Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3738/2004-3
Relator: CARLOS DE SOUSA
Descritores: ACÓRDÃO
NULIDADE
PROVAS
EXAME
MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO
VÍCIOS
HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
MEIO INSIDIOSO
FRIEZA DE ÂNIMO
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
TENTATIVA IMPOSSÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – No presente processo comum (T. Col.) do Círculo Judicial das Caldas da Rainha do 2º Juízo do T.J. de Peniche), por acórdão de 21 de Janeiro de 2004, foi decidido julgar parcialmente procedente a pronúncia e, em consequência:
a) Condenar o arguido (HC) (id. nos autos), pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artºs 3º do D.L. nº 207-A/75, de 17/4, 38º do D.L. nº 37.313, de 21/2 e 275º, nºs 1 e 3 do Código Penal, na pena de sessenta (60) dias de multa, à taxa diária de 3 € (a que corresponde a pena subsidiária de 40 dias de prisão);
b) Condenar o arguido (ES) :
· Pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. f), do Código Penal, na pena (parcelar) de nove (9) anos de prisão, absolvendo-o de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, de que se achava pronunciado;
· Pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artºs 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. f), do Código Penal, na pena (parcelar) de dezanove (19) anos de prisão;
· Efectuando o cúmulo jurídico, nos termos do artº 77º do C.Penal, foi este arguido condenado na pena única de vinte e quatro (24) anos de prisão (à qual se irá descontar o tempo de prisão preventiva já sofrido).
c) Julgando parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o arguido/demandado (ES), pelos demandantes (DF) e (N) (filhos das vítimas (NC) e (SM)), condenou-o a pagar-lhes a quantia global de € 230.000 (duzentos e trinta mil euros), acrescida dos juros de mora, à taxa anual de 3%, desde a data dessa decisão (até integral pagamento), absolvendo-o do demais peticionado;
d) E julgando improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido contra o arguido/demandado(HC), dele o absolveu.

(...)

II – A) Deste acórdão interpõem recurso para a Relação, quer os assistentes quer o arguido (ES).
(...)

III – Tudo visto. Efectuada a audiência, há que ponderar e decidir.
A) Âmbito dos recursos:
Como é jurisprudência pacífica dos nossos tribunais superiores (por todos, cf. Acs. STJ de 16/11/95 e de 31/01/96, in BMJ 451/279 e 453/338, respectivamente) e resulta do princípio da cindibilidade do recurso em processo penal, consagrado no artº 403º e subjacente ao artº 412º, ambos do CPP, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes.
Assim, as questões a decidir são as seguintes (começando pelas que são prévias):
1ª - Deve ser rejeitado o recurso dos assistentes – cfr. artº 420º, nº 1 do CPP ?
2ª - O recorrente (ES) (não) impugna a matéria de facto, nos termos dos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP ? Nessa parte, é manifestamente improcedente o recurso ?
3ª - Terá sido cometida nulidade do acórdão, por (alegado) incumprimento do nº 2 do artº 374º do CPP, por (alegada) falta do exame crítico da prova – cfr. artºs 97º, nº 4, 379º, nº 1, al. a), e 410º, nº 3, todos do CPP (cfr. 6ª conclusão do recorrente (ES) ) ?
4ª - Constata-se do texto da decisão recorrida (por si só ou conjugado com as regras de experiência comum) algum dos vícios elencados no nº 2 do artº 410º do CPP, mormente o da al. a) (mesma 6ª conclusão) ? No caso positivo, haverá que, no caso, proceder a renovação da prova (cfr. artº 430º, nº 1 do CPP) ?
5ª - « Ao valorar diferentemente o depoimento das testemunhas em face ao do arguido, o tribunal a quo fez uma interpretação errada dos artºs 124º, 127º e 140º, nº 2 do CPP, em violação do artº 32º, nºs 1 e 8 da CRP » ?
6ª - Os factos apurados relativos ao recorrente (ES) integram a autoria dos crimes de homicídio agravado (um na forma tentada e outro consumado), como foi condenado no acórdão recorrido ? Ou antes, deve ser absolvido?
7ª - Deve manter-se a medida concreta das penas aplicadas ao recorrente (ES) ?
*
B) Da rejeição do recurso dos assistentes – cfr. artº 420º, nº 1 do CPP.
Na verdade, pretendem os assistentes no seu recurso obter, aqui e agora, a condenação do arguido (HC) por alegada comparticipação (com o arguido (ES)) nos crimes de homicídio agravado e/ou pela prática de um crime de profanação de cadáver .
Contudo, não têm razão.
Desde logo, porque o objecto do processo se fixou com a acusação (no caso, acusação pública, do MºPº, cfr. fls. 913 a 921) e subsequente decisão instrutória (cfr. fls. 1035 e segs.), sendo certo que se constata que este arguido, (HC), apenas foi acusado e pronunciado pela prática do já acima aludido crime de detenção de arma proibida, por que veio a ser condenado (na multa acima consignada).
Por outro lado, os assistentes requereram a abertura de instrução neste processo, já com esta finalidade; isto é, de o arguido (HC) vir a ser pronunciado (ser sujeito a julgamento) pela co-autoria dos mencionados crimes de homicídio agravado , e também pela prática do crime de profanação de cadáver.
No entanto, o resultado da instrução foi, exactamente o oposto a tal pretensão, como se pode ver dos autos, pois foi prolatada decisão judicial de não pronúncia deste arguido por esses mesmos crimes .
Daí que, nessa parte, a decisão judicial de não pronúncia do arguido (HC) transitou em julgado, ou seja, no sentido de que, nessa exacta medida, se consideram arquivados os autos e embora o processo possa vir a ser reaberto, esta reabertura deverá (rectius, terá) de obedecer a trâmites processuais próprios e só quando e se surgirem, entretanto, novos elementos de prova para tal – cfr. artºs 277º, 279º, 449º, nº 2 e 450º, nº 1-b), todos do CPP. Neste sentido, cfr. Prof. Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, III Vol., págs. 209 a 215 (Editorial Verbo, 1994).
Assim sendo, como é, não se trata tanto da ilegitimidade ou da falta de interesse em agir dos assistentes/recorrentes (como pretende a Digna Procuradora da República, na resposta ao recurso), mas antes e sobretudo de constatar que este recurso é manifestamente improcedente, por ser manifestamente inviável – cfr. artº 420º, nº 1 do CPP. Neste sentido, cfr. Maia Gonçalves, no seu CPP Anotado (13ª ed., pág. 837, nota 2).
Concluindo:
Rejeita-se o recurso dos assistentes por ser manifestamente improcedente – cfr. artº 420º, nº 1 do CPP.
Em consequência, devem ser condenados por tal lide temerária, na importância a que se reporta o nº 4 deste artº 420º (já que ela não se confunde com a condenação em custas pelo decaimento; cfr. Maia Gonçalves, ibidem, e Ac. STJ de 24/01/89, BMJ 393, 294).
*
C) Quanto ao recurso do arguido (ES).
1. Quanto à impugnação da matéria de facto.
Como se pode ver, no presente processo comum, a audiência de discussão e julgamento, na 1ª instância, decorreu perante tribunal colectivo e a prova ali produzida foi devidamente documentada (mediante gravação magnetofónica), como consta das respectivas actas.
Acresce que, ainda na 1ª instância, por iniciativa do próprio tribunal, procedeu-se à transcrição, na altura própria .
Aliás, nesta matéria, há jurisprudência fixada pelo Ac. Pl. das Sec. Crim. do STJ, de 16/01/2003, no sentido de :
« Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal. »
Significa isto que, ao invés do alegado, é pressuposto dessa transcrição que o recorrente manifeste a sua vontade de impugnar a matéria de facto e que o faça nos termos que a própria lei regulamenta – cfr. nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP.
Interpretação esta que está de acordo com os princípios e normas constitucionais, mormente das garantias de defesa asseguradas pelo nosso processo criminal, sendo que o direito ao recurso não é irrestrito – como, aliás, o recorrente refere ter sido já reconhecido pelo próprio Tribunal Constitucional (citado Ac. nº 573/98, in D.R., II Série, de 13/11/98).
