Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2478/2004-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: TESTAMENTO
REVOGAÇÃO
DECLARAÇÃO TÁCITA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE.
Sumário: A revogação tácita do testamento ou de disposição testamentária é a que, não assentando no propósito directamente manifestado pelo testador, resulta da contradição ou incompatibilidade entre as duas declarações e da circunstância de uma delas ser posterior.
Atendendo ao carácter formal do testamento, a lei não consente que seja interpretado e harmonia com o que se averiguou ser a vontade real do testador, quando essa vontade nada tenha a ver com o título testamentário.
A revogação tácita de testamento apenas poderá decorre do preceituado no art. 2313º do CC, não podendo considerar-se revogado um testamento por outro quando isso não resulte do seu texto, ainda que de forma imperfeitamente expressa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

Nuno ... e outros
 intentaram a presente acção declarativa, com processo ordinário,
contra
José ... e Maria ...
pedindo que se declare que os AA. sucederam, por direito de representação de seu pai, no direito ao legado de ½ do prédio urbano sito na R. ........deixado por óbito de J..., e que se ordene o cancelamento de quaisquer inscrições ou registos que do prédio em causa hajam sido feitas a favor dos RR. ou de terceiros e se ordene a inscrição no Registo Predial da aquisição do mesmo prédio a favor dos AA. e, consequentemente, se condene os RR. a restituírem aos AA. a metade do prédio em causa, a pagar-lhes a quantia de Esc. 687.452$00 e quaisquer outras que, a partir do mês de Julho de 1998, vierem a cobrar a título de rendas, ou outro, bem como os juros que, calculados à taxa de 10 % sobre cada uma das rendas desde as datas dos seus recebimentos pelos RR., se venceram e vencerem até integral pagamento.

Alegam para tanto, e em síntese, que:
 Os AA.  são, com sua mãe, M.. únicos e universais herdeiros de Joaquim, falecido no dia 7 de Março de 1993, o qual fora instituído legatário de metade do direito de propriedade do prédio urbano constituído por uma moradia geminada, sito na R.... por testamento, datado de 80.11.24, deixado por J..., falecido no dia 22 de Abril de 1997.
O mencionado J...deixou um outro testamento, celebrado no dia 1 de Fevereiro de 1989, mediante o qual instituiu como seus herdeiros os RR.,  seus sobrinhos, testamento este não contém qualquer declaração revogatória do anterior, não existindo qualquer incompatibilidade entre esses dois testamentos.
Os R.R. estão na detenção material da metade do direito de propriedade daquele imóvel legado por J... a Joaquim, assumindo-se como sucessores de J... na metade daquele direito de propriedade, por considerarem que o testamento de 24 de Novembro de 1980 foi revogado pelo testamento de 1 de Fevereiro de 1989.
O prédio em causa foi dado de arrendamento a P..., que aí explora um lar de idosos, denominado «Lar de ....», e que a renda mensal de Esc. 98.740$00, à data do falecimento José..., foi elevada para Esc. 101.012$00 a partir do mês de Maio de 1998, tendo sido recebida desde então na totalidade pelos ora RR.
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Contestaram os RR., dizendo que:
os bens imóveis existentes no património do J..., à data em que foi outorgado o testamento, foram sendo sucessivamente alienados, pelo que, à data da sua morte, o único bem existente no património do de cuius era o imóvel em causa nos presentes autos.
O outro prédio que consta da relação de bens – prédio denominado Cal... – foi vendido à C.P., que o utilizou na quase totalidade em obras de alargamento da via, embora a escritura de compra e venda nunca se tenha chegado a realizar.
Para além destes bens, apenas existia algum mobiliário menor e alguns certificados de aforro, bens estes que foram objecto de doação em vida pelo “de cuius”, pelo que o 1º testamento se deve considerar revogado pelo 2º.
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Deduziram ainda os RR pedido reconvencional, no sentido de ser declarada a revogação, nos termos do artigo 2313º do Código Civil, do legado a favor de Joaquim feito no testamento de 80.11.24, por manifestamente incompatível com os termos do testamento de 89.02.01, reconhecendo-se, assim, o direito de propriedade dos RR. sobre a metade da moradia sita na Rua... que constituía a herança do referido Joaquim, e ainda a condenação solidária dos AA. e de Dª M..., cuja intervenção principal foi requerida, a pagar aos RR. José e Maria, a título de compensação por danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia  já liquidada de Esc. 735.609$00 (ou aquela que vier a ser arbitrada pelo tribunal), acrescida dos juros de mora que à taxa legal se vençam desde a notificação da contestação, bem como a quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente aos honorários de técnico que os RR. venham a suportar por força da presente acção e ainda a condenação dos A.A. por litigância de má-fé.
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Replicaram os AA., contestando o pedido reconvencional e os RR. treplicaram.
            **
O pedido de intervenção principal provocada foi indeferido, bem como o pedido reconvencional na vertente indemnizatória.

