Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2452/07.9TJLSB.L1-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
DENÚNCIA DE CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
BOA-FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – O art. 1098º do Código Civil, na redacção dada pelo art. 3º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, institui, a favor do arrendatário, o direito de denúncia do contrato a todo o tempo, sujeitando-o, porém, ao pagamento das rendas correspondentes, por um lado, a um período mínimo de duração do contrato, que fixa em seis meses, e, por outro, ao período de 120 dias, antecedência imposta para a comunicação da denúncia relativamente ao termo previsto.
II – Deste modo se procura atingir o desejável equilíbrio e a paridade possível entre a posição do locador e do locatário na relação jurídica de arrendamento.
III – Para haver ofensa da boa fé, é necessária a existência de um circunstancialismo que evidencie terem sido ultrapassados os limites minimamente impostos pelo espírito de confiança recíproca que deve estar subjacente tanto à formação como à conclusão e ao cumprimento dos contratos.
IV – Se o arrendatário, nas visitas que fez à loja antes da celebração do contrato de arrendamento, deu a conhecer ao senhorio o tipo de estabelecimento que pretendia instalar no local, as obras de adaptação que a loja teria de sofrer e mostrou a sua vontade de proceder à medição do local, tal não significa que este soubesse ou desconfiasse que o local a arrendar não possuía condições para satisfazer as necessidades de instalação do negócio projectado pelo réu, designadamente por falta de área, e que, ainda assim, tivesse prosseguido as negociações preliminares e outorgado o contrato.
V – Pondo o arrendatário termo ao contrato poucos dias depois de o ter celebrado, não traduz abuso do direito a exigência pelo senhorio, neste enquadramento, das rendas referidas em I, pois ao contratar criou a expectativa legítima de obter, ao longo dos cinco anos de duração inicial prevista, o rendimento correspondente à renda convencionada, expectativa essa gorada pelo réu.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL

I – A intentou contra B a presente acção declarativa, com forma de processo sumário, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 5.625,00.
Alegou, em síntese, ter celebrado com o réu um contrato de arrendamento comercial, com início em 15 de Março de 2007 e duração de cinco anos, acordo que o réu fez cessar em 27 de Março de 2007, com a entrega das chaves, sem respeito, seja pelo período de pré-aviso de 4 meses, seja pelo período de duração mínima de seis meses.
O réu contestou por impugnação, alegando ter havido incumprimento do contrato pelo autor o que determinou a resolução daquele e, ainda, que contratou em erro sobre o objecto, já que o local não tinha a área suficiente para implementar o negócio projectado; e deduziu também reconvencão, pedindo a condenação do autor a pagar-lhe a quantia de € 968,00, por si entregue a título de rendas de Março e Abril de 2007, acrescida de juros desde a notificação até integral pagamento.
Houve resposta do autor.
Realizou-se o julgamento, no final do qual se proferiu decisão sobre a matéria de facto, descrevendo-se os julgados como provados e os julgados como não provados e, subsequentemente, foi lavrada sentença que, julgando a acção e a reconvenção improcedentes, absolveu cada uma das partes do pedido que contra ela fora formulado pela parte contrária.
Apelou o autor, tendo apresentado alegações onde, pedindo a alteração da sentença, com condenação do réu no pedido, formula conclusões, sustentando, em síntese nossa, o seguinte:
a) O abuso do direito pressupõe que o excesso cometido pelo titular do direito ao exercê-lo seja manifesto e gravemente atentatório dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.
b) Da matéria assente não resulta que o apelante tenha violado os princípios da boa fé e da confiança que o apelado nele depositou; o simples facto de ter desencadeado os meios legais ao seu dispor não permite concluir pela existência de abuso do direito.
c) Com a celebração do contrato de arrendamento, incumprido pelo apelado, o apelante criou a expectativa, depois gorada, de receber as rendas acordadas, sendo que a sentença apenas tem em conta o empobrecimento do apelado, esquecendo o empobrecimento do apelante.
Nas contra-alegações apresentadas, o réu pugna pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas pelo apelante nas suas conclusões, visto serem estas, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso.

