Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27984/12.3T2SNT.L1-1
Relator: EURICO REIS
Descritores: ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
SENTENÇA ARBITRAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O dever de fundamentar previsto na Lei da Arbitragem Voluntária corresponde integralmente ao idêntico dever previsto na Constituição da República e no CPC quanto aos Juízes dos Tribunais do Estado, e que é válido indistintamente tanto no que respeita à fundamentação, em matéria de facto e de direito, do decreto judicial proferido através da sentença ou acórdão sob escrutínio, como para a motivação do julgamento relativo à indicação dos factos provados e não provados na acção ou procedimento em causa.
2. Não cumpre as exigências do dever de fundamentação o acórdão arbitral que se limita a justificar a sua indicação de factos provados nos seguintes termos:
Factos provados
As partes, em sede de audiência de prova (conforme acta de dia 6 de Julho de 2012), vieram a acordar que o imóvel objecto do referido contrato estava na posse da J.F.. Ainda neste âmbito, vieram a acordar nos seguintes factos provados:
Artigos do requerimento inicial, 1.º a 7.º, 9.º a 14.º, 27.º, primeira parte, 28.º com acordo de data em Fevereiro de 2005, 29.º., 30.º quanto ao espaço público ocupado pelo contentor, 40º, 42º a 46º, 49º, 50º.
Com base nos restantes documentos apresentados e no depoimento das testemunhas apresentadas pelos demandantes dão-se ainda como provados os seguintes factos: (…)”.

(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


1. A J.F. intentou contra J.A. a presente acção declarativa constitutiva com processo comum e forma ordinária, que, sob o n.º …, foi tramitada pela 1ª Secção do Juízo de Grande Instância Cível da comarca da … - …, e na qual, logo com o despacho saneador, foi proferida a decisão com valor de sentença que se estende por fls 120 a 149 do processo e cujo decreto judicial tem o seguinte teor:
“Pelo exposto, julgo a acção procedente por provada e, em consequência, declaro anulado o acórdão arbitral de … de … de …, proferido no processo n.º … do C. .
Ainda pelo exposto, indefiro os pedidos de condenação como litigantes de má-fé reciprocamente formulados pelas partes.
Custas pelo Réu.” (sic - fls 149).

