Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10342/06-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: CASAMENTO
PROVA DOCUMENTAL
PROVEITO COMUM
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Numa acção de dívida que não tenha por objecto o vínculo matrimonial existente entre as partes, não é exigível que o autor faça prova do casamento dos réus através de documento autêntico.
II – As afirmações de que “o empréstimo reverteu em proveito comum do casal dos réus” e de que “o veículo referido destina-se ao património comum do casal dos réus” são conclusões de direito e como tal não podem ser alvo do efeito confessório previsto nos artigos 484º nº 1, 490º nº 2 e 784º do Código de Processo Civil.
III – A afirmação de que a quantia emprestada pela autora teve em vista a aquisição de uma determinada viatura, a qual por sua vez se destinava ao casal constituído pelos réus, tem, face ao seu sentido corrente, um conteúdo fáctico bastante para sustentar a subsunção ao conceito jurídico de proveito comum.
IV – Num contrato sujeito ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, devem ser excluídas as cláusulas inseridas depois da assinatura dos contraentes, mesmo que já constassem no documento à data da aposição das assinaturas.
V – Num contrato de concessão de crédito para consumo, se for excluída do contrato, por força do disposto na alínea d) do art.º 8º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25.10, a cláusula segundo a qual a falta de pagamento de uma das quantias periódicas fixadas implicará o imediato vencimento das restantes, com inclusão das parcelas atinentes a juros remuneratórios, o mutuante apenas terá direito, com fundamento no disposto no art.º 781º do Código Civil, ao pagamento antecipado das prestações de capital, acrescidas de juros moratórios e do que resultar de cláusula penal validamente convencionada.
VI - Se for excluída do contrato, por força do disposto na alínea d) do art.º 8º do Decreto-Lei nº 446/85, a cláusula que estipulava a exigibilidade, a título de cláusula penal, de uma indemnização correspondente à aplicação ao montante em débito da taxa de juro contratual acrescida de 4 pontos percentuais, o mutuante que for uma instituição de crédito terá direito a receber, sobre o capital em dívida, juros de mora à taxa contratual, acrescida de 2%, nos termos do art.º 7º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 344/78, de 17.11.
(JL)
Decisão Texto Integral: 18

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 19.10.2001 Banco intentou nas Varas Cíveis de Lisboa a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra J B M , a sua alegada mulher, S O F, e contra A S.
Alega, em síntese (aqui se reproduzindo a resenha feita pelo tribunal a quo) que no exercício da sua actividade e com destino à aquisição de um veículo automóvel segundo informação prestada pelo R. J, por contrato constante de título particular datado de 6 de Outubro de 2000, concedeu ao dito R. sob a forma de crédito directo a importância de esc.3.000.000$00 com juros à taxa nominal de 19,25% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos bem como o prémio de seguro de vida serem pagos em 60 prestações mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 10 de Novembro de 2000 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes. Foi acordado que em caso de falta de pagamento de alguma das prestações na data do vencimento, vencer-se-iam imediatamente as restantes. Em caso de mora sobre o montante em débito a título de cláusula penal acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro acordada acrescida de 4 pontos percentuais. O referido R. não pagou a 7a prestação e seguintes vencida a primeira em 10 de Maio de 2001, vencendo-se então todas. O valor de cada prestação, que incluía juros, era de esc. 80.250$00. O total das prestações em débito ascende a esc. 4.333.500$00, quantitativo este a que acrescem juros. Instado pela A. a pagar a quantia em dívida, o dito Réu fez entrega à A. do veículo para que a A. procedesse à sua venda, revertendo o valor obtido com tal venda no abatimento da dívida. A A. procedeu à venda do veículo pelo preço de esc.1.598.640$00, tendo abatido tal valor à dívida, que ficou cifrada em esc.2.976.007$00. O R. J, apesar de instado ao pagamento, ao mesmo não procedeu. O empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal pelo que a Ré mulher é igualmente responsável pela dívida. O Réu A assumiu por termo de fiança, datado de 6 de Outubro de 2000, perante a A. a responsabilidade de fiador solidário por todas e quaisquer obrigações assumidas no contrato referido pelo R. J pelo que é solidário com este pelo pagamento de tal montante.

A A. terminou pedindo a condenação dos RR. a pagarem à A. a importância de esc.2.976.007$00 acrescida de esc.147.863$00 de juros vencidos até 19 de Outubro de 2001 e de esc.5.915$00 de imposto de selo sobre estes juros e juros que sobre a dita quantia de esc.2.976.007$00 se vencerem, à taxa anual de 23,25% desde 20 de Outubro de 2001, até integral e efectivo pagamento.

Citados, todos os Réus contestaram.

O Réu J e a Ré S alegaram que o contrato firmado com a A. constitui um conjunto de cláusulas previamente elaboradas pela Autora, composto de condições gerais e específicas. No verso do mesmo e após as assinaturas, sob a epígrafe de condições gerais do contrato surgem uma série de cláusulas que vêm regulamentar as condições em que se celebra o referido contrato, cláusulas essas que foram previamente elaboradas pelo A., sem qualquer participação dos RR.. Tais cláusulas devem ser consideradas excluídas do contrato. Por outro lado, os RR. não foram esclarecidos do teor de tais cláusulas. O Autor nunca por qualquer meio pediu aos RR. ou exigiu a totalidade das prestações alegando o vencimento de todas.

