Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
875/12.0TBLNH.L1-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: INVENTÁRIO
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - Os processos de inventário instaurados até à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, mantêm a sua tramitação no tribunal, aplicando-se as disposições legais em vigor a 31 de Agosto de 2013 (art. 29º da Portaria n.º 278/2013, de 26 de Agosto).
- Ao interessado e requerente no inventário, deve ser dado conhecimento da falta de apresentação da relação de bens pela cabeça de casal, nomeadamente para desencadear os actos necessários ao cumprimento do ordenado ou quiçá dar início ao incidente de remoção do cabeça de casal.
- O Tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas pretensões e exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração.
- Com o art. 3º n.º 3 do CPC, o legislador quis evitar as chamadas “decisões surpresa”, isto é, aquelas que comportam uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

            I – RELATÓRIO

L...  instaurou, em 18 de Dezembro de 2012, processo de inventário, por óbito de sua mãe, requerendo fosse nomeada cabeça de casal, E..., que, como tal, veio a ser designada.

Em 30/04/2013 foram prestados compromisso de honra e declarações iniciais, pela cabeça de casal, que não apresentou no acto a relação de bens, requerendo prazo de 15 dias para o efeito, o que lhe foi concedido.

No prazo concedido, a relação de bens não foi junta.

Conclusos os autos foi, em 26 de Março de 2014, proferido o seguinte despacho:
«Compulsados os autos, verifica-se que, há pelo menos 6 meses contados desde a entrada em vigor do novo CPC (sendo que o prazo previsto no art. 281.º do CPC deverá ser contado desde essa data – 01/09/2013 – atento o disposto no art. 297.º, n.º 1, do CC), os presentes autos se encontram parados por falta do competente impulso processual.
Nessa conformidade, ao abrigo do disposto no art. 277.º, al. c), conjugado com o art. 281.º, n.º 1, ambos do CPC, julgo a instância extinta por deserção.
Custas pelo requerente do inventário».

Recorre o Requerente do inventário, desta decisão, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo aplicou aos presentes autos de inventário o Novo Código de  Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, cujas disposições normativas entraram em vigor no dia 1 de Setembro de 2013.

2. No entanto, o art. 29º da Portaria n.º 278/2013, de 26 de Agosto, que Regulamenta o processamento dos actos e termos do processo de inventário no âmbito do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013,de 5 de Março, tendo ambos os diplomas entrado em vigor no dia 2 de Setembro de 2013, consigna, no art. 29º (Processos Pendentes), que: «Os processos de inventário instaurados até à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, mantêm a sua tramitação no tribunal, aplicando-se as disposições legais em vigor a 31 de Agosto de 2013.”

3. Em 31 de Agosto de 2013, a norma constante no artigo 281º n.º 1 do Novo Código de Processo Civil, e na qual o Tribunal a quo se baseou para proferir a sua decisão, não estava em vigor.

4. E nos termos do art. 29º da Portaria n.º 278/2013 não pode o Novo Código de Processo Civil ser aplicado aos processos de inventário instaurados até dia 2 de Setembro de 2013, aplicando-se, nestes casos, o Código de Processo Civil em vigor a 31 de Agosto de 2013.

5. Como tal, a referida norma – art. 281º, n.º 1 do Novo CPC – não pode ser aplicada aos presentes autos de inventário, pelo que não pode o Tribunal a quo julgar a instância extinta por deserção, como julgou.

6. Mesmo que assim não se entenda, sempre se dirá que, não subsistirão dúvidas de que na estruturação de um processo justo o Tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas pretensões e exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração.

7. Como corolário desses mesmos princípios, no art. 3º n.º 3 do CPC, o legislador quis evitar as chamadas “decisões surpresa”.

8. Desta forma, o Tribunal a quo, ao verificar que o prazo concedido à cabeça de casal foi manifestamente incumprido, e perante a omissão da parte, para evitar as tais “decisões surpresa”, deveria o Tribunal ter notificado a parte faltosa para que a mesma cumprisse o que foi judicialmente determinado, sob pena de condenação em multa.

9. Assim, esta decisão está juridicamente errada, e viola as disposições legais supra invocadas, nomeadamente o art. 29º da Portaria nº 278/2013, de 26 de Agosto e o art. 3º n.º 3 do Código de Processo Civil.

10. Face ao exposto, deve a decisão ora recorrida ser revogada, devendo a mesma ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.

            Corridos os Vistos legais,

           Cumpre apreciar e decidir.