Inconformado com essa decisão, o Réu dela recorreu (fls 154), rematando nestes termos as suas alegações:
“Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas mui doutamente suprirão, deverá ser proferido Acórdão que, revogando a decisão do tribunal “a quo”, acolha o aqui requerido …” (sic - fls 163).
E, para sustentar essa pretensão, formula esse apelante as seguintes 13 conclusões:
1 – O Ora Recorrente não se conforma com a douta decisão proferida pelo tribunal “a quo” que anulou a decisão arbitral por falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto;
2 - A decisão arbitral que foi declarada anulada pelo tribunal “a quo” foi proferido C. ,
3 - O dever de fundamentação da sentença arbitral está previsto no artigo 23º do Regulamento de Arbitragem e no artigo 23.º n.º3 da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, sendo corolário directo do dever de fundamentação das decisões judiciais,
4 - O dever de fundamentar previsto no artigo 23° e na al. d) do n.º 1 do artigo 27° da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, corresponde a idêntico dever previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 668° do CPC. Neste sentido, entre outros, o Ac. RL de 2.10.2006 (Tibério Silva) e Ac. do STJ, de 11-05-1995 (Rel. Joaquim de Matos).
5 - A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do artº 659º, nº 2 do Código do Processo Civil, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
6 - Da análise da referida decisão arbitral ressalta na parte em que a mesma se pronuncia sobre os factos dados como provados pelo tribunal arbitral em sede de audiência de prova (FACTOS PROVADOS):
A - por acordo das partes:
a)- “… o imóvel objecto do referido contrato estava na posse da J.F.”;
b)- Artigos do requerimento inicial: 1º a 7º, 9º a 14º, 27º, primeira parte, 28º, com acordo da data em Fevereiro de 2005, 29º, 30º, quanto ao espaço público ocupado pelo contentor, 40º, 42º a 46º, 49º e 50º;
 B - com base nos documentos apresentados e no depoimento das testemunhas apresentadas pelos demandantes deu ainda como provados os seguintes factos:
c) – do requerimento inicial – artigos 15º, 16º quanto a este artigo apenas reconhecemos uma quantia aproximada do montante de €27.143,00, 18º, 19º, 20º apenas quanto à informação do prazo de 15 dias para desocupar o imóvel O., 21º, 22º, 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 47º, 51º, 52º, 54º, 57º, 58º, 59º, 60º, 61º, 62º, 64º apenas quanto à parte que refere que não foi denunciado, 78º e 79º;
d) – da contestação – artigos 51º, 52º e 71º apenas quanto à data de conclusão das obras;
7 - Na parte da fundamentação, vem o tribunal arbitral socorrer-se do depoimento de uma das testemunhas arroladas – L. à data dos factos Presidente da Junta de Freguesia, fazendo os árbitros menção ao sentido do referido depoimento, efectuando uma análise crítica do mesmo, exteriorizando uma convicção cimentada e fundamentada;
8 - Mais adiante na referida fundamentação o tribunal arbitral alicerça a sua convicção no depoimento de uma outra testemunha arrolada no processo, fundamentando ainda a sua convicção na vasta documentação junta aos autos pelos demandantes;
 9 - Ora analisando a decisão arbitral em apreço, detectamos que a mesmo específica a matéria de facto apurada, definiu as questões jurídicas suscitadas, analisando-as, em seguida, em pormenor, onde referiu as disposições legais julgadas aplicáveis, fazendo uma interpretação dos factos provados relevantes para a decisão daquelas, referindo os conceitos que julgou relevantes para o efeito e tirando as respectivas as conclusões.
10 - no caso presente, a decisão arbitral não estava obrigada, em termos de fundamentação da matéria de facto, a mais do que aquilo que foi exarado e, ademais, independentemente de se concordar ou discordar com a análise nela feita, não padece de falta de fundamentação que leve á sua anulação,
11 - O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação e, por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto e
12 - Daqui se pode concluir que o acórdão arbitral não enferma do defeito de carência total de fundamentação.
13 - Termos em que deverá ser revogada a decisão do tribunal “a quo” mantendo-se, por isso, a sentença arbitral nos exactos termos em que foi proferida - o que se requer.” (sic - fls 161 a 163).

