Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
262/2007-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: DESPEJO
MORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: I. A reapreciação da prova não se destina a corrigir a convicção do tribunal, mas o erro na formação dessa convicção.
II. A decisão sobre o levantamento do depósito das rendas pode ser proferida depois da sentença, transitada em julgado.
III. O disposto no art.º 311.º do CC é inaplicável à sentença que actualiza a renda no processo de avaliação extraordinária.
IV. O depósito condicional das rendas não corresponde ao reconhecimento do direito de crédito do senhorio.
V. Incorre em mora o senhorio que, sem impugnar validamente a legitimidade do arrendatário, recusa o pagamento da renda oferecida e a emissão do recibo em nome do arrendatário.
VI. A actualização da renda, designadamente a decorrente de avaliação extraordinária, tem de ser comunicada por escrito pelo senhorio ao arrendatário, podendo este recusar a nova renda.
VII. Não corresponde a essa comunicação a carta dirigida ao arrendatário para proceder à liquidação das rendas vencidas e não pagas, discriminadas por meses, anos e montantes.
(O.G.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
I, Lda., com sede no Cacém, instaurou, em 29 de Março de 2004, no 2.º Juízo Cível da Comarca da Amadora, contra H, Lda., acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que fosse declarada a resolução do contrato de arrendamento, tendo por objecto o prédio urbano sito na Rua Elias Garcia, Amadora, e a R. condenada a despejar o referido prédio, a pagar-lhe a sanção pecuniária compulsória, não inferior a € 50,00, na eventualidade de não efectivação da desocupação, e a pagar-lhe a quantia de € 52 373,77, correspondente às rendas vencidas, assim como o valor das rendas vincendas, acrescida dos juros de mora legais vencidos e vincendos.
Para tanto, alegou, em síntese, que a R. não pagou as rendas vencidas a partir de 1 de Maio de 1985, correspondendo cada uma, até Junho de 2000, ao valor mensal de 20 000$00, e, depois, de 150 000$00.
Contestou a R., em 7 de Maio de 2004, alegando que a A., desde Abril de 1985, se recusou a receber o pagamento das rendas, cujo valor se manteve em 20 000$00, procedendo ao seu depósito. Para além disso, arguiu a prescrição das rendas vencidas antes de 1 de Abril de 1999 e dos juros vencidos há mais de cinco anos. Concluiu, pedindo a sua absolvição do pedido.
Replicou a A., respondendo à prescrição e impugnando os depósitos.
Foi proferido o despacho saneador, relegando-se para a sentença o conhecimento da excepção, e foi organizada a base instrutória.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, com gravação, foi proferida a sentença, julgando-se a acção improcedente.

Inconformada com a sentença, recorreu a Autora que, alegando, formulou, em resumo, as seguintes conclusões:
a) A sentença não conheceu do destino a dar a todos os depósitos dos autos, nem de todos os fundamentos da impugnação dos depósitos, o que determina a sua nulidade nos termos do art.º 668.º do CPC.
b) A prova testemunhal impõe a alteração da resposta aos quesitos 3.º, 4.º e 6.º.
c) A carta de 1 de Março de 2001 tinha o intuito de fazer operar o vencimento das rendas que resultou da avaliação fiscal extraordinária.
d) Os depósitos das rendas constituem reconhecimento do direito da A.
e) As rendas depositadas não se encontram prescritas, pelo menos, desde 1995.
f) O senhorio tinha fundamento para recusar a primeira renda, em 1985.
g) Os depósitos, por falta de notificação judicial, são insubsistentes.
h) Não tendo efeito liberatório, existe falta de pagamento de rendas, o que justifica a resolução do contrato de arrendamento.
i) A R. pagou tardiamente várias rendas.
j) Foi a R. e não a A. que incorreu em mora.
k) Reconhecendo-se o direito de resolução do contrato, deve a R. ser condenada no despejo.

Contra-alegou a R., pronunciando-se no essencial pela improcedência da apelação e ainda pela ampliação do âmbito do recurso quanto ao destino de certos depósitos.

Corridos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

Neste recurso, está em causa, essencialmente, a decisão sobre a matéria de facto, a nulidade da sentença, a prescrição das rendas e a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento da renda.

