Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4707/2004-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: ASSOCIAÇÃO
EXCLUSÃO DE SÓCIO
PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: O princípio de liberdade de associação aponta para um regime de livre abandono da associação por iniciativa do associado. Já a exclusão está associada a violações graves dos deveres sociais ou a práticas atentatórias dos interesses, do bom nome ou da dignidade da associação.
De acordo com princípio constitucional da proporcionalidade ou da proibição do excesso, previsto no art. 18º, nº 2 da CRP, não podem adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos.
As circunstâncias susceptíveis de justificarem a expulsão de um associado terão de ser relevantes, exigindo-se proporção e ajustamento entre o comportamento do associado e a sanção aplicada.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
João …, intentou acção declarativa ordinária de anulação de deliberação social contra a Associação Nacional de Farmácias, alegando que a decisão tomada pelo Conselho Nacional da ANF, ao não dar provimento ao recurso do A. que impugnou a decisão exarada pelo Conselho Disciplinar de expulsão do A. da referida Associação, é violadora da lei e portanto, anulável, com fundamento no disposto no art. 9º, nº 2 do DL 215-C/75 e na violação do princípio da proporcionalidade.

A Ré ANF contestou a fls. 75/83, impugnando os factos vertidos na petição, pugnando pela manutenção da deliberação em causa.
.
Foi elaborado despacho de saneamento e condensação a folhas 121/127.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, após o que veio a ser decidida a matéria de facto por despacho de fls. 212.
Foi proferida sentença que, tendo em conta a última parte do nº 2 do art. 9º do DL 215-C/75 de 30/4 e por violação deste comando, anulou a decisão do Conselho Nacional da ANF de 27.5.95, que decidiu não dar provimento ao recurso interposto pelo A., da decisão tomada pelo Conselho Disciplinar, expulsando o A. da referida Associação.

Inconformada a Ré veio apelar da sentença, tendo formulado, no essencial, as seguintes conclusões:
1. A sanção aplicada não enferma de qualquer nulidade e está fundamentada.
2. A aplicação de sanções não é da exclusiva competência dos tribunais.
3. Não há violação de quaisquer preceitos da Constituição da República Portuguesa.
4. Os factos dados como provados são mais do que suficientes para a aplicação duma sanção.
5. A manter-se a decisão recorrida, criar-se-ia, para o recorrido, uma situação de grande privilégio em relação às duas mil e quinhentas farmácias associadas na ANF.

Contra-alegou o A., tendo concluído que, em face da matéria provada, a pena de expulsão imposta pela Apelante ao Apelado mostra-se manifestamente desproporcional relativamente ao comportamento que o mesmo adoptou em determinado quadro concreto, tendo, assim, a Apelante violado o disposto no art. 9º, nº 2, do DL 215-C/75 de 30 de Abril.

Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.
Face ao teor da conclusões das alegações, enquanto delimitadoras do objecto do recurso e do âmbito do conhecimento desta Relação (arts. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC), em causa está, no essencial, decidir se deve ou não ser anulada a deliberação do Conselho Nacional da ANF de 27.5.95, que confirmou a decisão tomada pelo Conselho Disciplinar da mesma Associação, tomada em 21.4.95, aplicando a sanção de expulsão do A.