A Autora contra-alegou (fls 169 a 179), pugnando pela confirmação da sentença recorrida e rematando essa sua peça processual com as seguintes 26 conclusões:
1. O presente recurso é interposto da sentença que julgou a acção procedente e consequentemente anulou a decisão arbitral, por considerar que a mesma não se encontra fundamentada em termos de matéria de facto, ou seja, por não ter cumprido, ainda que em termos mínimos, a exigência de fundamentação da decisão sobre os factos provados constitucional e legalmente prevista no art 205º, nº 1 da CRP e nº 1 art 158º do CPC.
2. Havendo essa falta de fundamentação da sentença arbitral não é possível entender qual a motivação dos Árbitros, quanto a este ponto em concreto.
3. Dai que a falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto é fundamento de anulação da decisão arbitral nos termos conjugados pelos art. 23º, nº 3 e art 27º, nº 1 alínea d) da LAV/86.
4. É deste entendimento que o recorrente discorda, ao defender que a decisão arbitral cumpre essa mesma exigência e que se encontra suficientemente fundamentada.
5. Como iremos demonstrar não assiste razão aos argumentos aduzidos pelo recorrente.
6. A fundamentação da sentença, como a de qualquer outra decisão judicial tem actualmente assento constitucional. Segundo o art. 205º nº 1 da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
7. Não se trata de mera exigência formal, já que a fundamentação cumpre uma dupla função: de carácter objectivo - pacificação social, legitimidade e autocontrole das decisões; e outra de carácter subjectivo - garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários.
8. Para cumprir a exigência constitucional, a fundamentação há-de ser expressa, clara e coerente. Ou seja, não deve ser deixada ao destinatário a descoberta das razões da decisão.
9. Da letra do art. 209º CRP resulta que os tribunais arbitrais estão subordinados ao regime de categoria dos Tribunais Judiciais, esta subordinação resulta num verdadeiro exercício de função jurisdicional privada.
10. Contudo essa subordinação tem como consequência que as decisões arbitrais estão sujeitas, no que diz respeito á sua fundamentação, aos princípios gerais da lei processual.
11. O conteúdo essencial do dever de fundamentação é a comunicação das razões que justificam a decisão, a sentença deveria ter exposto as razões pelas quais aderiu a uma certa versão da realidade.
12. Não se afigura que a sentença arbitral cumpriu, integralmente, a exigência constitucional expressa no art. 205º CRP, quando apenas refere os factos provados e a indicação vaga dos meios de prova.
13. Isto porque sendo a fundamentação uma comunicação das razões nas quais se fundou a decisão, a remissão para os meios de prova não explica, por si só, qual o motivo que determinou a prova daquele facto ou factos nem se vislumbra qual o critério que serviu para essa apreciação.
14. Dai que o facto de o Juiz Arbitro remeter para a prova testemunhal apresentada pelo demandante e prova documental, sem ser acompanhada de uma, por mínima que seja, explicação de como e em que medida é que essa prova determinou a sua convicção, não podemos aceitar que cumpre suficientemente o dever que esta adstrito.
15. Nas sábias palavras de Gonçalves Salvador que demonstra com clarividência essa ideia e que se cita: “ …que dizer que a convicção do tribunal resultou de prova testemunhal, de prova documental, etc, equivale a não dizer coisa nenhuma”. In Motivação, BMJ, 212, p. 87.
16. A questão de natureza Jurídica com que nos confrontamos, é a de saber se a decisão arbitral cumpriu ou não o dever de fundamentação que resulta da conjugação do art. 205º, nº1 da CRP, dos artigos 23º, nº 3 e 27º, nº1 alínea d) da LAV e artigos 158º, 653º, nº2, 668º, nº1 b) todos do CPC, dos princípios aplicáveis e resultantes dos normativos supra enunciados a fundamentação da decisão, consiste na enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