Acontece, antes, que o recorrente (ES) não cumpriu, porque não quis, o ónus de especificação constante daqueles nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP (Motivação do recurso e conclusões), onde claramente se dispõe que :
« 3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.»
Em suma, o recorrente teve a efectiva possibilidade de cumprir aquele ónus de impugnação específica, mas não o quis cumprir (sibi imputet).
Ora, como se disse, o direito ao recurso não é irrestrito, sendo que, para impugnar a matéria de facto o legislador exige um mínimo de cautela, facilmente exequível pelo cidadão, pelo arguido condenado, bastando, assim, que tenha tomado o mínimo de atenção durante a audiência de julgamento (podendo, aliás, consultar as actas onde constam os locais precisos em que as declarações ali produzidas estão documentadas, aí se discriminando as cassetes audio, o seu número, o lado e respectivas rotações, como acontece no caso) e daí que se conclua que teve a efectiva possibilidade de cumprir tempestivamente (no prazo do artº 411º, nº 1 do CPP) aquelas formalidades: indicar os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente, mas não o fez; indicar as provas que poderiam, no seu entender, impor decisão diversa, mas não o fez; indicar as provas que devem, no seu entender, ser renovadas, mas também não o fez. Tal como não fez referência aos respectivos suportes técnicos onde esta (prova) se encontra.
Ao invés, o que o recorrente pretende é pôr em causa toda a prova e, indiscriminadamente, toda a matéria de facto, para concluir que, sem essa possibilidade, ou seja, sem a possibilidade de um novo julgamento nesta Relação, não se asseguram todas as garantias de defesa e não se cumpre, assim, o exigível duplo grau de jurisdição.
Contudo, repete-se, como vem sendo jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional, o direito ao recurso não é irrestrito, sendo que uma interpretação como a acima exposta não é contrária aos princípios e normas constitucionais citadas, mormente no seu artº 32º, nº 1, podendo, assim, não se conhecer do recurso ou, nesta parte, rejeitá-lo, sem beliscar as garantias de defesa aludidas – cfr. Ac. T.C.nº 140/04 (in D.R., II Série, de 17/04/04).
Aliás, a doutrina – citada pelo Prof. Germano Marques da Silva, na revista Fórum & Iustitiae, Direito & Sociedade (Ano 1, nº 0, Maio de 1999, pág. 22) – tal como a jurisprudência dos nossos tribunais superiores (cfr., entre muitos, o Ac. STJ de 30/06/99, BMJ 488º, 272), são inequívocas no sentido que: «... o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância ...»; acrescentando aquele Autor que «... não se podendo recorrer sobre a matéria de facto sem mais, limitando-se o recorrente a pôr em causa a convicção dos julgadores sem ter em conta que o princípio básico do nosso processo penal assenta na livre convicção do julgador consagrado no artº 127º do C.P.P.» (idem, ibidem).
Em suma, como refere a doutrina italiana, os recursos são meros remédios jurídicos – Cunha Rodrigues, in Lugares do Direito, Coimbra Editora, 1999, p. 498, citando Manzini, G. Leone e U. Dinacci – sem deixar de se enfatizar que, no caso, se está perante decisão de um tribunal colectivo.
De outro modo, reafirmamos, como fazia Luís Osório (há mais de 70 anos) que «... se querem que a prova seja toda documentada, então termine-se com o tribunal colectivo...»
Assim, não tendo o recorrente manifestado a sua vontade de impugnar a matéria de facto, como o permitia a lei e em conformidade com os nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP, não pode conhecer-se do recurso, pelo que deve ser rejeitado, nesta parte, por ser manifesta a sua improcedência – maioritariamente vem assim decidindo a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, mormente (já citada pela Ex.ma Procuradora, na resposta) nos Acs. da Relação do Porto, de 02/05/2001 (Procº 0140073), de 20/02/2002 (Proc. nºs 0111458 e 0141417) e os Acs. da Relação de Lisboa, de 09/05/2001 (Procº 0025343), de 21/11/2001 (Procº 00113483), de 20/12/2001 (Procº 0093419) e de 13/11/2003 (Procº 7523/03-9ª), in www.dgsi.pt.
Concluindo:
É manifestamente improcedente o recurso do arguido (ES), nesta parte.
*
2. Acontece, porém, que esta Relação pode, mesmo oficiosamente, verificar da existência dos vícios artº 410º, nº 2 do CPP - cfr. Ac. Pl. Sec. Crim. do STJ, de 19/10/95 (D.R., I-A Série, de 28/12/95).
Para além disso, para ponderar e melhor decidir as demais questões acima suscitadas, convém transcrever o texto da decisão recorrida, na parte pertinente (relativa a este recorrente (ES)).
*
3. Aí se consignou a seguinte:
«... FUNDAMENTAÇÃO
Da prova produzida e discussão da causa resultam os seguintes :
A) Factos provados [da pronúncia e relativos às condições pessoais dos arguidos] :
1. O arguido (ES) , dedicando-se à actividade de pastorícia, pretendeu adquirir uma arma de fogo fora do circuito legal.
2. Sabendo que (NC), indivíduo de etnia cigana, se dedicava à venda de armas, contactou-o, para aquele fim, em data não concretamente apurada, mas anterior a Novembro de 2001.
3. Tendo o (NC) se prontificado a arranjar a arma pretendida pelo arguido (ES), encontraram-se ambos em Novembro ou Dezembro de 2001 para concretizarem o negócio.
4. Quando experimentavam a arma, verificaram que a mesma não funcionava.
5. O (NC), invocando a necessidade de dinheiro por causa de uma sua filha que se encontrava doente, conseguiu que o arguido (ES) lhe entregasse a quantia de 40.000$00 destinada ao pagamento da arma,
6. Tendo ficado com a mesma em seu poder, a fim de ser arranjada.
7. Desde então, o arguido (ES) passou a insistir com o (NC) pela entrega da arma, sem que a mesma lhe fosse entregue.
8. Entre ambos houve contactos telefónicos nos dias 15, 16, 17, 18 e 19 de Abril de 2002.
9. No dia 20 de Abril de 2002, pelas 13 horas e 18 minutos o arguido (ES), telefonou do seu telemóvel com o número 964091910 para o telemóvel do (NC) com o número 968345057, combinando um encontro junto à lixeira no sítio das Salgadas, Carnide, área de concelho de Peniche.
10. O (NC) e a sua companheira, (SM) deslocaram-se para o local combinado, na carrinha OPEL COMBO com a matrícula SE-09-81,
11. levando um lote de cerca de cinco armas.
12. No local, o (NC) após ter subido o caminho de acesso em terra batida, veio a inverter a marcha num espaço superior para regressar, pelo mesmo, estacionando sensivelmente a meio da subida.
13. O arguido (ES) , juntamente com o arguido (HC) e o rebanho, já se encontrava nas imediações.
14. Com o arguido (ES) à frente, empreenderam a ascensão do caminho até ao local onde a carrinha estava estacionada.
15. A (SM) estava sentada no banco do pendura e o (NC) encontrava-se, de pé, junto à carrinha.
16. O (NC) e o (ES) , após troca de algumas palavras, dirigiram-se para a parte de cima do terreno, descendo depois para uma zona junto às canas ali existentes, a fim de experimentarem as armas.
17. O (NC) entregou uma pistola, tipo semi-automática, calibre 7,65 mm, municiada, ao arguido (ES) para este a experimentar.
18. Já com a arma na mão, e estando a uma distância não superior a 2 metros do (NC), o arguido (ES) disparou a mesma,
19. Atingindo o (NC) na zona do coração.
20. O projéctil perfurou vários órgãos vitais do (NC), designadamente o coração, onde provocou a perfuração das cavidades ventriculares, alojando-se cerca de 2 centímetros abaixo da omoplata.