Procedeu-se a audiência de julgamento.

Foram apresentadas alegações de direito a fls. 587 e ss., e 620 e ss..

Seguidamente foi proferida a competente sentença, tendo sido decidido o seguinte:

«Termos em que, julgando o pedido reconvencional improcedente e a acção parcialmente procedente, declaro que os AA. sucederam, por direito de representação de seu pai, no direito ao legado de ½ do prédio urbano sito na R. ....deixado por J..., e, consequentemente, condeno os RR. a restituir aos AA. a metade do prédio em causa,  e a pagar-lhes a quantia de € 3.458,92, relativa a 50% das rendas vencidas até à data da propositura da acção, e  ainda 50% das rendas vencidas a partir do mês de Julho de 1998, quantias essas acrescidas de juros desde as datas dos seus percebimentos pelos RR., à taxa de 10% até 99.04.16, de 7% desde 99.04.17 até 03.04.30, e 4% desde 03.05.01 até integral pagamento, absolvendo-os do pedido na parte relativa aos registos».


Dela recorreram os RR formulando as seguintes conclusões:
...
Os apelados pedem a confirmação da sentença.

***
Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

Da 1º instância vêm provados os seguintes factos:

1. Os AA., juntamente com a sua mãe, M..., foram habilitados como únicos e universais herdeiros de Joaquim, falecido em 7 de Março de 1993, através da escritura de habilitação lavrada em 25  de Julho de 1995, no 2º Cartório Notarial ...., conforme certidão de fls. 9 e ss. (artigo 1º dos factos assentes).
2. Em 28 de Dezembro de 1978, J.. outorgou o testamento no ... Cartório Notarial de Lisboa, de que existe cópia a fls. 139 e ss., onde se lê:
«Que, por este testamento, deixa a parte disponível de todos os seus bens, em nua propriedade, a seus sobrinhos José; Joaquim e D. Maria ....
Deste modo dá por concluído o seu testamento e por ele revoga todo e qualquer outro feito anteriormente.» (artigo 2º dos factos assentes).
3. Em 24 de Novembro de 1980, J... outorgou no .... Cartório Notarial de Lisboa, o testamento de que existe certidão a fls. 13-15, do qual consta:

«Que, devidamente autorizado por sua esposa, pelo presente testamento faz a disposição da sua última vontade pela forma seguinte:
Primeiro – Lega a Joaquim ...metade de cada um dos seguintes imóveis, pertencentes ao seu comum  casal e de sua esposa, legado este em nua propriedade:
a) Terra de vinha, pastagem e ....
b) Moradia geminada, sita na Rua ...

Segundo – Lega a Dona Maria ....em nua propriedade, metade do seguinte imóvel, pertencente ao seu comum casal e de sua esposa:

Fracção autónoma designada pela letra L, que se situa no terceiro andar, direito, do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na ....

Terceiro – Lega a sua esposa Maria, com ele  convivente , o usufruto vitalício de cada uma das metades dos imóveis acima legados em nua  propriedade àqueles Joaquim.. e Maria ..

Assim o disse e outorgou.
Foram testemunhas presentes ....

Este testamento foi lido e o seu conteúdo explicado ao outorgante, em voz alta, em sua presença e na das referidas testemunhas, simultaneamente, declarando ainda o outorgante que se mantém o seu anterior testamento, datado de vinte e oito de Dezembro de mil novecentos setenta e oito, lavrado no... Cartório Notarial desta cidade, aditamento que também foi lido na forma atrás referida e a todos explicado.» (artigo 3º dos factos assentes).

4. Em 1 de Fevereiro de 1989, J...outorgou no 14º Cartório Notarial de Lisboa, o testamento de que existe certidão a fls. 17 e ss., donde consta que:
«Que constitui seus herdeiros, seus sobrinhos José e Maria...........
Li este instrumento ao testador e expliquei-lhe o seu conteúdo em voz alta e na presença simultânea de todos os intervenientes.» (artigo 4º dos factos assentes).
5. O testamento de 89.02.01 era o único que se encontrava no cofre da casa de J..., à data da sua morte, dentro de um sobrescrito, de que existe cópia a fls. 150, e onde se lia:

                                             «Meu testamento
                          J...» (artigo 5º dos factos assentes).