O Réu A contestou em termos idênticos aos dos RR. S e J.

A A. respondeu às excepções arguidas, pugnando pela sua improcedência.

Em sede de audiência preliminar procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e à fixação da base instrutória, sem reclamações.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento, no final da qual o tribunal respondeu à base instrutória, sem reclamações.

Oportunamente foi proferida sentença, na qual o tribunal a quo julgou a acção parcialmente procedente e consequentemente decidiu:

a) Condenar os Réu, J B M e A S F no pagamento à autora "Banco" de uma quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescida de juros moratórios, à taxa anual de 19,25%, desde 11 de Maio de 2001 e até integral pagamento, bem como o correspondente imposto de selo;

b) Absolver os mesmos Réus do mais peticionado pela autora Banco;

c) Absolver a Ré, S O F, do pedido.
A A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. As Condições Gerais, bem como as Condições Específicas acordadas no contrato de mútuo dos autos, encontravam-se já integralmente impressas quando o ora recorrido nele apôs a sua assinatura, não foram inseridas depois da assinatura de qualquer das partes, pelo que não existe qualquer violação do disposto na alínea d) do artigo 8° do Decreto-Lei n.° 446/85, de 25 de Outubro, não havendo que proceder à exclusão de qualquer cláusula do contrato.
2. Não faz qualquer sentido - para além da inexistência de razão justificativa para a exclusão das cláusulas - pretender que estejam apenas em dívida as prestações de capital não pagas, acrescidas dos juros de mora à taxa de 19,25%, contabilizados desde 11.08.2001.
3. Está provado nos presentes autos que o A. na acção, ora recorrente, é uma sociedade financeira de aquisições a crédito, constituindo, actualmente uma instituição de crédito.
4. Não existe qualquer taxa de juro especificadamente fixada pelo Banco de Portugal para a actividade de financiamento de aquisições a crédito, isto é, para a actividade exercida pela A., ora recorrente.
5. A taxa de juro – 19,25% - estabelecida por escrito para o financiamento de aquisição a crédito ao R., ora recorrido, do veiculo automóvel referido nos autos é inteiramente válida.
6. O disposto no artigo 781° do Código Civil, não se restringe às prestações de capital, estendendo-se evidentemente aos juros remuneratórios que fazem parte de cada prestação que se vence.
7. É admissível a capitalização de juros por parte das instituições de crédito ou parabancárias que incluem no capital já vencido, sobre o qual incidem juros de mora, salvo se tal capitalização incidir sobre juros correspondentes a um período inferior a três meses.
8. Não é pois aplicável no contrato de mútuo dos autos o disposto no artigo 560° do Código Civil.
9. Ressalta do contrato de mútuo de fls. , que os juros capitalizados respeitam ao período de cinco anos.
10. A capitalização de juros é, pois, inteiramente válida, no caso do contrato dos autos.
11. É, pois, manifesta a falta de razão do Senhor Juiz a quo na sentença recorrida, que ao julgar, como o fez, parcialmente improcedente e não provada a presente acção, violou o disposto no artigo 560° do Código Civil, nos artigos 5°, 6° e 7°, do Decreto-Lei 344/78, de 17 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 83/86, de 6 de Maio, o artigo 1° do Decreto-Lei 32/89, de 25 de Janeiro, o artigo 2° do Decreto-Lei 49/89, de 22 de Fevereiro, os artigos 1° e 2° do Decreto-Lei 206/95, de 14 de Agosto, e o artigo 3°, alínea I, do Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro.
12. Quer a taxa de juro - 19,25% - convencionada por escrito para o financiamento de aquisição a crédito ao recorrente, quer a cláusula penal ínsita na alínea c) da cláusula 8a do contrato referido nos autos são inteiramente válidas.
13. A cláusula penal consubstanciada no agravamento de 4% da taxa de juro - 19,25% - estipulada nesse mesmo contrato para os juros remuneratórios, corresponde precisamente ao acréscimo permitido pelo normativo ínsito no artigo 7°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 83/86, de 6 de Maio.
14. Nada se contém na dita cláusula 8a, alínea c), do contrato de mútuo dos autos, que configure desproporção, e, muito menos, desproporção sensível, entre a pretensa pena nele estabelecida e os prejuízos a ressarcir.
15. Lembre-se aliás que no quadro negocial padronizado do contrato dos autos se previa uma taxa de juro, legalmente válida, de 19,25%, e que a cláusula penal acordada se cifra num aumento de apenas 4% a acrescer à dita taxa de juros acordada, pelo que nunca se poderá considerar a cláusula penal acordada no contrato dos autos como excessiva.
16. Não tem pois fundamento a pretensa desproporcionalidade da cláusula penal do contrato dos autos, e não tem, também, fundamento a pretensa nulidade da cláusula 8a do contrato dos autos.
17. Porque de factos articulados pelo A., ora recorrente, e confessados pelos RR., ora recorridos, se trata devia o Senhor Juiz a quo ter considerado provada nos autos a matéria de facto não impugnada constante do artigo 21° da petição inicial de fls. - ou seja "O empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos RR., - atento até o veiculo referido se destinar ao património comum do casal dos RR." -, nos termos e de harmonia com o disposto nos artigos 490°, n° 2 do Código de Processo Civil e condenado, por isso, todos os RR., ora recorridos, solidariamente entre si, no pedido dos autos. Tanto mais que,