17. Como já ficou dito e que se reforça não satisfaz as exigências da lei a sentença arbitral que apenas efectua uma enumeração dos factos provados sem indicar os concretos meios de prova tidos em conta para formar aquela convicção.
18. Pois é necessário que expresse o modo como se alcançou tal convicção, descrevendo - sempre de forma concisa, evidentemente - o processo racional seguido e objectivando a análise e ponderação criticamente comparativa das diversas provas produzidas, para que se siga e conheça a motivação que fundamenta a opção por uma prova em detrimento de outra, o que notoriamente a decisão arbitral, em causa, não cumpriu.
19. Dito de outro modo, a sentença arbitral deveria ter feito a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz Arbitro, o que compreenderia não só a especificação das provas concretas, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que elas relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador árbitro.
20. A entender-se de forma diversa, ou seja, que a decisão arbitral em causa cumpre o dever de fundamentação consagrado nas disposições supra referidas na conclusão 16, é inconstitucional.
21. Se a norma do art. 23º, nº 3 e 27, nº1 al. d) da LAV conjugada com o art. 668º, nº1 al. b) do CPC se interpretar o sentido de que apenas a falta absoluta de fundamentação gera a nulidade de sentença, deixando sem tutela a parte que pretende opor-se a uma deficiente e incompleta fundamentação tal interpretação na versão de que só a total omissão de facto e de direito gera a nulidade da sentença viola a garantia constitucional do dever de fundamentação expresso no art. 205º da CRP. No mesmo sentido Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, V, p. 139 e 149 e ainda o prof. Antunes Varela/outros- Manual de Processo civil, 2ª ed., p. 687.
22. Em suma, a falta de motivação da decisão pela qual se procedeu à determinação da matéria de facto do acórdão arbitral, bem como a omissão da análise crítica dos meios de prova, causa a anulação de decisão arbitral, por força do disposto nos artigos 23º, nº3, 27º, nº1 al. d) LAV conforme foi correctamente julgado pelo Mmº. Juiz a quo.
23. O entendimento de que aqueles normativos permitem aos juízes árbitros o julgamento da matéria de facto sem a explicação dos motivos da sua convicção e sem que seja feita a análise crítica dos meios de prova estariam aqueles artigos (23º, nº3 e 27º, nº1 al. d) LAV) viciados por inconstitucionalidade material por violação dos artigos 20º, 205º, nº1, e 209º CRP, vício que se invoca para todos os efeitos.
24. Da análise do acórdão arbitral em termos de fundamentação consta tão só “ com base nos restantes documentos apresentados e no depoimento das testemunhas apresentadas pelos demandantes dão-se ainda como provados os seguintes factos….” Resulta desta informação, que os Juízes Árbitros, na decisão nada disseram ou esclareceram por que é que aqueles depoimentos determinaram a sua convicção em detrimento dos restantes, como nada se diz quais os documentos em concreto que contribuírem para essa convicção, (se todos se alguns e neste caso quais), pois falta a justificação porque se atribuiu eficácia aqueles meios de prova, que configura uma total omissão de fundamentação.
25. Nestes termos a simples menção dos meios de prova testemunhal e documental não satisfaz cabalmente a exigência constitucional do dever de fundamentação da decisão de matéria de facto no que respeita às decisões arbitrais. Razão pela qual a decisão judicial não merece qualquer reparo nem padece de qualquer vício que a afecte estando devida e abundantemente fundamentada de facto e de direito.
26. Isto porque foi o tribunal arbitral que violou o princípio da decisão quanto aos factos provados ao não ter indicado concretamente os meios de prova considerados nem tendo feita uma análise crítica da prova violando os arts. 205, nº 1 CRP 23, nº 3 e 27, nº1 al. d) LAV e 653, nº2 e 659, nº 3 CPC.” (sic - fls 174 a 179).

