Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4604/2005-3
Relator: ANTÓNIO CLEMENTE LIMA
Descritores: ABUSO SEXUAL
MEDIDA DA PENA
PENA DE PRISÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INJUNÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I – O arguido manteve através da internet contactos com duas menores de 14 anos, tendo-lhes remetido ficheiros contendo vídeos, imagens e documentos de texto com imagens de crianças a praticarem de actos sexuais com adultos, ou de conteúdo pornográfico ou “pedófilo”. Também lhes remeteu SMS(s) com conteúdos referentes a práticas sexuais, etc., assim se constituindo autor de 2 crimes de abuso sexual, p e p. no artº 172º, nº 3 c), d) e e) do C.P..

II – O arguido recorreu pondo em causa, além de outras questões, a aplicação da pena de prisão efectiva de 3 anos e 3 meses.

III – Considerando a primaridade do arguido, a sua absoluta integração sócio-profissional, o arrependimento demonstrado, a ineficácia que têm as necessidades de prevenção geral perante o decurso do período de 4 anos após a prática dos factos e a previsão de que a simples censura, a ameaça da execução da pena e uma relevante injunção prevenirão a repetição de comportamentos delituosos altera-se a decisão condenando o arguido na pena unitária de 2 anos e 5 meses de prisão, suspensos na sua execução por 4 anos, sob condição de, no prazo de três meses, pagar a quantia de €250.000 a uma instituição de protecção a crianças ou famílias desvalidas além de, nesse mesmo período, e de acordo com o pedido do arguido, se submeter a tratamento psiquiátrico.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo audiência, na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I

1. Nos autos de processo comum n.º 1584/02.4JFLSB, da 6.ª Vara Criminal de Lisboa (3.ª Secção), o arguido,
A . – (...) –,
foi acusado, pelo Ministério Público, da prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punível nos termos do disposto no art. 172.º/3 b), do Código Penal, e de três crimes de abuso sexual, cada um p. e p. nos termos do disposto no art. 172.º/3 c), d) e e), do mesmo Código.
Submetido a julgamento, perante Tribunal Colectivo, veio a decidir-se, na fracção agora relevante:
- absolver o arguido de um crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p. e p. nos termos do disposto no art. 172.º/3 b), do CP e, bem assim, absolver o arguido de um crime de abuso sexual, p. e p. nos termos do disposto no art. 172.º/3 c), d) e e), do CP, de que se encontrava acusado;
- condenar o arguido, pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de dois crimes de abuso sexual, cada um p. e p. nos termos do disposto no art. 172.º/3 c), d) e e), do CP, na pena de 2 anos de prisão, por cada um e, em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenar o arguido na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão – acórdão de 11 de Fevereiro de 2005.

2. O arguido interpôs recurso deste acórdão.
Extrai da motivação recursória as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª – O douto acórdão recorrido contém erro notório na apreciação da prova, limitando com isso a conclusão que havia a tirar se esses factos fossem correctamente apreciados.
2.ª – Tendo em conta as matérias provada e não provada e a motivação da decisão de facto, existe contradição entre estas e a decisão final, uma vez que estão provados na motivação/fundamentação factos que demonstram outra actuação menos gravosa do arguido.
3.ª – O douto acórdão faz ainda errada apreciação da prova ao utilizar para o agravamento do crime conclusões que não se mostram provadas, como seja que as menores C. e L., em razão das suas idades, não tinham a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão, nem tão pouco capacidade para entenderem a gravidade e natureza do material que lhes foi facultado pelo arguido.
4.ª – O acórdão recorrido, ao apresentar contradições entre a matéria dada como provada e aquela dada como não provada, ao conter erros assinaláveis na apreciação da prova e ao ter prova insuficiente para a condenação do ora recorrente, nos termos em que o foi, fornece fundamentação mais do que suficiente para sustentar o presente recurso à luz do art. 410.º, do CPP.
5.ª – A pena aplicada não atendeu às atenuantes provadas, existindo nos autos elementos suficientes para determinar pena inferior e a respectiva suspensão de execução nos termos dos arts. 70.º e segs. e 50.º e segs. do Código Penal.

3. O Tribunal a quo admitiu o recurso.

4. O Ministério Público, na instância, respondeu à motivação do recurso.
Defende a confirmação do julgado.
Extrai da minuta as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª – O arguido ora recorrente insurge-se contra o acórdão prolatado nos autos, invocando a existência dos vícios consignados no n.º 2 do art. 410.º, do CPP, a saber, erro notório na apreciação da prova, insuficiência da matéria provada para a decisão e contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão – alienas a), b) e c).
2.ª – Olvida o recorrente que estes vícios, chamados «vícios da decisão» têm forçosamente de resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum».
3.ª – O acórdão recorrido não enferma de insuficiência da prova para a decisão ou de qualquer outro dos vícios a que alude o art. 410.º.2 do CPP.
4.ª – Para tanto se constatar basta uma simples leitura do aresto impugnado, designadamente a matéria dada como assente integradora dos ilícitos por que o recorrente foi condenado (que este não contesta, pelo que, não tendo havido gravação da prova, ela tem de se ter por assente), e as provas que fundaram a convicção do tribunal.
5.ª – O recorrente mais não pretende do que por em causa a formação da convicção do julgador e o princípio da livre apreciação da prova que a enforma.
6.ª – Os factos assentes enquadram a prática pelo recorrente, em autoria material e acumulação de infracções, de dois crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 172.º n.º 3 alíneas b), c) e e) do Código Penal.
7.ª – Atente a gravidade objectiva e subjectiva dos factos provados e o grau de culpa evidenciado, considerada a moldura de 1 mês a 3 anos de prisão com que é sancionada cada uma das infracções que cometeu, vistas as finalidades que subjazem às penas e as exigências gerais e especiais de prevenção, é adequada a pena unitária de 3 anos e 3 meses de prisão a que foi condenado o recorrente, assim como adequadas são também as penas parcelares encontradas (duas, de 2 anos de prisão cada).
8.ª – A suspensão de tal pena é legalmente inadmissível – art. 50.º n.º 1, do CP.
9.ª – Mesmo a aplicar-se pena de quantum igual ou inferior a 3 anos de prisão, ainda assim não se mostram verificados os restantes pressupostos consignados no referido art. 50.º, do CP para a suspensão da execução da pena, já que resulta do exarado no aresto impugnado que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

5. Nesta instância, o Ministério Público não emitiu parecer.

6. Os poderes cognitivos deste Tribunal ad quem não alcançam a apreciação de (eventual) erro de julgamento em matéria de facto, seja por que os actos de audiência, na instância, não foram documentados (com o beneplácito, designadamente, do arguido), seja por que o recorrente não arguiu vícios do julgamento (no segmento atinente à decisão sobre a matéria de facto), centrando o alegatório na invocação de vícios do acórdão revidendo e na questão da escolha e medida da pena.
Assim, no caso, importa apenas examinar as questões suscitadas pelo recorrente (que demarcam o objecto do recurso), (i) de saber de o acórdão recorrido padece dos vícios elencados no n.º 2 do art. 410.º, do CPP, e (ii) de saber se a decisão revidenda, no plano da escolha e da medida da pena, padece de inadequação, por excesso, devendo ser comutada in melius.