21. Tais lesões foram causa directa e necessária da morte de (NC),
22. Que ocorreu imediatamente.
23. O arguido (ES), que conhecia as características letais da arma que empunhava, não actuou com os cuidados necessários ao seu manuseamento, de molde a evitar que esta, disparando, atingisse o (NC).
24. Com o (NC) prostrado no chão, o arguido (ES), crendo que aquele ainda se encontrava com vida, pousou a pistola e pegou na “junqueira” - cajado com cerca de l metro e 60 centímetros de altura, com nós de palmo a palmo, tendo enfiado, na parte de baixo, um tubo de ferro, e
25. Com esta parte da junqueira, de forma repetida, desferiu vários golpes na cabeça do (NC), deixando-o desfigurado.
26. Pretendia, com tal actuação, causar-lhe a morte.
27. Após, o arguido (ES) chamou o (HC) para o ajudar a remover o corpo.
28. Com o (ES) a pegar no corpo do (NC) por baixo dos braços e o (HC) por ambas as pernas, colocaram-no debaixo das canas ali existentes.
29. Segurando a “junqueira” na mão esquerda e levando a pistola na não direita, o arguido (ES) abandonou o local a correr em direcção carrinha OPEL COMBO, seguindo o trajecto inicial, agora, em sentido inverso.
30. Aproximou-se pelas traseiras da carrinha, deixando a “junqueira” no chão.
31. E abordou a (SM), que se encontrava à espera dentro da carrinha.
32. Quando o fez, pousou a mão esquerda no painel lateral direito da carrinha, junto ao aro do vidro da porta do “ pendura”.
33. E, de forma repentina, pela janela aberta, disparou três tiros sobre a (SM), que se encontrava sentada no banco do pendura.
34. O disparo n° l atingiu-a no braço direito, no terço inferior, orifício de entrada com orla de contusão e 10 cm acima, orifício de saída, tendo o trajecto percorrido tecido celular subcutâneo com perfuração do pavilhão auricular direito.
35. O disparo n° 2, com orifício de entrada com orla de contusão, 2 cm atrás do lobo inferior do pavilhão auricular direito, provocou fractura e esmagamento do maciço temporo-maxilar direito, ficando alojado neste local.
36. O disparo n° 3, com orifício de entrada com orla de contusão na 6ª costela direita, causou fractura desta na face anterior do tórax, perfuração do ventrículo direito, perfuração do pulmão esquerdo, fractura do 3º arco costal anterior esquerdo, com alojamento do projéctil-bala no tecido celular subcutâneo.
37. As lesões atrás descritas, designadamente as resultantes da perfuração das cavidades ventriculares, foram a causa directa e necessária da morte (SM).
38. Depois de efectuados estes disparos, o arguido (ES) rodeou a viatura e puxou a (SM) para o exterior,
39. Após o que, estando a Sandra com a cabeça e o corpo estendido no chão e as pernas no interior da viatura, o arguido (ES) desferiu-lhe, repetidamente, com a “junqueira” várias pancadas na cabeça, deixando-a desfigurada.
40. O (ES) , com o rebanho e na companhia do (HC), abandonaram o local, dirigindo-se para um eucaliptal na zona da Carqueija, onde deram sesta ao gado.
41. No final do dia e quando se dirigiram para o curral em Pena Seca, o arguido (ES) escondeu todas as armas num canavial.
42. Alguns dias depois, o mesmo arguido foi aí buscar as armas, tendo-as guardado dentro duma arca de madeira.
43. Mais tarde, o arguido (ES) foi buscá-las e deslocou-se à praia do Areal, na Areia Branca, onde as lançou ao mar.
44. O arguido (ES) ao disparar sobre as vítimas atingiu zonas vitais do corpo humano.
45. O arguido (ES) conhecia a capacidade letal da arma de fogo por si utilizada, bem como dos efeitos letais resultantes das pancadas desferidas com a “junqueira”.
46. Ao disparar sobre a (SM) e ao desferir as pancadas sobre esta e sobre o (NC), atingindo-os em órgãos vitais, representou as mortes destes como resultado da sua conduta.
47. Resultado que quis alcançar, em ambos os casos,
48. E concretizou, em relação à Sandra,
49. Só não tendo ocorrido em relação ao (NC), quando lhe desferiu as pancadas com a “junqueira”, porque o mesmo já se encontrava morto,
50. Facto que o mesmo desconhecia.
51. Ao praticar os factos descritos em 46), o arguido (ES) agiu livre e conscientemente,
52. Conhecendo a natureza proibida da sua conduta.
53. Em casa do arguido (HC) foi apreendido um revólver transformado de calibre .22 Long Rifle, de origem italiana, com marca e modelo não referenciáveis, apresentando a inscrição C. 1863 no lado direito do seu corpo, bem como 4 munições de calibre 6,35.
54. Este arguido não dispõe de licença de uso e porte de arma de defesa ou de caça.
55. Sabia que, nas condições descritas, a Lei não lhe permitia guardar ou deter o referido revólver.
56. Agiu livre e conscientemente, conhecendo a natureza proibida da sua conduta.
57. O arguido (HC) frequentava o 3º ano de escolaridade, com aproveitamento, quando, com oito anos de idade, sofreu um acidente de viação, que lhe provocou traumatismos craneano e maxilo-facial.
58. Veio posteriormente a registar um retrocesso nas suas aquisições, com acentuadas dificuldades de aprendizagem.
59. Abandonou a escola aos 13 anos de idade, sem concluir o 1º ciclo do ensino básico.
60. Tem contado com a colaboração da mãe, que o tem apoiado afectivamente e se tem mantido atenta e preocupada com o seu estado de saúde.
61. O seu progenitor mantém uma postura de maior distanciamento afectivo, tendo, há cerca de quatro anos, ocorrido ruptura na relação do casal.
62. O arguido (HC) viveu com a mãe, o padrasto (irmão do arguido (ES)), e irmãos, entre os quais a(T), ex-namorada do mesmo co-arguido.
63. Actualmente, vive maritalmente com a sua companheira, de 15 anos de idade, coabitando com uma irmã do arguido e o companheiro desta, de 15 e 19 anos de idade, respectivamente.
64. Trabalha, há cerca de dois anos na construção civil, como ladrilhador, com assiduidade irregular, revelando dificuldades no desempenho de algumas tarefas e no relacionamento interpessoal, associados às suas limitações intelectuais, e à sua fragilidade emocional e irritabilidade.
65. Conta com o apoio da mãe para superar as limitações económicas com que se confronta, sendo ela que vem assegurando as suas despesas de saúde e outros contributos de natureza eventual.
66. O arguido (HC) apresenta uma “personalidade imatura, dependente e deficientemente organizada, com tendência ao demissionismo e fraca capacidade de empatizar com o outro, não apresenta défices cognitivos que suportem o Diagnóstico de Deficiência Mental SOE (CID10=F79.9), congénita ou adquirida”.
67. O mesmo não apresenta “defeito cognitivo, mas tão somente a indiferenciação escolar e sociocultural e a ausência de treino de abstracção do pensamento e da conceptualização, decorrente da demissão do esforço de voltar adquirir a capacidade de leitura e escrita, bem como baixo nível de motivação, perante as dificuldades que o limitam e às quais se limita, desde a altura do acidente, remetendo-nos para a interferência de factores emocionais ao nível dos processos cognitivos, dado que apesar da operacionalidade ao nível do pensamento concreto ser conseguida, não acede ao nível da imaginação, simbolização e consequente diferenciação cognitiva”.
68. O arguido (ES) é o mais novo de três irmãos, oriundo de uma família de agricultores e criadores/pastores de gado, de condição económica estável e desafogada.
69. “Embora detentor de capacidades para um processo de escolarização com sucesso, a desvalorização do mesmo em detrimento da actividade laboral, conduziu-o ao abandono dos estudos com cerca de 12 anos de idade, passando a desempenhar funções nos sectores da agricultura e pastorícia, coadjuvando sua família, situação que se manteve até ser detido”.