18. Contrariamente ao "entendido" pelo Senhor Juiz a quo, a alegação de que "O empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos RR., - atento até o veiculo referido se destinar ao património comum do casal dos RR." não só não é meramente conclusiva nem matéria de direito como contém em si mesma matéria de facto relevante para a decisão dos autos, que, uma vez provada - como é o caso -, impõe a condenação também da R S, ora recorrida, solidariamente entre si, no pedido dos autos.
19. Ao decidir como decidiu na sentença recorrida o Senhor Juiz a quo violou, interpretou e aplicou erradamente o disposto nos artigos 490°, n.° 2 do Código de Processo Civil.
20. Nestes termos, deve ser dado inteiro provimento ao presente recurso de apelação, e, por via dele, proferir-se acórdão que revogue parcialmente a sentença recorrida e que considere provados não só que os RR são casados entre si como também os factos constantes do artigo 21 ° da petição inicial de fls. , nos termos e de harmonia com o disposto na alínea a) do n.° 1 do artigo 712° do Código de Processo Civil, e que julgue a acção inteiramente procedente e provada, condenando todos os RR., ora recorridos, solidariamente entre si no pedido formulado, como é de inteira Justiça.
Os RR. J B M e S O F apresentaram contra-alegações, nas quais pugnaram pela improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões a apreciar neste recurso são as seguintes: se a Ré S deve ser co-responsabilizada pela dívida contraída pelo Réu J M; consequências decorrentes do facto de algumas das cláusulas do contrato sub judice figurarem após a assinatura aposta no contrato; se o vencimento antecipado das prestações acordadas abrange os juros remuneratórios; se poderão ser reclamados juros moratórios sobre os juros remuneratórios peticionados, com o acréscimo de 4% sobre a taxa de juro contratual.
Primeira questão (se a Ré S deve ser co-responsabilizada pela dívida contraída pelo Réu J M)
Pelo tribunal a quo foi dada como provada a seguinte
Matéria de Facto
1. A A., no exercício da sua actividade comercial, e com destino, segundo informação então prestada pelo R. marido, à aquisição de um veículo automóvel, com a matrícula JH, que se destinava ao casal constituído pelos RR., por acordo constante de título particular datado de 6 de Outubro de 2000, emprestou ao R. marido a quantia de esc.3.000.000$00.
2. Nos termos do acordo referido em 1 celebrado entre a A. e o referido R. marido, aquela emprestou a este a dita importância de Esc. 3.000.000$00, com juros à taxa nominal de 19,25% ao ano, devendo a importância do empréstimo, e os juros referidos, bem como o prémio de seguro de vida, serem pagos, nos termos acordados, em 60 prestações, mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 10 de Novembro de 2000 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.
3. De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga - conforme ordem irrevogável logo dada pelo referido R. marido para o seu Banco - mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para conta bancária logo indicada pela ora A.
4. Conforme consta do documento junto a fls. 10 - a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações.
5. Conforme consta do verso do documento junto a fls. 10, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada --19,25% - acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 23,25%.
6. O referido R. marido, das prestações referidas, não pagou a 7.a e seguintes, vencida a primeira em 10 de Maio de 2001.
7. Conforme expressamente consta do acordo referido em 1, o valor de cada prestação, que incluía juros, era de Esc. 80.250$00.
8. Instado pelo A. para pagar a importância em débito e juros respectivos, bem como o imposto de selo incidente sobre estes juros, o R. marido fez entrega ao A. do veículo automóvel, com a matrícula, JH, referido em 1, para que o A. diligenciasse proceder à respectiva venda, creditasse o valor que por essa venda obtivesse por conta do que o dito R. marido lhe devesse, e ficando este R. marido de pagar ao A. o saldo que se viesse a verificar ficar então em débito.
9. Em 02 de Agosto de 2001, o R. marido, por intermédio do A., procedeu à venda do veículo automóvel referido em 1, pelo preço de Esc. 1.598.640$00 -, tendo o A., conforme acordado com o R. marido, ficado para si com a dita quantia de Esc. 1.598.650$00, por conta das importâncias que o R. marido então lhe devia.
10. 0 R. António apôs a sua assinatura no documento cuja cópia se mostra junta a fls. 12 intitulado "Termo de Fiança" e a seguir aos dizeres "Declaro que me constituo perante e para com a fiadora de todas e quaisquer obrigações que para o Mutuário, resultem do contrato de mútuo com fiança. Mais declaro que a presente garantia tem o conteúdo e o âmbito legal de uma fiança solidária, incluindo a assunção das obrigações do afiançado. Para os efeitos meramente fiscais, arbitra-se à presente fiança, o valor de Esc.: 100 000$00.
11. O acordo referido em 1. foi assinado nas instalações do fornecedor do veículo sem a presença de nenhum representante da A..
