Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1119/2005-6
Relator: GIL ROQUE
Descritores: PESSOA COLECTIVA
PERSONALIDADE JURÍDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I – Na apreciação da Personalidade da Pessoa Colectiva, a limitação legal da sua responsabilidade deve ser usada para a satisfação dos fins sociais, para que foi criada e quando assim não aconteça a sua personalidade, não pode deixar de ser desconsiderada, para evitar com o abuso prejuízo de terceiros. Quando o abuso se mostre evidente, deve haver desconsideração, devendo o instituto desbobrar-se em dois grupos de abusos: A invocação abusiva da limitação da responsabilidade e o prejuízo causado ao património social.
II – Existe abuso da limitação da responsabilidade, quando alguém invocar e insistir na autonomia patrimonial da Sociedade usando e abusando da limitação da responsabilidade dela em seu favor e em prejuízo dos credores da Sociedade, desrespeitando e limitação da responsabilidade, através de alguém que realiza na prática os negócios controlando a Sociedade, sem aparecer como administrador ou gerente (homem oculto) actuando através de pessoas fictícias “Offshores”, ou de gerente ficticiamente designado, o marido da sua empregada domésticas (homem de palha). Era a directora clínica da Sociedade que através de procuração com todos os poderes, para tudo poder fazer, que actuava em nome da Sociedade.
III- As Sociedades Rés não possuem património. Todos os bens que nela existem, são locados. São Sociedades descapitalizadas. Apesar disso, a 2.ª Ré, contraiu encargos de largos milhares de contos e actuou através e em benefício da 3.ª Ré (pessoa singular), verdadeira dona das Sociedades Rés e dos investimentos nelas efectuados.
IV – Tendo a 3.ª Ré usado as 1.ª e 2.ª, constituídas em seu benefício próprio numa posição de domínio absoluto através de “offshores”, e servindo-se de procuração com poderes que lhe permitiam actuar no interior delas como melhor convinha aos seus interesses individuais, misturando os patrimónios, a limitação da personalidade das pessoas colectivas envolvidas não deve manter-se.
V- Não existindo na lei disposição legal semelhante ao art.º 84.º do C.S.C., segundo a qual o sócio único responde (em caso de insolvência) ilimitadamente pelas obrigações sociais, constituídas no período posterior à cumulação, o julgador deve integrar a lacuna, responsabilizando subsidiariamente a pessoa singular, que em plena actuação dominante e abusiva usou as Sociedades em benefício próprio, integrando-se a lacuna, nos termos do disposto no n.º3 do art.º 10.º do C.C., como se fosse ele o legislador, responsabilizando a 3.ªRé, que de forma abusiva se serviu das 2.ª e 3.ªoutras Rés em seu benefício pessoal.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

    I - RELATÓRIO:
    1 - COFINANÇA- CONSULTORES FINANCEIROS LDA, com sede na Urbanização Terra do Minho, lote 33 - 1.º Dt.º - 2675 Odivelas, contribuinte fiscal n.º503 465 666, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Loures sob o número 12.241, intentou contra CLINICA DOS SANTOS CAPUCHINHOS LDA, com sede na Rua Rui Furtado, n.º 12 A e B- Charneca da Caparica - Almada, ELORT EMPREENDIMENTOS TURISMOS E HOTELEIROS LDA, com sede na Rua Avelino Salgado Oliveira, n.º 27 C e D - 2685-Camarate - Loures e DRª (A), - Rua ... - Bloco B Lote 1 R/E Dt.º, em Lisboa, a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação da 1.ª Ré no pagamento da quantia de € 76.787 ,64, acrescidos de juros de mora vincendos, à taxa legal sobre o valor de € 70.614, 81, a 2.ª Ré no montante de € 6.617,00, acrescidos de juros vincendos, à taxa legal, sobre o valor de € 6.429,50 e a 3.ª Ré nos mesmos montantes, em regime de solidariedade, com a 1.ª Ré e 2.ª Ré, tendo em vista o levantamento da personalidade colectiva de ambas as sociedades.
    Alega, em suma, a Autora, que a 1.ª Ré celebrou com a Autora um contrato de prestação de serviços, e que nesse âmbito não liquidou as importâncias nos autos peticionadas, contrato esse celebrado também com a 2.ª Ré, tendo a 3.ª Ré agido em representação da 1.ª Ré. Para além disso a  3.ª Ré trabalha em regime de avença com a 2.ª Ré, serviços que seriam facturados à 2.ª Ré.
    Efectivada a citação das Rés, foi apresentada Contestação por todas em conjunto a fls.135, impugnando em parte a versão apresentada pela Autora, nomeadamente a redução da dívida da 1.ª Ré à Autora para  € 7 481,97, ser a 2.ª Ré absolvida do pedido, por nada dever à Autora, ser considerado improcedente e não provado o pedido de levantamento da personalidade colectiva das sociedades comerciais 1.ª Ré e 2.ª Ré e ainda ser considerada parte ilegítima a 3.ª Ré, ou então ser absolvida do pedido de condenação em regime de solidariedade. Além disso alega que a Autora age com litigância de má fé, pelo que deve ser condenada para o efeito.
   A A. apresentou réplica a fls. 194, concluindo a final pela improcedência da acção e improcedência da excepção invocada.
    Foi elaborado o saneador, onde se considerou a 3.ª Ré como parte legítima, seleccionou-se a matéria assente e organizou-se a base instrutória e após a instrução procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença na qual se julgou a acção parcialmente procedente por provada, e em consequência, foram condenadas:
a) a 1.ª Ré: no pagamento da quantia de € 50.772,63, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal de 12%.
b) ordenou-se o levantamento da personalidade colectiva da sociedade 1.ª Ré Clínica dos Santos Capuchinhos, passando a personalidade individual, com responsabilidade da 3.ª Ré.
e) condenaram-se as RR Clínica dos Santos Capuchinhos, Lda e (A), no pagamento da quantia referida em a), em regime de solidariedade.
