção àquela regra.

Dispõe este preceito: "os tribunais que condenem em pena de prisão até um ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respectiva sentença nos certificados a que se referem os artigos 11° e 12° deste diploma".

No caso concreto, o arguido foi condenado na pena de um ano de prisão mas, para além deste requisito, é ainda necessário que as circunstâncias que acompanharam o crime não induzam o perigo de prática de novos crimes, isto é, das mesmas tem de resultar elementos que permitam formular um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do arguido.
O juízo de prognose deverá, assim, ter por base as circunstâncias que acompanharam o crime isto é, a culpa do arguido, as exigências de prevenção e - a sua atitude perante os factos pelos quais foi condenado.
No despacho recorrido entendeu-se, e quanto a nós bem, não haver, em princípio, qualquer perigo da prática pelo arguido de novos crimes.
Com efeito, resulta do acórdão junto a estes autos de recurso que:
- ao longo do ano de 2000 o arguido comprou a (AF), por três vezes, pelo menos, um total de doze pistolas de alarme adaptadas para disparar munições reais de calibre 6, 35mm, e uma caixa de munições de fogo do mesmo calibre;
- após tais aquisições o arguido vendeu tais armas a clientes que frequentavam o seu estabelecimento e a pessoas que o acompanhavam em jornadas de caça;
- confessou apenas ter procedido à venda de seis ou sete armas, bem como que não as tinha manifestado nem registado e não tinha licença de uso e porte das mesmas;
- não tem antecedentes criminais;
- tem como habilitações literárias o 6° ano de escolaridade, exerce a actividade de comerciante, auferindo rendimentos mensais de pelo menos € 750, 00 e vive com a esposa e dois filhos, com 4 e 2 anos, em casa própria, pagando para amortização do empréstimo contraído para aquisição da mesma a quantia mensal de € 375, 00.
No acórdão considerou-se ainda a culpa como elevada e o dolo directo como elevado. Ponderando-se a primariedade do arguido, a parcial confissão e a circunstância de nada
indicar que a sua personalidade se revela propensa á prática de novos ilícitos, é lícito formular
um juízo de prognose favorável sobre o seu futuro criminal.
Isto mesmo foi reconhecido no acórdão como condição para a suspensão da execução da pena (cfr. fls. 54).
Por tudo isto, não pode deixar de proceder o recurso interposto.

III – DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da 9° Secção deste Tribunal da Relação em:

Conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, na parte em que indefere a não transcrição para o certificado de registo criminal da condenação sofrida nos autos, para os fins previstos no art° 12°, da Lei n° 57/98, de 18/08, ordenando a sua não transcrição para os indicados fins.

Sem tributação.

Lisboa, 10 de Março de 2005

Carlos Benido

Ana de Brito

Francisco Caramelo