6. Maria... outorgou o testamento de que existe cópia a fls. 24 e ss., em 28 de Dezembro de 1978, no... Cartório Notarial de Lisboa, e onde declarou:

«Que, por testamento, deixa a parte disponível de todos os seus bens, em nua propriedade, em partes iguais, a seus sobrinhos..........
Deste modo dá por concluído o seu testamento, e por ele revoga todo e qualquer outro feito anteriormente.» (artigo 6º dos factos assentes).
7. Maria.... outorgou no ... Cartório Notarial de Lisboa, o testamento de que existe certidão a fls. 28 e ss., em 24 de Novembro de 1980, onde se lê que:

«Que, devidamente autorizada por seu marido, J...., pelo presente testamento faz disposição de sua última vontade pela forma seguinte:

Primeiro – Lega a Joaquim

a) Terra de vinha, pastagem e
b) Moradia geminada,

Segundo – Lega a Dona Maria ....

Terceiro – Lega a seu dito marido, ...
8. Nesse testamento consta ainda que a outorgante declarou que se mantém o seu anterior testamento de 28 de Dezembro de 1978, exarado no... Cartório Notarial de Lisboa (artigo 8º dos factos assentes).
9. Maria... faleceu em 19 de Agosto de 1988 (artigo 9º dos factos assentes).

10. Mostra-se junta a fls. 229 e ss. certidão de uma procuração, lavrada no ... Cartório Notarial de Lisboa, em 10 de Dezembro de 1980, através da qual J..  e Maria... constituíram «seu procurador .....(artigo 10º dos factos assentes).
11. A  fls.  232  e  ss.  encontra-se  cópia
de  um  escrito   intitulado   «contrato-promessa de compra e venda – recibo de quitação», datado de 15 de Julho de 1988, no qual José.., na qualidade de procurador e em representação de J... e M..., e Caminhos de Ferro Portugueses, acordaram reciprocamente aceitarem vender o prédio rústico denominado Calçadinha, sito na freguesia de ..., concelho de Torres Vedras, inscrito na matriz cadastral rústica da referida freguesia sob o artigo 31 da secção CC, e ainda omisso na Conservatória do Registo Predial, pelo preço de 350.000$00, livre de quaisquer ónus e encargos, o qual foi pago no acto de outorga e de que foi dada quitação (artigo 11º dos factos assentes).

12. Ficou ainda acordado  na cláusula 6ª que «o primeiro outorgante, compromete-se a celebrar a competente escritura pública de compra e venda logo que seja solicitado pelo segundo outorgante, por conta do qual decorrerão as despesas da mesma, bem como, as despesas principais ou acessórias eventualmente ligadas com a transmissão de imóveis.» (artigo 12º dos factos assentes).

13. Na sequência do contrato-promessa de que existe cópia a fls. 232 e ss., a C.P. realizou obras de alargamento da via, ocupando o prédio em causa em extensão não apurada (resposta ao artigo 1º da base instrutória).

14. A indicação do prédio rústico inscrito na secção 31 CC da freguesia de..., concelho de Torres Vedras, foi inserido na relação de bens por não ter sido celebrada a escritura pública relativamente à promessa de transmissão do mesmo referida na resposta ao artigo 1º da base instrutória (resposta ao artigo 2º da base instrutória).

15. Mostra-se junta a fls. 146-8 um manuscrito da autoria de J..., datado de 24 de Maio de 1984, e respectivo sobrescrito com os dizeres  «Aos meus bons sobrinhos e grandes amigos, minhas lembranças a fazer quando eu morrer», e cujo texto é o seguinte:

 «Lisboa, 24 de Maio de 1984 

Caros sobrinhos ...
 Dei à Maria do Carmo

1º andar

(quarto que dá para a  frente que tem duas camas)
Dei-lhe tudo o que aí houver após a minha morte.

Também lhe dei tudo o que lá  houver no seu quarto, incluindo os móveis.
Cubículo onde estão os cobertores 

Dei metade do que aí possuo à Maria do Carmo, e a outra metade à Martinha.


Rés do chão
Ofereci à  Maria do Carmo, todo o recheio da cozinha onde comemos, bem como o frigorífico mais pequeno, máquina de lavar, ½ faqueiro, a outra metade dou-a à Martinha.
Também ofereci à Maria do Carmo toda a loiça com targa azul, fabricada pela Fábrica de Loiças de Sacavém).
Cozinha, etc.

Dei também à Maria do Carmo metade do que lá houver, a outra metade é para a Martinha.
Da cave,  existe lá uma tábua que é da mesa redonda, que também lhe dei.