12. Aquando da assinatura do R. marido do acordo de fls. 10 dos autos e referido em 1. já todas as Cláusulas Gerais do referido contrato se encontravam integralmente impressas e a A. já o enviou assim para o dito fornecedor para que o R. o assinasse.
13. A A. estava à disposição do R. marido para lhe prestar todos os esclarecimentos e informações complementares que este eventualmente reputasse necessários relativamente ao contrato dos autos, quer anteriormente a este o ter subscrito, quer posteriormente.
14. 0 R. não solicitou à A. que esta lhe prestasse qualquer informação ou esclarecimento relativamente ao contrato de mútuo dos autos anteriormente à aposição da sua assinatura no dito contrato, ou sequer posteriormente.
15. Após a venda do veículo referido em 1., a A. exigiu ao R. marido o remanescente da dívida.
O Direito
A apelante entende que entre os factos provados deve incluir-se a matéria de facto não impugnada constante do artigo 21° da petição inicial, ou seja, que "o empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos RR., - atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR."
A referida alegação do A. tem em vista a co-responsabilização da Ré pela dívida contraída pelo Réu J, ao abrigo do disposto no art.º 1691º nº1 alínea c) do Código Civil. Este preceito estipula que são da responsabilidade de ambos os cônjuges “as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge, administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração”.
A responsabilização da Ré ao abrigo do aludido preceito legal pressupõe, desde logo, que a dívida tenha sido contraída na constância do matrimónio.
Na sentença recorrida diz-se que esse requisito não se provou.
Se analisarmos a matéria dada como provada pelo tribunal a quo, e que esta Relação aceita, conclui-se que o casamento entre os Réus J e S, tanto à data do contrato sub judice, como posteriormente, é um facto dado como assente: no nº 1 da matéria de facto diz-se que o empréstimo foi contraído pelo Réu marido, para a aquisição de um veículo automóvel que se destinava ao casal constituído pelos RR. e ao longo de toda a matéria de facto é imputada a esses Réus o estado de casados um com o outro, através da qualificação do A. J como Réu marido. De resto, os Réus não impugnaram esse facto, que foi por isso dado como matéria assente aquando do despacho de selecção da matéria de facto, sem reclamações das partes. Na contestação estes Réus auto-intitulam-se marido e mulher. Também nas contra-alegações do recurso os Réus não questionam o seu matrimónio, nem a sua vigência à data da celebração do contrato. Assim, e sendo certo que a presente acção é uma acção de dívida e não uma acção que tenha por objecto o vínculo matrimonial existente entre as partes, não é exigível que o Autor faça prova do casamento através de documento autêntico (cfr., v.g., acórdão do STJ, de 15.3.2005, in Col. de Jur., STJ, ano XIII, t. 1º, pág. 132 e acórdão do STJ, de 21.11.2006, internet, dgsi-itij, processo 06A3420), exigência essa para a qual aliás o A. nunca foi alertado ao longo do processo, a não ser através da prolação da sentença.
Resta apreciar a circunstância de na sentença recorrida não se ter dado como provado o teor do artigo 21º da petição inicial, ou seja, a alegação da A., de que “o empréstimo reverteu em proveito comum do casal dos RR. - atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR”.
Como se viu, um dos requisitos para a responsabilização de um cônjuge, por uma dívida contraída pelo outro, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 1691º do Código Civil, é que a dívida tenha sido contraída “em proveito comum do casal”.
Pires de Lima e Antunes Varela, concordando com Alberto dos Reis, entendem que o problema da existência do proveito comum do casal na contracção de determinada dívida é uma questão mista ou complexa: questão de facto, enquanto se trata de averiguar qual foi o destino dado ao dinheiro que o cônjuge administrador haja recebido; questão de direito, quando se procura determinar, em face do destino apurado, se a dívida foi ou não contraída em benefício do casal (obra citada, páginas 333 e 334) - sendo certo que o proveito comum do casal não se presume (nº 3 do artº 1691º do Código Civil).
Concordamos com tal entendimento, do qual decorre que as afirmações de que “o empréstimo reverteu em proveito comum do casal dos RR.” e de que “o veículo referido destina-se ao património comum do casal dos RR.” são conclusões de direito, consubstanciam juízos de subsunção a regras jurídicas, cuja demonstração carece da alegação e prova de situações de facto nelas enquadráveis. Daí que afirmações como as contidas no art.º 21º da petição inicial não possam integrar a base instrutória (art.º 511º do Código de Processo Civil), tendo-se por não escritas as respostas do tribunal eventualmente dadas sobre elas, enquanto questões inseridas na base instrutória (art.º 646º nº 4 do Código de Processo Civil). E daí que sobre tais afirmações não recaia o efeito confessório previsto nos artigos 484º nº 1, 490º nº 2 e 784º do Código de Processo Civil.
Neste sentido se pronunciou o STJ, por exemplo, no acórdão de 19.10.2004, publicado na internet, dgsi, processo 04A2730, e no acórdão datado de 07.12.2005, publicado na internet, dgsi, processo 05B1995.