II – Na sentença descrevem-se como provados os seguintes factos:
1. Por documento escrito, datado de 28 de Fevereiro de 2007, o Autor deu de arrendamento ao Réu a fracção autónoma designada pela letra "A", correspondente à loja do prédio sito na … com inicio em 15 de Março de 2007, pelo período de cinco anos.
2. O locado destinava-se à actividade de hotelaria.
3. Foi acordada a renda mensal de € 625,00, a pagar até ao dia 8 do mês anterior àquele a que dissesse respeito.
4. À data da celebração do contrato, foi paga pelo Réu a quantia de € 968,00, correspondente a 17 dias do mês de Março e à renda do mês de Abril de 2007.
5. Em 27 de Março de 2007, o Réu entregou ao filho do Autor, C as chaves da loja arrendada alegando que a mesma não reunia as condições essenciais para o fim a que se destinava.
6. O réu visitou pela primeira vez a loja arrendada em meados do mês de Fevereiro de 2007.
7. Nessa data, o Autor tinha a funcionar no local um estabelecimento de lavandaria e a loja encontrava-se cheia com vários varões e expositores com peças de roupa pendurada, sendo que os varões estavam, uns, suspensos do tecto e, outros, assentes no chão.
8. Existia ainda um balcão a funcionar, equipado com vários utensílios.
9. O Réu desde logo comunicou ao Autor que procurava um espaço para instalar um estabelecimento de venda ao público de produtos alimentares, nomeadamente, pão, bolos e bebidas.
10. Tendo comunicado que precisava de fazer obras essenciais para adaptar a loja a tal actividade, nomeadamente, duas casas de banho, um vestiário e um pequeno armazém.
11. Numa segunda visita, continuando a funcionar o estabelecimento de lavandaria, não foi possível tirar medidas precisas.
12. O Réu voltou a dizer que tinha que construir duas casas de banho, um pequeno vestiário, um pequeno armazém e um balcão para atendimento ao público;
13. Em Fevereiro, o filho do Autor contactou o Réu informando-o que tinha outras pessoas interessadas em arrendar a loja e que, assim, ou o contrato era assinado ou a loja seria arrendada a outro interessado.
14. O Réu deslocou-se à loja com um irmão seu, arquitecto paisagista, que tirou medidas na largura e no comprimento da loja, mas nunca na transversal, o que não lhe permitiu tirar a medida correcta da área da mesma.
15. Como a loja não estava vazia, ficou acordado que o contrato teria o seu início no dia 15 de Março, para o Autor poder despejar o locado.
16. Já após a assinatura do contrato, com o locado livre e desocupado, o irmão do Réu constatou que a loja tinha uma área de 17 m2.
17. O Réu contactou um técnico da empresa "D", de equipamentos para hotelaria, que lhe disse que com aquela área era impossível montar o estabelecimento pretendido.
18. O filho do Autor fez colocar um anúncio no "Jornal de Ocasião" com o seguinte teor: "Loja de 25 m2, na …. junto a …… e paragem de autocarro. € 650/mês".
19. O Réu teve conhecimento da loja pela agência imobiliária "F", com a qual o Autor celebrou "contrato de mediação imobiliária", do qual não consta a área da loja.

III – A decisão que absolveu o réu do pedido, única que está em causa neste recurso, assentou em fundamentação, cujas linhas essenciais se podem resumir do seguinte modo:
- O réu não observou o prazo de aviso prévio estabelecido no art. 1098º, 2 do C. Civil para proceder à denúncia do contrato de arrendamento.
- Todavia, a actuação do autor constitui abuso do direito, na medida em que, pese embora a área da loja não tenha sido um elemento concretamente negociado, era sabido o que o réu pretendia, sendo também conhecidas a necessidade de obras de adaptação e a preocupação do réu em tirar as medidas precisas da loja.
- Pode dizer-se que o próprio autor contribuiu para “uma particular situação de risco” no que toca aos interesses do réu, quando, sabendo que a loja não estava ainda em condições de permitir tirar as suas medidas precisas, o informou que tinha outras pessoas interessadas em arrendar a loja, pelo que ou o contrato era assinado ou a loja seria arrendada a outrem.
- A ideia de se poder exigir o pagamento de rendas equivalentes a uma duração mínima de 10 meses de contrato, sem que o réu daí pudesse retirar qualquer contrapartida, facto de que o autor teve, entretanto, conhecimento, sendo certo que entre o início do contrato e a entrega das chaves ocorreram menos de 15 dias, mostra-se excessiva relativamente aos limites impostos pela boa fé e pelo fim económico do direito do autor.

