Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | FOLQUE DE MAGALHÃES | ||
Descritores: | SEGREDO PROFISSIONAL ADVOGADO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/20/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | SEGREDO PROFISSIONAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Resulta do art. 135º do C.P.Penal, que o Tribunal Superior pode decidir pela quebra do princípio do segredo profissional quando o respeito pelas normas e princípios civis implique a derrogação do princípio do segredo profissional, tais como o princípio da prevalência do interesse preponderante, como princípio que, em conflito com o princípio do segredo profissional, justifica a derrogação deste. 2. Na aplicação do princípio da prevalência do interesse preponderante há que ter em consideração os dois particulares interesses concretamente em conflito, e, sopesando-os, apurar qual deles deve prevalecer. 3. Os interesses conflituantes em causa são os seguintes: pelo lado dos AA., o reconhecimento do direito de que os RR. lhe devem certa quantia em dinheiro, proveniente de despesas e honorários devidos por serviços prestados no exercício da sua actividade profissional de advogados; por parte dos RR., a improcedência do pedido, por fundamentos vários constantes da sua contestação que agora não importa considerar. 4. Estando em causa a prova da matéria de facto que basicamente se reporta às relações entre as partes no âmbito da matéria de fixação e pagamento de honorários, bem como da prestação dos respectivos serviços, dir-se-á que se justifica a quebra do princípio do segredo profissional por se lhe sobrepor o da verdade material, conducente, neste caso, a que o A. obtenha uma decisão em que se lhe reconheça o seu direito ao pagamento de honorários, caso a prova produzida conduza a um tal resultado. 5. Se ambas as partes estão de acordo em que o advogado deve depor como testemunha tão pouco a questão se revela conflituante em sentido forte, pois, ambas e ele próprio não se opôs a isso, apenas pretendendo salvaguardar a sua posição face a diferente entendimento da Ordem dos Advogados. FG | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | 5 Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. RELATÓRIO: 1.1. Das partes: 1.1.1. Requerente: 1º - A e outros, RR. na presente acção. 1.1.2. Requerida: 1º - Dr. R * 1.2. Acção e processo:Incidente de quebra do segredo profissional. * 1.3. Objecto do incidente:1. O requerimento de fls. 946 da autoria dos RR., solicitando que se levante o sigilo profissional relativo ao Dr. R. * 1.4. Enunciado sucinto das questões a decidir:1. Da verificação dos pressupostos da quebra do segredo profissional. * 2. SANEAMENTO:Foram colhidos os vistos. Não se vislumbram obstáculos ao conhecimento do mérito do incidente, pelo que cumpre apreciar e decidir. * 3. FUNDAMENTOS:3.1. De facto: Factos que este Tribunal considera provados: 1. O Dr. R foi arrolado como testemunha, pelos RR. (fls. 638) e pelos AA. (fls. 896). 2. A fls. 898, o Dr. R alegou ter sido advogado dos RR. por causa da matéria destes autos, sendo os AA. seus colegas de escritório, com o mesmo mandato, pelo que pensa que está obrigado ao segredo profissional que só o CDOA de Lisboa poderá dispensar. Requer, a final, que se oficie àquele órgão para que se pronuncie sobre esta matéria. 3. Deferido o pedido (fls. 910), veio o Conselho a emitir Parecer no sentido de que o Dr. R não pode prestar depoimento quanto aos factos que chegaram ao seu conhecimento no âmbito do mandato que lhe foi conferido, por falta de requerimento e concessão da dispensa do segredo profissional (fls. 936/7). 4. Notificadas as partes do Parecer do CDOA, vieram os RR. requerer o levantamento do sigilo profissional (fls. 946) e os AA. o prosseguimento do julgamento, por, no seu entender a inquirição da testemunha Dr. R em nada colidir com o sigilo profissional (fls. 955). 5. Solicitado Parecer à Ordem dos Advogados quanto ao pedido de levantamento do segredo profissional, emitiu aquela o mesmo no sentido de que, quanto aos factos da Base Instrutória nº 9, 10 e 37 a 41 não se encontrarem abrangidos pela obrigação de guardar sigilo profissional, nada impedindo o depoimento quanto a eles pelo Dr. R, mas não estarem reunidas as condições de quebra do sigilo profissional quanto aos demais, ou seja, os nº 5 e 11 a 36. 