Julgou-se improcedente o pedido formulado contra a R. Elort Empreendimentos Turísticos e Hoteleiros, Lda e, em consequência, absolveu-se a mesma do pedido. Julgou-se não verificada a litigância de má fé.
*
2 – Inconformada com a decisão, vieram dela interpor recurso as RR., que foi admitido e oportunamente foram apresentadas as alegações e contra alegações, concluindo as apelantes nas suas pela forma seguinte:
I - Quanto à matéria de facto, deverá ser entendido que:
a) Apenas foi celebrado um contrato de prestação de serviços entre a 1.ª R., e a A , o qual esteve em vigor um ano, i.e., desde 23 Março de 1998 a 23 de Março de 1999 tendo cessado nesta data.
b) A A realizou projectos financeiros para a 1.ª R, não tendo prestado os demais serviços constantes no objecto do contrato;
c) a A não prestou à 3.ª R trabalhos idênticos aos que efectuou  para a 1.ª e 2.ª RR
d) a 3.ª R não domina as 1.ª e 2.ª RR, tendo actuado durante pouco tempo como gerente da 1.ª R durante e na qualidade de procuradora da 2.ª R, cargos que já não exerce, usando as sua contas pessoais e avalizado responsabilidades financeiras das 1.ª e 2.ª RR para apoiar as  mesmas, dado que é sócia da 1.ª e a 2ª Elort, Lda. pertencia à família.
e) inexiste confusão patrimonial entre as RR.
f) a 3.ª R não utiliza a offshore deteriora de parte do capital da 1.ª R porque “não poderia aparecer como sócia da 1.ª R, devido à sua actividade profissional”, porquanto a lei não a impede de ser titular, gerente ou directora de empresas com o objecto da Clínica dos Santos Capuchinhos, porquanto não desempenha a sua actividade profissional na Função Pública em regime de dedicação exclusiva, nem a actividade que exerce na 1ª R é conflituante com a da Função Pública.
g) a 3.ª R não só não é a única proprietária do capital da 1.ª R, como não tem poderes exclusivos de gestão da  mesma, porquanto a gerência pertence à sócia Dr.ª (C);
h) a 3.ª R não se serve de sócios fictícios para atingir os seus objectivos, fazendo crer que nada tem a ver com a 1.ª R. ; Os sócios da 1.ª R existem e a empresa foi constituída de acordo com a lei.
i) a 3.ª R não usa a personalidade da RR a seu belo prazer para ocultar bens e prejudicar terceiros, nem constitui uma ameaça a quem quer que seja. A 1.ª e a 3.ª RR têm crédito na praça e sempre cumpriram com os seus compromissos.
j) apenas é devido à A importância reconhecida pela 1.ª R, no montante de € 7 481,97, que se encontram à disposição da A .
l) dever ser considerado que a A fez um mau uso do processo para obter benefícios ilegítimos, carreando para o processo factos da vida pessoal da 3.ª R sem interesse para a presente lide, nomeadamente factos relacionados com o divórcio, omitindo que os serviços realizados para a Elort, Lda. já tinham sido integralmente pagos e que não tinha celebrado quaisquer contratos de prestação de serviços com a 2.ª e 3.ª RR.
 Pelo que antecede,
a) devem ser considerados não provados os quesitos 2.º, 5.º, 9.º , 11.°, 14.º, 15.º, 22.º, 23.º, 29.º, 30.º e 31°,
b) devem ser considerados provados os quesitos 29.º e 30.º
c) devem ser parcialmente provados os quesitos, 7.º( provado apenas que a A elaborou, apresentou e acompanhou um projecto económico financeira da 1.ª R, desde Março de 1998 a Março de 1999 ) ; 8.º(provado apenas que na reunião não se logrou obter acordo quanto ao montante pecuniário que a 1.ª R deveria satisfazer à A ); 12.º ( provado apenas que a A desenvolveu projectos para a 1.ª e 2.ª RR );  21° ( provado apenas que a 3.ª R avalizou títulos de crédito e contratos da 1.ª e 2.ª RR) ;  27.º (provado apenas que a 1.ªR utiliza as suas próprias contas aos serviço das sociedades) ;Todos os demais factos, devem manter a decisão proferida pelo Tribunal .
II - Quanto ao direito
A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, violou o disposto nos art.ºs 20.º e 37.º do DL l3/03 de 15 de Janeiro, DL 413/93 de 23 de Dezembro, DL 412/99 de 15 de Outubro, diplomas legais que permitem concluir que os médicos podem participar no capital social, ser gerentes ou directores de empresas destinadas a prestar actos médicos, os art.ºs, 334.º relativo ao abuso de direito, e 868.º do CC relativo à confusão patrimonial, por não se verificarem os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica da 1.ª R, o art.° 805.º do CC dado que não são devidos juros legais, e o art.º456, do CPC, porquanto a A litiga de má fé.
    Nestes termos e nos mais de direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e revogada a sentença recorrida,
a) absolvendo-se as 1.ª e 2.ª RR do pagamento da importância de € 50.772,83 acrescida de juros legais porquanto a A apenas tem direito a receber € 7 481, 91, quantia que a 1.ª R reconhece dever e se encontra à disposição da A ;
b) deve ser mantida a personalidade jurídica da 1.ª R, Clinica dos Santos Capuchinhos L.da, e em consequência,
c) não deve a R. ser condenada a pagar seja o que for, em regime de solidariedade e
d) deve a A ser condenada como litigante de má fé.

    - Nas contra alegações a apelada, pugna pela improcedência do recurso, com a confirmação da decisão recorrida.