É argumentação que, salvo o respeito que nos merece opinião diversa, não merece a nossa concordância.
Nos termos do disposto no art. 334º do C. Civil - diploma a que pertencem as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência - “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
A situação descrita nos autos, não respeitando a actos que ofendam a moral, nada tem a ver também com os bons costumes, nem foi, aliás, por excesso dos limites por eles impostos que a sentença teve como verificada a situação de abuso do direito por parte do autor.
Foram os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico do direito que se consideraram excedidos com o exercício do direito, pelo autor, de exigir do réu, nas circunstâncias apuradas, as rendas equivalentes a 10 meses de duração obrigatória do contrato – deduzida a importância paga, a título de renda dos meses de Março e Abril -, imposta pelo nº 2 do art. 1098º, na redacção dada pelo art. 3º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU).
Segundo ele “Após seis meses de duração efectiva do contrato, o arrendatário pode denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação ao senhorio com uma antecedência não inferior a 120 dias do termo pretendido do contrato, produzindo essa denúncia efeitos no final de um mês do calendário gregoriano.
E nos termos do seu nº 3 “A inobservância da antecedência prevista nos números anteriores não obsta à cessação do contrato, mas obriga ao pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta.
A lei institui, pois, a favor do arrendatário, o direito de denúncia do contrato a todo o tempo, sujeitando-o, porém, ao pagamento das rendas correspondentes, por um lado, a um período mínimo de duração do contrato, que fixa em seis meses, e, por outro, ao período de 120 dias, antecedência imposta para a comunicação da denúncia relativamente ao termo previsto.
É a necessidade de equilíbrio da posição das partes no contrato de arrendamento que subjaz ao direito, por parte do locador, de haver do locatário pelo menos a retribuição correspondente a uma duração mínima de 10 meses. É este o fim social e económico desse direito.
De facto, enquanto o senhorio tem sempre de aguardar o prazo de duração do contrato inicialmente convencionado, apenas podendo opor-se à sua renovação automática, desde que, com observância da antecedência mínima de um ano em relação ao seu termo, o comunique ao arrendatário – art. 1097º - , ao inquilino é dada a faculdade de denunciar o contrato a todo o tempo, o que, desacompanhado de qualquer outra limitação – como acontecia, aliás, no RAU (art. 100º, nº 4) -, redundaria em patente e injustificado desequilíbrio na salvaguarda dos interesses de cada um dos sujeitos da relação contratual.
Com a limitação decorrente do regime exposto, haverá cessação do contrato logo que o arrendatário o pretenda, mas continuando ele obrigado à sua prestação de pagamento de renda, como se o acordo vigorasse durante seis meses e mais cento e vinte dias, contados desde o seu início, assim se acautelando, de algum modo, as expectativas do contraente que, estando sujeito a ver o contrato cessar em qualquer altura por vontade da outra parte, só pode, por sua vez, opor-se à respectiva renovação no final do decurso do prazo inicialmente convencionado.
Deste modo se procura atingir o desejável equilíbrio e a paridade possível entre a posição do locador e do locatário na relação jurídica de arrendamento.
Ora, nada permite concluir, em face da factualidade apurada, que o apelante, ao intentar esta acção, prossiga objectivo diferente daquele que é a enunciada finalidade social e económica do direito que exerce.
Daí que, contra o entendido na sentença apelada, o exercício do direito não envolva excesso dos limites impostos pelo fim económico do direito, pelo que com tal fundamento, não pode afirmar-se a existência de abuso do direito.
E o que dizer, se a situação for analisada na perspectiva da boa fé?
Para haver ofensa dela, é necessária a existência de um circunstancialismo que evidencie terem sido ultrapassados os limites minimamente impostos pelo espírito de confiança recíproca que deve estar subjacente tanto à formação como à conclusão e ao cumprimento dos contratos.
Na sentença, para configuração do afirmado abuso do direito, invocam-se as circunstâncias de o autor saber o que era pretendido pelo réu e de ter conhecimento das adaptações que este se propunha levar a cabo na loja e da preocupação do réu em efectuar medições precisas.
Extrai-se dos factos descritos sob os nºs 9 a 12 que, na verdade, o réu, nas visitas que fez à loja antes da celebração do contrato de arrendamento, deu a conhecer ao autor o tipo de estabelecimento que pretendia instalar no local, as obras de adaptação que a loja teria de sofrer e terá também mostrado a sua vontade de proceder à medição do local.
Mas um tal conhecimento, por parte do autor, não evidencia minimamente que este soubesse ou, ao menos, desconfiasse que o local a arrendar não possuía condições para satisfazer as necessidades de instalação do negócio projectado pelo réu, designadamente por falta de área, e que, ainda assim, tivesse prosseguido as negociações preliminares e outorgado o contrato.
Nada faz crer, sequer, que o autor tenha omitido qualquer informação ou elemento que pudesse ter contribuído para o esclarecimento da situação, tanto mais que nunca foi referida pelo réu a área mínima necessária para realizar as adaptações e instalar o seu negócio.
Se este se convenceu que a loja possuía as condições adequadas, nada permite intuir que algo de diverso se tenha passado com o apelante, tanto mais que era ao apelado, principal interessado e verdadeiro conhecedor das especificidades do seu projecto, que cabia aferir as reais características da loja e a sua adequação ao negócio que tinha em mente, usando da ponderação e diligência no caso exigíveis.
Tendo o irmão do apelado, acompanhado deste, procedido à medição do comprimento e da largura da loja, mas não da sua “transversal”, o que, segundo o facto nº 14., terá sido óbice ao cálculo correcto da área respectiva, nada indicia que tenha sido por causa imputável ao apelante que essa medição não foi feita.
Aliás, em boa verdade, fica sem saber-se se teria sido possível a implementação do negócio na loja, se esta possuísse a área de 25 m2, dimensão que o autor, segundo o alegado, mas não demonstrado pelo réu, teria garantido que a mesma possuía.
Finalmente, nenhum significado relevante pode, em nosso entender, ser atribuído ao facto de o filho do autor ter informado o apelado de que tinha outras pessoas interessadas em arrendar a loja e que, assim, ou o contrato era assinado ou a loja seria arrendada a outro interessado.
Na verdade, nada demonstra que o assim informado não correspondesse efectivamente à verdade e antes fosse uma estratégia montada para levar à célere ultimação do contrato entre as partes.

