Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | GRAÇA AMARAL | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE ASSISTÊNCIA HOSPITALAR | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/06/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | I - A competência material do tribunal é determinada pela pretensão formulada pela parte que tem a iniciativa de accionar de acordo com o pedido e causa de pedir.
II – A acção proposta por entidade integrada no SNS (Serviço Nacional de Saúde) para cobrança de encargos despendidos com a assistência hospitalar a diversos utentes beneficiários do Serviço Regional de Saúde dos Açores, não assume cabimento no âmbito do regime legal de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, instituído pelo Decreto-Lei 218/1999, de 15 de Junho, porquanto tal litígio assume enquadramento na função de natureza público-administrativa das entidades que são partes na acção e que prosseguem um interesse público de realizar o serviço nacional de saúde; nessa medida e para tal efeito, são os tribunais administrativos os competentes. (sumário da relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,
I - Relatório Partes: H,SA (Autora/Recorrente) S e A (Réus/Recorridos)
Pedido: Condenação da Ré S a pagar-lhe a quantia de 73.644,38 euros, relativa aos custos pelos cuidados de saúde que prestou a utentes/beneficiários do SRS dos Açores, acrescida dos juros de mora comerciais vencidos até à propositura da acção, no valor de 9.841,52 euros, bem como nos juros que se venceram a partir de tal data até efectivo pagamento. Subsidiariamente considera que, em última análise (para o caso de ocorrer dúvidas quanto à responsabilidade da 1ª Ré pelo pagamento peticionado), deverá a Região Autónoma dos Açores assegurar-lhe o pagamento da referida quantia, por lhe caber tal responsabilidade. Deduziu pedido subsidiário contra a 3ª Ré – no montante de 45.213,53 euros e juros de mora comerciais, sendo os vencidos até à propositura da acção no valor de 5.807,46 euros – por ser a entidade pública contratante no contrato de gestão, cabendo ao Estado a responsabilidade perante os estabelecimentos integrados no SNS pelos encargos da prestação de cuidados de saúde no quadro institucional do SNS, quando não existam terceiros responsáveis e deduzida a parte que corre por conta do utente.
Fundamento - ter prestado cuidados de saúde (no estabelecimento hospitalar – em regime de parceria público-privada, ao abrigo de um contrato de gestão, por efeito do qual se encontra integrado no SNS e adstrito a garantir o acesso universal às prestações de saúde aos beneficiários do SNS) no período de 14 de Setembro de 2009 a 21 de Novembro de 2011, a utentes do SRS da Região Autónoma dos Açores. - Correrem por conta do Orçamento Regional os encargos com os cuidados de saúde prestados aos utentes ou beneficiários do SRS da Região Autónoma dos Açores. - Ser a Ré S a entidade que gere financeiramente o SRS, tendo sucedido nas respectivas funções ao Instituto de Gestão Financeira da Saúde.
Contestação Os Réus, nas respectivas contestações, arguiram, para além do mais, a incompetência material do tribunal para o conhecimento do pedido, por considerarem que o conhecimento da acção pertence aos tribunais administrativos.
A Autora reiterou, em resposta, a competência dos tribunais cíveis, pronunciando-se no sentido da improcedência da excepção de incompetência absoluta do tribunal.
Decisão recorrida (saneador sentença) Julgou o tribunal cível absolutamente incompetência para tramitar e julgar a acção, absolvendo as Rés da instância.
Conclusões da apelação O primeiro erro de direito O segundo erro de direito O terceiro erro de direito A aplicação ao caso dos autos do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho A competência material dos tribunais judiciais para julgar a presente acção Em contra alegações as Rés pronunciam-se no sentido da manutenção da decisão recorrida.
II - Apreciação do recurso O factualismo com interesse para a apreciação do recurso consta do relatório supra.