    - Corridos os vistos e tudo ponderado cabe apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO:
A) Factos provados:
A matéria de facto dada como assente na decisão recorrida é a seguinte, que se assinala na parte final de cada número com as letras da matéria assente e números da base instrutória correspondentes:
1. -A Autora, por escritura notarial de 10 de Fevereiro de 1999, alterou a denominação social de "Goncel-Serviços de Contabilidade e Projectos Lda" para "Confinança-Consultores Financeiros, Lda", alteração que levou a registo (alínea A dos factos assentes).
2. - A Autora tem como objecto social a prestação de serviços de contabilidade e fiscalidade e realização de projectos de viabilidade económica e financeira e consultadoria
(alínea B dos factos assentes).
    3. - Em 23 de Março de 1998, a Ré Clinica dos Capuchos, Lda, através da intervenção da 3.ª Ré, celebrou com a Autora, um acordo, que denominaram como "contrato de prestação de serviços de consultadoria financeira", em que a 1.ª Ré surgia como primeira outorgante e a Autora como Segunda. (alínea C dos factos assentes).
    4. - No dia 1 de Outubro de 1996, no Segundo Cartório Notarial de Lisboa foi constituída a sociedade comercial, cuja denominação passou a ser "E1ort, Empreendimentos Turísticos e Hoteleiros, Lda", e no dia 12 de Janeiro de 2001, foi  certificado um documento sobre a alteração de quotas da mesma sociedade e designação para gerente, que a partir de 20.10.00 passou a ser (J) (doc.27 e 28, fls.94a104- alínea D dos factos assentes).
    5. - No dia 9 de Setembro de 1996, foi apresentado certificado de tradução no 20.º Cartório Notarial de Lisboa, sobre uma procuração passada pela 2.ª Ré à 3.ª Ré, com plenos poderes para actuar em nome da sociedade (doc. 29, de fls. 104 a 107- alínea E dos factos assentes).
    6. - No dia 3 de Junho de 1997, no Segundo Cartório Notarial de Lisboa foi constituída a sociedade comercial, cuja denominação passou a ser "Clínica dos Santos Capuchinhos, Lda" e na Conservatória do Registo Civil de Almada a mesma sociedade alterou os sócios e as quotas, passando a ser gerente a 3.ª Ré, sendo forma de obrigar a sócios a assinatura do gerente ( doc. 30 e  31, junto a fls.  107 a 118 - alínea F dos factos assentes).
    7. - A sociedade "Elort, Empreendimentos Turísticos e Hoteleiros,Lda" enviou uma carta, datada de 6 de Julho de 2001, ao gerente da agência de Camarate do Banco Pinto e Sotto Mayor, solicitando que o Banco consinta na cessão da posição contratual a favor da sociedade "R. Vieira - Hotelaria e Turismo, Unipessoal, Lda" nos mesmos termos e condições que foram concedidos à sociedade "Residencial Vieira", em Camarate, no que concerne ao contrato suporte do financiamento (doc.15, fls. 82 –alínea G dos factos assentes).
    8. - A Autora preparou, apresentou e conseguiu na instituição financeira do grupo "Banco Espírito Santo", a aprovação dos projectos financeiros que a Ré pretendia realizar, quer mobiliário quer imobiliário (artigo 1.º da base instrutória).
    9. - Ao mesmo tempo da celebração do contrato com a 1° Ré, a 23 de Março de 1998, a 3.ª Ré referiu ao sócio gerente da Autora, Dr . (G), que estava envolvida em outros projectos quer pessoais, quer com outra empresa que possuía, a 2.ª Ré, pedindo-lhe que, à semelhança do trabalho a desenvolver na  1.ª Ré, fosse desenvolvendo também tal trabalho na 2.ª Ré. ...(artigo 2.º da base instrutória).
   10.- A 3.ª Ré, em reunião efectuada com o sócio gerente da Autora, fez cessar o contrato com a Autora... (artigo 4.º da base instrutória).
   11. - ... cessação esta que também abrangeu a 2.ª e 3.ª Rés ...(artigo 5.º da base instrutória).
   12. - ... entregando nessa data o sócio gerente da Autora um veículo que a 3.ª Ré havia cedido o seu uso (artigo 6.º da base instrutória).
   13.- Desde Março de 1998 a meados de 2000, a Autora prestou serviços económicos e financeiros à  1.ª Ré (artigo 7.º da  base instrutória).
   14.- Na sequência do acordo referido em 4.1.9, a Autora prestou serviços, de idêntica natureza aos que prestava à  1.ª R, à 2.ª Ré "Elort" e igualmente à 3.ª Ré Dr.ª(A), pelo período referido em 7.º (artigo 9.º da base instrutória).
   15.- De imediato a Autora iniciou a prestação de serviços económico-financeiros na 2.ª Ré, bem como para a 3.ª Ré (artigo 11.º da base instrutória).
   16.- Desenvolveu para estas Rés variados projectos financeiros (artigo 12.º da base instrutória).
   17.- Muitos houve em que a Autora, através dos seu legal representante, teve intervenção directa, quer na elaboração quer na aprovação (artigo 13.º da base instrutória).
   18.- A 3.ª Ré é a verdadeira proprietária do capital social das sociedades 1.ª Ré (artigo 14.º da base instrutória).
   19 .- ...detendo poderes próprios exclusivos de gestão de modo pleno sobre qualquer delas ...(artigo 15.º da base instrutória).
   20.- A 3.ª Ré utiliza a sociedade "offshore" detentora de capital na 1.ª Ré, por conveniência pessoal e fiscal, para obter determinados benefícios (artigo 16.º da base instrutória).