6. A fls. 918, os RR. requereram que a testemunha Dr. R respondesse aos quesitos 5, 9 e 10 a 41 da Base Instrutória (constantes de fls. 616v a 618, para os quais se remete). * 3.2. De direito:1. A única questão que importa apreciar nestes autos é a da verificação dos pressupostos da quebra do princípio do segredo profissional. 2. Em causa está o depoimento de um Advogado que teve procuração passada pelos RR. e foi colega de escritório dos AA. 3. Relativamente aos advogados, dispõe o nº 1 do art. 87º do E.O.A. que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. 4. Não há dúvida de que o eventual conhecimento das questões sobre que deveria depor – as levadas à Base Instrutória – adveio-lhe do exercício das respectivas funções como advogado, seja na perspectiva dos RR. seja na dos AA. 5. Por isso, é legítima a questão de saber se está ou não sujeito à obrigação de sigilo profissional. 6. Na verdade, quanto a esta matéria, dispõe o nº 1 do art. 519º do C.P.C. que todas as pessoas têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado. E se não prestarem essa colaboração serão condenadas em multa e sujeitas aos meios coercitivos possíveis, sujeitando-se ainda as partes a outras sanções, tudo nos termos do nº 2 seguinte. 7. Porém, logo o nº 3 desse artigo confere legitimidade à recusa se a obediência ao comando do nº 1 importar violação do sigilo profissional. 8. De tudo o exposto, resulta que, embora o Dr. R não se tenha propriamente recusado a depor, é legítima a colocação da questão por si posta à Ordem dos Advogados. 9. Assente a problemática que se põe a este Tribunal nestes dados, importa agora averiguar se, apesar de ser legítima a colocação do problema e dado o primeiro Parecer da Ordem, se verificam os pressupostos que permitem afastar o respeito pelo princípio do segredo profissional, quebrando-o, e, desse modo, admitir o depoimento do Dr.R. 10. A este propósito dispõe o nº 4 do referido art. 519º que, deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado. 11. Por sua vez, compulsando o C.P.Penal, vê-se que o art. 135º nº 3 dispõe que o tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. 12. Resulta desta disposição que o Tribunal Superior pode decidir pela quebra do princípio do segredo profissional sempre que esta quebra se mostre justificada. 13. E quando é que se dá essa justificação? Quando, tendo em conta as normas e princípios aplicáveis da lei civil (há que efectuar a respectiva adaptação para o plano civil, uma vez que a questão agora posta assume esta natureza), se revele verificar-se essa justificação, isto é, dito de outro modo, quando o respeito pelas normas e princípios civis implique a derrogação do princípio do segredo profissional. 14. Quais são em concreto essas normas e princípios ver-se-á de seguida. Para já, importa salientar que, no mesmo preceito, logo a lei destaca o princípio da prevalência do interesse preponderante, como princípio que, em conflito com o princípio do segredo profissional, justifica a derrogação deste. 15. Ora, em termos gerais quais são essas normas e princípios que devem levar ao afastamento do princípio do segredo profissional? 16. Logo, em primeiro lugar, elege a lei processual civil o princípio da autodefesa, no art. 1º do C.P.C., ao dizer que a ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo certos casos que agora não relevam. 17. Por conseguinte, a primeira norma e princípio a ter em conta é a de que o direito de cada um deve poder ser realizado e assegurado, e que esses fins não podem ser conseguidos pelos próprios meios, à força. 18. Como é que a lei considerou que se podem alcançar esses fins? Através dos tribunais, mediante a produção de uma decisão judicial em que se aprecie a pretensão do titular do direito, bem como que o mesmo a possa fazer executar, tudo conforme ao disposto no art. 2º do mesmo C.P.C. 19. E o que deve o juiz fazer em ordem à realização dos direitos de cada um? Exercitando o princípio do inquisitório, incumbe ao juiz realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, conforme dispõe o art. 265º do C.P.P. No fundo, cabe ao juiz, no propósito de assegurar o direito dos cidadãos, realizar a justiça. 20. Porém, para tanto, carece de apurar a verdade, pois sendo esta a conformidade entre a realidade e o modo como ela é descrita, só alcançando aquela, poderá ser feita uma real justiça. Doutro modo, a justiça produzida só o será relativamente a uma aparência de realidade, o que, para o caso que se estiver a apreciar, tudo redunda numa injustiça. 