A televisão ofereci ao Helder.

Dentro  de um ano após a minha morte o meu sobrinho José  deve entregar-lhe os seguintes certificados de aforro, um deles de 1200, um de 1000, mais outro de 400 e outro de 800 (três mil e quatrocentos).
J...

P.S. A tábua de engomar e os ferros eléctricos são da Maria do Carmo.» (artigo 20º dos factos assentes).
16. Não houve tradição dos bens, referidos no artigo anterior em vida de J... (artigo 21º dos factos assentes).

17. Pelo menos os seguintes bens existiam em casa de J... à data do seu óbito:

- NO 1º ANDAR DIREITO
- Quarto da frente que tem duas camas: 2 camas;  cómoda; espelho; candeeiro; mesa de cabeceira; guarda vestidos; 2 cadeiras; 1 cabide de fato de homem;

- Num outro quarto de dormir, uma cama, uma cómoda, uma mesinha e uma cadeira;

- No quarto de dormir principal, uma cama, uma cómoda, uma mesa, um armário e duas mesas de cabeceira.

-  No quarto de Maria do Carmo: 2 camas; 1 cómoda; 1 guarda vestidos; 2 candeeiros; cobertores, roupa de casa (cama, almofadas);
- NO RÉS DO CHÃO
- Na sala de estar, uma mesa redonda, um armário cristaleira, uma mesinha e diversas cadeiras;

- Na sala contígua à de jantar, uma estante, livros diversos, um aparelho de televisão, um sofá, uma poltrona e um quadro pintado a óleo representando uma paisagem.
- Na casa de refeições: louceiro de canto estilo inglês; mesa redonda; 6 cadeiras; 1 carrinho de chá; gira-discos;

- Na marquise: frigorífico; máquina de lavar; faqueiro;

- Na cozinha: louça com targa azul (fabricada na fábrica de louças de Sacavém); tachos; panelas; talheres; louças em geral; mesa com tampo de pedra: bancos (6 ou 8); esquentador; fogão; armários;
- No piso r/c intermédio (ao nível da R....), no escritório, um cofre antigo, um armário com vitrina, uma mesa e uma cadeira.
- NA CAVE

- tábua de aumentar da mesa redonda; televisão; móvel da televisão com colecção de livros; tábua de engomar; ferros eléctricos; um bar em forma de balcão; 4 cadeiras altas; uma mesinha;

- mobília de casa de jantar modelo holandês rico, com um louceiro grande; 1 mesa; 1 cristaleira; cálices e taças; 1 arca; 1 móvel baixo; 12 cadeiras; 2 cadeirões; 1 candeeiro; 1 quadro; 1 serviço de jantar; 1 serviço de chá (Vista Alegre); um espelho com moldura dourada (nas escadas); uma mesinha (nas escadas);
 - No quarto da cave: 1 mobília antiga (com cama, mesa de cabeceira, cómoda e toucador); guarda vestidos alto com algumas roupas; diversos conjuntos de lençóis, cobertores, serviços completos de jantar, pequeno almoço e chá, dois faqueiros e tabuleiros;

- Na sala contígua à do bar:  uma máquina de costura e diversas cadeiras (artigo 22º dos factos assentes).

18. Para além dos bens móveis referidos no artigo 22º dos factos assentes, existia, ainda à data do óbito de J..., no 1º andar, no quarto da frente que tem duas camas, uma outra mesa de cabeceira (resposta ao artigo 29º da base instrutória).

19. À data do óbito de J... existia no seu património 2.025 certificados de aforro (resposta ao artigo 27º da base instrutória).
20. Nos autos de liquidação de imposto sucessório devido por óbito de J..., o 1º R., na qualidade de cabeça-de-casal, indicou como herdeiros daquele, ele próprio, a 2ª R., e Joaquim  (artigo 13º dos factos assentes).

21. Na relação de bens apresentada nos autos de processo de imposto sucessório referidos, o 1º R. incluiu, além da metade do direito de propriedade do prédio em causa nos presentes autos, metade de um prédio urbano sito em ..., Torres Vedras (artigo 14º dos factos assentes).
22. O prédio urbano constituído por moradia geminada, sito na Rua ....(artigo 15º dos factos assentes).
23. O prédio sito na R. ... está dado de arrendamento a P..., que aí explora um lar para idosos, denominado «Lar ...» (artigo 16º dos factos assentes).
24. A renda mensal era, à data do falecimento de J..., de Esc. 98.740$00 (artigo 17º dos factos assentes).