70. “Dependente economicamente dos seus progenitores, o fruto do seu trabalho constituía-se como fonte de rendimento comum, para a economia do seu agregado familiar de origem, que por sua vez, lhe proporcionava a satisfação das suas necessidades, estando o seu processo de autonomia a decorrer de forma regulada e essencialmente orientada pelas suas figuras parentais”.
71. É conotado de forma positiva em termos pessoais e sociais.
72. “Quer ao nível familiar, que comunitário, é referenciado como detentor de hábitos de trabalho, preconizando um estilo de vida saudável, sendo-lhe atribuídas competências interpessoais proporcionadoras de convívio fácil e afável, não existindo registo de situações anómalas na sua vivência quotidiana”.
73. O mesmo “apresenta uma estrutura de personalidade frágil, caracterizada pela rigidez de crenças, e valores, pela repressão dos afectos, pela necessidade constante de aprovação social e pessoal, pela dificuldade em assumir, de forma independente, desejos internos que contradizem o que possam esperar dele”.
74. A nenhum dos arguidos é conhecida prática de qualquer outra infracção.
B) Além dos factos da acusação, provaram-se os seguintes factos do pedido de indemnização civil:
1. Sandra Maria Marques Monteiro, nascida a 30/4/75, e (NC) Joaquim Cesteiro, nascido a 25/4/75, ambos solteiros, viviam maritalmente um com outro aquando do seu falecimento.
2. Eram pais de (DF) e de (NC), então com 3 e 7 anos de idade, respectivamente.
3. Estes eram amados pelos pais, que eram pessoas saudáveis.
4. Desde a morte dos pais, a Débora e o (NC) Joaquim estão a cargo de seu avô, o assistente Joaquim Cesteiro.
5. Os falecidos (SM) e (NC) trabalhavam como feirantes em feiras e mercados, obtendo nessa actividade rendimento não concretamente apurado.
6. Era com esses proventos que sustentavam os filhos menores e proviam ao seu próprio sustento.
7. Existia uma relação afectiva entre os falecidos Sandra, (NC), os filhos destes e o demandante Joaquim Cesteiro, vivendo todos segundos os ritos e tradições da etnia cigana.
8. A morte da (SM) e do (NC) chocou os demandantes, causando-lhes dor e desgosto.
9. Foram emitidas as facturas nºs 173 e 174, datadas de 23/7/2002, em nome do demandante Joaquim Cesteiro, relativas a prestação de serviços funerários, no valor, cada uma delas, de 1.100 €.
*
E) Quanto à nulidade do acórdão.
Considera o recorrente que existe uma tal nulidade por alegada violação do nº 2 do artº 374º do CPP, mormente por alegada falta do exame crítico das provas – cfr. artº 379º, nº 1, al. a) do CPP; cfr. ainda artº 97º, nº 4 do CPP e 205º, nº 1 da CRP.
Na verdade, dispõe o artº 374º, nº 2 do CPP (Requisitos da sentença) que:
«(...) 2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta de enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»
Sendo que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no artº 374º, nºs 2 e 3, al. b) – citado artº 379º, nº 1, al. a) do CPP.
Ora, no presente caso, como se pode constatar da transcrição acabada de fazer, da fundamentação e da motivação da matéria de facto, o Tribunal Colectivo a quo não se limitou a enumerar os factos provados e não provados pertinentes, dentro do objecto do processo, como efectuou uma exposição dos motivos que, como se viu, ainda que concisa foi «tanto quanto possível completa».
Ou seja, para além disso, para além de indicar os meios de prova, como se pode ver, ponderou e sopesou não só as declarações dos próprios arguidos, como também os depoimentos das testemunhas, que resume na parte que considera relevante, e indicando ainda a prova documental e pericial pertinente, percebendo-se, assim, o raciocínio lógico subjacente à decisão, mormente atentas as razões de ciência que levaram o Colectivo a aceitar uma tal versão fáctica.
Como se disse, e de acordo com a jurisprudência do T.C. (entre muitos, o Ac. T.C. nº 680/98, no D.R. II, de 05/03/98), não basta a mera enumeração dos meios de prova, tendo-se explicitado o processo de formação dessa convicção, sopesando o valor desses meios perante o caso concreto.
Aliás, como é jurisprudência pacífica, «...esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar-se o porquê da decisão e o processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, bastando a fundamentação e motivação necessárias à decisão. » (cfr. Ac. do S.T.J. de 7/2/01, proc. nº 3998/00-3ª, SASTJ, nº 48, 50 – citado por Maia Gonçalves, idem, pág. 739).
Assim, a fundamentação tem uma dupla função, parafraseando Michele Taruffo (cfr. Revista do Ministério Público, nº 78, “Motivação da matéria de facto da sentença penal/Anotação”, págs. 147-157): endoprocessual, já que se “...constitui um instrumento de racionalização técnica da actividade decisória do tribunal, com um triplo objectivo: fornecer ao juiz um meio de auto-controlo crítico; «convencer» as partes; e garantir ao tribunal superior, em caso de recurso, um melhor juízo sobre a decisão da primeira instância”; e, extraprocessual, pois se assume como um “...instrumento para o controlo extraprocessual e geral sobre a justiça, controlo exercido pelo povo, já que é em seu nome que a justiça é administrada”, “...indispensável para o controlo democrático da administração da justiça”.
Ao invés do que vem alegado, não estamos, pois, perante uma qualquer avaliação “caprichosa” ou “arbitrária” da prova, mas devidamente sustentada nos elementos que indica e examina criticamente.
Percebe-se, assim, por exemplo, por que motivos o Colectivo não aceitou a versão fáctica do arguido (ES), afastando-a por inconsistente, face aos demais elementos de prova, não só com base no depoimento do co-arguido (HC), este sim consistente com o auto de reconhecimento de locais e reconstituição dos factos, face à prova testemunhal, mormente da testemunha (A), do inspector - chefe (Y), do inspector B), dos esclarecimentos da perita, Drª Fátima Machado (do LPC), da testemunha (M) (na parte dos factos a que “assistiu”) e que é coerente com a versão do co-arguido (HC), etc. [Ainda que não seja formalmente muito correcto, tudo isto está melhor fundamentado e esclarecido adiante, quando o acórdão se refere à apreciação de “DIREITO” – o que, quando muito, poderia constituir uma mera irregularidade, por não constar do lugar próprio.]
Concluindo:
Face à fundamentação e motivação acima transcritas, mostram-se cumpridas as exigências constantes do citado nº 2 do artº 374º do CPP, mormente no que respeita ao exigível exame crítico da prova, pelo que improcede a arguida nulidade do acórdão.
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F) Dos vícios dos artº 410º, nº 2 do CPP.
O recorrente (ES) limita-se a dizer que são patentes os vícios das als. a) - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – e c)erro notório na apreciação da prova.
No entanto, reafirmamos, que tais vícios têm de resultar do texto do acórdão, por si só ou conjugados com as regras de experiência comum – cfr. corpo daquele nº 2.
Ora, quanto ao primeiro – o da al. a) – como é sabido, o seu fundamento é a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, o que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida – cfr. Ac. STJ, de 13/2/91 (in AJ, nºs 15/16, 7).
É nesta confusão que, salvo o devido respeito, o recorrente incorre, pretendendo (e mesmo aí, sem sucesso) concluir que a prova é insuficiente.
Por outro lado, não se constata qualquer contradição insanável, mormente entre a fundamentação ou entre esta e a decisão – cfr. al. b) desse nº 2.
Finalmente, no que respeita ao alegado erro notório na apreciação da prova – da citada al. c).
Na verdade, para que este se verifique é necessário que se esteja perante um erro de tal forma patente que não escapa à observação do homem comum (de formação média) - neste sentido vem sendo pacífica a jurisprudência, cfr., por todos, o Ac. STJ de 17/12/97 (BMJ 472/407).
Aliás, mesmo para quem admite a configuração de tal vício quando à violação do princípio in dubio pro reo, faz-se notar que, para tanto, a sua existência «... só pode ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o Colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.» - cfr. Ac. STJ de 24 de Março de 1999 (Col. Jur., Acs. STJ, ano VII, tomo I - 1999, p. 247).