II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Foram dados como provados, designadamente os seguintes factos:
1. O imóvel situado na Rua Elias Garcia, Amadora, foi dado de arrendamento, por escrito, inicialmente em 1977, a Móveis Gulamo, Lda., para o exercício exclusivo do comércio, mediante a renda mensal de 20 000$00.
2. Desde sempre que as rendas eram solvidas por cheque enviado para a sede da A., sendo este o seu local de pagamento.
3. Por escritura pública de 22 de Março de 1985, M Lda., realizou o trespasse do respectivo estabelecimento comercial a favor de I.
4. Por escritura pública de 18 de Junho de 1985, este realizou o trespasse do mesmo estabelecimento comercial a favor de A e PA.
5. A comunicação desses trespasses mereceu resposta da A., colocando em causa a sua licitude.
6. Apesar disso, A. condescendeu no trespasse.
7. Em 1995, a A. instaurou o processo de avaliação fiscal extraordinária, no qual, por sentença de 19 de Junho de 2000, foi fixado em 150 000$00 a renda mensal relativa ao locado.
8. Em 1 de Março de 2001, o mandatário da A. enviou à R. a carta constante de fls. 52 a 54, para proceder à liquidação das rendas, desde Maio de 1985, no valor total de 5 050 000$00.
9. Desde Maio de 1985, as rendas deixaram de ser saldadas (resposta ao quesito 3.º).
10. Em 18 de Julho de 1985, o referido I, dado que a senhoria não o reconhecia como arrendatário e recusava emitir os recibos da renda em seu nome, depositou na Caixa Geral de Depósitos (CGD) as rendas vencidas em 1 de Abril, 1 de Maio, 1 de Junho e 1 de Julho de 1985 (referentes aos meses de Maio, Junho, Julho e Agosto do mesmo ano), nos termos do depósito de fls. 80.
11. Esse depósito foi acrescido da indemnização de 50 %.
12. A e PA efectuaram na CGD os depósitos nos termos constantes de fls. 81 a 91.
13. Em Agosto de 1985, a A. recebeu daqueles correspondência postal, avisando que depositaram as rendas referentes aos meses de Junho, Julho e Agosto, justificando o depósito com fundamento na recusa do senhorio no recebimento das rendas.
14. A R. efectuou na CGD os depósitos nos termos constantes de fls. 92 a 244.
15. A R. depositou condicionalmente, em 5 de Maio de 2004, à ordem do respectivo juiz, as quantias de € 47 036,64 e de € 9 128,04 (fls. 253 e 254).
16. A R. depositou, em 5 de Maio de 2004, à ordem do respectivo juiz, a importância de € 648,44 (130 000$00), destinada a acrescer à renda relativa ao mês de Junho de 2004, já depositada, se a pretensão da senhoria viesse a ser julgada procedente (fls. 255).
17. Os depósitos efectuados pela R. deveram-se ao facto da A. se recusar a reconhecê-los como arrendatários e como tal a passar-lhes recibos em seu nome.
18. Esses depósitos foram comunicados à A.
19. A A., durante largo tempo, teimava em não reconhecer senão a primitiva arrendatária, M, Lda.
20. A R. endereçou à A. a carta datada de 19 de Novembro de 1986, constante de fls. 245.
21. A R. continuou a depositar as rendas.
22. A R. recebeu uma carta do mandatário da senhoria, informando de que “deverão passar a liquidar as rendas da loja de que são arrendatários, junto da I…/ Sra. D. T…, com efeitos a partir da renda que se vence no próximo dia 1 de Abril” (fls. 248).
23. O mandatário da A. enviou uma carta à R., datada de 23 de Março de 2000, onde lhe comunica, além do mais, “para continuar a pagar a renda na C.G.D.”.
24. A A. não recepcionou a notificação judicial dos depósitos efectuados desde 1985.

2.2. Está ainda provado:
25. Por escritura pública de 24 de Junho de 1986, A e PA trespassaram o referido estabelecimento comercial em favor da R.

Este facto, embora não integrasse o elenco dos factos provados, foi considerado como tal na motivação jurídica da sentença (fls. 578).
Tal materialidade foi alegada na contestação (artigo 20.º) e confessada pela apelante de forma expressa, designadamente a fls. 408, quando juntou a certidão da respectiva escritura pública do trespasse.
Por isso, estando provada, justifica-se o seu aditamento ao elenco dos factos provados – art.º 712.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC).