II

7. Importa, antes de mais, repristinar o julgamento levado, sobre a matéria de facto, em 1.ª instância.

7.1. O Tribunal recorrido julgou provados os seguintes (transcritos) factos:
1. Em 27 de Junho de 2001, o arguido A . conheceu através da Internet, com quem entrou em contacto nos sites IRC, Portugalmail e MyTMN, a menor C., nascida a 06 de Março de 1987, quando esta tinha 14 anos de idade.
2. Posteriormente, através desta menor, veio a contactar igualmente com outras menores, amigas e colegas daquela, entre as quais L., T. e E., todas elas com, pelo menos, 14 anos de idade.
3. O contacto inicial do arguido com as menores foi, assim, realizado através da Internet, utilizando as menores, para o efeito, os computadores instalados na Biblioteca Municipal de .... e os referidos Chats, sendo o arguido conhecido pelo nick-name (pseudónimo) bafwolf.
4. A partir dessa altura, todas as menores referidas passaram a falar regularmente com o arguido, através dos respectivos telemóveis, que o arguido lhes carregava para que aquelas o contactassem por essa via, assim como contactaram com o mesmo por E-mail enviados por computador.
5. Nas conversas mantidas com a C. e posteriormente com as restantes menores, o arguido abordava frequentemente temas sobre sexo, embora isso tenha ocorrido principalmente com a C. e a L..
6. O arguido enviou à menor L. um CD contendo material de natureza pornográfica e de abuso sexual de menores, designadamente fotografias com sexo explícito entre adultos e menores, incluindo crianças com menos de 14 anos de idade.
7. O arguido entregou, também, pessoalmente à menor C. um CD contendo 75 ficheiros de vídeo de teor pornográfico e um documento de natureza obscena escrito pelo próprio arguido, conforme fls. 44 a 82 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, assim como outro material constante de fls. 23 a 43, nomeadamente 93 fotografias de crianças de 10, 13 e 14 anos, completamente nuas e envolvidas em actos sexuais explícitos, cujo teor aqui também se dá por reproduzido.
8. O arguido chegou a convidar a C. para se deixar fotografar nua e disse-lhe que se lhe «mostrasse o sexo no seu primeiro encontro lho lamberia».
9. Noutras conversas mantidas com a menor C. por vezes o arguido dizia-lhe que «lhe queria lamber a ratinha...», solicitando-lhe ainda que «lhe dissesse que era o capuchinho e sem cuequinhas...», e perguntava-lhe «onde queres que te deite o leitinho», tendo-lhe afirmado, diversas vezes, que gostava muito de manter conversas sobre este tema e de manter relações sexuais com meninas desta idade.
10. Para além do descrito, estava constantemente a solicitar-lhe que lhe falasse de sexo oral e tratava-a por «fofinha».
11. O arguido enviou, igualmente, à menor L. os três discos compactos examinados a fls. 280 dos autos e constantes do apenso II deste processo, contendo o primeiro 143 ficheiros de imagem, vídeo e de texto, assim como um E-mail com a sua própria fotografia com o pénis erecto na mão, conforme fls. 264 e 265 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
12. O segundo disco contém 286 ficheiros diversos de vídeo, imagem e texto, em 22 pastas, com histórias de sexo envolvendo crianças, da autoria do arguido, assim como vários filmes de sexo explícito entre crianças.
13. Na pasta/fotos constata-se existirem várias imagens de sexo explícito entre menores com idades compreendidas entre os 10 e os 14 anos.
14. O terceiro disco contém 797 ficheiros em 31 pastas, contendo vídeos, imagens e documentos de texto com imagens de crianças nuas, algumas de sexo explícito com adultos, conforme fls. 280 a 463, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
15. No computador que o arguido tinha instalado numa das suas residências, sita na R...., foi detectada informação sob a forma de imagens e de texto, tudo de teor pedófilo (cfr. fls. 376 a 450 dos autos), bem como alguns cokkies (ficheiros reutilizáveis em novo acesso) de acesso a páginas de Internet de teens (adolescentes) (cfr. fls. 449 a 452 dos autos), mantendo igualmente correspondência via Internet com uma outra menor de nome B., tendo até enviado à menor C. a fotografia constante dos autos com o título «foto que a B. mandou».
16. A grande maioria das crianças e jovens do sexo feminino que figuram nas fotografias supra referidas evidenciam, pelas suas características físicas, idades inferiores a 14 anos.
17. Em muitos destes casos estamos perante crianças de idades compreendidas entre os 6, 8 e 12 anos, envolvidas em práticas sexuais (coito oral e outras) com indivíduos adultos.
18. O arguido acedia na Internet a sítios electrónicos de natureza vulgarmente designada de pedófila, copiava imagens ali visíveis e mantinha-as na sua posse, sendo subscritor do serviço de Internet www.....com, conhecido por ser um serviço de imagens de crianças de idades até aos 12 anos, praticando actos sexuais aberrantes com adultos.
19. Através do exame ao computador que se encontrava no escritório do arguido A ., na sua residência sita em ..., foi possível detectar várias imagens e textos de teor pedófilo, bem como alguns “cokkies” de acesso a páginas de Internet da mesma natureza.
20. O arguido subscrevia, igualmente, os serviços das empresas TeensDelivery, serviço denominado «as meninas mais novas e quentes da Internet» (cfr. fls. 799), e Teen Cumers (cfr. fls. 800), todos sítios electrónicos de teor pedófilo e pagava para ter acesso a este material, com o cartão de crédito de que é titular.
21. Em Dezembro de 2001, o arguido deslocou-se a ...., altura em que já havia contactado com as menores, sucessivamente e por diversas vezes, através dos respectivos telemóveis.
22. Ali encontrou-se com as mesmas, com elas manteve conversas, incluindo, por vezes, conversas do teor das que já tinha mantido com elas pelo telefone, e ofereceu-lhes prendas.
23. O arguido actuou de modo voluntário, livre e consciente.
24. Sabia perfeitamente que as condutas descritas eram proibidas por lei, valendo-se do relacionamento mantido com as menores para as sujeitar a tais práticas que sabia contrárias aos seus interesses e prejudiciais ao seu normal desenvolvimento, assim como se valeu do envolvimento conseguido com elas para as levar a tomar contacto com o material de teor pornográfico que lhes entregou e que sabia respeitar a menores de 14 anos de idade.
25. Actuou com intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos e querendo facultar às menores C. e L. material pornográfico envolvendo menores de 14 anos de idade, bem sabendo que as referidas menores, em razão das suas idades, não tinham a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão, nem tão pouco capacidade para entenderem a gravidade e natureza do material que lhes foi facultado pelo arguido, do mesmo modo que sabia que as menores que figuravam no referido material também não dispuseram na necessária capacidade de discernimento para dele constarem, e ainda assim deteve esse material, com a intenção de o visionar ele próprio ou de o ceder a terceiros, como cedeu às duas referidas menores.
26. O arguido pôs em causa o sentimento de vergonha e pudor sexual, bem como a liberdade e autodeterminação sexual das referidas menores, prejudicando deste modo o livre desenvolvimento das suas personalidades.
27. Após os primeiros contactos e conversas mantidas com as menores, o arguido convenceu-se de que estas não iriam revelar o conteúdo das mesmas, o que o motivou a continuar com a mesma conduta.
28. O arguido tem 48 anos de idade.
29. Vive com a sua esposa e uma filha menor, desenvolvendo o arguido a sua actividade profissional de médico no Hospital ......
30. O desenvolvimento do arguido ocorreu no seio de uma família estruturada, integrada socialmente e detentora de um nível económico favorável.
31. O quadro vivencial actual do agregado familiar do arguido é pautado por algum isolamento relacional, não se evidenciando grupos de convívio social.
32. O arguido revela um estilo de vida isolado, fechado em si mesmo e centrado, para além da sua actividade profissional e dos tempos de convívio com a filha, em actividades isoladas e dispendidas em alegados estudos esotéricos.
33. Do seu certificado de registo criminal nada consta.