II – FACTOS PROVADOS
1. A Associação Nacional de Farmácias é uma associação constituída nos termos do Decreto-Lei n° 215-C/75, 30.04 que se rege pelos Estatutos conforme documento de fls. 16 a 47, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. No dia 5 de Novembro de 1993 realizou-se, no quadro da Associação uma Assembleia Distrital de Lisboa da qual resultou a circular nº 127-N93, de 9/11, conforme doc. De fls. 48, nele constando, designadamente,
"ASSUNTO: DECISÕES DA ASSEMBLEIA DISTRITAL DE LISBOA
(...)
3. Acordo SAMS -Ponto da Situação.
144 Associados deliberaram manter a posição actual ou seja a dispensa de medicamentos aos beneficiários dos SAMS do Sindicato, contra pagamento integral do valor das receitas no acto do aviamento; 24 manifestaram-se ao contrário.
... Esta deliberação é portanto obrigatória para todos os Associados do distrito. "
3. Em 7 de Dezembro de 1994 foi elaborada nota de culpa contra o Autor que a contestou.
4. Em 21 de Abril de 1995, o Conselho Disciplinar deliberou aplicar associado e ora Autor a pena de expulsão, conforme documento de fls. a 51, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5. Em 25 de Maio de 1995, o associado e ora A., recorreu para o Conselho Nacional, conforme documento de fls. 52 a 65 que se dá integralmente reproduzido.
6. No dia 16 de Junho de 1995, recebeu o Autor por carta registada o aviso de recepção, a deliberação do Conselho Nacional que não deu provimento ao recurso do associado, confirmando a sanção de expulsão conforme documento de fls. 67 e 68.
7. Em Junho de 1993 já tinha sido decretada pela ANF a suspensão de fornecimentos de medicamentos a crédito aos beneficiários do SAMS.
8. Apesar do prejuízo muito elevado que o Autor sofreu, o acatamento deste foi integral e por vários meses.
9. Cinco meses volvidos, a situação não apresentava quaisquer sinais de ser ultrapassada o que levou o Autor a dirigir, em Outubro de 1993 uma carta à Direcção Geral da ANF, conforme documento de fls. 69 e 70 da qual consta, designadamente:
" 1. Esta farmácia está situada numa zona onde os bancários são predominantes e daí que o fornecimento aos beneficiários deste sindicato era de longe a "caixa" de maior volume de vendas, ultrapassando mesmo o da segurança Social. Além disso, 80% dos nossos clientes habituais são constituídos por bancários (...)
- Como é do vosso conhecimento, nem todas as farmácias, nomeadamente algumas desta zona, cumpriram (formalmente ou na prática) as instruções dessa associação no respeitante ao não fornecimento a crédito aos funcionários do referido sindicato, o que acarreta uma situação de desigualdade (...)
5. Pelos factos atrás apresentados, e apesar desta farmácia ser totalmente solidária com a ANF neste assunto, não lhe é possível, por razões de pura sobrevivência económica, e para assegurar os seus compromissos, nomeadamente laborais, continuar a não fornecer os referidos utentes ..."
10. A farmácia do Autor, está situada numa zona absorvida pela actividade bancária, constituindo os seus clientes cerca de 80% dos clientes habituais daquela farmácia.
11. O que era conhecido da Direcção da ANF.
12. A poucos metros do estabelecimento do Autor existe e funciona a "Farmácia ...".
13. Atendendo à circunstância de esta última farmácia não ser associada da ANF, por um lado, e, por outro, não ter suspendido os fornecimentos a crédito aos beneficiários dos SMAS, verificou-se uma rápida transferência da clientela habitual da "Farmácia ..." para a "Farmácia ...".
14. Nessa altura foi convocada a Assembleia Distrital para o dia 5.11.93 e aí concentrada a discussão de todo este assunto.