2. O direito Questões colocadas pela Apelante (delimitadas pelo teor das conclusões do recurso e na ausência de aspectos de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do NCPC) Ø Da (in)competência material do tribunal cível para o conhecimento da acção Ø Da isenção de custas por parte da Autora
A sentença recorrida absolveu os Réus da instância e condenou a Autora nas custas, porquanto considerou o tribunal cível materialmente incompetente para o conhecimento da acção entendendo que para o efeito a competência pertencia aos tribunais administrativos (alínea j) do n.º1 do artigo 4.º do ETAF[1]), sustentando-se na seguinte ordem de argumentos: ü A Autora, embora sendo pessoa colectiva de direito privado, encontra-se inserida e realiza um serviço público - serviço nacional de saúde – integrado na função administrativa do Estado; ü Os cuidados de saúde cujo pagamento peticiona foram prestados pela Autora por força da lei e no âmbito de um contrato administrativo que lhe defere tal função (contrato de gestão); ü O objecto do litígio, delimitado pela causa de pedir e pelas contestações das Rés, reporta-se ao âmbito das funções administrativas das entidades partes na acção, pressupondo a convocação de normas de natureza administrativa e a intervenção da jurisdição administrativa. Em recurso a Autora reitera a sua posição defendendo a competência do tribunal cível invocando os seguintes fundamentos: Ø De acordo com a delimitação do pedido e da causa de pedir nos termos delineados pelo autor (os elementos em que assenta a apreciação da competência material do tribunal), a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a efectivação da prestação de cuidados de saúde, assumem integração no regime especial de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no SNS (DL 218/99, de 15 de Junho), carecendo de cabimento estar em causa um litígio entre pessoas colectivas com funções públicas a resolver à luz do direito público; Ø A resolução do presente litígio não reclama a aplicação nem a interpretação do contrato de gestão;
1. Da competência material do tribunal A primeira questão a decidir consiste em saber se o tribunal judicial é ou não competente para a presente acção. Em causa está acção instaurada (em Maio de 2013) pela Autora, enquanto entidade gestora do Hospital, tendo por finalidade o pagamento referente ao preço pelos cuidados de saúde que prestou a utentes beneficiários do SRS (serviço regional de saúde) da Região Autónoma dos Açores. Nesse sentido formulou dois pedidos: 1. Pedido principal deduzido contra a 1ª e 2ª Rés, no montante de 73.644,38 euros e juros de mora; 2. Pedido subsidiário contra a 3ª Ré, no montante de 45.213,53 e juros de mora. Tal pretensão encontra-se fundamentada nos seguintes pressupostos: 1. O Hospital, integrado no Serviço Nacional de Saúde, prestou tais cuidados de saúde a utentes do SRS dos Açores por força da celebração de um contrato de gestão (cláusula 32ª, n.º2[2]); 2. Incumbe à Região Autónoma dos Açores (através do SRS) a política de saúde nessa região, correndo por conta do orçamento Regional[3] o respectivo custo; 3. Os utentes em causa, para além de beneficiários do SNS, são, em primeira linha, beneficiários do SRS[4]; 4. A 2ª Ré, enquanto gestora financeira do SRS, mostra-se responsável pelo pagamento dos serviços de saúde prestados àqueles utentes; 5. A considerar inexistir terceiros responsáveis pelos custos em causa, entendendo-se que os mesmos correm por conta do Estado Português, terão os mesmos de ser imputados à 3ª Ré, enquanto entidade contratante no contrato de gestão, ao abrigo do qual a Autora prestou os cuidados de saúde. Vejamos.