Estes são, pois, os contornos da lide a dirimir.

2. Considerando o conteúdo das conclusões das alegações do ora apelante (as quais são aquelas que delimitam o objecto do recurso, impedindo esta Relação de conhecer outras matérias) a única questão a dirimir nesta instância de recurso é a seguinte:

- o acórdão arbitral de … de … de …, proferido no processo n.º … do C.  é ou não nulo?

E sendo esta a matéria que compete julgar, tal se fará de imediato, por nada obstar a esse conhecimento e por estarem cumpridas as formalidades legalmente prescritas, tendo sido oportunamente colhidos os Vistos dos Ex.mos Desembargadores Adjuntos.

3. Em 1ª instância foram declarados provados os seguintes factos (sendo que a fundamentação dessa parte da decisão recorrida é a seguinte: “Mediante a apreciação da prova documental junta aos autos, consideram-se demonstrados os seguintes factos com relevo para a decisão a proferir:”):
1. Em escrito datado de … de … de … e encimado pela expressão “CONTRATO Exploração da loja do ramo de Snak-bar situada sob o coreto no … da …, em …”, a J.F. … e o Réu declararam “(…) CLÁUSULA 16ª ARBITRAGEM
1 - Todas as dúvidas ou divergências que surgirem na interpretação ou execução deste contrato serão decididas por um Tribunal Arbitral, nos termos dos dispostos nos artigos 1513 e seguintes do Código de Processo Civil.
2 – O Tribunal competente é da Comarca de … e os árbitros ficam autorizados a julgar segundo a equidade. (…)” (cfr. cópia do escrito de fls. 27 a 32);
2. O Réu, com base no ajuste referido em 1., propôs acção declarativa sob a forma ordinária contra a Autora que correu termos sob o n.º … da 1ª Secção do Juízo de .. da Comarca da …, tendo esta sido absolvida da instância na sequência da invocação, pela mesma, do conteúdo da cláusula 16ª daquele acordo (cfr. cópia de decisão judicial de fls. 98 a 100);
3. Na sequência de pedido de arbitragem formulado pelo Réu para resolução de conflito emergente do ajuste referido em 1. que deu origem ao processo n.º … do C. , foram, por despacho de … de … de …, designados três árbitros (cópia de acta de fls. 43);
4. Em escrito recebido pela Autora em … de … de … e referente ao processo n.º …, o C.  declarou: “(…) Mais se notifica para no prazo de 10 dias indicarem os seus meios de prova e juntarem quaisquer documentos, nos termos do n.º 1 , art.º 17 do Regulamento e no prazo de 5 dias procederem ao pagamento do reforço do preparo inicial no valor de € 312,25 (…)” (cópia de notificação de fls. 70);
5. Em despacho exarado em 1 de Julho de 2012 no processo n.º …, o árbitro presidente declarou “(…) Sucintamente, veio a demandada arguir a incompetência do tribunal arbitral por considerar que a questão de fundo deveria ser decidida em tribunal administrativo, sendo o tribunal competente.
A demandante veio contra argumentar que apenas seguiu a decisão do tribunal judicial de … (comarca …) que em processo anterior se considerou incompetente para julgar a mesma questão de fundo remetendo para tribunal arbitral em razão da existência de um compromisso arbitral que constava do contrato que vinculava ambas as partes. Aliás, compromisso esse que foi arguido nesse mesmo processo judicial pela ora demandada.
Analisados todos os argumentos, decisões e normas aplicáveis, cumpre analisar 3 questões fundamentais:
1. A competência do tribunal arbitral vem já validada por uma decisão judicial anterior proferida em processo judicial que envolveu ambas as partes para decidir a mesma questão de fundo: acresce que a incompetência do tribunal judicial em razão da existência de um compromisso arbitral vertido em contrato que vinculava ambas as partes, foi arguida pela ora demandada, estando agora a arguir a mesma incompetência do tribunal arbitral. (…)
3. Por último, verifica-se também que o objecto do litígio não tem na base um acto de gestão pública, e o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos está afastado por uma leitura a contrariu da alínea f) do n.º 1 do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Nestes termos vem este tribunal declarar-se competente para decidir sobre o objecto do processo, pelo que o mesmo seguirá os seus trâmites normais (…)” (cópia de acta de fls. 71);
6. Em … de … de …, foi, no processo n.º …, proferido Acórdão Arbitral pelos árbitros do C. em que se lê “(…) Factos provados
As partes, em sede de audiência de prova (conforme acta de dia … de … de …), vieram a acordar que o imóvel objecto do referido contrato estava na posse da J.F. . Ainda neste âmbito, vieram a acordar nos seguintes factos provados:
Artigos do requerimento inicial, 1.º a 7.º, 9.º a 14.º, 27.º, primeira parte, 28.º com acordo de data em Fevereiro de 2005, 29.º., 30.º quanto ao espaço público ocupado pelo contentor, 40º, 42º a 46º, 49º, 50º.
Com base nos restantes documentos apresentados e no depoimento das testemunhas apresentadas pelos demandantes dão-se ainda como provados os seguintes factos: (…)” (cópia da decisão de fls. 48 a 59).” (sic - fls 121 a 123).

4. Discussão jurídica da causa.

O acórdão arbitral de … de … de …, proferido no processo n.º … do C. é ou não nulo?