15. O Autor participou na discussão dos pontos da ordem de trabalhos e novamente assinalou os danos que a manutenção da decretada suspensão lhe causaria.
16. A Assembleia submeteu o ponto 3 da Ordem dos Trabalhos, relativo ao SAMS, a sufrágio, ficando antes deliberado que o resultado da votação secreta vincularia todos os Associados do Distrito.
17. A deliberação de 5.11.93 foi directamente condicionada pela ponderação essencial resultante da ANF ter assumido a responsabilidade pela cobertura dos prejuízos causados com a manutenção da suspensão de fornecimentos a crédito aos beneficiários dos SAMS.
18. Tal assunção de responsabilidade conjugada com a garantia de manutenção do carácter transitório/precário da medida determinou uma postura aberta e sempre colaborante do ora Autor.
19. A direcção da ANF encarou a possibilidade de um auxílio às farmácias com maior prejuízo causado pela situação com os SAMS.
20. E estabeleceu que:
a) a ANF só comparticiparia em 50% dos prejuízos das farmácias;
b) a ANF apenas cobriria a referida percentagem dos prejuízos durante 12 meses;
c) a ANF liquidaria apenas as verbas respectivas relativas ao período posterior a Dezembro de 1993, inclusive.
21. O Autor devolveu à ANF a quantia que esta lhe enviara.
22. Em 21 de Maio de 1993, a Ré tomou conhecimento de que o Infarmed – Instituto da Farmácia e do Medicamento, havia concedido um alvará a uma farmácia privativa dos SAMS.
23. Pelo que, em 25 de Maio de 1993, a Ré enviou a todos os seus associados a Circular nº 56/93 a comunicar a rescisão do Acordo com os SAMS.
24. Em 3 de Maio de 1993, o Sindicato havia celebrado um acordo com a ANF, acordo pelo qual, os utentes, beneficiários dos SAMS, tinham o direito de escolher livremente a farmácia onde pretendiam adquirir os medicamentos.
25. Reagindo à instalação duma farmácia privativa dos SAMS do Sindicato, a Ré suspendeu a vigência do acordo celebrado e acima referido.
26. E as farmácias associadas da ANF deixaram de dispensar a crédito os medicamentos do receituário destinado aos beneficiários dos SAMS.
27. Reconhecendo as tomadas de posição da Ré, em 28 de Setembro de 1993, o INFARMED comunicou à ANF a revogação da autorização concedida aos SAMS para a instalação de uma farmácia.
28. De imediato a Ré retomou o acordo, solicitando às farmácias suas associadas para reiniciarem o fornecimento de medicamentos a crédito aos beneficiários dos SAMS.
29. O Sindicato, nos primeiros dias Outubro de 1993, Informou a Ré de que não desejava por novamente funcionamento o acordo com a ANF.
30. Daí que se tenha realizado, em 5.11.1993, uma Assembleia associados da ANF.
31. Onde foi deliberado que as farmácias inscritas na ANF não dispensariam a crédito o receituário destinado aos beneficiários dos SAMS, o que teve uma votação de 144 presentes a favor e 24 contra, estando presentes 169 farmácias associadas.
32. Os beneficiários dos SAMS teriam de pagar, por inteiro, medicamentos e enviar depois a receita ao SAMS que os reembolsaria.
33. Logo aquando da realização da referida Assembleia, o A. manifestou grande relutância em vir a aceitar a medida que veio a ser aprovada.
34. Mesmo os 24 associados que votaram contra, cumpriram a deliberação.
35. Aqueles que, mais tarde, vieram a desrespeitar a deliberação tomada foram alvo de processos, que culminaram com a sua expulsão.
36. A Ré disponibilizou e enviou ao A. a quantia de 222.095$00, nos termos da deliberação tomada e aprovada por sugestão do A. e enviou ao A. a verba para o compensar dos prejuízos sofridos.
37. O A. enviou à ANF a carta cujo conteúdo consta do teor do documento de fls. 110 e 111 dos autos.