1.1 Conforme decorre do artigo 209.º, da Constituição da República Portuguesa, o nosso sistema judicial não é unitário sendo constituído por várias categorias de tribunais que, de acordo com as normas constitucionais (artigos 209.º a 214.º), são distintas entre si, com estruturas e regimes próprios. Nas categorias constitucionalmente previstas e tendo presente o que aqui nos interessa face à questão sob análise, refira-se a categoria dos tribunais judiciais e a dos tribunais administrativos e fiscais (abrangendo, em ambos os casos, um conjunto mais ou menos vasto de tribunais entre si estruturados hierarquicamente) são independentes e autónomas uma da outra o que passa, para além do mais, pela repartição de competências assente, à partida, em critérios objectivos que se reportam à natureza das questões submetidas à apreciação. A categoria dos tribunais judiciais caracteriza-se não só por dela fazerem parte os tribunais comuns em matéria cível e criminal, como também por estes deterem uma competência jurisdicional residual que se traduz no estender da sua competência a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras categorias de tribunais. O artigo 212º, da Constituição, vem delimitar o âmbito de competência dos tribunais administrativos referindo expressamente que aos mesmos compete dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. Desde logo, e face às normas constitucionais, na sequência da revisão constitucional operada pela Lei n.º 1/89 de 08-07[5], a competência dos tribunais administrativos deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, tidos tradicionalmente como tribunais comuns, podendo desta forma ser considerados como os tribunais ordinários de justiça administrativa[6], cabendo-lhe o julgamento de quaisquer acções (ou recursos) que tenham por objecto a resolução de litígios resultantes de relações jurídicas administrativas, pelo que uma questão de natureza administrativa pertencerá sempre à ordem judicial administrativa a não ser que esteja atribuída outra jurisdição[7] Surge-nos assim como bom o entendimento segundo o qual a competência dos tribunais administrativos abrange todos os litígios com origem em relações jurídicas que nascem e se desenvolvem à luz do direito administrativo, numa dupla vertente, um dos sujeitos, pelo menos, é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público administrativo, ou a relação jurídica é regulada pelas normas do direito administrativo, na vertente material, ficando em qualquer das formas excluídos os conflitos puramente privados, ou de cariz meramente jurídico-civilista[8]. A mesma conclusão se pode retirar do disposto no artigo 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Refira-se ainda que as relações jurídicas administrativas reportam-se essencialmente, e em termos gerais, às relações jurídicas entre a Administração e os particulares, desde que públicas, ou reguladas pelo direito administrativo, isto é, aquelas em que pelo menos um dos sujeitos actua investido de autoridade pública, visando a realização de um interesse público que se encontra legalmente definido ou protegido.
1.2 Constitui entendimento pacífico que a competência do tribunal se afere em função dos termos em que a acção é proposta, sendo a estruturação da causa[9] tal como a parte (que tem a iniciativa de recorrer a tribunal) a apresenta, que fixa a forma decisiva a considerar para efeitos de determinação da competência material[10]. Sendo a competência do tribunal determinada pela pretensão formulada e caracterizada pelo pedido e causa de pedir, somos de entender que o posicionamento da Autora/Apelante em defesa da competência material do tribunal cível para o conhecimento da acção tem por subjacente o equívoco no que se reporta à aplicabilidade do DL 218/99, de 15 de Junho, à situação sob apreciação e que decorre, por sua vez, do entendimento que o suporta: enquadramento das Rés no âmbito de um subsistema de saúde, respondendo pelos encargos de saúde dos seus beneficiários enquanto terceiro pagador. No que se refere à questão (in)aplicabilidade do citado DL 218/99 (que designa os tribunais comuns com competência para conhecer e decidir das acções a que se reporta), e por forma a afastar o entendimento do tribunal a quo relativo ao facto de estar em causa na acção matéria referente à função administrativa ou pública das partes[11], a argumentação da Autora/Apelante radica na circunstância do referido diploma se reportar ao regime processual específico para a cobrança dos créditos das entidades hospitalares que integram o SNS referentes aos cuidados de saúde prestados e no facto da presente acção se reportar ao cumprimento de obrigação que tem por objecto apenas a satisfação de uma obrigação pecuniária, ou seja, por o pedido e a causa de pedir da acção se restringirem ao reembolso dos custos dos cuidados de saúde prestados pelo Hospital aos utentes do SRS (utentes que em função da respectiva residência - Região Autónoma dos Açores - os torna beneficiários da SRS). Não há dúvida de que o regime processual específico do DL 218/99, de 15 de Junho, tem por objecto o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados (cfr. artigo 1.