4.1. Ao iniciar a análise crítica do recurso intentado pelo apelante, interessa recordar que a sua função institucional e social dos Juízes é a de dirimir os conflitos que realmente existam e sejam submetidos ao seu julgamento e na medida necessária e indispensável à resolução desses conflitos ou litígios, devendo no exercício dessa actividade, no mínimo, ter sempre presente, o Princípio da Parcimónia ou Navalha de Occam (ou de Ockham), postulado lógico atribuído ao frade franciscano inglês William de Ockham, que viveu entre 1287 e 1347 dC, que enuncia que ”as entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade”, sendo, neste caso, as “entidades” os passos lógicos do silogismo judicial através dos quais se opera a subsunção dos factos provados na previsão das normas que regulam a concreta relação material controvertida.

Deste modo, será totalmente impertinente e dilatório, logo inútil, tecer qualquer argumentação justificativa acerca de outras matérias que não respeitem à única questão jurídica suscitada nesta sede de recurso, a saber: apurar da conformidade da decisão que anulou o acórdão arbitral identificado em epígrafe.

E, feita que está esta clarificação, importa aferir do mérito das críticas formuladas pelo recorrente à sentença lavrada em 1ª instância, não sem antes sublinhar que a interpretação de uma qualquer norma jurídica, seja ela de natureza substantiva (e inscrita na Constituição da República ou na legislação ordinária) ou adjectiva, tem forçosamente que obedecer aos critérios consubstanciados nos três números do art.º 9º do Código Civil, aos quais acrescem, para a construção do conceito “solução mais acertada”, as exigências inscritas nos artºs 335º (proporcionalidade assente na posição que o valor ético que valida a norma e a torna em verdadeiro Direito ocupa na Hierarquia de Valores que enforma e dá consistência ao tecido social comunitário) e 334º do mesmo Código, destacando-se neste último e sem prejuízo de haver de atender também às finalidades económicas e sociais dos direitos em causa, a atenção que é dada, em primeira linha, à boa-fé e aos bons costumes (isto é, novamente e sempre, aos valores éticos que constituem os pilares estruturantes da Comunidade, que validam as normas legais produzidas pela forma prevista na Constituição e que servem de padrão aferidor quando está em causa apreciar a adequação das condutas individuais aos padrões comportamentais reputados exigíveis à vivência em Sociedade, sendo que esses padrões são os típicos do diligente bom pai (ou boa mãe) de família ou declaratário normal colocado no lugar do real declaratário a que antes já se fez referência).

4.2. Nesta sede de recurso, sustenta o apelante, em síntese, que «O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação e, por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto eo acórdão arbitral não enferma do defeito de carência total de fundamentação», tanto mais que «Na parte da fundamentação, vem o tribunal arbitral socorrer-se do depoimento de uma das testemunhas arroladas – L. à data dos factos Presidente da Junta de Freguesia, fazendo os árbitros menção ao sentido do referido depoimento, efectuando uma análise crítica do mesmo, exteriorizando uma convicção cimentada e fundamentada … (e mais) adiante na referida fundamentação o tribunal arbitral alicerça a sua convicção no depoimento de uma outra testemunha arrolada no processo, fundamentando ainda a sua convicção na vasta documentação junta aos autos pelos demandantes».

Logo, em suma, para o recorrente «a decisão arbitral em apreço específica a matéria de facto apurada, definiu as questões jurídicas suscitadas, analisando-as, em seguida, em pormenor, onde referiu as disposições legais julgadas aplicáveis, fazendo uma interpretação dos factos provados relevantes para a decisão daquelas, referindo os conceitos que julgou relevantes para o efeito e tirando as respectivas as conclusões», pelo que, «no caso presente, a decisão arbitral não estava obrigada, em termos de fundamentação da matéria de facto, a mais do que aquilo que foi exarado».

Contudo, o argumentário expendido pelo ora apelante contra a sentença do Tribunal de 1ª instância ignora ostensivamente que as críticas feitas por esse Tribunal ao acórdão arbitral se reportam não à falta de fundamentação, em matéria de facto e de direito, do decreto judicial que culmina essa deliberação, mas antes ao não cumprimento do dever inscrito na parte final do n.º 2 do art.º 653º do CPC 1961, norma reguladora aplicável ao caso quer à data da prolação do acórdão arbitral (…/…/…) quer à da publicação da sentença recorrida (…/…/…), na qual se estatuía (no CPC 2013 não existe norma correspondente) que “a decisão proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”.