Porém, constata-se que logo no despacho intercalar de selecção da matéria de facto assente se deu como provado o que consta no nº 1 da matéria de facto supra enunciada, ou seja, que a quantia emprestada pela A. teve em vista a aquisição de uma determinada viatura, a qual por sua vez destinava-se (como se destinou) ao casal constituído pelos Réus. Esta matéria não foi minimamente questionada pelos Réus e, a nosso ver, contém, face ao sentido corrente da linguagem usada, um conteúdo fáctico bastante para sustentar a subsunção ao conceito jurídico de proveito comum: dizer que uma viatura se destina ao casal constituído pelos Réus significa, para um cidadão normal, que essa viatura irá ser fruída, gozada, pelos dois membros do casal. Tal foi o entendimento da magistrada judicial que conduziu o processo até aos preliminares da fase do julgamento (sendo certo que a audiência de julgamento e a sentença são da responsabilidade de um outro juiz), a qual não sentiu a necessidade de convidar a A. a sanar eventuais vícios da petição inicial no que concerne à alegação de factos, convite esse que também não foi formalizado em momento posterior.
Assim, embora se entenda que não se deve incluir no rol dos factos provados as alegações contidas no art.º 21º da petição inicial, por aí apenas se encontrarem conceitos de direito, ajuiza-se que a matéria de facto dada como provada basta para se concluir que a dívida reclamada foi contraída pelo Réu marido em proveito comum do casal, pelo que a Ré mulher deve ser por ela co-responsabilizada, solidariamente, uma vez que não se mostra afastado o regime supletivo da comunhão de bens adquiridos (artigos 1717º e 1695º do Código Civil).
Na verdade, quanto ao requisito de que a dívida tenha sido contraída pelo cônjuge administrador e dentro dos seus poderes de administração, no processo não foi questionada, nomeadamente pela Ré mulher, a inclusão do acto no âmbito dos poderes de actuação do Réu marido, maxime ao abrigo do disposto no nº 3 do art.º 1678º do Código Civil, nem que tal acto contou, como será normal na vida de um casal que não esteja separado ou desavindo, com o consentimento daquela.
Nesta parte o recurso é, pois, procedente.
Segunda questão (consequências decorrentes do facto de algumas das cláusulas do contrato sub judice figurarem após a assinatura aposta no contrato)
Está assente que a A. e o R. J subscreveram o escrito de que existe cópia a fls. 10 dos autos, o qual consubstancia um contrato de financiamento para aquisição a crédito, integrado na actividade, da primeira, de financiamento da aquisição de bens ou serviços.
Tal "contrato de crédito" está definido no art. 2°, al. a), do DL n° 359/91, de 21/9, como sendo "o contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante".
No caso concreto, o aludido escrito reconduz-se a um contrato de mútuo, que tem em vista financiar o pagamento de um bem vendido ao consumidor por terceiro (art.º 12º nº 1 do Dec.-Lei).
Um dos efeitos essenciais do contrato em causa é a obrigação de o consumidor restituir o valor emprestado acrescido dos respectivos juros, no prazo acordado, como resulta dos arts. 1142° e 1145º do Código Civil, 395° do Código Comercial e 3º alínea e) do Dec.-Lei nº 359/91, de 21.9. e ainda das respectivas cláusulas (os contratos devem ser pontualmente cumpridos – art.º 406º nº 1 do Código Civil).
Ao contrato sub judice aplica-se o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, previsto pelo Dec.-Lei nº 446/85, de 25.10, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 220/95, de 31.8 e pelo Dec.-Lei nº 249/99, de 09.7. Isto porque o aludido contrato assumiu a forma de um contrato de mera adesão, cujas cláusulas estão previamente elaboradas por um dos contraentes (no caso, a financiadora), que as consigna numa generalidade de contratos, sem possibilidade de negociação prévia por parte dos outros contraentes.
O contrato sub judice é um formulário, em que as condições específicas, alusivas às circunstâncias individuais do contraente, constam na parte da frente do documento, e as condições gerais, iguais para todos os contratos, figuram no verso do documento. Tanto a assinatura do mutuário, ou seja, do Réu J B M, como a da mutuante, ora apelante, constam no final da primeira página do documento. Ora, nos termos do disposto na alínea d) do art.º 8º do Dec.-Lei nº 446/85, consideram-se excluídas do contrato “as cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contraentes”.
A apelante entende que o referido preceito não é aplicável ao contrato objecto dos autos, pois as condições gerais já estavam impressas no documento quando o apelado José nele apôs a sua assinatura. Defende, pois, a apelante, que a previsão da alínea d) do art.º 8º do Dec.