º). Conforme se encontra consignado no respectivo preâmbulo, as alterações introduzidas no sistema de saúde, designadamente no Serviço Nacional de Saúde, atribuíram aos serviços e estabelecimentos nele integrados a possibilidade de cobrarem receitas próprias, onde se incluem as referentes aos cuidados de saúde prestados e cujos encargos sejam suportados por outras entidades. A questão que se coloca no caso é a de identificar as entidades com responsabilidade pelos referidos encargos. Tal resposta é encontrada em conjugação com o que dispõe o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde[12] que, relativamente ao assunto (responsabilidade pelos encargos), estatui no n.º 1 do artigo 23.º: “Além do Estado, respondem pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde prestados no quadro do SNS: a) Os utentes não beneficiários do SNS e os beneficiários na parte que lhes couber, tendo em conta as suas condições económicas e sociais; b) Os subsistemas de saúde, neles incluídas as instituições particulares de solidariedade social, nos termos dos seus diplomas orgânicos ou estatutários; c) As entidades que estejam a tal obrigadas por força de lei ou de contrato; d)) As entidades que se responsabilizem pelo pagamento devido pela assistência em quarto particular ou por outra modalidade não prevista para a generalidade dos utentes; e) Os responsáveis por infracção às regras de funcionamento do sistema ou por uso ilícito dos serviços ou material de saúde.” Tendo presente o posicionamento que a Autora assume ao sustentar a sua pretensão evidencia-se que a mesma parte do (incorrecto) pressuposto de que o SRS constitui um subsistema de saúde, descorando que as Rés, tal como a Recorrente, se encontram integradas no SNS realizando a função e interesse públicos, prioritariamente a cargo do Estado, de um serviço nacional de saúde geral, tendencialmente gratuito, assegurando o direito de todo o cidadão à protecção da saúde. Por conseguinte e ao invés do que defende a Recorrente, tal como decidido na sentença sob recurso, a presente acção não se encontra delimitada pela simples cobrança de custos decorrentes da prestação de cuidados de saúde por organismo integrado no SNS a utentes beneficiários de um subsistema de saúde. Na verdade, tendo em conta que o SRS não pode ser entendido enquanto subsistema de saúde[13], os autos têm por objecto a definição e distribuição de encargos entre o Estado e a Região Autónoma dos Açores relativamente à função de protecção da saúde do cidadão (função pública de promover e garantir o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde), integrada na função administrativa do Estado e que, como tal, que se encontra submetida a normas de direito público administrativo e às normas referentes à execução orçamental respeitantes à cobrança dos encargos com a prestação de cuidados de saúde no âmbito do SNS e do SRS dos Açores (cfr. artigo 149.º da Lei n.º 61-B/2012, de 31/12, que aprovou o Orçamento do Estado para 2013). Não podemos pois deixar de partilhar o entendimento sufragado na decisão recorrida quando conclui que o litígio assume enquadramento na função de natureza público-administrativa das entidades que são partes na acção e que prosseguem um interesse público de realizar o serviço nacional de saúde. Acresce que os cuidados de saúde prestados pela Autora e cujo pagamento do preço reivindica através da presente acção, tem por subjacente a sua ao nível da vinculação legal e de âmbito contratual (por efeito da celebração de um contrato de gestão[14]). Nessa medida e no que se refere à 3ª Ré[15] (pedido subsidiário), tal como se encontra salientado nas suas contra alegações, o conflito que põe a Recorrente à aqui Recorrida respeita a questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, ou de contratos especificamente a respeito dos quais existem normas de direito público que regulam aspectos específicos do respectivo regime substantivo”. Nestes termos, verificando-se a qualidade de entidades públicas das partes, a submissão das mesmas e da respectiva relação ente si a um regime substantivo de direito público, no âmbito dos interesses públicos que lhes cumpre prosseguir, a apreciação da acção cabe aos tribunais administrativos por força do disposto no artigo 4., alínea j), do ETAF (relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir). Por outro lado, conforme já supra referido, o litígio dos autos reporta-se (no que ao pedido subsidiário diz respeito) a questão relacionada com a interpretação das cláusulas relativas à execução do contrato de gestão (com natureza de contrato administrativo de colaboração) celebrado entre a Autora e a 3ª Ré e, como tal, com cabimento no âmbito da alínea f) do artigo 4.º do ETAF, de acordo com a qual incumbe aos tribunais administrativos administrar justiça nos litígios emergentes de Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.. Em face do exposto, há que concluir pela competência do tribunal administrativo para dirimir o presente litígio. Improcedem, por isso, as conclusões do recurso.
2. Da isenção de custas da Autora Não sendo de aplicar no caso o DL 218/99, de 15 de Junho, carece a Autora da pretendida isenção de custas processuais, pelo que cabe manter a condenação em custas decidida pelo tribunal a quo.
III – Decisão Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida. Custas pela Apelante. Lisboa, 6 de Maio de 2014 Graça Amaral Orlando Nascimento Dina Monteiro |