Ora, como já vimos acima, o Tribunal Colectivo sustenta a sua convicção, não se verificando qualquer violação das regras de experiência comum – o que, aliás, está de acordo com o princípio consagrado no artº 127º do CPP.
Em suma, do que se trata é que o ora recorrente discorda da versão dos factos, dada como apurada, mas não logra convencer-nos de que aquele Tribunal Colectivo foi colocado perante dúvida séria e razoável e, ainda assim, que decidiu contra o recorrente.
Antes pelo contrário, repetimos, aquela fundamentação e motivação parecem-nos perfeitamente coerentes e solidamente sustentadas.
Concluindo:
Não se verifica nenhum dos vícios do nº 2 do artº 410º do CPP;
Em consequência (também) não há lugar a qualquer renovação da prova - cfr. artº 430º do CPP.
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G) Da alegada violação dos artºs 124º, 127º e 140º, nº 2 do CPP (7ª conclusão do recorrente (ES)).
Pretende o recorrente que o Tribunal Colectivo (a quo) não pode basear a sua convicção no depoimento do arguido (HC) [ Note-se que o crime que lhe foi imputado na acusação e pronúncia, e que foi dado como provado, diz respeito a crime de detenção de arma, perfeitamente autónomo, relativamente aos crimes (de homicídio agravado) imputados ao arguido (ES)], nem nos depoimentos de sua (dele, (HC)) mãe, a testemunha (A), e da sua (dele, (HC)) irmã,(T) .
No entanto, também aqui não tem qualquer razão, já que aqueles depoimentos foram livremente apreciados pelo tribunal, de acordo com o citado princípio do artº 127º do CPP, aliás, dentro do objecto da prova – cfr. artº 124º, nº 1 do CPP.
Tal prova é admissível – cfr. artº 125º do CPP – tanto mais que não se trata de nenhum dos métodos proibidos de prova elencados no artº 126º do CPP, sendo que não é patente qualquer violação dos limites de tais depoimentos, a que se reporta o artº 128º do CPP; nem se verifica, também, qualquer violação ao disposto no artº 129º, desse mesmo código.
Finalmente, não se alegam nem se mostram violadas as regras de inquirição constantes do artº 138º do CPP.
Improcede, assim, esta 7ª conclusão do recorrente (ES).
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H) Da qualificação jurídico-penal dos factos.
Em complemento do que acabámos de dizer, verifica-se que no douto acórdão recorrido se expendem as seguintes considerações e ponderações, com as quais se concorda plenamente:
« Na hierarquia dos valores sociais e individuais, a vida e o correspondente direito à mesma, assume-se como valor dominante, merecedor de tutela constitucional.
Ao Direito Penal está cometida a tarefa da defesa dos valores assumidos pela comunidade, através da aplicação de penas aos que os ousem afrontar.
Refere, a propósito, Jescheck (“Tratado de Derecho Penale”, 1981, I vol., págs. 9-10): “Ao Direito Penal é cometida a missão de proteger bens jurídicos. A toda a norma jurídico-penal subjazem juízos de valor positivos sobre bens vitais para a convivência humana em sociedade que são, por isso, merecedores de protecção através do poder coactivo do estado representado pela pena”.
Na mesma linha de pensamento, escreveu Figueiredo Dias: “se num Estado de Direito material toda a actividade material se submete à Constituição, então também a ordem dos bens jurídicos há-de constituir uma ordenação axiológica como aquela que preside à Constituição. Entre as duas ordens se verificará, pois, uma relação que não é por certo de identidade, ou sequer de recíproca cobertura, mas de analogia substancial, fundada numa essencial correspondência de sentido; a permitir afirmar que a ordem de valores jurídico-constitucional constitui o quadro de referência e, simultaneamente, o critério regulativo do âmbito de uma aceitável e necessária actividade punitiva do Estado”.
É neste preciso contexto que deve situar-se e entender-se a norma incriminadora do artigo 131º do Código Penal.
Com efeito, no elenco dos valores sociais dominantes a que o Direito penal deve tutela, a vida surge indiscutivelmente no topo dos direitos fundamentais. De resto, não é indiferente a essa valoração a sistemática acolhida pelo Código Penal Português, que, na sua parte especial, introduz a descrição dos crimes nele tipificados pelos crimes contra as pessoas, elegendo os crimes contra a vida para início desse percurso normativo-penal.
Estabelece, pois, o artigo 131º do Código Penal que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.
Trata-se do mais paradigmático crime de resultado, bem patenteado pelo recurso à expressão legal “matar outra pessoa”, que simultaneamente consubstancia o tipo objectivo do crime de homicídio.
No caso vertente, e no que concerne ao arguido (ES), é-lhe imputada a autoria material de dois crimes de homicídio qualificado, sendo-lhe atribuída a materialidade dos actos que vieram a desencadear a morte do (NC) e da companheira deste, (SM).
Este arguido refuta a prática desses factos, atribuindo a prática dos mesmos ao co-arguido (HC), pronunciado pela prática de um crime de detenção de arma proibida.
O arguido (HC), por seu turno, narrando a forma como ocorreu a morte das mencionadas vítimas, identifica o arguido (ES), próximo do qual se encontrava quando os factos eclodiram, como o autor exclusivo dos actos que provocaram naquelas as lesões de que resultaram as suas mortes.
Não tendo a agressão sido presenciada por qualquer outra pessoa, impõe-se uma primeira reflexão sobre o valor a atribuir, em termos probatórios, às declarações do arguido (HC).
Segundo o entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência Teresa Beleza, “Tão amigos que nós éramos”, Rev. do Ministério Público, 19º, 74, pág. 45 e segs; António Alberto Medina de Seiça, “O conhecimento probatório do Co-arguido”, Studia Iuridica, 42, págs. 205 e segs. e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 7/2/00, procº nº 4/00, 3/5/2000, procº nº 1314/98, 26/6/01, procº nº 1559/01, 30/10/01, procº nº 263/01, 6/12/02, procº nº 2702/02, entre outros., não existe obstáculo legal à valoração das declarações de co-arguido, apreciadas de acordo com os critérios que devem presidir à livre apreciação da prova, plasmados no artigo 127º do CPP, desde que garantido o indispensável contraditório e tendo presente que essa valoração deve ter em conta os riscos de menor credibilidade que essas declarações comportam, pelas implicações resultantes da situação de imputação da responsabilidade criminal também a esse co-arguido, circunstância que justifica e exige maior prudência e maior cuidado na procura de toda a corroboração possível para que a livre apreciação do julgador se fundamente em dados seguros.
No caso em apreço, o arguido (HC) encontra-se apenas pronunciado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, não lhe sendo imputada co-autoria ou outra forma de participação nos factos pelos quais o arguido (ES) foi submetido a julgamento.
Logo aqui se poderá entender que não se justifica uma ponderação tão exigente na valoração das suas declarações como seria de ter em consideração se àquele arguido fossem também imputados os crimes de homicídio. De facto, não lhe sendo feita a imputação dessa factualidade típica, não se justificam as reservas que seriam de atender se tal imputação existisse: nada ganha o arguido (HC), em termos da sua situação processual e jurídica, ao fazer as declarações que fez, imputando ao arguido (ES) os actos de que resultaram a morte de ambas as vítimas. Ou seja, não se pode considerar que ao prestar aquelas declarações, o arguido (HC) pretendeu “desviar” a sua própria responsabilidade na prática daqueles factos para o co-arguido (ES), pois só a este é feita essa imputação. Bastaria o seu silêncio, que a lei lhe permite, para que não pudesse ser responsabilizado pelas mortes de (SM) e (NC) Monteiro.