-Lei nº 446/85 tem em vista situações em que no contrato foram acrescentadas cláusulas em momento posterior ao da assinatura. Tal interpretação da dita norma implica uma restrição no seu âmbito de aplicação que manifestamente não coincide com a intenção do legislador. É óbvio que, se em momento posterior à assinatura de um contrato, ou seja, do momento em que o mesmo se torna perfeito, se acrescentam cláusulas a esse contrato, sem que as mesmas se mostrem acompanhadas de assinatura, sérias dúvidas surgem sobre se tal inserção corresponde à vontade do ou dos contraentes cuja assinatura não acompanha tal acrescento. Mas no regime jurídico regulador das cláusulas contratuais gerais tem-se em vista situações em que não se põe em dúvida que aquando da assinatura dos contratos nele já figuravam todas as cláusulas que o regem: o que se pretende é acautelar os interesses do contraente que apõe a sua assinatura num contrato em cujo teor praticamente não teve possibilidade de influir, por vezes assumindo obrigações e prescindindo de direitos de forma injustificada, abusiva e até mesmo iníqua, sem disso se aperceber. São, conforme as define o legislador no artigo 1º, nº 1, do diploma, “cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar”. A falta de esclarecimento por parte do contratante é presumida (inilidivelmente) pelo legislador, por exemplo, relativamente às “cláusulas que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real” (alínea c) do art.º 8º do Dec.-Lei nº 446/85). Ora, também é de presumir que cláusulas colocadas num espaço posterior ao da assinatura tendam a não ser lidas, ou pelo menos a ser lidas com menor atenção, seja por passarem despercebidas seja por o subscritor deduzir, pela sua localização, que se trata de texto pouco relevante na definição dos respectivos direitos e obrigações. Daí que, em situações como a dos autos, em que as cláusulas contendo as chamadas “condições gerais”, figuram no verso do documento, e as assinaturas estão na “frente” do documento, o legislador imponha a exclusão dessas cláusulas do contrato. Exclusão essa que abarcará mesmo casos em que na página assinada se faça referência a condições gerais, que no entanto só surgem após as assinaturas. Trata-se, como se expende no acórdão da Relação de Lisboa, de 07.02.2006, publicado na Col. de Jur., ano XXXI, tomo I, pág. 94 e seguintes, de “solução legal que se pretende profiláctica e pedagógica relativamente à actuação das entidades comerciais envolvidas nestes ramos de negócio, prosseguida em moldes massificados, com conteúdos rígidos e impessoais, e apresentados sob forma acabada ao seduzido consumidor”, solução essa que se harmoniza com “o cariz fortemente preventivo e eivado dum espírito de profundo garantismo quanto à posição do aderente (que não negoceia, apenas aceita), expresso no diploma legal em referência”. (no mesmo sentido, cfr., v.g., STJ, 06.02.2007, internet, dgsi-itij, processo 06A4524; STJ, 07.3.2006, CJ STJ, ano XIV, tomo I, pág. 110 e seguintes; STJ, 13.01.2005, CJ STJ, XIII, t. I, p. 35 e ss; Rel. de Lisboa, 09.11.2006, internet, processo 7328/2006-8; Rel de Lisboa, 13.5.2003, CJ XVIII, t. III, p. 75 e ss).
Do supra exposto resulta que são excluídas do contrato, enquanto cláusulas fundadas no acordo das partes, as cláusulas supra referidas nos números 4 e 5 da matéria de facto, as quais se encontram no verso do documento, respectivamente como alínea b) e c) do nº 8 das denominadas “condições gerais”.
Terceira questão (se o vencimento antecipado das prestações acordadas abrange os juros remuneratórios)
No caso de exclusão de cláusulas por força do disposto no artigo 8º do Dec.-Lei nº 446/85, “os contratos singulares mantêm-se, vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos” (art.º 9º nº 1 do Dec.-Lei nº 446/85).
A apelante pretende que, por força da aplicação do artigo 781º do Código Civil, a falta de pagamento de uma das prestações implicará o imediato vencimento de todas as restantes, aí se incluindo os juros acordados. Assim, por intermédio de norma legal supletiva obter-se-ia resultado idêntico ao estipulado na alínea b) da cláusula 8ª das condições gerais (cujo texto é o seguinte: “a falta de pagamento de uma prestação, na data do respectivo vencimento, implica o imediato vencimento de todas as restantes”).
Admite-se a validade de uma cláusula com o conteúdo e o sentido do exposto pela apelante, ou seja, que por força de acordo entre as partes, em negócio como o sub judice a falta de pagamento de uma das quantias periódicas fixadas poderá implicar o imediato vencimento das restantes, com inclusão das parcelas atinentes a juros remuneratórios. Porém, trata-se agora de apurar se, na falta de cláusula contratual (como é o caso dos autos, por força da exclusão imposta pelo art.º 8º, alínea d) do Dec.-Lei nº 446/85) é essa a solução prevista no art.º 781º do Código Civil.
É sabido que o artigo 781º do Código Civil (cuja redacção é: “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”) tem em vista obrigações cujo objecto, globalmente fixado, se reparte em várias fracções, escalonadas ao longo do tempo. O objecto da obrigação está fixado desde a constituição da dívida, e só o seu pagamento é repartido em fracções, em regra para facilidade do devedor. Esta regra não se aplica às obrigações de prestação continuada e de trato sucessivo, em que o tempo exerce uma influência essencial na determinação da prestação debitória (v.g., Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. II, 7ª edição, Almedina, pág. 52). Nestas últimas situações, em vez de uma única prestação, a realizar por partes (prestação fraccionada), existem, embora decorrentes de uma só relação obrigacional, diversas prestações, a satisfazer regularmente ou sem regularidade exacta: as rendas, os juros, os salários (v.g., Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, Almedina, pág. 646). Conforme expendia Vaz Serra, no âmbito dos trabalhos preparatórios do Código Civil (“Tempo da prestação. Denúncia”, BMJ, nº 50, pág. 174), “a imediata exigibilidade das prestações em dívida, quando se não paga uma delas, não se justifica senão em relação ao caso de haver uma só dívida, pagável em prestações. Se há várias prestações, mas cada uma destas representa uma dívida distinta (como sucede com as rendas, os salários, as pensões alimentares), não existe fundamento para aquela exigibilidade imediata. Supõe-se, nesta, que uma dívida, que deveria em princípio ser paga de uma vez, se estabelece que será paga em diferentes prestações. Com isto, pretende dar-se ao devedor um meio mais fácil de cumprir” (sublinhado nosso).