Indicando aí e não na fundamentação em matéria de direito do decreto judicial que aprecia o mérito do pedido ou pedidos deduzidos pelas partes na acção ou procedimento.

O que, clara e inequivocamente, não foi feito nas curtas/lacónicas palavras do acórdão arbitral que antes estão transcritas.

Aliás, lendo com o devido cuidado todo o texto dessa deliberação, forçoso se torna referir que nenhuma das menções feitas ao depoente L. ou a outrem (mas quem, pergunta-se?) cumpre essa exigência de análise crítica da prova e especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, não passando essas referências de juízos moralistas que não têm sustentação nem na letra nem no espírito da Lei - vejam-se os seguintes trechos: “… o presidente da altura, L. , afirmou em depoimento (sob juramento) que agiu de boa-fé e que com o demandante a relação que tinha era boa e numa base de confiança e honradez.

Também cremos que a palavra de uma pessoa honrada vale mais do que um contrato, vale mais do que uma norma jurídica. Mas aqui o L. , sem prejuízo da sua boa intencionalidade (de no futuro conceder ao demandante a sua posição contratual nos termos equivalentes à que tinha antes), foi traído pelas circunstâncias e contingências eleitorais, perdendo as eleições e tendo cedido o seu lugar a um novo presidente de Junta que se vê confrontado com uma situação de facto que não estava documentada formalmente e que, assim sendo, não teria qualquer validade formal. Aqui a nova direcção política da Junta terá agido em conformidade com o direito constituído e com a herança que recebeu (isto é, falta de comprovação formal, logo legal, de situações, expectativas e direitos legítimos do demandante). Mas, salvo melhor opinião e entendimento, perdeu a oportunidade de corrigir materialmente uma situação que não estava formalmente documentada, mas onde se poderia ter socorrido de informação e testemunhos anteriores para repor as expectativas e direitos atendíveis. Mem só de formalidades e normas vive o Direito (leia-se como meio de atingir a Justiça). Por vezes é necessário seguir outros caminhos como os da equidade, da igualdade ou proporcionalidade ou ainda uma “justiça natural das coisas.”.

Crê-se que estas palavras dispensam quaisquer comentários - e, insiste-se, nada disto constitui o cumprimento do dever inscrito na parte final do n.º 2 do art.º 653º do CPC aplicável, que é o dito CPC 1961.

E tanto basta para sufragar a posição jurídica sustentada pelo Mmo Juiz a quo na decisão criticada.

Como, obviamente, não podia deixar de ser face à letra da Lei e porque o dever de fundamentar previsto na Lei da Arbitragem Voluntária (quer se entenda aplicável o art.º 23º n.º 3 da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, quer o art.º 42º n.º 3 da LAV aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro) corresponde integralmente ao idêntico dever previsto na Constituição da República (art.º 205º n.º 1) e no CPC quanto aos Juízes dos Tribunais do Estado, e é válido indistintamente tanto no que respeita à fundamentação, em matéria de facto e de direito, do decreto judicial proferido através da sentença ou acórdão sob escrutínio, como para a motivação do julgamento relativo à indicação dos factos provados e não provados na acção ou procedimento em causa.

4.3. E, por tudo o exposto e de acordo com as razões invocadas no presente acórdão, julgam-se improcedentes as conclusões das alegações de recurso do apelante e, consequentemente, confirma-se o decreto judicial contido na ora sindicada decisão com valor de sentença recorrida.

O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.

*
*

5. Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados no ponto 4. do presente acórdão, julga-se improcedente a apelação e confirma-se o decreto judicial proferido através da sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Lisboa, 17/06/2014

(Eurico José Marques dos Reis)

(Ana Maria Fernandes Grácio)

(Afonso Henrique Cabral Ferreira)