Sem que nada o movesse contra o arguido (ES) (eram amigos aquando da prática dos factos, existindo entre eles relações de grande proximidade pelo facto de o arguido (ES) namorar com uma irmã do arguido (HC), cuja mãe vive maritalmente com um irmão daquele), o arguido (HC) declarou ter sido aquele arguido o autor dos factos que causaram a morte do (NC) e da (SM). E ao descrever os factos, fê-lo de forma coerente e convincente, mostrando-se alguns aspectos da sua própria actuação explicados em face da estrutura da sua personalidade, que demonstra ser “imatura, dependente e deficientemente organizada…”, importando ter presente que o mesmo “…apesar da operacionalidade ao nível do pensamento concreto ser conseguida, não acede ao nível da imaginação, simbolização e consequente diferenciação cognitiva”.
Relativamente ao conteúdo dessas declarações prestadas pelo arguido (HC), foi exercido o contraditório relativamente ao arguido (ES), que apenas prestou as suas próprias declarações em momento posterior àquelas declarações e depois de conhecer o teor das mesmas.
Ainda assim, as declarações do arguido (HC) não se encontram desacompanhadas de outros meios de prova: elas encontram suporte, designadamente, no depoimento da testemunha (M), que viu os dois arguidos dirigirem-se para o “buraco”, acompanhados do cigano, regressando apenas aqueles dois, depois de ouvir disparar três tiros (confirmando, deste modo, a versão do arguido (HC) e desmentindo a do arguido (ES), que sustenta apenas se ter deslocado àquele local depois dos disparos, tendo já encontrado o (NC) no chão), e no vestígio palmar encontrado no veículo do (NC), pertencente ao arguido (ES).
Deste modo, não podem restar dúvidas que as mortes de (NC) e de (SM) são imputáveis ao arguido (ES).
O (NC) veio a falecer em consequência de um tiro disparado pelo arguido (ES), e que lhe provocou perfuração ventricular.» - nossos subinhados.
Aliás, como bem se compreende, ali se enfatiza (quanto à conduta apurada do arguido (ES)) que:
« Segundo a pronúncia, que remete para os factos da acusação, essa actuação do arguido (ES) foi dolosa: o mesmo, ainda segundo aquela peça processual, estando cara a cara com a vítima, apontou a arma em direcção ao coração do (NC) e disparou.
A actividade probatória realizada não permite que se conclua pela intencionalidade dessa actuação, ou seja, não resulta suficientemente demonstrado que o arguido (ES) visou aquela parte do corpo do (NC) para, atingindo-o numa zona particularmente vulnerável, lhe causar deliberadamente a morte.
No momento em que foi efectuado esse disparo, estavam presentes para além da vítima mortal, ambos os arguidos. Ninguém mais presenciou esse facto.
O arguido (ES) nega ter sido ele o autor do disparo.
O arguido (HC), por sua vez, estando na altura próximo da vítima e do arguido (ES), embora precisando ter sido o (ES) a disparar a arma (vê o (NC) cair, depois de ouvir um ou dois tiros, tendo o (ES) a arma na mão), não consegue descrever como ocorreu o disparo, alegando que nessa altura estava a olhar para o lado.
De concreto apenas foi possível apurar que inicialmente foi a própria vítima que experimentou algumas das armas, efectuando disparos em direcção à caneira, e que depois passou uma das armas ao arguido (ES) para que este também a experimentasse. E é esta arma que, já na mão do arguido (ES), dispara, naturalmente por acção mecânica deste (trata-se, com efeito de arma que, para efectuar o disparo, exige a concertação de certos actos, feitos de forma sequencial, que, no termo dessa cadeia, exige o puxar do gatilho, como foi explicado em audiência).
E se o circunstancialismo em que os factos ocorreram, tal como resultaram demonstrados, não permite concluir que o arguido (ES), ao efectuar o disparo fatal para a vítima tinha a intenção de lhe retirar a vida (...), já surge claramente patente que o referido arguido não agiu com a diligência necessária ao manuseamento da arma, de modo a evitar que a mesma, disparando, atingisse alguma das pessoas que se encontravam próximas, designadamente o (NC), que se achava a uma distância dele não superior a dois metros, sendo certo que lhe era exigível a adopção de especiais cuidados nesse manuseamento por se tratar de objecto perigoso, cujas potencialidades letais não desconhecia.
Dispõe o artigo 137º, nº 1 do Código Penal que “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa” .
Não visa o artigo 137º do Código Penal, contrariamente ao que sucedia com o artigo 368º do Código Penal de 1886, definir o que é a negligência ou mera culpa. De tal tarefa se encarrega o artigo 15º, na parte geral do Código Penal.
Dispõe o artigo 15º do Código Penal que:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».
Este preceito traduz os ensinamentos da doutrina contemporânea sobre o âmbito da negligência consciente e inconsciente.
A negligência inconsciente, prevista na al. b), é aquela que suscita maiores dificuldades. Nos casos subsumíveis a esta modalidade de imputação subjectiva a lei, para evitar a verificação de resultados antijurídicos, cominou a proibição de condutas idóneas a produzirem tais resultados. Esta permissão de condutas potencialmente perigosas é geralmente devida a imperativos de desenvolvimento científico, técnico ou económico, cujo uso é permitido mediante cuidados adequados a evitar desastres pessoais e danos. Quando estes cuidados são acatados o risco esbate-se; na omissão de tais cuidados radica o principal fundamento da negligência inconsciente (neste sentido Maia Gonçalves, « Código Penal Anotado», anot. ao artº 15º, pág. 234 ).
Analisando a figura da negligência, tem-se que, ao nível do tipo de ilícito, ela compreende:
1. A previsibilidade do perigo:
· na negligência consciente deve haver uma previsão efectivada do tipo de crime e a não conformação com a sua realização;
· na negligência inconsciente apenas se exige a possibilidade de prever.
2. Violação de um dever objectivo de cuidado, que deve ser particularizado em elementos concretos;
3. Produção de um resultado típico.
Por outro lado, ao nível do conteúdo da ilicitude há que exigir: - um desvalor da acção (violação dum dever objectivo de cuidado); - desvalor do resultado (previsibilidade e produção de um resultado) .
Relativamente ao tipo de culpa, na negligência, há que averiguar se houve violação de um dever subjectivo de cuidado, saber se era exigível ao agente do crime que adoptasse o comportamento que evitaria a produção do resultado típico - censurabilidade da atitude do agente.
Cumpre, desta forma, aferir da existência duma acção perigosa, por parte do agente. Pode definir-se acção perigosa enquanto situação objectivável pelas regras da experiência comum que a comunidade jurídica assume como suas, podendo traduzir-se na violação do dever de cuidado.
Por seu turno, por dever de cuidado entende-se a exigência geral que impende sobre todos os membros da ordem jurídica, no sentido de adequarem as suas condutas aos cânones comportamentais que a ordem jurídica, através de vários referentes, vai estabilizando.
Desta forma, e na sequência de tudo quanto foi dito, podemos concluir que a acção negligente está assim ancorada na relação onto-antropológica de cuidado de perigo e se retracta na ordem jurídica penal por meio de uma incontensa relação de cuidado/perigo.
A ordem jurídica ao impor o dever objectivo de cuidado está a afirmar, num plano normativo, o verdadeiro sentido onto-antropológico que liga o agir entre os homens. E seguindo-se a linha de pensamento do Dr. Faria e Costa, podemos afirmar que o jogo plural e cruzado das sucessivas interpenetrações normativas, em que se traduz a relação de cuidado do «eu» para com o «outro», encontra o sítio certo no dever objectivo de cuidado.
De acordo com o nº 2 do artigo 137º do Código Penal, a pena é elevada até cinco, se o homicídio for cometido com negligência grosseira.
Não facultando a lei a definição de “negligência grosseira”, o seu tratamento dogmático é reservado à doutrina e à jurisprudência.
Pese embora as várias definições construídas para o conceito de negligência grosseira, pode aceitar-se que este conceito implica uma especial intensificação da negligência, não só a nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito. Como sustenta Figueiredo Dias (“Comentário Conimbrincense do Código Penal”, t. I, pág. 113), “seguro é que a negligência é um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligência...”.
Já sustentava o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/5/94 (procº nº 46279), que “...a negligência no homicídio será grosseira quando a falta de cuidado em que ela se traduz corresponda a uma violação grave dos deveres gerais de cautela, segundo as regras da experiência comum e se traduza numa conduta em que a falta de observância daqueles deveres de cautela seja tão clamorosa que a sua ilicitude fique no meio caminho entre o dolo eventual e a negligência consciente”.
