Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
661/2007-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: BEM IMÓVEL
INTERESSE PÚBLICO
DOMÍNIO PÚBLICO
USUCAPIÃO
CLASSIFICAÇÃO
GESTÃO PÚBLICA
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- O processo para classificação de imóvel como bem imóvel de interesse público deve estar concluído no prazo máximo de um ano (Lei n.º7/2001, de 8 de Setembro, artigo 24.º)
II- Não estamos face a um prazo de caducidade, mas face a um acto de gestão pública, um prazo ordenador que possibilita ao interessado denunciar a mora, após o que a administração decidirá, sob pena de caducidade.
III- De facto, nos termos desse artigo 24.º, designadamente dos seus n.ºs 2 e 5, o prazo em causa é um prazo complexo, constituído pelo prazo propriamente dito, o seu excesso, a denúncia pelos interessados e o prazo adicional a que alude o n.º 5

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO
CONSTRUÇÕES […] LDA, propôs contra,
ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público, esta acção declarativa de condenação ordinária, pedindo que se condene o R a reconhecer que adquiriu por usucapião a propriedade de parte de um prédio, denominado […], sito em Lisboa, com a área de 34.500m2, com fundamento, em síntese, que, desde 1974 até agora, tem a posse efectiva desse prédio, comportando-se como seu titular, aí detendo várias instalações de armazém e estaleiro de construção civil.

Esse prédio pertence ao domínio privado do Estado sendo, por isso, susceptível de usucapião.

Citado, contestou o Estado, por excepção e impugnação, deduzindo a excepção peremptória da caducidade com fundamento em que por despacho de 3 de Agosto de 1989, do Presidente do Instituto Português do Património Cultural, foi determinada a abertura de processo de classificação do prédio em causa como imóvel de interesse público.

Nos termos dos art.ºs 34.º e 15.º da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, em virtude de se encontrar em vias de classificação como bem imóvel de interesse público, o prédio em causa não é susceptível de aquisição por usucapião, pois, passou a ser coisa do domínio público.

Por impugnação, aduz, além do mais, que, a existir posse, a mesma foi sempre oculta e abusiva.

A A apresentou articulado de réplica, respondendo à excepção. dizendo que, nos termos do disposto no art.º 24.º da Lei n.º 107/2001, o procedimento de classificação deve ser concluído no prazo máximo de um ano e, não o tendo sido, caducou esse procedimento de classificação.

O tribunal a quo conheceu da excepção deduzida pelo R Estado, julgando-a procedente e absolvendo o R do pedido.

Inconformada com essa decisão a AA dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação, que se declare a improcedência da excepção, prosseguindo os autos para apreciação do pedido inicial, suscitando as seguintes questões: 

1.ª O procedimento de classificação deve ser concluído no prazo máximo de um ano, nos termos do art.º 24.º, n.º 2 da Lei n.º 107/2001, sob pena de caducidade (conclusões a) e b));

2.ª A possibilidade conferida a qualquer interessado pelo art.º 24.º, n.º 5 da Lei n.º 107/2001 de denunciar a mora da administração na decisão de classificação não é uma condição necessária à eventual caducidade desse procedimento (conclusões c), d) e e));

3.ª A decisão recorrida violou o disposto nos art.ºs 298.º, n.º 2 e 328.º do C. Civil, pois não existe fundamento legal para a suspensão ou a interrupção do prazo de caducidade (conclusões f), g) e h)).

O R contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A) OS FACTOS

Os factos a considerar são os acima descritos, sendo certo que a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal se configura, essencialmente, como uma questão de direito.

B) O DIREITO APLICÁVEL

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).

Atentas as conclusões da apelação, supra descritas a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela apelante consiste, tão só, em saber se o procedimento de classificação do imóvel em causa caducou, devendo, por isso, julgar-se improcedente a excepção peremptória deduzida pelo R Estado.

Vejamos.

I. A apelante começa por afirmar que o procedimento de classificação deve ser concluído no prazo máximo de um ano, nos termos do art.º 24.º, n.º 2 da Lei n.º 107/2001, sob pena de caducidade.

Não suscitando dúvidas a primeira parte desta proposição – que o procedimento de classificação deve ser concluído no prazo de um ano – já a segunda – sob pena de caducidade – se nos afigura, desde logo, de impossível sustentabilidade.

Na verdade, o art.º 24.º, n.º 2 da Lei n.º 107/2001 dispõe apenas que: “O procedimento de classificação deve ser concluído no prazo máximo de um ano”, não cominando o efeito jurídico da caducidade (extinção do procedimento) ao decurso desse tempo.

A cominação deste efeito jurídico terá sido extraído pela apelante da regra geral estabelecida pelo art.º 298.º, n.º 2, do C. Civil, segundo a qual: quando por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.
Ora este preceito do C. Civil não tem aplicação no caso em apreço, por três ordens de razões.