III – O DIREITO
1. Trata-se, no fundo, de reapreciar a questão que já foi objecto de análise na sentença recorrida, qual seja a de saber se a decisão de expulsão do A. da ANF, deve ou não ser mantida.
A personalidade colectiva é um mecanismo ao qual a ordem jurídica dá protecção para mais fácil e eficaz realização de certos interesses (os correspondentes aos fins estatutários), assim se compreendendo que o escopo estatutário sirva de medida do âmbito da capacidade (1).
A personalidade colectiva é, assim, atribuída em função de certos fins ou interesses colectivos que cada pessoa colectiva prossegue e que o direito considera merecedores de tutela e de tratamento por recurso à técnica da personificação; logo, bem se compreende que só se justifique atribuir às pessoas colectivas os direitos e as vinculações que se relacionem com os seus fins e sejam instrumento jurídico adequado à prossecução deles( 2).
Entre os elementos integradores do conceito de pessoa colectiva, Luís Carvalho Fernandes distingue elementos intrínsecos - o substracto, a organização formal e a personalidade - e elementos extrínsecos, que são o fim e o objecto(3)

Entende-se por elemento teleológico o interesse em função do qual a pessoa existe e é reconhecida; é, por outras palavras, o escopo que se visa atingir através da sua actividade.
O objecto é a actividade através da qual a pessoa colectiva prossegue o seu fim, analisando-se, pois, em vários modos de actuação jurídica. Tal como o fim, o objecto deve ser determinado, lícito e possível.
Fundamentalmente a lei distingue de entre as pessoas colectivas de direito privado: as associações, as fundações e as sociedades.
As associações são auto-organizações de uma pluralidade de indivíduos para satisfação de interesses comuns, sem carácter lucrativo.
Nas associações o que há de característico é que um grupo de indivíduos se organiza para prosseguimento de um interesse comum, a todos competindo determinar livremente os termos em que deve funcionar a associação. Assim, dentro dos limites da lei a associação é “soberana”.
Porém, a gestão democrática, na qual os associados exercem a sua própria soberania, em igualdade e liberdade, não significa uma gestão anárquica, sem submissão a regras de procedimento e legalidade dos actos praticados (4).
O Código Civil estabelece, em termos genéricos nos arts. 167º a 184º, o regime de constituição e funcionamento das associações, referindo o art. 167º, nº 2 do CC, que os estatutos podem especificar, além do mais, os direitos e obrigações dos associados, as condições da sua admissão, saída e exclusão.
O direito de associação vem regulado no DL 594/74 de 7/11, alterado pelo DL 71/77 de 25/2.
E, no que respeita às associações patronais, o direito de associação vem regulado no DL 215-C/75 de 30 de Abril (LAP – Lei das Associações Patronais).
A aqui Apelante é uma associação constituída nos termos do supra referido DL 215-C/75, que, de acordo com o art. 1º, nº 2, dos seus Estatutos, “não poderá ter como finalidade o lucro económico e, sem prejuízo do que se dispõe no artigo 5°, é-lhe interdito o exercício directo ou indirecto de quaisquer actividades comerciais, industriais ou creditícias".
Por outro lado, nos termos do art. 12º dos Estatutos, constituem deveres dos sócios, além do mais, “acatar as resoluções dos órgãos da Associação, desde que tomadas com observância da lei e dos estatutos” (g) e “contribuir, por todas as formas ao seu alcance, para o bom nome e o prestígio da Associação e para a eficácia da sua acção” (h).
O art. 9º, nº 1 dos Estatutos, prevê as sanções aplicáveis aos associados, que se mostram hierarquizadas, da mais leve até à mais grave, da seguinte forma: a) advertência; b) censura; c) multa de 500$00 a 500.000$00; d) suspensão até um ano; e) expulsão.
E o art. 17º dos Estatutos prevê os casos de exclusão dos sócios, estabelecendo o nº 2 que poderão ser excluídos de sócios:
a) os que forem condenados por crime infamante susceptível de afectar o prestígio da Associação;
b) os que reincidam em actos graves de concorrência desleal ou na infracção de disposições e normas fundamentais a que se encontra sujeita a actividade;
c) os que, por qualquer forma, lancem dolosamente o descrédito sobre a Associação ou os seus consócios;
d) os que, decorridos três meses sem terem pago as quotas correspondentes (...) não procedam à integral liquidação no prazo de trinta dias (...).
O nº 4 do citado art. 17º refere que a exclusão de sócio é da competência do conselho disciplinar.