7.2. O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
a) Que o arguido tenha conhecido a menor C. anteriormente a 6 de Março de 2000, e quando esta tinha 13 anos de idade.
b) Que o arguido tenha enviado à menor Tânia vários CDs contendo material de natureza pornográfica e de abuso sexual de menores, designadamente fotografias com sexo explícito entre adultos e menores.
c) Que o arguido tenha difundido (a outras pessoas que não as menores C. e L.) igualmente os dados referidos através do seu computador, que se encontrava instalado na sua residência sita na R..., divulgando, assim, as imagens descritas através da Internet.
d) Que o arguido divulgasse as imagens referidas em 18 através da Internet a outras pessoas que não as menores C. e L..
e) Que as prendas que o arguido ofereceu às menores fossem de valor considerável.
f) Que nos encontros mantidos com as menores o arguido tem procurado aliciá-las a deixarem-se fotografar nuas.

7.3. O Colectivo motivou a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:
O tribunal formou a sua convicção relativamente à matéria de facto, em geral, com base na apreciação crítica da prova produzida em julgamento.
Em particular, o tribunal formou a sua convicção quanto aos factos considerados como demonstrados na apreciação conjugada e de acordo com as regras da experiência comum, dos seguintes elementos de prova:
- as declarações prestadas pelo próprio arguido que referiu ter um interesse positivo no ocultismo e que por razões karmicas procurava relacionar-se com jovens raparigas nascidas entre 1985 e 1987, sendo que já contactava via Internet com duas raparigas inglesas, que conhecia como P. e B.; assim em Julho de 2001 começou a ver anúncios no Cúpido do Portugal mail e a responder a alguns; foi por essa via que respondeu a um anúncio em que duas raparigas de .... que se intitulavam «princesinhas» diziam querer conhecer novas pessoas; nessa ocasião trocaram uma mensagem e como a C. disse interessar-se por ocultismo passaram a conversar por telemóvel ou SMS e não mais em Chats da Internet; no final de Julho de 2001, quando se encontrava de férias em Espanha, recebeu um telefonema da C., pedindo-lhe para carregar o telemóvel, o que o arguido aceitou e daí em diante passou a tornar-se um hábito; admitiu que em determinada altura enviou a esta menor uma mensagem em que fazia referência a lamber-lhe o sexo; a dada altura o arguido começou a achar excessivo esses carregamentos e chegou a perguntar à menor o que é que ela fazia por ele, ao que ela respondeu que fosse a ... que lhe fazia uma surpresa, com o que o arguido acabou por ir àquela localidade e aí se encontrar com a menor, a quem levou um ramo de flores; esse encontro decorreu num parque e a menor mostrou-se muito nervosa, razão pela qual acabou por se ir embora; a partir dessa altura a C. começou a fazer chantagem com ele, exigindo-lhe que efectuasse carregamentos de telemóveis para que não apresentasse queixa dele; como havia algo no espírito da menor que o atraía, o arguido continuou a falar com a menor e a fazer carregamentos no seu telemóvel; foi então que chegaram a ter a conversa de ela se deixar fotografar nua (o arguido refere ter interesse num nu artístico), mas isso não chegou a acontecer; em Outubro de 2001, por intermédio da C., conheceu a L., com quem teve logo uma grande empatia, tendo ficado enamorado dela; passaram, então, a falar todos os dias, intensamente, até que a conversa se tornou íntima, sendo que se esquecia da idade da menor, atenta a sua muita maturidade; em Dezembro de 2001 combinaram encontrar-se, encontro ao qual a C. e a E. também foram; nessa altura já falava às vezes também com a menor T.; como estavam perto do Natal levou uma prenda às menores, tais como peluches, livros e CDs; refere que pessoalmente nunca mantiveram conversas eróticas; nessa ocasião, como ele e a L. tinham fantasias e conversas eróticas trocadas pelo telefone, tinha-lhe falado de uma história dessa natureza que estava a escrever, resolvendo então levar-lhe num CD Rom alguns capítulos dessas história, onde também meteu algumas fotografias e filmes que tinha tirado da Internet, de carácter pornográfico; as conversas entre eles foram continuando e em Janeiro de 2002 a C. disse-lhe que sabia que ele tinha conversas de sexo telefónico com a L. e que ela também queria experimentar, sendo que a partir dessa altura manteve conversas eróticas com esta menor mais uma ou duas vezes; em Fevereiro ou Março de 2002 voltou a encontrar-se com a L. e aí também com a T., tendo levado à primeira um CD Rom com mais uns capítulos da história que estava a escrever, porque ela o tinha inspirado, e também lhe meteu umas fotografias; como ela depois lhe disse que não conseguia ler esse CD voltou a enviar-lhe um outro que era praticamente uma cópia; a sua intenção era compartilhar a experiência com a L.; voltou a marcar mais um encontro com as menores, ao qual a L. não compareceu, razão pela qual entregou à C. o CD para entregar àquela, tendo-lhe dito para não o ver; nessa ocasião a C. não entregou o CD à L. e disse-lhe que o perdeu; ainda voltou a encontrar algumas das restantes menores mais duas vezes, uma das quais lhes levou pequenas prendas, sendo que nesses encontros falavam muito de ocultismo; entretanto, a C. continuava a fazer pressão para ele lhe carregar telemóveis, sendo que à L. e à T. o fazia por amizade; ainda voltou a encontrar a L. mais uma vez, tendo-lhe apenas tocado no cabelo, com um espírito de amor; esclareceu que com a T. nunca manteve conversas eróticas; acabou por admitir que praticou a generalidade dos factos referidos na acusação, algumas vezes por mera brincadeira e nunca tendo sido sua intenção concretizar esses actos com as menores; admitiu que muito do material que entregou às menores era pornográfico, mas que sempre soube que elas tinham 14 anos porque lhes perguntou e entende que aos 14 anos já é aceitável ter alguma intimidade com as menores e que isso não é pedofilia (admitindo ser pedofilia o que constava na maioria das fotografias que lhes entregou); não considera o relacionamento que manteve com as menores como aberrante ou anormal, até porque também ajudava as menores (dando como exemplo conselhos de saúde, tais como os relativos a masturbação com objectos ou dores menstruais), sendo que ama a L. e lhe enviou a fotografia do seu pénis porque ela pediu para ver se era verdade aquele que faziam ao telefone; nega ter difundido qualquer material pornográfico na Internet; embora assuma que no seu íntimo tem fantasias sexuais com menores, não ser sua intenção concretizá-las e acha que esta foi uma fase transitória da sua vida;
- os depoimentos, sinceros e convincentes, das testemunhas menores envolvidas nos factos, as quais os descreveram de modo isento e sem procurar empolar a sua realidade, sendo que
- a menor C. confirmou haver conhecido o arguido através de um anúncio que colocou no Portugal mail com uma amiga, tendo recebido um E-mail de resposta do arguido (confirmando ser o constante de fls. 3 do apenso VII); a partir dessa altura começaram a ficar amigos e conversavam muito pelo telefone, até que começaram a falar sobre sexo; o arguido também a persuadia a tirar fotografias nua, tendo-lhe oferecido dinheiro para isso; mas o dinheiro que ela recebeu depois foi porque lhe pediu; mantinha conversas sexuais com o arguido porque ele lhe carregava o telemóvel; às vezes era a testemunha que ligava outras vezes era o arguido que lhe pedia para lhe ligar ou enviar mensagens; encontrou-se com o arguido algumas vezes em Ponte de Lima, sendo que numa das situações ele lhe deu um ramo de flores e noutra um livro; num desses encontros o arguido entregou-lhe um CD Rom e pediu-lhe para ela o entregar à L., sendo que como era curiosa o viu; esclareceu que as conversas ao telefone eram sexo telefónico e que num encontro pessoal com ela e a L. o arguido chegou a manter com elas conversas de carácter sexual;
- a menor L. disse não saber ao certo quando conheceu o arguido, mas já ter 14 anos de idade; falavam sobre tudo ao telefone (esoterismo e ocultismo) e também sobre sexo; o arguido dizia que a amava; encontraram-se quatro ou cinco vezes em ....; o arguido disse-lhe que tinha um interesse especial por adolescentes; quanto à fotografia do pénis do arguido, confirmou que a recebeu e que o arguido não lhe deu qualquer explicação para a enviar; referiu também que o arguido no início lhe fez convites para manterem relações sexuais, mas que não aceitou; nos encontros pessoais o arguido nunca lho pediu; acrescentou que ainda hoje o arguido lhe envia E-mails, aos quais não responde por indicação da Polícia Judiciária;
- a menor T. relatou haver conhecido o arguido através da C. e da L., e que falava com ele ao telemóvel; tinha então 15 anos de idade, nunca teve com o arguido conversas sobre sexo explícito (somente de teor erótico), nem nunca o arguido lhe mostrou fotografias, nem lhe enviou CD Roms; só esteve num encontro com o arguido, em que nunca falaram de sexo.
Do confronto das declarações do arguido com os depoimentos das testemunhas é manifesto que o arguido praticou os factos considerados como demonstrados, tendo sido com dolo directo que entregou às menores L. e C. material pornográfico envolvendo menores de 14 anos de idade, pois que sabendo o arguido a quem entregava os CD Roms também sabia que qualquer uma das menores que bem conhecia, e com quem já mantinha conversas de sexo telefónico, iria ver o seu conteúdo.
Tinha também o arguido consciência de que essa sua conduta – independentemente do seu estado de espírito interior – era proibida e punida por lei (tanto assim que se preocupou quando a menor C. ameaçou apresentar queixa);