2.3. A apelante impugnou a decisão sobre a matéria de facto relativamente às respostas negativas que foram dadas a parte do quesito 3.º e aos quesitos 4.º e 6.º.
Na verdade, a decisão sobre a matéria de facto pode ser alterada, nos termos previstos no art.º 712.º, n.º 1, do CPC.
A apelante formalizou a sua impugnação nos termos do art.º 690.º-A do CPC, especificando, para o efeito, os depoimentos das testemunhas Maria Teresa Cardoso e Jorge Manuel Barros do Amaral.
Como resulta da decisão sobre a matéria de facto, constante de fls. 559 a 564, tais depoimentos foram ponderados, mas não lograram obter a convicção do tribunal, o qual se determinou, segundo a decisão, especialmente pelo depoimento da testemunha Azim Momad Ibraimo.
Nestas condições, o tribunal conferiu prevalência a outros depoimentos, podendo fazê-lo no âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art.º 655.º, n.º 1, do CPC).
A reapreciação da prova, nos termos em que se encontra prevista, não se destina a corrigir a convicção do tribunal da 1.ª instância, mas a emendar o erro verificado no processo de formação daquela convicção.
Por isso, e sendo certo que a apelante se limitou a remeter para os depoimentos que especificou, sem referir qualquer outra motivação quanto aos depoimentos das testemunhas determinantes, seria manifesta a improcedência da impugnação deduzida pela apelante.
De qualquer modo, o depoimento da testemunha …, que se revela convincente, e, por outro lado, o depoimento menos categórico das testemunhas especificadas pela apelante, confirmam a correcção do processo de formação da convicção e a inexistência de flagrante desconformidade entre a decisão sobre a matéria de facto e os meios de prova disponíveis nos autos.
Sublinhe-se ainda que a apelante não impugnou sequer a resposta positiva ao quesito 20.º (facto n.º 17), cuja matéria é incompatível com a dos quesitos em causa, para além de alegar no recurso, conforme observou a apelada, ter recusado receber as rendas (fls. 629).
Nestes termos, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

2.4. Arguiu a apelante a nulidade da sentença, nos termos das alíneas c) e d) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC.
Não é, porém, nada clara a alegação da apelante no que tange à oposição entre os fundamentos e a decisão. Percebe-se, no entanto, que pretende referir-se à questão da prescrição das rendas.
Ora, quanto a esta matéria, a sentença recorrida fundamentou que as rendas até Abril de 1999 estavam prescritas, apresentando-se a decisão, de absolvição da apelada do pedido, em inteira coerência com tal fundamentação, o que exclui qualquer contradição entre os respectivos termos.
Por outro lado, no que concerne à omissão de pronúncia, levando em conta o pedido e a causa de pedir, bem como a matéria de excepção, que definem o objecto da pronúncia, nos termos consignados no n.º 2 do art.º 660.º do CPC, também a mesma não se verifica, já que na sentença recorrida se apreciaram todas as questões que o juiz estava vinculado a resolver.
A questão da impugnação do depósito das rendas ficou prejudicada, quando se concluiu que a falta de pagamento das rendas era imputável à apelante, não havendo por isso necessidade de apreciar se tal depósito não era liberatório. Sem a mora do arrendatário, a falta do pagamento da renda não justifica a resolução do contrato de arrendamento e, só havendo mora daquele, é que interessava conhecer da natureza liberatória do depósito das rendas.
Por sua vez, o destino do depósito das rendas, podendo embora admitir-se uma decisão na sentença, não era objecto de pronúncia obrigatória. Com efeito, o levantamento do depósito só pode ser autorizado, eficazmente, depois da decisão definitiva da acção. A circunstância do levantamento do depósito impugnado ou realizado condicionalmente depender de decisão judicial, nos termos que se previam no art.º 28.º do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, não significa que a mesma tenha de ser proferida na sentença, designadamente da acção de despejo. Tal decisão pode ser proferida posteriormente à respectiva sentença, depois de transitada em julgado.
Neste contexto, mesmo a existir alguma omissão quanto ao destino do depósito das rendas, a sentença não enferma de nulidade, por omissão de pronúncia.
Concluindo, improcede totalmente a arguição da nulidade da sentença.