25. A renda foi elevada para Esc. 101.012$50 a partir do mês de Maio de 1998 (artigo 18º dos factos assentes).

26. Os RR. recebem e retêm para si a totalidade das rendas (artigo 19º dos factos assentes).

27. Até 1974 o Sr. J.... explorava um negócio que lhe proporcionava rendimentos (resposta ao artigo 6º da base instrutória).

28. O Sr. J.... vendeu ao Sr. Joaquim , com reserva de usufruto, os terrenos sitos na B.., por montante não concretamente apurado, mas abaixo do seu valor real (resposta ao artigo 8º da base instrutória).

29. Não tendo recebido durante anos  qualquer rendimento dos mesmos (resposta ao artigo 9º da base instrutória).

30. Em 1974 o Sr. J...cedeu o seu negócio aos empregados, deixando de dispor dos rendimentos que o mesmo lhe proporcionava (resposta ao artigo 11º da base instrutória).

31. A . M.... sempre entendeu que a sua família de sangue tinha direito a receber os bens que por ela tinham sido levados para o casal (resposta ao artigo 13º da base instrutória).

32. Tendo o casal decidido, com conhecimento dos RR., que esse lado da família seria beneficiado através de disposição post mortem (resposta ao artigo 14º da base instrutória).

33. No início de 1987, na altura em que a  M... foi submetida a uma intervenção cirúrgica, 1º R. vendeu um andar que lhe tinha sido vendido por J..., com reserva de usufruto, entregando-lhe o produto da venda (resposta ao artigo 15º da base instrutória).

34. Após a morte da sua mulher, D. M..., para além da renda do imóvel dos autos, dispunha de uma reforma no valor aproximado de Esc. 30.000$00, e de uma quantia de aproximadamente Esc. 20.000$00 mensais que lhe era entregue pelos RR., e ainda dos juros dos certificados de aforro e das contas poupança reforma (resposta ao artigo 16º da base instrutória).

35. O imposto sucessório por óbito de D. M..., no valor de Esc. 787.435$00, foi pago pelo 1º R. e pelo marido da 1ª R (resposta ao artigo 17º da base instrutória).

36. Estes também se opuseram a que  J..., como forma de gerar rendimento, aceitasse um hóspede em sua casa (resposta ao artigo 18º da base instrutória).

37. Tendo aqueles se disponibilizado, em contrapartida, a entregar-lhe mensalmente a verba que receberia de um hóspede (resposta ao artigo 19º da base instrutória).

38. J.... faleceu em 97.04.22.

O direito.

Questões a decidir:

a) saber se o testamento de 1980 foi revogado tacitamente pelo de 1989;

...

I
Vem o presente recurso interposto da douta sentença que considerou não existir incompatibilidade entre dois testamentos subscritos por J..., designadamente o legado a favor do pai dos AA, de 24.11.1980, e o testamento a favor dos RR, de 01.02.89, e, em consequência, julgou parcialmente procedente a acção e totalmente improcedente a reconvenção.
Pretendem os AA. que se declare que sucederam, por direito de representação de seu pai, no direito ao legado de metade do prédio urbano  referido, deixado pelo falecido J..., se ordene o cancelamento de quaisquer registos e se condenem os R.R. a restituir-lhes ½ desse prédio e ainda a pagar-lhes as importâncias por eles cobradas a título de renda.

A posição dos AA. assenta na ideia de que não existe incompatibilidade entre os dois testamentos por, à data do óbito do de cujus,  existirem outros bens para além da referida metade do prédio que foi objecto de legado.

Para os R.R., ora apelantes, ao outorgar o segundo testamento, o de cujus pretendia fazer uma disposição de última vontade para depois da morte relativamente ao seu derradeiro bem de valor, ou seja aquela metade do prédio legado ao pai dos AA, por estar convencido de que apenas este testamento era válido, só não tendo revogado expressamente o anterior por desconhecimento da lei.

Dizem ainda os RR que as circunstâncias que rodearam os últimos anos da vida do testador  reforçam a ideia de que era efectivamente esta a sua vontade.

Como vimos, pelo testamento de 24.11.80 foi instituído a favor do pai dos AA o legado de ½ do direito de propriedade do referido prédio (a outra metade já pertencia aos AA e sua mãe). O testamento de 01.02.1989 instituiu os RR na qualidade de herdeiros do falecido J....

Este segundo testamento não contém qualquer declaração revogatória do 1º. Por isso (não existindo revogação expressa – artº 2312º), a questão essencial a apreciar reside em determinar se o testamento de 1980 foi revogado tacitamente pelo de 1989.