- o teor do documento junto a fls. 22 dos autos, demonstrativo de que o arguido enviou correspondência postal, contendo 300 euros, à menor C. em 7 de Novembro de 2002;
- o CD de fls. 23 dos autos (entretanto danificado) e que foi o que o arguido entregou à menor C. tal como referido na acusação e que veio a ser encontrado pela mãe daquela, bem como o respectivo auto de exame junto a fls. 26 a 83 dos autos, comprovativo de que o referido CD continha imagens de menores, incluindo com menos de 14 anos de idade, nuas e em cenas de sexo explícito, assim como um texto de teor pornográfico e pedófilo da autoria do arguido;
- a guia de depósito de fls. 24, relativa à quantia de 300 euros que o arguido enviou por correio à menor C.;
- o teor do E-mail de fls. 25 dos autos, demonstrativo das conversas e contactos mantidos entre o arguido e a menor C.;
- o auto de exame directo de fls. 86 dos autos, demonstrativo de que o referido material constante do CD foi concebido/utilizado num software registado em nome do , onde o arguido exercia as suas funções de médico;
- os documentos juntos a fls. 97 a 105 dos autos, consistentes em facturas detalhadas do telemóvel da menor C., de onde ressaltam as diversas chamadas realizadas do número de telefone do arguido, bem como o valor elevado dos carregamentos feitos no telefone da menor, especialmente se considerarmos a idade da mesma;
- o auto de exame directo junto a fls. 106, comprovativo de algumas mensagens escritas enviadas pelo arguido à menor C., denotando a preocupação do mesmo com o facto de a mãe da menor poder apresentar queixa contra si;
- a informação junta a fls. 184 dos autos, onde a TMN informa da titularidade por parte do arguido do contrato de telefone relativo ao número daquela operadora identificado no processo – .... -, assim como a prestada pela Optimus a fls. 187 relativamente ao número ..... também identificado como sendo da titularidade do arguido;
- o teor de fls. 196 e 226-A dos autos, respeitante às fotografias existentes no cartão de memória da máquina fotográfica digital do arguido, sendo uma delas a fotografia do pénis erecto do arguido, que o mesmo posteriormente veio a enviar à menor L.;
- os autos de busca e apreensão de fls. 199 e 224 a 242 dos autos, relativo à apreensão ao arguido dos objectos e material informático e outro posteriormente examinado nos autos;
- o teor de fls. 252 a 268, tudo material que o arguido enviou à menor L. ou E-mails que a esta foram enviados por uma outra menor conhecida como b. e com quem o arguido também manteve contactos;
- o auto de exame directo de fls. 280 a 353 dos autos, relativo ao CD entregue pelo arguido à menor L., onde é manifesto uma vez mais que o mesmo passou também a essa menor diverso material pornográfico envolvendo menores (algumas com idades inferiores a 14 anos de idade), bem como um texto da sua autoria (um suposto guião de um filme pornográfico);
- o auto de exame directo de fls. 354 a 372, respeitante a dois dos telemóveis utilizados em conversações entre o arguido e as menores, de onde constam mensagens de cariz pornográfico, bem como referências a carregamentos de telemóveis, assim como se evidencia o tratamento e envolvimento existente entre o arguido e as menores;
- o auto de exame directo de fls. 376 a 452, respeitante ao computador apreendido numa das residências do arguido, onde se constata, uma vez mais, que o arguido tinha na sua posse diversos ficheiros contendo fotografias de carácter pornográfico e pedófilo, assim como é possível verificar os sítios da Internet visitados pelo arguido, também eles sites pedófilos;
- o auto de exame directo de fls. 453, relativo a diverso material informático pornográfico encontrado na posse do arguido, embora neste caso não fosse de teor pedófilo;
- o teor de fls. 655 a 668 dos autos, referente ao relatório final da Inspecção-Geral de Saúde que teve por objecto a conduta do arguido, sujeito a inspecção na sequência dos factos a que se referem estes autos; nesse relatório conclui-se pela aplicação ao arguido da pena de 1 ano de inactividade suspensa pelo período de 3 anos (que conforme documento junto posteriormente se sabe não ser ainda definitiva);
- o auto de exame directo de fls. 730 a 759, do qual consta o exame a diversos material apreendido na posse do arguido, sendo máquinas fotográficas, material informático diverso, recortes de jornais pornográficos, um regulamento manuscrito relativo a um concurso que tem como objecto a prática de actos sexuais (onde se encontram menções como «relações com menores» ou «desvio de menores»);
- o auto de exame directo de fls. 794, relativo a diversas disquetes apreendidas ao arguido, as quais contêm material pedófilo;
- o auto de exame directo de fls. 796 a 801, também respeitante a material informático apreendido ao arguido, sendo que neste caso é visível que o arguido subscreveu alguns serviços da Internet onde se faculta o acesso a material pedófilo;
- o auto de exame directo de fls. 875 e 876, tendo por objecto diversas cassetes vídeo apreendidas ao arguido, todas elas contendo filmes pornográficos;
- o teor do parecer médico-legal de fls. 902 a 906 (relativo a fls. 829 a 872), onde se conclui que a maioria das crianças e jovens do sexo feminino que constam das fotos examinadas – onde se inclui as que constam dos CDs entregues pelo arguido à C. e L. – tem idade inferior a 14 anos;
- o teor dos assentos de nascimento de fls. 915 a 917 dos autos, comprovativos das idades das menores envolvidas no processo;
- o certificado de registo criminal do arguido, junto a fls. 965 dos autos, do qual nada consta;
- a informação prestada pela Ordem dos Médicos relativamente ao estado do processo disciplinar e da Inspecção-Geral de Saúde de que o arguido foi alvo e que se encontra em recurso (fls. 987 a 996 e 1023 a 1027);
- o relatório social para julgamento relativo à pessoa do arguido e elaborado pelo Instituto de Reinserção Social, conforme original junto a fls. 1038 a 1040 dos autos, expondo o percurso de vida do arguido e o seu enquadramento familiar e profissional;
- de referir, ainda, ao nível da prova positivamente produzida nos autos, a vasta documentação constante dos apensos juntos ao processo principal e apreendida ao arguido (em parte relativa aos autos de exame já supra referidos), dos quais resulta, de modo manifesto, que o arguido tinha na sua posse uma quantidade muito elevada de material pornográfico e, na sua maioria, material pedófilo, assim como ele próprio é autor de guiões, histórias e regulamentos de concursos sempre relacionados com situações pornográficas e uma vez mais, grande parte das vezes, de carácter pedófilo, como seja
- no apenso VII, folhas referentes a conversas com menores em canais de Chat na Internet e textos obscenos manuscritos ou impressos pelo arguido, com esquemas de nomes e idades de menores;
- no apenso VI, fotos de duas peças de roupa interior feminina encontradas no escritório do arguido, dissimuladas dentro de pasta de arquivo, com duas cassetes vídeo VHS de teor pornográfico e fotografias do mesmo teor;
- no apenso III, recibos de carregamentos de diversos números de telemóveis apreendidos em casa e na viatura do arguido, entre eles constando carregamentos efectuados a favor das menores referidas nos autos;
- no apenso IV, folhas referentes a facturação de telemóvel, à compra de equipamentos GSM, a dados de contas de acesso à Internet e Sites;
- no apenso V, folhas referentes ao exame de 21 CDs apreendidos em casa do arguido;
- no apenso V, fotografias de indivíduos do sexo feminino (algumas delas crianças), expondo a sua nudez;
- no apenso IX, folhas referentes ao exame ao conteúdo de 50 disquetes 3.5”apreendidas em casa do arguido;
- no apenso X, folhas referentes ao exame ao conteúdo de 280 disquetes 3.5” apreendidas em casa do arguido;
- no apenso XIII, folhas referentes ao exame ao conteúdo de 220 disquetes 3.5” também apreendidas em casa do arguido;
- no apenso XII, folhas referentes a textos de teor pedo-pornográfíco apreendidos em casa do arguido.
Já a convicção do tribunal no que se refere com a factualidade não demonstrada resultou da ausência de elementos de prova suficientes para convencerem da sua verificação.
Com efeito, no que se refere ao facto isolado em a), tanto a menor C. como o arguido foram peremptórios em afirmar que o primeiro contacto que mantiveram foi o que se refere ao E-mail constante de fls. 3 do apenso VII, logo datado de Junho de 2001, altura em que a menor já tinha 14 anos de idade.
O que consta de b) foi negado pelo arguido, do mesmo modo que a menor T. afirmou que nunca recebeu do arguido qualquer material desse natureza ou sequer manteve com ele sexo telefónico.
Quanto aos factos levados a c) e d), o arguido negou haver difundido os dados referidos em outras situações que não os CDs entregues às menores L. e C., sendo que estas desconheciam se o arguido transmitiu esses elementos a outras pessoas. Acresce que dos exames realizados aos computadores e material informático apreendido ao arguido não foi possível apurar se o arguido, efectivamente, difundiu a outras pessoas a informação que recolhia (para além da que passou às menores referidas).
No que tange com as prendas referidas em e), o arguido disse tratar-se de flores, peluches, livros ou CDs, o que foi confirmado pelas menores. Não pode, pois, considerar-se que se trate de prendas de valores consideráveis. É certo que existe uma entrega de 300 euros à menor C., mas ela não foi feita a título de oferta, antes tendo sido exigida pela menor.
Por fim, e no que se refere em f), o arguido negou esse facto e as menores também negaram que nos encontros mantidos com o arguido ele tenha pretendido fotografá-las nuas, apenas tendo mantido uma conversa nesse sentido com a menor C. pelo telefone.