   21.- A 3.ª Ré por questões de conveniência pessoal e profissional não poderia aparecer como sócia da 1.ª Ré, tendo em vista a sua actividade profissional (artigo 20.º da base instrutória).
   22.- A 3.ª Ré aparecia a avalizar títulos de crédito e contratos quer de uma, quer de outra das sociedades em causa (artigo 21.º da base instrutória).
   23.- A 3.ª Ré serve-se de "sócios fictícios" para atingir os seus objectivos, fazendo crer que nada tem que ver com a 1.ª Ré ( artigo 22.º da base instrutória).
   24.- À 1.ª Ré e 2.ª Ré não se conhecem bens patrimoniais (artigo 23.º da base instrutória).
   25.- Os investimentos efectuados pela 1.ª e 2.ª Rés encontram-se em regime de leasing (artigo 26.º da base instrutória).
   26.- A 3.ª Ré utiliza as suas próprias contas e créditos ao serviço das sociedades que domina (artigo  27.º da base instrutória).
   27.- Por tais trabalhos a Autora recebeu, como contrapartida, Esc. 4.110.000$00 (€ 20500,59) (artigo 30.º da base instrutória).
   B) Direito aplicável:
    As apelantes manifestam a sua discordância da decisão recorrida, através das conclusões que tiram das alegações.
    Sabendo-se que o objecto do recurso é balizado pelas conclusões, como resulta do disposto nos art.º 684º nº3 e 690º nºs 1 e 4 do Cód. Proc. Civil e vem sendo orientação da jurisprudência[1], a elas nos cingiremos na sua apreciação. Isto, não obstante resulte da análise do seu conjunto que todas elas, se podem e devem enquadrar em três questões essenciais que consistem: em apreciar a conformidade ou não com a prova produzida da decisão sobre a matéria de facto, a existência ou não dos pressupostos no sentido do levantamento da personalidade colectiva das 1.ª e 2.ª Rés com a consequente responsabilização da 3.ª Ré  e em apurar e decidir se a Autora terá litigado de má fé nesta acção.
*
   1 - Começam as recorrentes as conclusões das suas alegações que desdobram em 11 alíneas por sustentar através delas que estão erradas as respostas e em consequência a matéria de facto provada em julgamento, propondo que sejam considerados como não provados os quesitos 2.º, 5.º, 9.º, 11.°, 14.º, 15.º, 22.º, 23.º, 29.º, 30.º e 31°, como parcialmente provados os quesitos 7.º, 8.º, 12.º, 21.º e 27.º e como provados os quesitos 29.º e 30.º .
    Pretendem assim os apelantes que este tribunal dê como “não provados” aos factos provados n.ºs 9.º, 11.º, 14.º, 15.º, 18.º, 19.º, 23.º, 24.º , e que sejam alteradas as respostas aos factos provados n.ºs 13.º, 16.º, 22.º e 26.º . Isto, não obstante à matéria dos n.ºs 8.º e 29.º da Base Instrutória se  tenha respondido, “não provado” e a do n.º 30.º tenha sido considerada provada por acordo(fls. 281), pelo que não se entende aqui, o que pretendem os apelantes.
    Na verdade, a decisão do tribunal de primeira instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se tendo havido gravação da prova, como é o caso, tiver sido impugnada, nos termos do art.º 690.º-A, a decisão com base neles proferida (al. a) don.º1 do art.º 712.º do CPC).
   Devem assim, os recorrentes, impugnar a matéria de facto em causa, mas o objecto dessa impugnação, tem obrigatoriamente de ser especificado, indicando-se quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sob pena de rejeição (als. a) e b) do n.º1 do art.º 690.º-A do CPC).
    Tendo havido gravação, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação, incumbe aos recorrentes, indicarem os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta (n.º 2 do art.º 690.º-A do CPC).
    Da análise cuidada das alegações, verifica-se que as apelantes começam por fazer nelas, uma crítica ao modo como foi admitida a depor a testemunha (CD), para depois pôr em dúvida o seu depoimento, mas não refere de forma objectiva onde estão os pontos de divergência entre o depoimento e as respostas dadas aos quesitos postos em crise, nem indicam os elementos de prova de que este Tribunal se deve servir para dar como não provado os quesitos que indicam como provado ao quesito 29.º, pois o 30.º foi dado como provado por acordo e que se alterem as dos restantes por eles enumerados, designadamente a do quesito 7.º que prova o prolongamento do contrato com a Autora.
    Ouvimos com a atenção o depoimento de parte da 3.ª Ré e o da testemunha Amadeu.
    O depoimento desta testemunha, ao contrário do que pretendem fazer crer as apelantes, afigura-se-nos sério e inequívoco em relação aos quesitos sobre que depôs e em especial em relação à matéria do quesito 7.º , cuja resposta os apelantes pretendem ver alterada.
    Para uma melhor elucidação da coerência das respostas dadas no tribunal recorrido à  matéria de facto, parece-nos ter interesse transcrever partes do depoimento da testemunha.
     Há que ter em conta que a testemunha foi peremptória ao afirmar que, “desde 1998 até quando se reformou em meados de 2000, o Dr.º (G) (representante da Autora), estava à frente do negócio das empresas” e esclareceu que: “ havia uma conta/corrente que era  garantida financeiramente com o património pessoal da Dr.ª(A)”. “Em 2000 estava tudo em actividade e era o Dr.º (G), que tratava de tudo, pelo menos até meados de 2000” . A instâncias do mandatário das Rés a testemunha informou que: “ A Dr.ª(A) era dona daquilo tudo e assumia a responsabilidade perante o Banco (BNU)” . Havia vários leasings que o banco foi chamado a apreciar” , “Às vezes faltava o dinheiro, havia atrasos no pagamento das prestações. A conta ficava a descoberto” (cassetes n.º304/1 e 304/2).