Por seu turno, o Acórdão do mesmo Tribunal, de 21/5/97 (procº 1287/96) defendia que “a negligência grosseira é uma negligência qualificada, em que a culpa é agravada pelo elevado teor de imprecisão ou de falta de cuidados elementares, ou por outras palavras, consiste num comportamento de clara irreflexão ou ligeireza ou na falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das cautelas aconselhadas em actos correntes da vida”; cf. ainda Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2712/99, Colectânea de Jurisprudência, ano VII, t. 3, pág. 221; cf. ainda Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7/3/2002, www.dgsi.pt.
Do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/11/98 (www.dgsi.pt) pode extrair-se: “a negligência grosseira correspondendo à antiga “culpa lata” latina e apresentando grandes afinidades com a culpa temerária espanhola (cfr. MIR PUIG, Derecho Penal, pág. 227) constitui uma culpa qualificada pela falta de previsão, ponderação, atenção, diligências e cuidados mais elementares”.
A constatação probatória, quanto à forma como se deu o disparo que vitimou o (NC), é manifestamente insuficiente para que se possa concluir que o arguido (ES), ao não adoptar as precauções necessárias à utilização da arma, o fez de tal forma irreflectida ou com tal ligeireza, que agiu com negligência grosseira.
Assim, a sua conduta, enquanto delimitada à realização do disparo que tirou a vida ao (NC), deve enquadrar-se na previsão do artigo 137º, nº1 do Código Penal, traduzindo, desta forma, a prática de um crime de homicídio por negligência, já que, não existindo elementos que comprovem com segurança ter o mesmo agido com dolo, a dúvida deve ser solucionada a seu favor, conforme decorre do princípio in dúbio pro reo.
Porém, a actuação subsequente sobre a vítima é inequivocamente dolosa. É indiscutível que, ao desferir, repetidamente, vários golpes na cabeça do (NC) com a “junqueira”, usando a parte de ferro que a mesma tinha numa das extremidades, deixando-o no estado documentado nas fotografias dos autos, agiu com nítida intenção de lhe causar a morte, sendo o meio utilizado idóneo a causar esse resultado.
Só que este resultado não sobreveio a essa actuação, pela simples circunstância de que foram as anteriores lesões provocadas pelo disparo que causaram a morte a esta vítima.
De acordo com o nº 3 do artigo 23º do Código Penal, “A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime”.
Retira-se deste preceito, como, de resto, reconhece a doutrina (entre outros, Faria Costa, ob. citada; Almeida Fonseca, “Crimes de Empreendimento e Tentativa”, Figueiredo Dias, “Formas...”, Eduardo Correia, “Direito Criminal”, II) a regra da punibilidade da tentativa impossível quando não são manifestas a inidoneidade do meio e a carência do objecto.
Escreve, a propósito de tal questão, Faria Costa (“Formas do Crime”, Jornadas de Direito Criminal, pág. 165: “ O verdadeiro cerne da punibilidade da tentativa impossível reside na avaliação da perigosidade referida no bem jurídico, sendo certo que nesta hipótese, em boas contas, o bem jurídico não existe; o que há é uma aparência de bem jurídico e neste sentido pareceria que a tentativa impossível, quando não fosse manifesta a inexistência do objecto, também não deveria ser punível, pois que falta o bem jurídico. Todavia, tem de se fazer apelo, neste ponto, a uma ideia de normalidade –segundo as aparências- que se baseia num juízo ex ante de prognose póstuma. É que, entende-se, dado o circunstancialismo em que o agente actuou, o desvalor da acção merece ser punido não obstante não existir bem jurídico. Mas, mesmo que assim se não entenda, é correcto dizer-se que o Direito Penal ao visar primacialmente a protecção de bens jurídicos precipitados no tipo legal não pode esquecer, do mesmo passo, que a norma incriminadora – na sua dimensão de terminação- também proíbe as condutas que levam à violação ou perigo de violação daqueles bens jurídicos”.
Idêntico entendimento tem sido perfilhado pela jurisprudência. Assim, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1/6/2000 (procº nº 162/2000, 5ª secção) defende: “ A inidoneidade do meio ou a carência de objecto não levantam entraves à existência ou à relevância penal da tentativa, salvo se forem manifestas (caso em que levarão à verificação da chamada tentativa impossível).
A palavra “manifesta” que o legislador usou no nº 3 do artigo 23º do Código Penal, para dimensionar a inaptidão do meio empregado pelo agente ou para concretizar a inexistência do objecto essencial à consumação do crime, inculca, com nitidez inquestionável, que as faladas inidoneidade do meio ou a carência do objecto não devem ser aferidas através do que o agente representa, mas sim através das regras da experiência comum ou da causalidade adequada, portanto, objectivamente, segundo o critério da generalidade das pessoas”; em idêntico sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de12/4/2000, procº nº 841/99, 3ª, Acórdão Relação do Porto, de 28/9/88, Colectânea de Jurisprudência 1988, 4, 213.
Ora, no caso vertente, não era manifesto que a morte do (NC) tivesse resultado das lesões causadas pelo disparo; como referem ambos os arguidos, aquele ainda “respirava” quando foi atingido na cabeça.
Ou seja, o arguido (ES), julgando ainda com vida o (NC), desferiu-lhe vários golpes na cabeça com um instrumento idóneo a causar-lhe a morte, com o claro objectivo de alcançar esse resultado.
Está-se, pois, perante a prática de uma tentativa impossível, punível, de um crime de homicídio.
Note-se que, segundo a doutrina acolhida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3/7/96 (procº nº 8/96, 3ª): “o juízo sobre a intenção de matar não é um juízo técnico, científico ou artístico, nem tão pouco um juízo de técnica médica.
A presunção de intenção de matar é apenas um juízo de probabilidade sobre aquela intenção...”.
Como, sem oscilações, vem reconhecendo a doutrina e a jurisprudência, as circunstâncias enumeradas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal não são taxativas, nem de aplicação automática, isto é, podem ocorrer sem que deva considerar-se qualificado o crime, podendo também operar a qualificação sem que nenhuma delas, em concreto, se verifique, desde que se verifique a circunstância genérica prevista no nº1 da referida norma incriminadora (cf., entre muitos outros, Figueiredo Dias, Colectânea de Jurisprudência XII, 4, 51, Margarida da Silva Pereira, “Direito Penal II- Os homicídios”, 40 e 41, Leal Henriques/Simas Santos, “Código Penal anotado”, 3ª ed., 2º vol., pág. 58 a 62; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 3/7/96, Procº nº 8/96, 3ª; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 9/2/2000, procºnº 990/99, 3ª; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 7/12/99, procº nº 1034/99, 3ª; Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, 2/6/99, procº nº 288/99, 3ª; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 28/4/99, procº nº 72/99, 3ª).
Esclarece Figueiredo Dias (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, parte especial, tomo I, pág. 26), “...a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no nº 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (...) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador”- cf. ainda Teresa Serra, “Homicídios em série”, Jornadas de Direito Criminal..., vol II, ed. CEJ, 1998, págs. 156 e 157.
Entende-se que utiliza meio particularmente perigoso quem, para matar se serve de “um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de crime comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes (….) deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado — e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes — resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente”. Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, parte especial, t.1, pág. 37
Por sua vez, por meio insidioso, como elemento padrão qualificador do crime de homicídio deve entender-se “todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno — do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto”. Ibid, pág. 38-39
Uma arma, designadamente de fogo, ou outro qualquer meio de agressão potencialmente letal, podem não ser caracterizados como meios particularmente perigosos e deverem, ainda assim, ser reputados de meios insidiosos- tudo depende da forma como são utilizados, nomeadamente, se o seu uso torna especialmente difícil a defesa da vítima.