O juro constitui o rendimento (integrado no conceito de “fruto civil”, referido no art.º 212º nº 2 do Código Civil) de uma obrigação de capital. Os juros são “a compensação que o obrigado deve pela utilização temporária de certo capital, sendo o seu montante em regra determinado como uma fracção do capital correspondente ao tempo da sua utilização” (A. Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 8ª edição, Almedina, páginas 885 e 886). O seu montante varia em função de três factores: o valor do capital devido, o tempo durante o qual se mantém a privação deste por parte do credor e a taxa de remuneração fixada por lei ou estipulada pelas partes.
A falta de pagamento dos juros vencidos não implica o vencimento antecipado de juros futuros, ou seja, não se integra na previsão do art.º 781º do Código Civil (Almeida Costa, obra citada, pág. 952); por outro lado, também não implica o vencimento antecipado das prestações em que estiver fraccionado o pagamento do capital, uma vez que se trata de obrigações distintas (Vaz Serra, Tempo da prestação…, páginas 54, 176 e 177; A. Varela, Das obrigações…, vol. II, pág. 54). A falta de pagamento dos juros remuneratórios, na pendência da obrigação de capital com pagamento fraccionado, poderá fundar a resolução do contrato (cfr., no contrato de mútuo oneroso, art.º 1150º do Código Civil), resolução essa que não se identifica com o vencimento de todas as prestações (amortização e respectivos juros) contraídas pelo mutuário em falta (A. Varela, Das obrigações…, vol. II, pág. 54, nota 3).
Isto exposto, é óbvio que em casos como o dos autos o cálculo do montante global a ser pago a título de juros remuneratórios é decisivamente determinado (para além de outros factores, como o risco do negócio, que se repercute no valor da taxa de juro, na exigência de garantias, na obrigatoriedade da celebração de seguro) pelo tempo que previsivelmente demorará a privação do capital mutuado por parte da financiadora. A diferença entre a quantia mutuada e aquilo que o mutuário pagará à financiadora traduz a remuneração paga pela disponibilização imediata da quantia inicial e o diferimento no tempo da sua restituição. O pagamento dessa remuneração, o juro acordado, pressupõe essa passagem do tempo. Se, por força do disposto no art.º 781º do Código Civil, o credor exigir a restituição imediata do capital, na falta de convenção diversa fica prejudicada a exigibilidade dos juros remuneratórios vincendos. Por outras palavras, o artº 781º do Código Civil apenas fundamenta o imediato vencimento das prestações do capital vincendas, não abrange os juros remuneratórios, mesmo que, como é o caso dos autos, por interesse ou conveniência das partes os juros remuneratórios estejam incluídos nas quantias mensais fixadas. A inclusão dos juros remuneratórios nas chamadas “prestações” mensais não faz esquecer a sua natureza e fonte particulares, supra referidas, não pode mascarar os juros remuneratórios de molde a transmutá-los na obrigação de capital, tida em vista no art.º 781º do Código Civil.
É certo que o art.º 1147º do Código Civil estipula que (salvo convenção em contrário), no caso de mútuo oneroso, o mutuário pode antecipar o pagamento desde que satisfaça os juros por inteiro. O mutuário não tem, pois, direito ao chamado interusurium, visto que o credor, em cujo benefício o prazo também foi (presumidamente) fixado, tinha o direito de exigir o cumprimento integral na data do vencimento. Neste caso, porém, trata-se de uma situação de antecipação voluntária, em que o devedor não poderá invocar a existência de um enriquecimento sem causa por parte do mutuante, a menos que o pagamento seja feito antes da data do vencimento por força de erro desculpável (cfr. art.º 476º nº 3 do Código Civil). Diversamente, sustenta-se que o devedor tem direito ao interusurium quando a antecipação é exigida pelo credor (Almeida Costa, Direito das Obrigações… pág. 947, nota 2). Vaz Serra entendia que “quando o credor obtém a prestação antes do vencimento, em consequência de caducidade do prazo da obrigação, parece razoável que deva descontar o interusurium. Ele vem a conseguir então mais cedo o objecto da prestação, contra a vontade do devedor; pode tirar desse objecto proveito desde a data da prestação até à do vencimento; e, portanto, se não deduzisse o interusurium, poderia auferir grande vantagem” (Tempo da prestação. Denúncia”, BMJ, nº 50, pág. 158). Para Vaz Serra, no caso de dívida que vence juro, a antecipação do pagamento contra a vontade do devedor terá como consequência que “o credor fica privado do juro, que ela produziria até ao vencimento, privação essa que poderá compensar com nova colocação frutífera do capital” (citado, páginas 159 e 160). Vaz Serra frisa que a antecipação da exigência da prestação, por perda do benefício do termo por parte do devedor, visa subtrair o credor do risco que o seu crédito correria, se a quantia devida continuasse por pagar, ou seja, visa acautelar os seus interesses, e não proporcionar-lhe um lucro (estudo citado, pág. 161).