    Esclareceu ainda o mandatário das Rés que, “ tomou conta da Região de Sintra em fins de 1998 e reformou-se em meados de 2000. Nesse período era o Dr.º (G) que estava à frente dos negócios das empresas” (cassetes n.º 304/2).
   Os apelantes, têm todo o direito de pôr em dúvida o depoimento da testemunha, mas não é esse o caminho legalmente indicado para que esta Relação possa alterar a decisão sobre a matéria de facto. As respostas dadas à matéria de facto são dadas tendo o julgador em atenção toda a prova produzida, inclusivé a prova documental e o próprio depoimento de parte da 3.ª Ré que se mostra transcrito (desgravado) e junto aos autos de fls. 288 a 311, que como se diz na fundamentação do despacho das respostas (fls.281), foi essencial para algumas das respostas dadas aos números da base instrutória.
    A nosso ver os apelantes não tomam em consideração que a prova por excelência em matéria cível é a confissão e que a 3.ª Ré depôs sobre à matéria dos quesitos 1.º a 22.º, 25.º e 27.º, que alguns deles têm por objecto factos pessoais e tem conhecimento pessoal dos outros, nem tiveram em atenção que a confissão é irretractável e que mesmo em relação aos factos, que não possam valer como confissão, valem como elemento probatório, que o tribunal apreciará livremente (art.º 554.º n.º1, 567.º n.º1 do CPC e 361.º do CC).
Com efeito, da análise do despacho que no tribunal recorrido se responde à matéria da base instrutória verifica-se que as razões  apresentadas pelo tribunal para responder à matéria de facto se mostram fundamentadas. Para além dos depoimentos escritos, sempre susceptíveis de apertado controlo a fundamentação é satisfatória, e não podemos esquecer que mesmo após a revisão do Código, ficaram intocáveis as disposições relativas à força probatória dos depoimentos das testemunhas, que continua a ser apreciada livremente pelo tribunal (artº 396º do Cód. Civil). O tribunal colectivo ou singular, “aprecia livremente as provas, decidindo os juizes segundo a sua convicção acerca de cada facto”  (artºs 655º nº1 e 791º nº3 do C.P.Civil).
    A reapreciação dos elementos de prova constantes do processo, que permite à 2ª instância adquirir uma convicção diferente daquela a que chegou a 1.ª , e expressá-1a em concreto, alterando a decisão do tribunal inferior nos pontos questionados, essa ampliação de poderes, não impõe a realização  de novo e integral julgamento nem admite recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto.
    Mantendo-se em pleno vigor os  princípios da oralidade, da imediação, da concentração e da livre apreciação das provas, e orientando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de absoluta certeza, o uso pela Relação dos  poderes de alterar a decisão da 1ª instância acerca da matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão nos concretos pontos questionados.
    A garantia do duplo grau de jurisdição não pode subverter o princípio da livre apreciação das provas estabelecido no artº 655º nº1 do CPC, que na formação da convicção do julgador entram necessariamente elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação, seja áudio, seja mesmo vídeo, que compete ao tribunal de segunda jurisdição apurar a razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que lhe são apresentados nos autos. O tribunal de segunda instância não vai à procura de uma nova convicção, procura saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo, tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exigir perante si.
    Há que ter em conta que o registo da prova através da gravação dos depoimentos não introduziu na ordem jurídica uma nova instância que levaria à repetição do julgamento efectuado na primeira instância. A ser assim, levar-nos- ia a pensar que o legislador teria criado uma quarta instância resultante do registo da prova [2]. O que se pretende com o registo da prova é evitar erros ou vícios de julgamento.
  Pelos motivos que temos vindo a alinhar, não se pode deixar de entender que não assiste aos apelantes qualquer razão, uma vez que depois de termos analisado com cuidado toda a prova produzida na primeira instância, reconhecemos que ali foi feita uma apreciação ponderada, que reflecte a prova efectivamente produzida sem lugar para dúvidas, não sendo assim oportuna qualquer censura susceptível de por em causa a decisão sobre a matéria de facto e a sua interpretação na aplicação do direito adequado.
  Não se vislumbrando razões para a alteração da decisão sobre a matéria de facto, mantém-se sem alteração, improcedendo nesta parte as conclusões que os apelantes tiram das alegações.
*
    2 – Cabe agora apurar se, face à matéria assente é ou não acertada a decisão que ordenou o levantamento da personalidade colectiva da sociedade 1.ª Ré Clínica dos Santos Capuchinhos, passando a personalidade individual, com responsabilidade solidária da 3.ª Ré e que as condenou no pagamento à Autora da quantia de, € 50.772,63, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal, em regime de solidariedade.
    Como se sabe as pessoas colectivas respondem pelos seus actos, podendo essa responsabilidade ser ilimitada, respondendo com elas em regime de solidariedade, os sócios, ou os gerentes, ou os administradores, (é o caso das sociedades civis, e comerciais em nome colectivo e em comandita, quanto aos sócios comanditados) ou responsabilidade limitada, ao capital social, como é o caso das Sociedades por quotas e das Sociedades Anónimos e Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada (EIRL).  
    Isto, sem deixar de ter em conta que a  Sociedade  como sujeito de direito responde, com a totalidade do seu património e não apenas com o seu capital social. Neste sentido,  responsabilidade limitada significa que o capital social responde perante os credores, bem como o património, donde ressalta que esse património responde apenas perante os credores da sociedade e não poderá ser utilizado de modo a prejudicá-los.
Para além disto, em relação às pessoas colectivas ditas de responsabilidade limitada, a sua possibilidade de agir, tem limites, não só no tocante às situações exclusivas das pessoas singulares, mas havendo normas proibitivas que impõem “levantamentos” específicos e limites genéricos, que por exigência do sistema, o direito permite sem normas específicas,  em certos casos passar do modo colectivo ao modo  singular, ignorando a presença formal duma pessoa colectiva.