Como estabelece o nº 1 do artigo 2313º do CC (sob a epígrafe “revogação tácita”), o testamento posterior que não revogue expressamente o anterior revogá-lo-á apenas na parte em que for com ele incompatível.

«A  revogação tácita do testamento ou de disposição testamentária, como a própria designação tácita desde logo sugere, é a que, não assentando no propósito directamente manifestado pelo testador de eliminar o testamento ou a disposição testamentária anterior, resulta apenas da contradição ou incompatibilidade existente entre as duas declarações e a circunstância de uma delas ser de data posterior à outra»[1].

Portanto, o testamento de 1989 apenas revogará o de 1980 na parte em que ambos forem incompatíveis. E como o 1º institui um legado a favor do pai dos AA e o 2º constituiu os ora apelantes herdeiros do testador[2], a questão está em saber se o 2º testamento revogou tacitamente o 1º, isto é, se existe contradição ou incompatibilidade entre eles.

E existe incompatibilidade entre dois testamentos (do que resultará uma revogação tácita do 2º pelo 1º) quando duas disposições testamentárias conflituem entre si, na medida em que o cumprimento duma delas impeça o cumprimento da outra (total ou parcialmente).


II

(...)


III


Como vimos, os apelantes defendem que o testamento de 1989 revogou o de 1980 porque à data da morte do testador apenas existia no seu património a aludida metade do prédio legado ao pai dos AA.

Se este facto se encontrasse provado teriam eles toda a razão, porque, a ser assim, haveria incompatibilidade total entre ambos os testamentos, como se disse, pois o cumprimento dum implicaria a impossibilidade de cumprimento do outro. Não existindo outros bens no património do de cuius, não teria qualquer razão de ser o 2º testamento se não revogasse o 1º (expressa ou tacitamente).

Com efeito, como foi referido na douta sentença, “Se, como pretendiam os R.R. na sua contestação, o único bem existente no património do de cujus, fosse a metade do prédio em causa, objecto de legado no testamento de 1980, não haveria qualquer dúvida em concluir-se pela revogação tácita daquele primeiro testamento, por manifesta incompatibilidade, já que o cumprimento de uma das disposições testamentárias impediria o cumprimento da outra”.

Mas competia aos RR provar que assim era  (artº 342º do CC).

Com efeito, quer se entenda que se trata de um facto constitutivo do seu alegado direito, quer se entenda que se trata dum facto extintivo do direito invocado pelos autores, sempre competiria aos RR fazer a respectiva prova.

O artigo 2313º prevê a revogação tácita de anterior testamento.

Como estabelece o artigo 217º, a declaração negocial é tácita quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.

Por isso, “atendendo ao carácter formal do testamento, a lei compreensivelmente, não consente que ele seja interpretado e aplicado de harmonia com o que se averiguou ser a real vontade do testador, quando essa vontade, descoberta pelo recurso a meios estranhos ao testamento, como escritos particulares do testador, depoimento de testemunhas, etc. (a chamada prova complementar) não tenha nada a ver com o título testamentário, situando-se inteiramente fora dele”[3].

Ora, do 2º testamento nada resulta no sentido de que o testador pretendeu revogar o 1º, pois dele apenas consta o que ficou provado, ou seja, que os ora RR foram instituídos herdeiros do falecido J...(ver facto nº 2.4 da sentença).

E teria certamente o testador fortes razões para o fazer, pois que pelo 1º havia sido instituído um legado e pelo segundo seria deixado todo o património aos sobrinhos, ora RR. E, mesmo na tese destes, se outros bens houvesse, seriam de pequeno valor. Assim sendo, teria plena justificação que se declarasse expressamente que se pretendia revogar o 1º testamento, pois o legado era de valor muito significativo quando comparado com o valor dos restantes bens referidos nos autos. Se o José da Silva quisesse efectivamente revogar o 1º testamento após a morte da mulher, para assim favorecer os seus sobrinhos (o legatário era apenas seu cunhado- irmão da mulher, já falecida –) certamente o teria feito expressamente.

E o de cuius até nem era propriamente um “principiante” em matéria testamentária, pois já tinha feito pelo menos dois, e em ambos fez referência aos anteriores - num deles revogando-os e noutro mantendo-os expressamente .

E dos factos alegados pelos RR, salvo o devido respeito, não se poderia concluir, ainda que todos tivessem ficado provados, que o José da Silva pretendeu revogar o testamento de 1980 (designadamente os quesitados sob os números 4 a 26).