21. E que verdade é essa que serve de meio à realização da justiça? É, manifestamente, a verdade material, a única que, em toda a sua extensão, tem direito ao seu próprio nome. Uma verdade formal, espartilhada por princípios na sua aquisição que a confrangem e limitam, não serve à função última de realização da justiça. 22. Eis a razão fundamental, no entender deste Tribunal e salvo outro melhor entendimento, pela qual a lei, no mesmo preceito em que processualmente reconhece e confere o princípio do segredo profissional, logo estabelece as condições em que se justifica a sua quebra. 23. Por último, há que ter em conta o princípio que a lei, exemplificativamente, indica, ainda na mesma disposição, como causa da quebra do princípio do segredo profissional, ou seja, o princípio da prevalência do interesse preponderante. 24. Crê-se que este princípio só faz sentido de ser aplicado aos interesses em concreto conflituantes, pois, como se viu, em abstracto, o interesse maior, na aplicação da justiça, como meio para que esta se realize, é o do apuramento da verdade material, o que desjustificaria a consagração do princípio do segredo profissional. Ver-se-á, adiante, que assim não é em todas as situações. 25. Por conseguinte, na aplicação do princípio da prevalência do interesse preponderante há que ter em consideração os dois particulares interesses concretamente em conflito, e, sopesando-os, apurar qual deles deve prevalecer. 26. Uma última palavra sobre a razão de ser (praticamente transparente) do princípio do segredo profissional: é o corolário do indispensável princípio da confiança que subjaz à relação que se estabelece entre os particulares e toda aquela panóplia de profissionais mencionada no art. 135º do C.P.P., desde os ministros da religião, aos advogados, médicos e demais profissionais. E isto porque é de seu natural que as relações que se estabelecem com aqueles profissionais, em razão das respectivas matérias, pertençam ao foro íntimo de cada um, e, por isso, mereçam todo o cuidado e respeito, havendo que as preservar de desvelos infundados, cometidos, eventualmente, contra a vontade de seus titulares. 27. Por isso, impõe-se, assim, por princípio, que aqueles profissionais guardem segredo, em geral, daquelas matérias cujo conhecimento lhes adveio do exercício das respectivas profissões. 28. Explanadas as ideias teóricas que devem ser tidas na consideração do caso presente, importa, agora, passar à sua aplicação ao caso concreto. 29. Os interesses conflituantes em causa são os seguintes: pelo lado dos AA., o reconhecimento do direito de que os RR. lhe devem certa quantia em dinheiro, proveniente de despesas e honorários devidos por serviços prestados no exercício da sua actividade profissional de advogados; por parte dos RR., a improcedência do pedido, por fundamentos vários constantes da sua contestação que agora não importa considerar. 30. Para decidir o conflito, o Tribunal de primeira instância decidiu levar à Base Instrutória a matéria de facto para a qual se remeteu e que basicamente se reporta às relações entre as partes no âmbito da matéria de fixação e pagamento de honorários, bem como da prestação dos respectivos serviços. 31. Tendo em consideração estes factos, dir-se-á que se justifica a quebra do princípio do segredo profissional por se lhe sobrepor o da verdade material, conducente, neste caso, a que os AA. obtenham uma decisão em que se lhes reconheça o seu direito ao pagamento de honorários, caso a prova produzida conduza a um tal resultado. 32. Além disso, em concreto, a questão não se revela conflituante em sentido forte, pois, ambas as partes estão de acordo em que o Dr. R deve depor, e ele próprio não se opôs a isso, apenas pretendeu salvaguardar a sua posição face a diferente entendimento da Ordem dos Advogados, que é o que se retira da forma como se expressou e requereu a audição da Ordem. 33. Assim sendo, neste caso, está manifestamente justificada a violação do princípio da confiança no qual se funda o do sigilo profissional, pois nenhuma das entidades envolvidas reivindicam a observância do princípio do sigilo profissional. 34. Por isso, não se vê razão para que não se quebre o princípio do segredo profissional, no caso dos autos. * 4 DECISÃO:1. Por tudo o exposto, decide-se o presente incidente no sentido de que a testemunha Dr. R deve depor à matéria levada à Base Instrutória sob os nº 5, 9 e 10 a 41 com quebra do dever do segredo profissional. 2. Custas, a final, pela parte que decair. * Lisboa, 20.1.2009(Eduardo Folque de Sousa Magalhães) (Maria Alexandrina de Almeida Branquinho Ferreira) (Eurico José Marques dos Reis) |