1.2. No caso concreto, de acordo com os factos provados sabemos que a ANF, ora Apelante, reagindo à instalação de uma farmácia privativa dos SAMS, suspendeu a vigência do acordo celebrado com os SAMS, comunicando tal facto aos seus associados em 25.5.1993.
A partir de então, as farmácias associadas da ANF, deixaram de dispensar a crédito os medicamentos do receituário destinado aos beneficiários dos SAMS, incluindo a Farmácia do A., apesar dos prejuízos que isso lhe causava.
Mas porque cinco meses volvidos, a situação não apresentava quaisquer sinais de ser ultrapassada, o Autor, em Outubro de 1993, fez uma exposição junto da Direcção Geral da ANF, dando conta da quebra acentuada de receitas da Farmácia - que se situa na Baixa de Lisboa, em que 80% dos clientes habituais são constituídos por bancários - referindo que apesar de solidária com a ANF, era-lhe impossível continuar a não fornecer, a crédito, os utentes, por razões de sobrevivência económica.
Convocada a Assembleia Distrital, foi deliberado em 5.11.1993, continuar a não fornecer a crédito medicamentos aos beneficiários dos SAMS, ou seja, o fornecimento apenas seria feito contra o pagamento integral do valor das receitas, sendo que esta deliberação vinculava todos os associados. O Apelado não acatou, então, a deliberação.

Mais do que saber se existe fundamento para não acatar a deliberação em causa, importa decidir se existe fundamento para a imposição da pena de expulsão aplicada pelo Conselho Nacional da ANF.
Vejamos.
Dada a particular localização da Farmácia do A., 80% da sua clientela eram bancários, o que era do conhecimento da ANF.
Admite-se, como a sentença recorrida, que, mesmo que “não se faça corresponder tal número percentual à percentagem no volume de negócios, certo é que tal realidade é suficientemente indiciadora da particular vulnerabilidade do estabelecimento relativamente aos seus clientes”.
Vulnerabilidade essa que sai reforçada pela existência e funcionamento de uma outra farmácia a poucos metros da do Apelado, a "Farmácia Teixeira Lopes", que não sendo associada da ANF e assim não ter suspendido os fornecimentos a crédito aos beneficiários dos SAMS, acabou por cativar os clientes da Farmácia do Apelado, o que, inevitavelmente, se repercutiu negativamente na vida económica da mesma.
Além disso, este declínio de clientela e de actividade económica, prolongou-se no tempo, pelo menos durante cinco meses, tornando a situação económica da Farmácia do Autor cada vez mais difícil, até ao ponto de obrigar o Autor, que até aí acatara as decisões da ANF, a comunicar-lhe que lhe era impossível continuar a cumprir a deliberação tomada, sob pena de a actividade do respectivo estabelecimento se tornar inviável.
Este o circunstancialismo que rodeia o não acatamento, por parte do Apelado, da deliberação tomada e que há que tomar em conta, para, em concreto se apreciar da justeza da medida de expulsão aplicada.

2. O art. 9º do DL 272-C/75 – LAP
Como decorre do art. 1º dos Estatutos da Apelante, a ANF é constituída nos termos do DL 272-C/75.
Dispõe o art. 9º do DL 272-C/75 o seguinte:
1. Com os limites definidos por este decreto-lei, os estatutos regularão:
a) Denominação da associação, sua sede, âmbito e fins;
b) Aquisição e perda da qualidade de sócio, seus direitos e deveres;
c) Regime disciplinar;
d) Eleições, composição e funcionamento dos corpos gerentes;
e) Criação e funcionamento de secções ou delegações ou outros sistemas de organização descentralizada;
f) Regime de administração financeira, orçamento e contas;
g) Alteração dos estatutos;
h) Dissolução e liquidação.