“A lei manda que se respeite e cumpra o que o testador quis efectivamente. A vontade do testador é soberana. Reconhece-se-lhe a liberdade de fazer as suas disposições para depois da morte e têm de se acatar essas disposições religiosamente. Por isso se admitem todos os meios de prova, sejam eles quais forem, para descobrir, com verdade, qual foi a intenção do testador. Descoberta essa intenção, é ela que vale como sentido ou significado do testamento, que deverá entender-se e executar-se em perfeita conformidade com ela”[4].

Mas, no caso dos autos, a única vontade a apurar é a da revogação ou não do testamento de 1980. E como dissemos, do texto do testamento de 1989 nada resulta nesse sentido (ainda que de forma imperfeitamente expressa – artº 238º).

É certo que mal se compreende que tivesse sido feito um novo testamento quando, aparentemente, existiam poucos bens no património do de cuius. E a circunstância de o 2º testamento ter sido celebrado pouco depois da morte da mulher poderia indiciar no sentido de que o marido pretendia deixar todos os bens aos ora RR, seus sobrinhos (incluindo o legado). Mas porquê não dizê-lo expressamente, sabendo-se da existência do legado de metade de um prédio urbano? E porquê nada resultar, ainda que de forma imperfeitamente expressa, do seu texto?

Mas também se poderá pôr em causa se o testador não pretenderia deixar aos ora apelantes todos os restantes bens, incluindo os doados e até o prédio prometido vender. Nada garante que, por razões eventualmente desconhecidas, fosse essa  a sua intenção. E, como consta do facto 2.11 da sentença recorrida, o contrato promessa até foi celebrado pelo ora R. José.., na qualidade de procurador e em representação de J...e M.., em 15.07.88, ano do falecimento desta.

Nas alegações de recurso dizem os apelados que as doações foram feitas em 1994, pelo que, em 01.02.89, (data do 2º testamento) o objecto do legado não seria seguramente o único bem do de cuius. Se efectivamente as doações tivesse sido feitas em 1994, ou seja, depois do testamento de 1989, isso significaria que nesta data ainda aqueles bens existiam, de facto e de direito, no património do de cuius. Todavia, do facto nº 2.15 da sentença consta que as doações foram feitas em 1984. Este facto foi retirado do doc. 6 junto com a contestação e, como facilmente se verifica, a data não é muito clara. Mas se foram feitas em 1984, tal sucedeu ainda em vida do cônjuge pré-falecido, sendo, portanto, um bem comum do casal (e a doação apenas teria sido feita por ele).

E o que é certo é que nem todo os móveis foram doados. Por outro lado, à data do falecimento do J.... existiam 2025 certificados de aforro no seu património. E não ficou provado que não houvesse outros bens.

Portanto, de forma alguma se pode dizer que não existiam outros bens no património do testador.

E os RR alegam que à data do falecimento do José da Silva o seu património era apenas constituído pela metade do prédio legado ao pai dos AA, porquanto:

- o prédio situado em ..... tinha sido prometido vender à CP.

- Para além deste apenas existia algum mobiliário menor e alguns valores titulados por certificados de aforro, mas que estes foram doados em vida pelo falecido.

A verdade é que em vida do de cuius não houve tradição dos bens pretensamente doados.

Sobre esta questão foi entendido na douta sentença, no sentido de demonstrar que outros bens existiam no património do de cuius:
«A transmissão de imóveis está sujeita a escritura pública (artigo 875º C.C.), formalidade ad substantiam cuja omissão acarreta a nulidade da compra e venda  (artigos 364º, nº 1, e 220º C.C.), nulidade essa que é do conhecimento oficioso (artigo 286º C.C.).

 Nessa conformidade, e porque o contrato-promessa de compra e venda não é idóneo para operar a transmissão da propriedade, o prédio em causa, para todos os efeitos, deve considerar-se integrante do acervo hereditário do de cujus.

....

À data do óbito do de cujus  existiam  ainda 2075 certificados de aforro (ponto 2.19 da matéria de facto).
Conforme resulta do artigo 20º dos factos assentes (ponto 2.15 da matéria de facto), tais certificados, mais precisamente 3.400,  haviam sido doados às suas empregadas Maria do Carmo e Martinha , através dos escritos de fls. 146 a 148.

De igual modo, existiam à data da morte do de cujus, na sua residência, o mobiliário doméstico enunciado no artigo 22º dos factos assentes a mesa de cabeceira referida na resposta ao artigo 29º da base instrutória (pontos 2.17 e 2.18 da matéria de facto).

Tais bens também foram objecto de disposição para depois da sua morte pelo Sr. J... através do escrito de fls. 146-8 (ponto 2.15 da matéria de facto).