Como já se aludiu, a sentença recorrida declarou prescritas as rendas dos meses de Maio de 1985 a Abril de 1999.
Mas, a recorrente insiste que a prescrição não se verifica, quer por efeito da sentença proferida no processo de avaliação fiscal extraordinária, quer pelo reconhecimento do direito de crédito, nos termos do art.º 325.º, n.º 1, do Código Civil (CC), decorrente do depósito das respectivas rendas.
O processo de avaliação fiscal tem por fim actualizar o valor da renda do respectivo contrato de locação. Por isso, a sentença que procede à actualização da renda não tem outro efeito senão o de possibilitar ao locador alterar, na respectiva conformidade, a renda que vem sendo praticada. Define, é certo, o conteúdo do direito de crédito, mas não reconhece um direito de crédito em débito, não sendo susceptível, nessa medida, de constituir um título executivo. Em face disso, e ao contrário do alegado pela recorrente, a sentença que procede à actualização da renda não reconhece ao locador o direito de crédito sobre qualquer das rendas vencidas.
Assim, sendo inaplicável o disposto no art.º 311.º do Código Civil, não ocorre, com tal sentença, uma situação de interrupção da prescrição.
Por outro lado, admitindo que o depósito das rendas (sem ser o condicional), comunicado à apelante, possa ter constituído o reconhecimento do direito de crédito efectuado perante a apelante, nos termos do n.º 1 do art.º 325.º do Código Civil, e, por isso, ter tido como efeito a interrupção do prazo da prescrição, o certo é que, entretanto, decorreu nova prescrição, extinguindo-se o respectivo direito de crédito (art.º 326.º, n.º 2, do CC).
Já quanto ao depósito condicional, o mesmo só ganha eficácia se vier a verificar-se a condição a que foi submetido, isto é, a situação de mora imputável à arrendatária. Esta, ao realizar tal depósito, não está a reconhecer o direito de crédito da senhoria, mas apenas a acautelar a sua posição jurídica de arrendatária, para a eventualidade do reconhecimento judicial do direito de crédito da senhoria. A intenção do depósito condicional é de prevenir a eventual existência do direito de crédito, mas não de o reconhecer. Por isso, o depósito condicional das rendas, não correspondendo ao reconhecimento do direito de crédito do respectivo titular, previsto no art.º 325.º do CC, não interrompe o prazo da prescrição.
Face ao entendimento perfilhado, é de concluir pela prescrição das rendas declarada na sentença recorrida.
Resulta dos autos que a falta de pagamento da renda se deveu à circunstância da senhoria não reconhecer o respectivo arrendatário e se recusar a emitir o recibo da renda em seu nome.
A sentença recorrida considerou, nesse contexto, ter havido mora do credor.
A formulação desse juízo revela-se inteiramente correcta porque, não tendo existido uma impugnação válida da qualidade do arrendatário, adquirida por efeito de trespasse, não tinha a senhoria justificação para recusar o pagamento da renda oferecida por aquele. Estando legitimada a transmissão do contrato de arrendamento, decorrente do trespasse, é irrelevante que a senhoria só posteriormente a tenha aceite.
Por outro lado, tendo o arrendatário direito à quitação da renda oferecida, nos termos do art.º 787.º do CC, não podia a senhoria recusar-se a emitir o recibo de quitação em nome do arrendatário, circunstância que legitimava este último a poder recusar a respectiva prestação (art.º 787.º, n.º 2, do CC). A recusa da emissão do recibo de quitação constituiu a omissão de um acto necessário ao cumprimento da obrigação do arrendatário.
Assim, a senhoria enquanto credora, não tendo motivo válido para recusar o pagamento da renda oferecida pelo arrendatário nos termos legais e não tendo praticado um acto necessário ao cumprimento da obrigação, incorreu em mora, nos termos delimitados no art.º 813.º do CC.
Sendo a mora imputável à senhoria e extensível a todas as rendas não pagas, não tinha o arrendatário necessidade de proceder ao depósito das rendas, ficando prejudicada, como já se referiu, a apreciação da sua validade.
Nestas condições, recaindo a mora do pagamento das rendas sobre a senhoria, não existe fundamento para a resolução do contrato de arrendamento baseado na alínea a) do n.º 1 do art.º 64.º do RAU.