8. Quanto à questão de saber de o acórdão recorrido padece dos vícios elencados no n.º 2 do art. 410.º, do CPP.
Defende o recorrente, neste particular e com relevo impugnatório, que (i) o Tribunal deu como provados os factos alinhados em 25 e 26 sem perícia médico-legal à personalidade quer das menores quer do arguido; (ii) ao contrário do que se diz em 18 e 20 dos factos provados, o arguido só acedeu ao sítio referido pelo período de um mês; (iii) os factos alinhados em 25 e 26 são meras conclusões em suporte probatório; (iv) o Colectivo baseou o ponto 2.4.1. do enquadramento jurídico da causa em factos pessoais das menores só determináveis por meio de prova pericial à respectiva personalidade; (v) a fundamentação da decisão de facto constante de 2.3. mais não é do que um novo elenco de factos provados, como resulta de se dizer em relação à L. que a mesma nas suas declarações «acrescentou que ainda hoje o arguido lhe envia e-mails, aos quais não responde por indicação da Polícia Judiciária», facto que não consta da acusação e sobre o qual o tribunal a quo não cuidou de solicitar à depoente que apresentasse prova do afirmado; (vi) o acervo dos factos provados, confrontado com o dos não provados e com a fundamentação constante do ponto 2.3. mostra-se insuficiente para conduzir ao resultado final da condenação do arguido.
Ora, ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, e como se vê da fracção agora transcrita da minuta recursória, este invoca, não os vícios do acórdão revidendo (no plano da matéria de facto), mas sim um erro do julgamento em matéria de facto.
E assim, sem que tenha tido o cuidado de aportar a verificação deste erro aos poderes cognitivos do tribunal de recurso, por via do cumprimento do disposto no art. 412.º/3 e 4, do CPP (com precedência da atempada arguição da irregularidade decorrente da não documentação dos actos de audiência, em 1.ª instância).
Com efeito, o recorrente filia a verificação daquilo que chama erro na apreciação da prova, contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada em não mais do que a sobre alinhada divergência entre a sua convicção (de parte) sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o Tribunal recorrido firmou sobre os factos, no respeito pelos princípios e regras inscritos nos arts. 125.º-127.º, do CPP.
Por outro lado, há-de reconhecer-se, os vícios a que se refere o art. 410.º/2, do CPP, não têm o âmbito e os contornos que, tanto quanto se pode compreender, o arguido pretexta.
Os vícios da sentença (e não do julgamento, como parece querer entender-se), no segmento relativo à matéria de facto, em referência, têm de resultar «do texto da decisão recorrida» – e, como é jurisprudência sedimentada, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos.
Tais vícios não podem ser confundidos com uma divergência entre a convicção alcançada pelo recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela convicção que, nos termos prevenidos no art. 127.º do CPP e com respeito, designadamente, pelo disposto no art. 125.º, do mesmo Código, o Tribunal recorrido alcançou sobre os factos.
Ora, revisto o texto do acórdão em apreço, não se detecta qualquer dos vícios arrolados naquele segmento normativo, designadamente os vício prevenido nas alíneas a), b) e c) do falado art. 410.º/2, do CPP.
É que não só os factos arrolados como provados são perfeitamente suficientes para abonar o decidido como ainda o erro notório na apreciação da prova não consiste numa omissão da relevação de factos provados, mas sim, designadamente, num defeito no iter de apuramento da matéria de facto – o que, no caso, de todo em todo, se não detecta, pois que apenas se pode ter por referência a materialidade alinhada no despacho acusatório, pois que o arguido limitou a sua contestação ao oferecimento do mérito dos autos, não cuidando de alargar o thema probandum e, por tal via, o thema decidendum.
Acresce salientar que o Tribunal recorrido fundamentou, cabal e (diga-se) cuidadosamente o julgado, quando (i) não estava sob «dever» de determinar as faladas perícias, (ii) não assentou como provado que o arguido haja acedido ao falado sítio por mais do que um mês, (iii) a matéria arrolada em 25 e 26 constitui, incontornavelmente matéria de facto, inferida, fundadamente, de outro conspecto fáctico, também oferecido ao juízo impugnatório dos intervenientes processuais, (iv) a credibilização do depoimento das menores não foi posta em causa pelo recorrente, que não cuidou de arguir o pretextado erro de julgamento, (v) a fundamentação constante de 2.3. da decisão revidenda constitui mero reporte dos depoimentos e declarações produzidos em audiência, só por extravagância podendo ter-se como um rol de factos provados, além de que (vi) a materialidade sedimentada como provada configura, inarredavelmente, a autoria material, pelo arguido, dos crimes por que foi condenado (nem o arguido contesta o dito enquadramento jurídico).
Improcede assim, nesta parcela, o argumentário do recorrente.