De realçar, no que aos autos importa, que o nº 2 do citado artigo dispõe que o regime disciplinar regulado nos estatutos, “não pode conter normas que interfiram com a actividade económica exercida pelas entidades patronais e deve salvaguardar sempre o direito de defesa dos associados, ficando a pena de expulsão reservada para os casos de grave violação dos seus deveres fundamentais”.
A sentença recorrida, dando razão ao A., anulou a deliberação que lhe aplicou a pena de expulsão, exactamente com fundamento na violação do referido nº 2 do art. 9º da LAP.
Como vimos, a constituição das associações assenta na formação de um substracto pessoal, na existência de um grupo de pessoas que se associam para a realização de determinados fins.
Porém, como decorre do citado nº 2 do art. 9º, no caso das associações que se regem pelo referido diploma legal – LAP - estes interesses e fins comuns não podem, para além dos princípios associativos de inter-ajuda, tendo em consideração a vontade da maioria, olvidar os interesses dos particulares, atendendo sobretudo a que, neste particular, os associados desenvolvem uma actividade que, por questões de sobrevivência, terá necessariamente de ser lucrativa.
É tendo presentes estas razões que se justifica a proibição de normas estatutárias que interfiram na actividade económica exercida pelas entidades patronais.
Ora, a verdade é que, a deliberação que vinculou os associados da ANF no sentido de suspenderem a venda de medicamentos a crédito aos beneficiários dos SAMS, interferiu, como ficou provado, na actividade económica desenvolvida, de forma a por em causa, no caso específico da Farmácia do A., a continuação dessa actividade e a sua sobrevivência económica.
Ser-lhe-ia, nestas condições, exigível, continuar a não fornecer medicamentos a crédito, aos beneficiários dos SAMS?
A resposta terá que ser negativa.

É certo que a Apelante perspectivou modos de minorar tais sacrifícios patrimoniais, decorrentes da decisão de suspender o fornecimento a crédito de medicamentos aos beneficiários dos SAMS. Porém, só comparticiparia em 50% dos prejuízos das farmácias e apenas cobriria a referida percentagem dos prejuízos durante 12 meses, respeitantes ao período posterior a Dezembro de 1993, inclusive.
No entanto, de acordo com o quadro factual descrito, nem mesmo essas medidas, foram suficientes para impedir que o Autor se visse a braços com uma situação de quase inviabilidade económica da sua farmácia, sendo certo que grande parte dos prejuízos sofridos não seriam compensados, designadamente os sofridos desde Maio a Dezembro de 1993.
Como se refere na sentença recorrida, fazendo parte duma Associação, no pressuposto de poder desenvolver a sua actividade num âmbito mais seguro, o A. deparou com uma situação em que a prosseguir o que tinha sido decidido, estava praticamente a votar-se ao suicídio económico, atendendo a que 80% da clientela da referida Farmácia eram beneficiários dos SAMS.
O art. 9º nº 2, para além de proibir a existência de normas estatutárias que interfiram actividade económica exercida pelas entidades patronais, prevê ainda que a pena de expulsão fique reservada para os casos de grave violação dos seus deveres fundamentais
Em consonância com esta norma, o próprio art. 17º dos Estatutos da ANF de que já demos conta, prevê os casos que podem determinar a expulsão do associado, resultando da sua leitura, que todos os comportamentos que podem justificar a exclusão dos associados se revestem um grau de censura e gravidade assinaláveis.
Não é assim um qualquer comportamento que pode justificar a expulsão do associado, sendo certo que, a pena de expulsão é a mais grave das cinco previstas nos Estatutos, só podendo ser aplicada quando ao caso não seja adequada a aplicação de sanção menos grave.
Efectivamente, a perda da qualidade de associado tem duas fontes distintas: a vontade do próprio e a vontade da associação, manifestada através dos seus órgãos competentes. No primeiro caso fala-se em saída do sócio, no segundo em exclusão do mesmo.
O mesmo princípio de liberdade de associação aponta para um regime de livre abandono da associação por iniciativa do associado, ou seja a sua saída. Já a exclusão está associada a violações graves dos deveres sociais ou a práticas atentatórias dos interesses, do bom nome ou da dignidade da associação.
In casu, não pretendeu o Apelado desrespeitar a decisão tomada pela Apelante, não quis por em causa o seu bom nome, não quis lançar dolosamente o descrédito sobre a Associação.
Na verdade, o Apelado apenas quis salvaguardar a sua sobrevivência económica. Por isso, acatou durante cerca de meio ano, a deliberação de suspensão de fornecimento de medicamentos a crédito, tomada em Maio pela ANF.
Como decorre da matéria dada por assente, o A. só deixou de acatar a deliberação quando verificou e porque verificou que isso punha em causa a continuação da sua actividade.