Na previsão do art.º 781º do Código Civil, embora a falta de pagamento de uma das parcelas da obrigação seja imputável ao devedor, é o credor quem opta por se prevalecer da antecipação, por tal ser mais favorável aos seus interesses (sendo certo que, pese embora a lei, contrariamente ao texto do Código Civil de Seabra e ao dos trabalhos preparatórios, fale em “vencimento” de todas as prestações e não em “direito de exigir” todas as prestações, entende-se que está em causa um benefício que a lei concede ao credor, mas que não decreta ela própria, sendo pois necessária a interpelação do devedor – neste sentido, A. Varela, Das obrigações…, vol. II, páginas 53 e 54; Almeida Costa, Direito das Obrigações… pág. 951; STJ, 06.02.2007, internet, dgsi-itij, processo 06A4524; contra, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Coimbra Editora, pág. 270 e seguintes).
Por conseguinte, a disposição prevista no art.º 1147º do Código Civil não tem aplicação ao caso. De resto, a contratos como o dos autos aplica-se, não o art.º 1147º do Código Civil, mas a norma especial contida no art.º 9º do Dec.-Lei nº 359/91, a qual prevê o direito de o consumidor cumprir antecipadamente o contrato de crédito, com parcial redução do devido.
Concorda-se, pois, com a decisão recorrida, alinhando-se pela jurisprudência expressa em acórdãos como os do STJ, de 06.02.2007 (internet, dgsi-itij, processo 06A4524), de 07.3.2006 (Col.de Jur. STJ, ano XIV, tomo I, pág. 110 e seguintes), de 11.10.2005 (internet, processo 05B2461), de 27.4.2005 (CJ STJ, XIII, t. II, p. 66 e ss), de 19.4.2005 (internet, processo 05A493) e da Relação de Lisboa, de 09.11.2006 (internet, processo 7328/2006-8), de 28.9.2006 (internet, processo 6318/2006-6) e de 27.9.2006 (CJ, XXX, t. IV, p. 106 e ss); contra, veja-se, v.g., STJ, 22.02.2005, internet, processo 04A3747 e Relação de Lisboa, 04.12.2006, internet, processo 9655/2006-7.
Reclamado o pagamento antecipado das prestações vincendas, o mutuante apenas tem direito, ao abrigo do disposto no art.º 781º do Código Civil, ao pagamento das prestações de capital. Quanto aos prejuízos daí advenientes para si, o mutuante poderá ressarcir-se por força de juros moratórios (art.º 806º nº 1) e, se tiver sido validamente convencionada, pelo accionamento de cláusula penal (artigos 810º e 811º do Código Civil).
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.
Quarta questão (se poderão ser reclamados juros moratórios sobre os juros remuneratórios peticionados, com o acréscimo de 4% sobre a taxa de juro contratual)
A apelante, como sociedade financeira para aquisição a crédito (sfac), é uma instituição de crédito (art.º 1º do Dec.-Lei nº 206/95, de 14.8; alínea h) do art.º 3º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Dec.-Lei nº 298/92, de 31.12, com as alterações introduzidas por diversos diplomas, mostrando-se integralmente republicado em anexo ao Dec.-Lei nº 201/2002, de 26.9). Assim, pode capitalizar juros, correspondentes a período não inferior a três meses (artigo 560º nº 3 do Código Civil e art.º 5º, nº 6, a contrario sensu, do Dec.-Lei nº 344/78, de 17.11, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 83/86, de 06.5 e pelo Dec.-Lei nº 204/87, de 16.5). Por sua vez, os juros de mora podem incidir sobre juros capitalizados correspondentes ao período mínimo de 1 ano (art.º 7º, nº 3, do Dec.-Lei nº 344/78, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei nº 83/86).
No caso dos autos, uma vez que não são exigíveis juros remuneratórios, não se põe a questão da cobrança de juros de mora sobre tais juros. Por outro lado, também é de afastar a exigência, sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, de uma indemnização correspondente à taxa de juro acordada acrescida de 4 pontos percentuais, uma vez que tal cláusula, estipulada no verso do contrato, como condição geral, sob o nº 8, alínea c), se tem como excluída, por força do já supra ajuizado como segunda questão.
O apelante terá, assim, direito a receber, sobre o capital em dívida, juros de mora à taxa contratual, acrescida de 2%, nos termos do art.º 7º, nº 1, alínea a), do Dec.-Lei nº 344/78 (neste sentido, STJ, 12.5.2005, internet, 05B3756) – ou seja, 21,25 % ao ano (19,25% + 2%), e não, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, 19,25%.
Nesta parte, procede parcialmente o recurso.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente e consequentemente revoga-se a decisão recorrida e substitui-se a mesma pelo seguinte dispositivo:

“a) Condena-se os Réus J B M, S O F e A S F, solidariamente, no pagamento à autora "Banco” de uma quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescida de juros moratórios, à taxa anual de 21,25%, desde 11 de Maio de 2001 e até integral pagamento, bem como o correspondente imposto de selo;

b) Absolve-se os mesmos Réus do mais peticionado pela autora Banco .
Custas em ambas as instâncias pela Autora e pelos Réus, na proporção de ½ pela A. e ½ pelos Réus.

Lisboa, 15.3.2007

Jorge Leal
Américo Marcelino (com voto de vencido)
Francisco Magueijo