  A questão não é nova entre nós, nem no direito continental europeu, nem no direito anglo-saxónico, mais correntemente no norte-americano.
No direito alemão para caracterizar esta responsabilização de outras pessoas, para além do capital social, tem sido usado o termo  Durchgriff ou Durchgriff bei  juristischera Personen que significa “penetração” ou penetração nas pessoas colectivas e no direito norte-americano o termo “disregard of corporateness”, que significa “desconsideração da personalidade”, das pessoas colectivas [3].
    Entre nós o termo que se tem vindo a divulgar com mais frequência é o da “desconsideração da personalidade colectiva”, que segundo Menezes Cordeiro é a expressão adoptada no Brasil, embora ele tenha preferido a expressão “O Levantamento da Personalidade Colectiva”. 
    De qualquer modo, o que no essencial interessa reter é que não é lícito a utilização por parte das pessoas singulares na sua qualidade de sócios, gerentes ou administrados ou que por qualquer meio dominem uma sociedade de responsabilidade limitada, agir em moldes de levar à confusão das esferas jurídicas ou mistura do capital da pessoa colectiva com o da pessoa singular, à subcapitalização ou a prejudicar terceiros, servindo-se de forma abusiva da personalidade da pessoa colectiva, com responsabilidade limitada, para por esses meios obter benefícios pessoais. Isto sem deixar de ter em conta como referimos, que a  Sociedade  como sujeito de direito responde, com a totalidade do seu património e não apenas com o seu capital social.
   A questão que se põe é saber quando é que se pode entender que há abuso da responsabilidade limitada. A esta questão responde Pedro Cordeiro, que para efeitos de desconsideração da personalidade jurídica  da pessoa colectiva, devem ser considerados dois grupos de abusos do instituto: enquadrando no primeiro, a invocação abusiva da limitação da responsabilidade, e no segundo o prejuízo causado ao património social.
   Existirá abuso da limitação da responsabilidade quando alguém invocar e insistir na autonomia patrimonial da sociedade usando e abusando da limitação da responsabilidade em seu favor e em prejuízo dos credores desta, ou então, quando esse mesmo sujeito, em seu favor e em prejuízo dos credores da sociedade, desrespeitar a limitação da responsabilidade[4].
   Torna-se assim claro que para que se verifica o abuso da limitação da responsabilidade, deverá haver alguém em condições de controlar ou dominar de forma duradoura a sociedade, a quem a doutrina vem designando por “HOMEM OCULTO”, figura que no direito alemão corresponde à designação de “HINTERMANN”, no sentido de que actuando a coberto da capa de pessoa colectiva, utiliza esta como instrumento da sua vontade no seu interesse pessoal. 
Acontece normalmente nos casos de sociedades unipessoais- unipessoalidade  ou de domínio de grupos de sociedades.
    O “homem oculto” é assim a pessoa singular ou colectiva que podem formar, por si a vontade social, desfuncionalizando a sociedade, cuja imagem se obtém da análise de cada caso concreto. Entre ele e a sociedade, há uma relação de domínio de natureza jurídica e que pode ser apenas de forma indirecta
    Poder-se-á, por isso, penetrar, sucessivamente, o ”véu da personalidade colectiva” de várias sociedades até se atingir quem deva ser responsabilizado [5].
    Vejamos se da matéria de facto assente ressaltam factos suficientes para se entender que a decisão que entendeu despersonalizar ou desconsiderar a personalidade colectiva da 1.ª Ré face ao envolvimento nesta e na 2.ª Ré pela 3.ª Ré, foi ou não acertada nos presentes autos.
   Da prova produzida resulta que, “A 3.ª Ré serve-se de "sócios fictícios" para atingir os seus objectivos, fazendo crer que nada tem que ver com a 1.ª Ré “(Facto provados n.º 23 ).
   Contudo a verdade é bem diferente, porquanto a 3.ª Ré detém 90% do capital social da 1.ª Ré, mas seu em nome estão só 10% do capital social, 80% de uma offshore e os restantes 10% de uma tal (C)e o mesmo se passa em relação à 2.ª Ré.
    Assim mostra-se provado que “A 3.ª Ré é a verdadeira proprietária do capital social das sociedades 1.ª Ré”, e da 2.ªRé “....detendo poderes próprios exclusivos de gestão de modo pleno sobre qualquer delas ...” tendo-se ainda provado que, A 3.ª Ré utiliza a sociedade "offshore" detentora de capital na 1.ª Ré, por conveniência pessoal e fiscal, para obter determinados benefícios, por questões de conveniência pessoal e profissional não poderia aparecer como sócia da 1.ª Ré, tendo em vista a sua actividade profissional, aparecia a avalizar títulos de crédito e contratos quer de uma, quer de outra das sociedades em causa” (Factos provados n.ºs 18.º a  21.º ).   
    Acontece ainda que, quer o imóvel onde a 1.º Ré tem a sua sede, quer os móveis necessários para desenvolver a sua actividade, cujo valor se eleva largos milhares de Euros, não são património dela, “ Os investimentos efectuados pela 1.ª e 2.ª Rés encontram-se em regime de leasing” , possuindo por isso os bens, como arrendatária em relação ao imóvel onde tem a sua sede e locatário no que respeita aos bens móveis, e o mesmo acontece em relação à 2.ª Ré.  Assim , “À 1.ª Ré e 2.ª Ré não se conhecem bens patrimoniais” e acresce a isso que A 3.ª Ré utiliza as suas próprias contas e créditos ao serviço das sociedades que domina” (Factos provados n.ºs 18.º a  26.º).