Diga-se, ainda, que se não vê que ocorra “desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem” que ultrapasse os limites razoáveis, gerando “o desequilíbrio no exercício”, categoria de comportamento abusivo integrador de abuso de direito que tem lugar quando “mercê de conjugações extraordinárias, ocorre um exercício jurídico, aparentemente regular, mas que desencadeia resultados totalmente alheios ao que o sistema poderia admitir, em consequência do exercício.” Menezes Cordeiro, em “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo I, 1999, pág. 212.

Com efeito, o autor, no circunstancialismo apurado, por virtude do exercício do seu direito, não obterá resultado que o sistema de algum modo repudie, mas exactamente aquilo que a lei entendeu ser adequado em salvaguarda da sua posição de senhorio no contrato de arrendamento.
Também ele, que eventualmente perdeu a oportunidade de arrendar a outrem a loja que locou ao réu, criou a expectativa legítima de obter, ao longo dos cinco anos de duração inicial prevista para o contrato, o rendimento correspondente à renda convencionada, expectativa essa gorada pelo réu que, sem que o autor para tal tenha contribuído, pôs fim ao contrato poucos dias depois de o ter celebrado.
Não se verifica, pois, o abuso do direito cuja existência foi afirmada na sentença.
Daí que, nos termos do já citado art. 1098º, nºs 2 e 3, se imponha a condenação do réu a pagar ao autor o valor correspondente às rendas de dez meses, deduzido da quantia já paga, respeitante a 17 dias de Março e ao mês de Abril de 2007, no total de € 968,00.
Esse valor ascende, pois, a € 5.282,00 (€ 6.250,00 - € 968,00) e não à pedida quantia de € 5.625,00.
A apelação procede, pois, nos termos referidos.

IV – Pelo exposto, julga-se a apelação procedente nos termos expostos, condenando-se o réu a pagar ao autor a quantia de € 5.282,00.
Aqui e na 1ª instância, as custas ficam a cargo de ambas as partes, na proporção do decaimento.

Lisboa, 17 de Novembro de 2009

Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho
Maria Amélia Ribeiro
Graça Amaral