Resulta assim que a quase totalidade dos bens móveis do de cujus  foram objecto de disposição post mortem .

...

Pelo exposto, impõe-se a conclusão de que a nulidade das doações não é irrelevante, contrariamente ao que afirmam os RR.. É que se as doações são nulas, não houve acto de disposição que permita subtrair esses bens ao acervo hereditário do de cujus. Razão pela qual tais bens não poderão deixar de integrar a dinâmica sucessória (cfr., mutatis mutandis, acórdão do S.T.J., de 93.09.28, www.dgsi.pt.jstj00024634).

Em síntese: o património de J... à data do seu óbito, para além de metade do prédio em causa nos presentes autos, integrava o prédio de ...,  diverso mobiliário e 2.025 certificados de aforro».

Não vamos tecer grandes considerações sobre estas questões que, no mínimo, são discutíveis, sobretudo no que diz respeito ao contrato promessa.

É que, pelas razões referidas a questão perde interesse, pois, pelo menos alguns bens existiam no património do de cuius, quer à data do 2º testamento, quer à data da sua morte. E assim sendo não se pode dizer que existe contradição ou incompatibilidade entre as duas declarações.

No entanto, como resulta do preceituado no nº 1 do artigo 940º do CC, “doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito...". Trata-se, portanto, de um contrato bilateral, pelo que está sujeito a aceitação do donatário. Não basta, por isso, que alguém diga que pretende doar certo bem. E no caso sub judice o falecido diz naquele documento que deu e ofereceu os aludidos bens (no passado – “dei”, “ofereci” ...) . Mas pede aos sobrinhos que os distribuam após a sua morte. Estamos, assim, (no melhor das hipóteses para os RR) perante uma doação por morte, o que é legalmente proibido, face ao preceituado no artigo 946º do CC, pois não se verifica qualquer dos casos previstos no seu nº 1, nem a conversão a que alude o seu nº 2.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

Como bem referem os RR, a herança constitui uma vocação universal, enquanto que o legado se restringe a determinado(s) bem(s) em concreto, podendo todavia estes dois conceitos coincidir.

E acrescentam os RR: “... nenhuns outros bens (mesmo móveis) existindo em virtude das doações em vida” (feitas pelo testador).

Mas, pelo facto de se ter feito um testamento instituindo herdeiros os sobrinhos, tal não significa necessariamente que se tenha querido revogar o legado. Até porque, quando é isso que se pretende, em princípio, faz-se expressamente.

Nos termos do nº 1 do artigo 2030º do CC , os sucessores são herdeiros ou legatários. E estabelece o seu nº 2: “diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados”

E tanto são sucessores os herdeiros como os legatários.

Portanto, legatário é aquele que sucede em bens ou valores certos e determinados (com exclusão dos restantes). O herdeiro sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido[5].

E, como estabelece o nº 3 deste artigo, é havido como herdeiro o que sucede no remanescente dos bens do falecido. Neste caso, ao sucessor não são deixados bens certos ou determinados, mas antes o que resta do património do de cuius e daí que possa ser instituído um legatário (ou vários) e depois um herdeiro da parte restante.

A distinção entre herdeiro e legatário não é feita por um critério de base quantitativa. Um legatário pode receber muito e um herdeiro pouco, tudo dependendo das circunstâncias.

E ao caso nem há que chamar à colação o artigo 2187º do CC. E ainda assim sempre seria de considerar o preceituado no seu nº 2, nos termos do qual, sendo embora permitida prova complementar, não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência no texto do testamento, ainda que imperfeitamente expressa.

Não é que não interesse considerar a intenção do testador, pois é fundamental que se respeite a sua vontade, como se disse. Mas aqui o que interesse considerar é a intenção de revogação do 1º testamento. Contudo tal apenas poderá ser feito em obediência ao estabelecido no artigo 2313º.

Em conclusão: os apelantes não provaram que apenas existia no património do testador a metade do prédio agora reivindicado pelos AA. E doutros factos não resulta inequivocamente a vontade de revogação do testamento de 1980 pelo de 1989.


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Por todo o exposto acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Lisboa, 11.05.2004.

Pimentel Marcos

Jorge Santos

Vaz das Neves

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[1] Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao artigo 2313º do CC (vol. VI-491).
[2] Adiante se verá a distinção entre herdeiro e legatário.
[3] I. Galvão Telles, in O Direito, Ano 121, IV, 786.
[4] G Telles, ob cit. Pag. 787.
[5] Embora nem sempre seja fácil estabelecer a distinção; mas tal não sucede no caso dos autos.