    A 3.ª Ré foi primeiro e até há pouco tempo gerente e administradora da 1.ª Ré e ultimamente sua directora clínica, é ela que dá todas as ordens, como se fosse propriedade individual e não de uma sociedade por quotas, como resulta da sua designação.
   O capital social da 2.ª Ré era 80% duma Offshore, da 3.ª Ré, como resulta do seu depoimento escrito, era ela que mandava. Nem se poderia entender doutra forma, uma vez que o gerente dessa Sociedade era o Sr.º (J), marido da empregada doméstica da 3.ª Ré (depoimento da 3.ªR. de fls.292 a 309), sendo esta que, primeiro como procuradora e depois como administradora, lhe dava ordens, pondo e dispondo como proprietária única e funcionando este como um verdadeiro “homem de panha”, figura conhecida na Alemanha pelo “Duplo Durchgriff”, para afastar a responsabilidade deste tipo de intervenientes nos actos das sociedades.
   É evidente que a responsabilidade dos actos do sócio ou gerente que funciona como verdadeiro “homem de palha”, que se limita a receber ordens do “homem oculto” (no caso da “mulher oculta”), não podem ser aqueles a assumir a responsabilidade pelos actos que prejudiquem terceiros. O “homem de palha”, o “testa de ferro”, não assume responsabilidade.
   No caso em apreciação, está provado que o contrato de prestação de serviços que a Autora celebrou com a 1.ª Ré, foi na base da confiança na 3.ª Ré. Foi apenas esta que o representante legal da Autora conheceu e em quem confiou no cumprimento do contrato. Foi com ela que ele contratou, actuando embora como se o contrato devesse ser cumprido apenas pela 1.ª Ré. Contudo, é a 3.ª Ré que aparece, embora de uma forma claramente escondida e estranha aos órgãos sociais da 1.º Ré.
    Estando provado que contrato celebrado entre a Autora e a 1.ª Ré, se alongou desde Abril  de 1998 até Junho de 2000 e que esta não pagou a contra prestação relativa aos serviços que lhe foram prestados por aquela na sua totalidade, tendo-lhe ficado a dever a quantia € 50.772,63, uma vez que não fez prova de que o contrato durou apenas até 1999, como sustenta e que por isso, apenas lhe deveria a quantia de € 7 481,91, como diz nas alegações. Põe-se a questão de saber, se estando provado que “à 1.ª Ré e 2.ª Ré não se conhecem bens patrimoniais”, a responsabilidade pelo pagamento desse valor poderá ser exigido e em que medida à 3.ª Ré, desconsiderando a limitação da personalidade jurídica da 1.ª Ré.
   Na verdade, da análise da matéria assente, ninguém deixará de considerar que em relação à 1.ª e à  3.ª Rés existe uma clara mistura de patrimónios e uma subcapitalização em relação à 1.ª Ré,  ressaltando com clareza, a mistura de patrimónios, provocada pela conduta da 3.ºRé.
    Por outro lado, toda a actuação da 3.ª Ré, começando logo pelas razões que levaram esta, à constituição das 1.ª e 2.ª Sociedades e da forma da obtenção de interesses pessoais através da das Sociedades em “Offshore” que para o efeito constituiu, bem como da forma escondida ou oculta como actua em relação a elas, independentemente de ser ou não funcionária pública, há um manifesto abuso institucional da responsabilidade limitada das referidas Sociedades, e em especial da 1.ªRé, resultando daí dano para a Autora, porquanto não sendo conhecido património à devedora directa, tudo se encaminha para a sua responsabilização através da desconsideração da personalidade jurídica da 1.ª Ré.
*
    3 – Na decisão recorrida entendeu-se que a desconsideração da personalidade jurídica das Sociedades Comerciais, transformava a personalidade da pessoa colectiva em personalidade individual e por outro lado nesta perspectiva a 3.ª Ré responderia solidariamente pela dívida resultante do incumprimento do contrato celebrado entre Autora e a 1.ª Ré.
    Não nos parece que, aceitando-se que a situação dos autos caracteriza efectivamente um caso claro  e evidente em que se impõe o recurso à aplicação do instituto da desconsideração. Entende-se que a 1.ª Ré não perde a sua qualidade de pessoa colectiva, o que se lhe afasta é a limitação da responsabilidade ao capital social. Daí que o regime imposto à 3.ª Ré, não  possa ser, o da responsabilidade solidaria mas o da responsabilidade subsidiaria.
    Não se pode deixar de ter em conta que seja qual for a interpretação que se faz do instituto da desconsideração da personalidade jurídica das Sociedades Comerciais, ele será sempre um meio de oferecer uma garantia suplementar aos credores e não um meio de transposição total do risco do credor social para aquele que comete o abuso.   
    Trata-se de uma nova obrigação que tem um fim próprio que consiste em responsabilizar a Sociedade e o “homem oculto”, pela mesma dívida, mas este subsidiariamente, porquanto apenas em cada caso, como se disse, se lhe dá autonomia conceitual e relevância jurídica prática. Na verdade, o interesse prático da responsabilidade pela desconsideração, está em dar uma garantia complementar aos credores em caso de abuso, permitindo-se, ao mesmo tempo, a manutenção da personalidade jurídica do ente social e a sua autonomia patrimonial para além do caso concreto [6].
     Por tudo o que referiu, não se compreendem as razões que levam as Apelantes a entenderem nas suas conclusões das  alegações que a decisão recorrida se violou “o disposto nos art.ºs 20.º e 37.º do DL l3/03 de 15 de Janeiro, DL 413/93 de 23 de Dezembro, DL 412/99 de 15 de Outubro, diplomas legais que permitem concluir que os médicos podem participar no capital social, ser gerentes ou directores de empresas destinadas a prestar actos médicos”, uma vez que as razões que nos levaram a considerar oportuna a decisão sobre a desconsideração, não é motivada pelo exercício ilegal da actividade de gerente, mas pela sua actuação oculta, pela mistura de patrimónios e pela descapitalização da 1.ª Ré.