9. Quanto à questão de saber se a decisão revidenda, no plano da escolha e da medida da pena, padece de inadequação, por excesso, devendo ser comutada in melius.
Neste particular, o recorrente salienta, com relevância, que (i) as atenuantes da confissão, do bom comportamento anterior e posterior, da inserção sócio-familiar do arguido e do largo tempo decorrido desde a prática dos factos, deveriam ter conduzido à selecção de uma «pena mais leve e à respectiva suspensão de execução», (ii) acatando o parecer do IRS, o arguido já se encontra inscrito para ser seguido na consulta de sexologia do hospital, (iii) a decisão recorrida omite o importante papel desempenhado pelo recorrente no acompanhamento de sua filha, criança sobredotada a carecer de cuidados especiais, e (iv) a decisão revidenda padece da omissão total de elementos de prova sobre a personalidade do arguido.
Em sede de circunstancialismo pessoal e atenuativo, o Tribunal recorrido considerou a materialidade alinhada sob os n.os 28-33-do rol de factos provados.
Adiantou a respeito:

«As molduras penais abstractas que devemos ponderar são de prisão até 3 anos para ambos os crimes.
Resta, portanto, determinar a medida concreta das penas a aplicar ao arguido.
As ideias base que devemos ter presentes são as de que as finalidades da aplicação de uma pena residem, primordialmente, na tutela dos bens jurídicos, na reinserção do arguido na comunidade e a de que a pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.
Assim, em primeiro lugar, a medida da pena há-de ser aferida pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados. Teremos que encontrar, como ponto de referência, o limiar mínimo abaixo do qual já não será comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a tutela de tais bens jurídicos, respondendo às expectativas da comunidade na reposição contrafáctica da norma jurídica violada. Este ponto será o limite mínimo da moldura penal concreta.
Por outro lado, a culpa do arguido fornecer-nos-á o limite absolutamente inultrapassável na medida da pena, mesmo atendendo a considerações de carácter preventivo.
Finalmente, considerando o ponto fundamental das necessidades de tutela dos bens jurídicos e o limite inultrapassável fixado pela culpa do arguido, há que encontrar a medida da pena que melhor responde às necessidades da prevenção especial de socialização.
Os factores que nos permitirão decidir, face às considerações acima expostas, qual a medida da pena adequada ao caso concreto do arguido constam do artigo 72º do Código Penal de 1982 ou artigo 71º na versão revista. Iremos atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (pois essas já foram consideradas), deponham a favor do agente ou contra ele.
Assim, há que atender aos seguintes factos: o grau de ilicitude da actuação do agente, que é elevado, o grau de violação do bem jurídico protegido pela norma, bem como as consequências daí resultantes, que assumem uma relevância elevada, atentas as características da actuação do arguido, na medida em que era muito e variado o material pornográfico envolvendo menores de 14 anos (muitas das vezes mesmo com 6 ou 8 anos) que detinha e ainda que o cedeu, precisamente, a outras menores, embora estas já com 14 anos de idade; o dolo é directo; a ausência de antecedentes criminais; a condição cultural, económica e social do arguido que é elevada; o facto de não ter manifestado arrependimento ou vontade de interiorizar o errado da sua conduta, pois que embora tenha assumido, na generalidade, a prática dos actos referidos, não demonstrou que para si eles fossem errados ou sequer que tivesse capacidade para se auto-censurar.
As necessidades de prevenção geral positiva são aqui particularmente relevantes, dado o grau de violação do bem jurídico protegido e o contexto em que se passaram os factos, assim como a repercussão e frequência de crimes desta natureza na nossa comunidade. E neste particular não pode deixar de se referir que embora o arguido não tenha chegado a concretizar com as menores envolvidas no processo práticas das quais elas possam considerar-se penalmente como vítimas, ficou patente que isso só não aconteceu porque a situação foi detectada a tempo e o relacionamento entre o arguido e as menores foi cortado (note-se que o arguido refere que apenas mantinha fantasias com as menores e não era sua intenção concretizá-las, mas por diversas vezes se deslocou ao Norte do país para as contactar pessoalmente, assim como se assume apaixonado por uma das menores).
A culpa do arguido aponta para um limite considerável dentro da moldura penal respectiva, face à personalidade manifestada e não olvidando que agiu com dolo directo.
Também as necessidades de prevenção especial de socialização, no presente caso, são elevadas, pelo que a medida concreta da pena não deverá andar muito distante do limiar máximo fixado pela culpa do arguido. Com efeito, muito embora estejamos perante um arguido que, ao longo de toda a sua vida, nunca foi condenado e que se mostra socialmente integrado, desconhecemos em absoluto qual o comportamento anterior do arguido no que se prende com comportamentos de natureza sexual relacionados com menores (que como é sabido facilmente são encobertos). Ademais, o arguido demonstrou uma personalidade que facilmente o levará à prática de factos de idêntica natureza, pois é um indivíduo que se interessa por relacionamentos sexuais com jovens e por temáticas sexuais aberrantes, as quais associa com frequência a interesses por ocultismo e a uma propensão karmica para a sua ocorrência. Significa isto que o arguido se move por padrões mentais em que as questões sexuais assumem uma relevância imensa (basta atentar no longo guião do filme pornográfico que estava a escrever, e cujo teor revela todo o tipo de práticas que o estimulam, ou no regulamento de concursos de natureza sexual que também elaborou, com uma precisão e pormenores que são impressionantes) e que não tem mecanismos de auto-controlo que sejam suficientemente fortes para que o impeçam de concretizar as suas fantasias, caso isso se proporcione.
Por tudo o exposto, consideramos adequada a pena de 2 anos de prisão para cada um dos crimes de abuso sexual que se concluiu que o arguido cometeu.
De acordo com o disposto no artigo 77º do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.
Assim sendo, os crimes em causa encontram-se numa relação de concurso, havendo que proceder, por conseguinte, ao respectivo cúmulo jurídico de penas (artigos 77º do Código Penal).
Na determinação da pena única haverá que considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, tendo a pena aplicável como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a pena parcelar mais elevada entre as concretamente aplicadas.
Considerando, que o arguido que os crimes em questão estiveram relacionados com uma mesma motivação determinante de toda a actuação daquele, bem como a proximidade temporal e circunstancial da actuação, e atendendo a que a pena única a apurar tem como limite máximo 4 anos de prisão e como limite mínimo 2 anos de prisão, considera-se adequado fixar, em cúmulo jurídico, a pena única de 3 anos e 3 meses de prisão.
Note-se que a pena única concreta entendida pelo tribunal como adequada não permite ser suspensa na sua execução, face ao disposto no artigo 50º nº 1 do Código Penal, que determina que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Mas ainda que assim não fosse – e que a medida concreta da pena permitisse essa suspensão – precisamente porque a personalidade do arguido e as circunstâncias em que praticou os crimes não permitem concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão fossem adequadas e suficientes para satisfazer as necessidades da punição supra referidas, sempre o tribunal teria que se decidir pela aplicação de uma pena de prisão para cumprimento efectivo.
Na verdade, são suficientemente demonstrativos da personalidade do arguido a circunstância de o mesmo, apesar de referir que esta foi uma fase ultrapassada da sua vida, continuar a tentar contactar com a menor L. mesmo já na pendência destes autos (com efeito, uma coisa é aquilo que o arguido verbaliza e outra totalmente diferente é aquela que sente e faz, do mesmo modo que não se pode considerar que tendências e interesses sexuais como os manifestados pelo arguido sejam “fases de uma vida”), e de ter chegado a falar às menores da sua própria filha, dizendo mesmo que não sabia quanto tempo lhe iria resistir. Além disso, justificar os seus comportamentos com existência karmicas ou ocultas não conduz a nenhum tipo de auto-censura.
O arguido necessita, pois, de ser sujeito a uma censura penal suficientemente forte para o fazer interiorizar que o nosso sistema penal não tolera comportamentos como aqueles que preconiza, ainda que continue a fantasiá-los. E esse desiderato só por via de uma pena de prisão efectiva poderá ser alcançado.»