A primeira é que o art.º 24.º, n.º 2 não estabelece um prazo para o exercício de um direito, antes estabelece um prazo para a prática de um acto de jus imperii, por parte do Estado – através do qual um bem passa a fazer parte do domínio público – com a consequente protecção dos direitos, de natureza privada, dos cidadãos, entre eles, a segurança jurídica.

A classificação de um imóvel como de interesse público é um acto de jus imperii e não um acto de gestão privada em que o Estado apareça na veste de particular, em igualdade de circunstâncias com estes.

Ao cidadão interessado é que é conferido um direito, em face desse acto de jus imperii, qual seja, o de interpelar a administração para a prática de um acto (n.º 5 desse art.º 24.º)

A segunda  é que o prazo fixado não é um prazo peremptório, tendo antes uma natureza indicativa e programática, ou seja, o legislador, atento o escopo prosseguido de protecção dos direitos de natureza privada dos cidadãos impõe ao Estado que adopte celeridade no procedimento de classificação, estabelecendo o prazo de um ano como o tempo considerado razoável em face dos interesses em presença.

E que assim é (natureza indicativa e programática), resulta, desde logo, do n.º 5 do mesmo preceito, o qual permite a qualquer interessado, decorrido esse prazo, denunciar a mora, após o que a administração decidirá, sob pena de caducidade.

Se ninguém, como interessado, denunciar a mora, o decurso do prazo máximo de um ano fixado no n.º 2 do art.º 24.º, em nada contenderá com o procedimento de classificação e seus efeitos jurídicos entre eles a impossibilidade de aquisição por particulares em virtude de usucapião.

Este prazo destina-se a acautelar eventuais interessados, permitindo-lhes invectivar a administração à prática do acto quando, sem essa norma expressa, o não poderiam fazer, restando-lhe os meios gerais de reacção quanto à demora na prática do acto.

E a terceira é que da interpretação do disposto nos n.ºs 2 e 5 do art.º 24.º se pode concluir, com segurança, que o legislador quis associar a cominação da caducidade não apenas ao decurso do prazo indicado sob o n.º 2, mas a um prazo complexo, constituído por ele, pelo seu excesso, pelo prazo de denúncia pelos interessados e pelo prazo adicional fixado pelo n.º 5.

Só o decurso deste prazo compósito faz caducar o procedimento de classificação e os seus efeitos.

Mal se perceberia, em face dos critérios gerais de interpretação consagrados no art.º 9.º do C. Civil, em especial a presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, consagrada no seu n.º 3, que o legislador cominasse, in casu, uma dupla caducidade (caducidade sobre caducidade) pois o efeito da caducidade é precisamente a extinção do direito não exercido durante o prazo respectivo.
Apodíctico é que, o mesmo direito, uma vez extinto, não pode voltar a extinguir-se.

Se tal acontecer por força de norma hipotética, já não se tratará do mesmo direito, mas de um outro direito diferente, ainda que se configure como aparente renascimento do anterior.

II. Ao pretender que o simples decurso do prazo estabelecido pelo n.º 2 do art.º 24, extingue o procedimento de classificação e os seus efeitos, a apelante propõe-se colher um beneficio (o respectivo direito), que vai mais além do fim prosseguido pelo legislador, e que não encontra na letra da lei um mínimo de suporte.

Como já referimos, o estabelecimento de um prazo para o procedimento de classificação tem em vista a protecção da segurança jurídica e das expectativas do cidadão, que não poderá ficar eternamente à mercê da prática do acto em causa.

Atento esse escopo, prevendo a possibilidade de ser excedido o prazo fixado, o legislador muniu o cidadão interessado de um instrumento apto a acelerar o procedimento e, consequentemente, a defender os seus interesses, a saber, a denúncia da mora.  

Praticado este acto, o legislador sanciona o desrespeito de um prazo adicional, por parte da administração, com o efeito extintivo da caducidade.

Com a interpretação que defende, a apelante pretende valer-se do efeito extintivo da caducidade mesmo sem praticar o acto (denúncia da mora) que o legislador erigiu como detonador dessa caducidade.

Não vislumbramos qual o valor social a acautelar com esta interpretação, como também não vislumbramos fundamento para a mesma nem no texto da lei nem na sua ratio legis.  

III. Como resulta do exposto, também não faz qualquer sentido dizer-se que a denúncia da mora da administração na decisão de classificação não é uma condição necessária à eventual caducidade do procedimento e que a decisão sob recurso admitiu a suspensão ou a interrupção de um prazo de caducidade.

O prazo de caducidade é que tem a configuração compósita que acima referimos.

Improcedem, pois, as conclusões da apelação.
 
3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e procedente a excepção peremptória arguida pelo R, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela apelada.

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007

(Orlando Nascimento)
(Ana Resende)
(Dina Monteiro)