3. O art. 18º, nº 2 da Constituição
O princípio constitucional da proporcionalidade ou da proibição do excesso, previsto no art. 18º, nº 2 da CRP, prende-se com a questão da legitimação da restrição de direitos fundamentais segundo o qual como refere Vital Moreira e Gomes Canotilho (5) são ilegítimas as medidas desnecessárias, inadequadas ou desproporcionadas ao objectivo constitucionalmente fixado nos estados de excepção constitucional”..
De acordo com aquele citado preceito constitucional, a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Importa aqui trazer à colação o que a este respeito refere o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 187/01(6), quando refere que «o princípio da proporcionalidade, em sentido lato, pode (...) desdobrar-se analiticamente em três exigências da relação entre as medidas e os fins prosseguidos: a adequação das medidas aos fins; a necessidade ou exigibilidade das medidas e a proporcionalidade em sentido estrito, ou “justa medida”. Como se escreveu no (...) Acórdão nº 649/93, invocando a doutrina, “o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: o princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm que ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)”».
De onde se conclui que as circunstâncias susceptíveis de justificarem a expulsão terão de ser relevantes, existindo, in casu, uma manifesta desproporção, um manifesto desajustamento entre o comportamento do associado (para o qual foi apresentada previamente pelo associado uma explicação) e a sanção aplicada (a mais severa de todas as previstas).
Postos perante estes ensinamentos forçoso é concluir que, no caso concreto, não se justificava a aplicação da sanção de expulsão, na medida em que não existe correspondência entre a pena aplicada e o comportamento do A. , provocado pelo declínio da clientela e da actividade económica ao longo de vários meses, comportamento esse que não pode ser passível de por em causa a manutenção do A./Apelado como associado da Apelante.
E nem se diga que a manutenção da sentença recorrida cria para o A. uma situação de privilégio em relação aos restantes associados da ANF.
O A., recorrendo à via judicial agiu de acordo com o principio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no art. 20º da CRP e procurou, desta forma, defender os seus direitos, para assim evitar a aplicação de uma sanção que não respeitou quer o disposto no nº 2 do art. 9º do DL 215-C/75, quer o princípio da proporcionalidade, previsto no art. 18º da CRP.
Destarte conclui-se que a presente apelação não merece provimento.

IV – DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Lisboa, 24 de Junho de 2004.
Fátima Galante
Manuel Gonçalves
Urbano Dias
_______________________________________________________
(1)Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, 6ª reimpressão, Coimbra Editora, 1992, pág. 318..
(2)Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, tomo II, parte) II, edição da AAFDL, 1983, págs. 568 e segs..
(3)Dicionário Jurídico da Administração Pública, Novembro de 1994, págs. 337 e segs.
(4)Várias vezes o TC se pronunciou no sentido de que a liberdade de organização interna pode sofrer limitações: Acs. de 10/12/87, in BMJ 372º-154 (Relator Cardoso da Costa); de 22/3/88, in BMJ 375º-169 (Relator Vital Moreira). Vide ainda Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. I, Coimbra, pag. 61..
(5)Constituição da República Portuguesa, Anotada, anotação ao art. 18º da CRP.
(6) In DR II série, nº 146 de 26.6.2001; vide ainda entre outros o Ac. TC nº 365/3002 de 14.7.2003, in DR II série, nº 246 de 23.10.2003