Vejamos agora.
Neste particular da escolha e medida da pena, está em causa, relativamente a cada um dos comprovados crimes cometidos pelo arguido, a moldura abstracta de prisão de 1 mês a 3 anos.
O Tribunal recorrido, recorde-se, estabeleceu a pena concreta de 2 anos de prisão para cada um dos referidos crimes, em sequência do que, relativamente a cada uma delas e em cumprimento (designadamente) do disposto no art. 50.º/1, do CP, pronunciou-se pela inaplicabilidade de uma pena de substituição, designadamente de uma pena de prisão suspensa na sua execução. Depois, operado o cúmulo jurídico da tais penas parcelares, fixou a pena única em 3 anos e 3 meses de prisão.
Sem desdouro para a sensibilidade do Colectivo a quo, traduzida na decisão, afigura-se que a pena concreta estabelecida para cada um dos crimes se afasta demasiadamente do limiar médio da moldura abstracta para, em reporte aos factos provados, poder ter-se como adequada e proporcional.
Vejamos porquê.
A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra aquele – art. 71.º, do CP.
A pena não pode ultrapassar a medida da culpa – art. 40.º/2, do mesmo Código.
O modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é, na impressiva síntese do Prof. Figueiredo Dias, «aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente» (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, pp. 186/187).
No caso, verifica-se dolo intenso, atento o iter dos crimes em presença, evidenciador de uma firme vontade, por parte do arguido, de praticar os factos.
Ainda assim, o grau de ilicitude dos factos, apesar de ter incontornável significado, não se figura de grau tão elevado como ao Tribunal a quo, na medida em que os contactos estabelecidos entre o arguido e as vítimas não evidenciam, em tão acentuada escala, uma conduta sexual susceptível de prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da personalidade das ofendidas.
Sem embargo, não pode deixar de se reconhecer, por um lado, que «a plasticidade do instinto sexual faz com que o livre exercício da sexualidade [mormente nos primeiros estádios da vida], revista uma importância fundamental para o desenvolvimento da personalidade individual, justificando assim a sua especificidade no seio dos crimes contra a liberdade em geral» (cfr. Karl Prelhaz Natscheradetz, «O Direito Penal Sexual», p. 158) e, por outro lado, que «os tipos de experiências sexuais que uma pessoa tem, especialmente durante a adolescência, são importantes na direcção ou reforço do fluxo da sua preferência sexual» (cfr. Weinberg, Williams e Prior, citados por José Mouraz Lopes, em «Os Crimes Contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal», 1998, p. 81), «sendo por isso importante que, nesta fase da formação da personalidade se procure de sobremaneira um desenvolvimento adequado da sexualidade, no sentido de proteger a liberdade do menor no futuro, para que decida, em liberdade, o seu comportamento sexual» (José Mouraz Lopes, ibidem) ou, ainda, que «a especificidade destes crimes reside como que numa obrigação de castidade e virgindade quando estejam em causa menores, seja de que sexo forem» (cfr. Figueiredo Dias, em «Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão», Ministério da Justiça, 1993, p. 261).
Por outro lado, como ressaltava, há poucos dias (5-5-2005), no Le Monde, o magistrado e professor da Escola de Magistratura Francesa, Xavier Lameyre,

«Il existe aujourd'hui, même si ce n'est pas facile à entendre, un traitement pénal démesuré des infractions sexuelles. Souvent, les règles élémentaires de présomption d'innocence et d'examen des preuves ne sont pas respectées, on l'a vu au procès d'Outreau. Il y a une espèce d'assourdissement de la justice pénale face à la clameur publique, l'hyper-répression de cette criminalité étant une des facettes de ce que Denis Salas nomme le "populisme pénal" - Le Monde du mardi 3 mai.
L'utilisation de la loi comme simple outil de communication, le recours croissant à ce que Pierre Mazeaud, le président du Conseil constitutionnel, a nommé "des lois d'affichage", traduit une surenchère démagogique bien plus que l'intérêt du législateur pour l'application effective des dispositions votées. En voulant répondre à l'attente des victimes, on tolère une inquiétante déshumanisation des auteurs, systématiquement assimilés à des"monstres", à des "prédateurs" .
Comme pour la viande bovine, on parle de leur "traçabilité" au moyen d'un fichage spécial et d'une éventuelle surveillance électronique mobile.Cette démesure pénale est aussi perceptible dans le renversement des valeurs. Plus sévèrement condamné, en particulier quand il a été commis sur mineur, le meurtre psychique qu'est le viol semble, plus que le meurtre physique, être devenu le crime absolu.
C'est une évolution majeure que le "Tu ne tueras point" soit remplacé, après plusieurs millénaires, par le Noli me tangere : "Ne me touche pas."»