Importa ainda referir que o montante da renda mensal se manteve sempre no montante de 20 000$00, não obstante a sentença proferida no processo de avaliação fiscal extraordinária a tivesse fixado em 150 000$00.
Com efeito, a actualização da renda, decorrente da avaliação extraordinária realizada ao abrigo do DL n.º 330/81, de 4 de Dezembro, que foi represtinado por efeito da declaração de inconstitucionalidade declarada pelo acórdão do Tribunal Constitucional, de 12 de Abril de 1988 (Diário da República, 1.ª Série, de 28 de Abril de 1988), e que o art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (que aprovou o RAU), relativamente ao art.º 4.º, com a redacção dada pelo DL n.º 392/82, de 18 de Setembro, manteve em vigor enquanto tivesse aplicação, tinha de ser comunicada por escrito pelo senhorio ao arrendatário, nos termos do art.º 33.º do RAU.
A comunicação do senhorio, embora feita por qualquer modo, já antes estava prevista, como decorria do disposto no art.º 3.º do DL n.º 330/81, de 4 de Dezembro, que remetia para o estatuído, então, no n.º 2 do art.º 1104.º do CC.
A comunicação escrita da nova renda, resultante da avaliação extraordinária, pelo senhorio, era indispensável para o arrendatário poder usar da faculdade de recusar a nova renda, com base em erro nos factos relevantes ou na aplicação da lei, conforme previsto no art.º 35.º, n.º 1, do RAU.
No caso vertente, a arrendatária podia exigir da senhoria a prática de uma renda transitória, por aplicação do disposto no n.º 4 do art.º 4.º do DL n.º 330/81, com a redacção dada pelo DL n.º 392/82, de 18 de Setembro.
Ora, a apelante, como senhoria, não enviou à apelada qualquer comunicação escrita, a actualizar a renda mensal para a quantia de 150 000$00, não podendo, por isso, exigir uma renda diferente da que vinha sendo praticada (20 000$00).
Diferentemente do alegado pela apelante, a carta de 1 de Março de 2001, constante de fls. 52 a 54 (facto n.º 8), não revela que a mesma se destinasse a comunicar a nova renda, que resultava da avaliação extraordinária. Com efeito, o objectivo expresso no texto era que a arrendatária procedesse à liquidação das rendas que se encontravam vencidas e não pagas, desde 1985, num total de 5 050 000$00, que a seguir passou a discriminar por meses, anos e montantes. A referência às rendas de Julho de 2000 a Março de 2001, cada uma no valor de 150 000$00, no contexto oferecido pela mesma carta, só pode ser entendida como parte integrante da discriminação das “rendas em débito”, para além de que a comunicação da nova renda tinha de ser feita com a antecedência mínima de 30 dias, como era exigível pelo n.º 1 do art.º 33.º do RAU.
A interpretação dessa carta nos termos feitos pela apelante mostra-se, assim, incompatível com as regras da interpretação consagradas nos art.º 236.º e 238.º do CC, aplicáveis por força do art.º 295.º do mesmo diploma legal, e por isso não pode ser acolhida.

Observa-se, para finalizar, que, reiterando o referido a propósito do destino do depósito das rendas, não há fundamento para ampliar o objecto do recurso, como pretendeu a apelada.

2.4. Perante o descrito, é possível retirar de mais relevante a seguinte síntese:

a) A reapreciação da prova não se destina a corrigir a convicção do tribunal, mas o erro na formação dessa convicção.
b) A decisão sobre o levantamento do depósito das rendas pode ser proferida depois da sentença, transitada em julgado.
c) O disposto no art.º 311.º do CC é inaplicável à sentença que actualiza a renda no processo de avaliação extraordinária.
d) O depósito condicional das rendas não corresponde ao reconhecimento do direito de crédito do senhorio.
e) Incorre em mora o senhorio que, sem impugnar validamente a legitimidade do arrendatário, recusa o pagamento da renda oferecida e a emissão do recibo em nome do arrendatário.
f) A actualização da renda, designadamente a decorrente de avaliação extraordinária, tem de ser comunicada por escrito pelo senhorio ao arrendatário, podendo este recusar a nova renda.
g) Não corresponde a essa comunicação a carta dirigida ao arrendatário para proceder à liquidação das rendas vencidas e não pagas, discriminadas por meses, anos e montantes.

Nestes termos, não procedendo a apelação, é caso para se confirmar a sentença recorrida, a qual não violou qualquer disposição legal, nomeadamente as referidas pela apelante.

2.5. A apelante, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade, consagrada no art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
2) Condenar a recorrente no pagamento das custas.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2007
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Ana Luísa de Passos G.)
(Fátima Galante)