     Em face dos fundamentos que se referiram e que justificam plenamente o recurso ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica das Sociedades Comerciais, bem como à já abundante doutrina estrangeira sobre esta questão, e também embora com alguma timidez a nacional, o legislador português ainda não acolheu o instituto de forma directa, o que a nosso ver poria fim a muitas irregularidades e injustiças a que se vem assistindo, com reflexos irreparáveis na Economia Nacional.
   Acompanhamos assim, mais uma vez a opinião de Pedro Cordeiro no sentido de, não sendo possível abranger alguns casos de desconsideração por aplicação de normas, se deve consagrar uma cláusula geral de desconsideração e que estando “reunidos os requisitos do art.º 10.º n.º3 do C.C. - como meio intra-sistemático idóneo para integrar a lacuna de o legislador ainda não ter estabelecido uma tal regra” [7], se recorra a este preceito legal.
    Na verdade, a 3.ª Ré era no dizer da testemunha Amadeu, a “Dr.ª(A) era dona daquilo tudo”. Está assim plenamente provado que a 3.ª Ré sempre usou as 1.ª e 2.ª Rés em seu benefício próprio, numa posição de domínio absoluto, através de sócios fictícios, concretizados por Sociedades “Offshore”, e como se isso não bastasse, servia-se de procurações com os poderes que lhe permitiam actuar no interior delas, como melhor convinham aos seus interesses individuais.
    Sendo assim, tendo-se provado que não são conhecidos bens à 1.ª Ré, que esta não tem património e não se conhecendo disposição legal semelhante ao preceituado no art.º 84.º do CSC, segundo o qual o sócio único responde ilimitadamente pelas obrigações sociais constituídas no período posterior à concentração, quando a sociedade não tem património para pagar as suas dívidas aos credores, o interprete, no caso o julgador deve integrar a lacuna, responsabilizando a pessoa singular que em plena actuação dominante e manifestamente abusiva usou as sociedades em benefício próprio, integrando-se  a lacuna, nos termos do disposto no n.º3 do art.º 10.º do Código Civil, como se ele fosse o legislador.
   
   4 – Resta-nos apreciar a última questão que as apelantes suscitaram e que consiste no pedido de condenação do Autor como litigante de má fé.
    Face à clara evidência das questões que se referiram e foram sendo apreciadas, parece-nos claro, que o Autor, vendo o seu direito em perigo, face ao desconhecimento de qualquer património das Sociedades Rés, com a presente acção, apenas pretende ver satisfeito o seu crédito que consiste em receber delas o valor do seu crédito, pelos dos serviços prestados.
    De resto, as Rés nem sequer referem de forma clara e fundamentada quais as razões porque entendem que a actuação da Autora se deve caracterizar como actuação de má fé.
    Improcede assim, também esta parte do recurso, por ser mostrar infundada.
*
    5 – Por tudo o que se alinhou, julga-se parcialmente procedente o recurso, mantendo-se a 1.º Ré como pessoa colectiva, mas desconsiderando a limitação da sua responsabilidade e em consequência, face à conduta da 3.ª Ré, que exerceu completo domínio sobre as 1.ª e 2.ª Rés,  condena-se a 3.ª Ré a pagar subsidiariamente, à Autora o montante de € 50 772,63 e juros legais, mantendo-se a decisão recorrida em tudo o resto.

    III- DECISÃO:
    Em face de todo o exposto julga-se parcialmente procedente o recurso, mantendo-se a 1.ª Ré como Sociedade Comercial, desconsiderando-se a personalidade jurídica dela, quanto à limitação da responsabilidade, condena-se a 3.ª Ré a pagar subsidiariamente à Autora a quantia de, € 50.772,63 e juros legais, mantendo-se a decisão da 1.ª instância quanto ao resto.
    Custas na proporção de vencidos.
                Lisboa, 3/03/2005

                Gil Roque
                Sousa Grandão
                Arlindo Rocha
____________________________________________
[1]  - Vejam-se entre outros os Acs. STJ. de 2/12/82, 25/07/86, 3/03/91, 29/05/91 e 4/02/93, do STA de 26/04/88 (in BMJ, n.º 322º- 315, 359º-522, 385º- 541, Acórd.Doutrin.364-545, Col.Jur./STJ,1993, 1º-140 e Ac.Dout.,322 -1267 respectivamente).
[2]- No Ac. da ReI. de Lisboa de 13.11-01, onde se diz que: “ Apesar da  maior amplitude conferida pela reforma do processo civil a um segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, a verdade é que não se trata de um segundo julgamento, devendo o tribunal reapreciar apenas os aspectos sob controvérsia. Por outro lado, mau grado a gravação magnética dos depoimentos oralmente prestados  perante o tribunal a quo, as circunstâncias que a este Tribunal se colocam não são inteiramente coincidentes.... É  necessário que se demonstre através dos concretos meios de prova que foram produzidas, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório , conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por outros meios de prova de igual ou superior valor ou credibilidade” (in, CJ., XXVl, tomo 5,  85).


[3] - 2000-– Almedina – Coimbra. António Menezes Cordeiro – O levantamento da Personalidade Colectiva – No Direito Civil e Comercial – pgs.102
[4] - 1989- AAFDL – Lisboa. Pedro Cordeiro- A desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais – pgs. 129 e segs. 
[5] - Pedro Cordeiro, (Ob.cit. pgs 133 e segs.).
[6] - Pedro Cordeiro, Ob. Cit. pags. 162 e segs..
[7] - Ob. Cit. 175 e segs.