Acresce salientar a primariedade delitiva, a atitude repesa revelada e a inserção familiar e sócio-profissional do arguido, o que atenua sobremaneira as exigências de prevenção especial – desde que, designadamente, a compulsividade inerente aos falados comportamentos, a pulsão revelada pela descrita actividade delitiva, possam ser controladas.
Por outro lado ainda, deve reconhecer-se que, se é verdade que, em abstracto, o crime em presença tem grande impacto na comunidade (impacto que, conceda-se, tem sido induzido, inflacionado e acirrado, quantas vezes até ao intolerável, por certos, imoderados, meios de comunicação social), não é menos certo que, não havendo conhecimento de outros actos do arguido de idêntica índole e não sendo o presente dos mais graves actos que podem configurar-se no alcance do tipo-de-ilícito, as necessidades de prevenção geral não atingem um grau que suporte a determinação da pena concreta para além do ponto médio da moldura abstracta, antes devendo ponderar-se que o mínimo de pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada se situa em ponto coincidente com o referido termo médio da moldura penal prevenida no referido art. 172.º/3, do CP.
Termos em que se afigura adequada, relativamente a cada um dos crimes em presença, estabelecer a pena concreta em 1 ano e 6 meses de prisão.
Importa, depois, considerar, relativamente a cada uma das duas penas parcelares em referência, a possibilidade de estabelecimento de uma pena de substituição, designadamente de uma pena de prisão suspensa na sua execução.
Vejamos ainda.
O decretamento da pena de substituição consistente na suspensão da execução da pena de prisão (art. 50.º, do CP) decorre da seguinte ordem de considerações.
Para a aplicação da suspensão da execução da pena, a lei define um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 3 anos) e estabelece pressupostos subjectivos, determinados por finalidades político-criminais – os que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente. Trata-se, de alcançar a socialização, prevenindo a reincidência – veja-se, a respeito, com particular impressividade, Anabela Miranda Rodrigues, «A posição jurídica do recluso», p. 78 e segs. e «O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena privativa da liberdade», in Problemas Fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2002, p. 177-208.
Assim, sempre que o julgador puder formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial sobre a possibilidade de ressocialização do arguido, deverá deixar de decretar a execução da pena.
Estão em causa, não considerações sobre a culpa mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção.
Pretende-se, como sublinha, com incontornável autoridade, o Prof. Figueiredo Dias, «o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correcção, melhora ou – ainda menos – metanóia das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É, em suma, como se exprime Zipf, uma questão de legalidade e não de moralidade que aqui está em causa. Ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência».
Depois de se optar por uma pena detentiva, à luz das considerações e com os critérios legais sobre-expostos, importa pois determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada, a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, devendo negar-se a suspensão sempre que, fundadamente, seja de duvidar dessa capacidade.
Nos termos prevenidos no art. 50.º, do CP, a averiguação de tal capacidade deve ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou.
Se, dessa análise, resultar que é possível esperar que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são idóneos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, deverá ser decretada a suspensão da execução da pena.
Isto apreendido, revertamos ao caso.
Cumpre ponderar que o arguido não tem antecedentes criminais, revelando adequada inserção sócio-profissional e familiar e que, tanto quanto pode relevar-se, se encontra repeso e com vontade de se afastar de tais comportamentos.
Por outro lado, a distância no tempo, para além de limites razoáveis, esbate a utilidade e a função, aqui específica, da prevenção geral, com necessários reflexos na proporcionalidade entre meios (a natureza e a medida da pena) e os fins (a prevenção geral primária); para além de um tempo adequado e razoável, o afastamento entre os factos e a aplicação da pena dilui a perspectiva utilitária da prevenção, e por isso, pode enfraquecer a necessidade de uma determinada pena mais intensa e exigente.
No caso sob apreciação, decorreram cerca de quatro anos entre os factos e aplicação da pena. A uma tal distância não pode já dizer-se, com segurança, que a pena de prisão efectiva seja necessária na dimensão funcional da prevenção geral; não sendo estritamente necessária, as necessidades de prevenção não se opõem à aplicação de uma pena de outra natureza.
Por outro lado, também o comportamento anterior e posterior do agente (primariedade delitiva e arrependimento) e as circunstâncias do facto, podem fazer razoavelmente supor que a simples censura e a ameaça de execução da pena serão injunções fortes e suficientes para garantir a irrepetibilidade de comportamento semelhante, satisfazendo as finalidades da punição.
Verificam-se, assim, os pressupostos de aplicação do artigo 50.º/1, do CP.
Nestes termos, e em aplicação do disposto no artigo 50.º/1 e 5, do CP, afigura-se de suspender, pelo período de 4 anos, a suspensão da execução de cada uma das referidas penas de 1 ano e 6 meses de prisão.
Por exigências de reparação social e de acordo com o permitido no artigo 51.º/1c), do CP, a falada suspensão deve subordinada ao pagamento, no prazo de três meses, da quantia de vinte e cinco mil euros a uma instituição de solidariedade social e apoio a crianças, da escolha do recorrente, designadamente a CRESCERSER ou uma CERCI, ou a instituição pública ou privada que tenha por objecto o apoio à infância desvalida.
Atenta a vontade manifestada pelo próprio recorrente e nos termos prevenidos no art. 52.º/2, do CP, durante o referido período de suspensão, o arguido deverá submeter-se a tratamento médico especializado, designadamente na área da psiquiatria e da sexologia.
Ponderados, na sua globalidade, os factos provados e a revelada personalidade do arguido, nos termos prevenidos no art. 77.º/1, do CP, cabe efectuar o cúmulo jurídico das referidas penas parcelares e, a final, condenar o arguido na pena única de 2 anos e 5 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 4 anos, sob condição de, nesse período, o arguido se submeter ao referido tratamento médico, sob a atenção e o controlo dos serviços de reinserção social.
Tudo visto, o recurso procede, nesta parcela atinente à escolha e medida da pena.

10. Atenta a parcial improcedência do recurso, cumpre condenar o arguido nas custas, conforme o disposto nos arts. 513.º/1 e 514.º/1, do CPP, em medida que atenda à complexidade do processo e à condição económica do arguido, nos termos prevenidos nos arts. 82.º/1 e 87.º/1 b), estes do Código das Custas Judiciais.

III

11. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, A . e, assim, alterar o acórdão revidendo, no segmento atinente à escolha e medida da pena, passando o arguido a condenado:
(a) pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de dois crimes de abuso sexual de crianças, cada um p. e p. nos termos do disposto no art. 172.º/3 c), d) e e), do CP, na pena, por cada um, de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa, na sua execução, pelo período de 4 (quatro) anos, na condição de
(a1) no prazo de 3 (três) meses, fazer entrega da quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a uma instituição de solidariedade social e apoio a crianças, da escolha do recorrente, designadamente a CRESCERSER ou uma CERCI, ou a instituição pública ou privada que tenha por objecto o apoio a crianças; e
(a2) durante esse período de suspensão, sob controlo do Instituto de Reinserção Social, o arguido se submeter a acompanhamento médico especializado, designadamente na área da psiquiatria e da sexologia;
(b) em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenado na pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, suspensa, na sua execução, pelo referido período e com as mencionadas condições.
Mais se decide condenar o arguido recorrente nas custas, com a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.
Após trânsito, comunique-se, com cópia, ao Instituto de Reinserção Social

Lisboa, 15/06/2005


João Cotrim Mendes, Presidente da Secção / António M. Clemente Lima, relator / Maria Isabel Duarte, Primeira Adjunta / António V. Oliveira Simões, Segundo Adjunto