A utilização de uma pistola, como arma letal, pode, nomeadamente ser entendida como meio insidioso se o agente a utiliza contra a vítima, de surpresa, e estando esta confinada a um espaço físico do qual não pode escapar; tal como pode a utilização ser um instrumento contundente (como, no caso dos autos, uma “junqueira” tendo uma das extremidades revestida por um tubo de metal), se, também como no caso em apreciação, é utilizada essa extremidade para desferir repetidos golpes na cabeça, estando a vítima, já ferida, prostrada no chão, incapaz de se defender.
A previsão da alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Pena revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15/3 (“agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas”) é a tradução da alínea g) do nº 2 do artigo 132º, na sua anterior redacção, tendo-se eliminado a expressão “premeditação”, mas com manutenção dos conceitos que a integravam.
Frieza de ânimo é “«qualidade do que é moralmente frio, tibieza, indiferentismo, sangue-frio, insensibilidade, indiferença», significando «uma calma ou imperturbada reflexão no assumir do agente a resolução de matar»” Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 1/3/90, BMJ 395º-218. Ou seja, “a frieza de ânimo ocorre quando a vontade se revela formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e na execução persistente na resolução” Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 21/5/97, procº nº 107/97, sendo incompatível com estados emotivos e emocionais Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 7/10/92, procº nº 42918.
Por outro lado, pode constituir circunstância qualificadora do crime de homicídio, nos termos da alínea f) do nº2 do artigo 132º do Código Penal, sendo indiciadora de especial censurabilidade ou perversidade, o facto de o agente ter em vista “preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime”, não sendo necessário que “este outro crime venha a ter lugar, ainda que mesmo só sob a forma tentada, bastando que, no plano do agente, o homicídio surja (relação meio/fim) como determinado, ainda que só de forma eventual, pela perpetração de um outro crime”. Figueiredo Dias, “Comentário…”, tomo I, pág. 34.
No caso em análise, não sendo embora a conduta do arguido susceptível de se reconduzir ao conceito de “frieza de ânimo”, a mesma, no que concerne à morte da (SM), é reveladora de uma especial censurabilidade e mesmo de perversidade, configurando-se, pelo menos, o exemplo-padrão da alíneas f) do nº2 do Código Penal: o arguido (ES), para encobrir a prática de um anterior crime (morte da vítima (NC)) dirigiu-se ao veículo onde aquela se encontrava e atingiu-a, a uma curta distância, com três tiros de pistola, surpreendendo-a desprevenida e sem possibilidade de fuga ou defesa. E não obstante o facto de, deste modo, lhe ter causado a morte, prosseguiu ainda a sua actuação, retirando-a parcialmente da viatura, desferindo contra a cabeça da vítima vários golpes com a parte metálica da “junqueira”, desfigurando-a e tornando-a completamente irreconhecível.
Também no que concerne à segunda parte da sua actuação, no que respeita à vítima (NC) (golpes desferidos na cabeça com a parte metálica da “junqueira”, com o propósito de lhe causar a morte), deve a mesma ser qualificada de especial censurabilidade e também de perversidade. Com efeito, julgando ainda vivo o (NC), que acabara de atingir com um tiro, o arguido (ES), com o propósito de encobrir o facto que acabara de cometer, tomou a resolução de lhe tirar a vida, resultado que certamente lograria alcançar (dada a zona atingida e a natureza das lesões causadas) se a morte não tivesse já sido desencadeada pelas lesões resultantes do disparo anterior. » - nossos realces.
Mais uma vez, concordamos inteiramente, mormente no que diz respeito à qualificação jurídico-penal dos factos (respeitante ao arguido (ES), que ora nos ocupa), pelo que também entendemos correctamente fundada a conclusão de que:
« Sendo o crime de homicídio qualificado tentado (tentativa impossível punível) – artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, f), 22º e 23º do Código Penal – mais gravoso que o crime de homicídio por negligência previsto no artigo 137º, nº1 do mesmo diploma legal, aquele consome este. »
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I) Quanto à medida concreta das penas:
Como vimos, foi o arguido (ES) condenado nas penas parcelares de 9 anos de prisão, pelo crime de homicídio qualificado tentado (vítima: (NC)), e em 19 anos de prisão, pelo crime consumado (vítima: (SM)).
Também ali foram devidamente aplicados os critérios legais, mormente dos artºs 40º, nºs 1 e 2, 70º e 71º e segs., todos do C.Penal.
Na verdade – quanto ao arguido (ES) – ali se ponderou o grau de ilicitude dos factos, mormente da conduta posterior ao disparo que vitimou o (NC) e que também consideramos como particularmente elevada.
É particularmente censurável a violência com que este arguido agiu sobre as vítimas, «muito para além da necessária para lhes causar a morte, desferindo repetidos golpes com a parte metálica da “junqueira” na zona da cabeça, desfazendo-lhes por completo essa zona do corpo, e tornando-os quase irreconhecíveis como seres humanos, tudo isto depois de ter atingido com três tiros a (SM), que aguardava no interior da viatura o regresso do seu companheiro e aí foi surpreendida pela actuação do arguido.»
Também entendemos ser extraordinariamente intenso o grau de culpa com que este arguido agiu.
O facto de se tratar de delinquente primário tem muito pouco relevo, não só face à sua idade, mas especialmente face à gravidade dos factos que cometeu.
Assim, atentas as finalidades das penas, mormente as exigências de prevenção, geral e especial, e sem olvidar a almejada ressocialização do agente, não deixamos de realçar que aqui o bem protegido é o bem supremo – a vida.
Note-se que a juventude (18 anos de idade) deste arguido, também não faz dar grande relevo ao seu bom comportamento anterior.
Finalmente, este arguido, como ali se diz, «...em momento algum revelou arrependimento.»
Ora, o crime de homicídio agravado, consumado, é punível com a pena de 12 a 25 anos de prisão.
Aqui foi-lhe aplicada a pena de 19 anos de prisão. Concorda-se.
No caso do crime de homicídio agravado, mas na forma tentada, p. e p. pelos citados artºs 22º, 23º, 73º e 132º, nº 2, al. f) do C.Penal, a pena aplicável é especialmente atenuada.
Daí que aquele limite máximo da pena de prisão seja reduzido de um terço (cfr. artº 73º, nº 1, al. a) do C.Penal), enquanto o limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto (se for igual ou superior a 3 anos, como é o casoalª b) deste nº 1).
Ou seja, neste caso (do crime tentado), a pena aplicável varia entre o mínimo de 5 anos de prisão e o máximo de 16 anos e 8 meses de prisão.
Aqui foi-lhe aplicada a pena de 9 anos de prisão. Também se concorda.
Finalmente, operando o cúmulo jurídico de tais penas – cfr. artº 77º do C.Penal – e reapreciando os factos e a personalidade revelada pelo arguido, sendo certo que a pena única varia, neste caso, entre o limite mínimo de 19 anos de prisão (a pena parcelar mais grave – nº 2 desse artº 77º), e o máximo que, em regra, é a soma das penas concretas aplicadas, mas que, no caso, não pode ultrapassar 25 anos de prisão.
Foi aplicada ao arguido (ES) a pena única de 24 (vinte e quatro) anos de prisão. Concorda-se plenamente.
Em suma, improcedem todas as conclusões do recorrente (ES).
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IV – DECISÃO
Nos precisos termos acima expostos, acordam em:
a) Rejeitar o recurso dos assistentes, por manifestamente improcedente.
b) Negar provimento ao recurso do arguido (ES).
c) Condenam-se os assistentes na importância de 3 (três) UCs – cfr. nº 4 do artº 420º do CPP – e ainda em 3 (três) UCs de taxa de justiça (estas abrangidas pelo apoio judiciário).
Mais vai condenado o recorrente (ES) em 6 (seis) UCs de taxa de justiça, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário (fls. 1691) – cfr. artº 87º, nº 1-b) do CCJ.

Lisboa, 23 de Junho de 2004.

(Carlos Augusto Santos de Sousa - relator)
(Mário Armando Miranda Jones)
(Mário Manuel Varges Gomes)
(João Manuel Cotrim Mendes)