No âmbito deste recurso cabe decidir se existe fundamento para declarar a extinção da instância por deserção, por aplicação do art. 281º, n.º 1 do CPC aprovado pela Lei 41/2013 de 26/6.

II - FUNDAMENTAÇÃO

Como acima se deixou assinalado, o presente inventário deu entrada em juízo em 18 de Dezembro de 2012, pelo interessado, ora Recorrente.

Em 30 de Abril de 2013, foi realizado auto de compromisso de honra e declarações de cabeça de casal por parte da irmã mais velha do Requerente, E...

Nesse mesmo acto foi concedido pelo Tribunal à cabeça de casal o prazo de 15 dias para juntar a relação de bens aos autos, o que nunca foi cumprido pela cabeça de casal.

Em 26 de Março de 2014 foi proferida a decisão recorrida que julgou extinta a instância, por deserção, atendendo á falta do «competente impulso processual», por prazo superior a 6 meses.

A decisão recorrida considerou aplicável aos autos a norma do art. 281º, nº 1 do CPC do CPC aprovado pela Lei 41/2013 de 26/6, que reduziu de 2 anos (art. 291º, nºs 1 do CPC 1961) para 6 meses, o prazo em questão.

1. Da aplicação do Código de Processo Civil - Lei n.º 41/2013, de 26/06

Os presentes autos entraram em juízo em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, que, com as excepções aí previstas, se aplica aos processos pendentes.

No entanto, o art. 29º da Portaria n.º 278/2013, de 26 de Agosto, que Regulamenta o processamento dos actos e termos do processo de inventário no âmbito do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013,de 5 de Março (tendo ambos os diplomas entrado em vigor no dia 2 de Setembro de 2013), consigna no seu artigo 29º, quanto aos processos pendentes que, os «processos de inventário instaurados até à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, mantêm a sua tramitação no tribunal, aplicando-se as disposições legais em vigor a 31 de Agosto de 2013».

Ora, em 31 de Agosto de 2013, a norma constante no artigo 281º n.º 1 do Novo Código de Processo Civil, e na qual o Tribunal a quo se baseou para proferir a sua decisão, não estava em vigor, como também assinala o Recorrente, pois que o prazo de deserção, por negligência das partes era, nos termos do art. 291º nºs 1 e 2 do CPC de 1961 (que vigorou até 31 de Agosto de 2013, de 2 anos e não de 6 meses.

2. Da decisão surpresa: o art. 3º CPC

Mas ainda que assim não fosse, nem assim se pode afirmar que o processo esteve não esteve sem impulso processual por negligência das partes.

            Na verdade, se impulso processual cabia à cabeça de casal - obrigada que estava à apresentação da relação de bens no prazo que lhe foi concedido – não deixa de ser verdade que o interessado e requerente no inventário, ora Recorrente, deveria ter tido conhecimento dessa omissão, nomeadamente para desencadear os actos necessários ao cumprimento do ordenado ou quiçá dar início ao incidente de remoção do cabeça de casal.

O certo é que não foi notificado da falta de cumprimento por parte da cabeça de casal da omissão referida. Foi apenas confrontado com esta omissão quando foi notificado da decisão recorrida que julga deserta a instância e o condenou nas custas.

Como o Recorrente afirma, na estruturação de um processo justo, o Tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas pretensões e exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração. Trata-se de emanações dos princípios de cooperação, boa-fé processual e colaboração entre as partes e entre estas e o Tribunal.

Como corolário desses mesmos princípios, no art. 3º n.º 3 do CPC, o legislador quis evitar as chamadas “decisões surpresa”, isto é, aquelas que comportam uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever.

No caso estamos perante uma decisão surpresa, com violação clara do princípio do contraditório, não sendo exigível ao Recorrente, enquanto requerente do inventário, perspectivar a solução preconizada no despacho.

Assim sendo, o Tribunal a quo, ao verificar que o prazo concedido à cabeça de casal foi incumprido, e perante a omissão da cabeça de casal - para além de poder ter notificado a parte faltosa para que a mesma cumprisse o que foi judicialmente determinado - deveria sobretudo ter notificado o Requerente para requerer, em prazo o que tivesse por conveniente, sob pena de sanção a determinar e não julgar extinta a instância condenando o Requerente nas custas do processo sem lhe dar oportunidade de se pronunciar previamente, assim violando o princípio do contraditório, constante do citado art. 3º, nº 3 do CPCivil.

III - DECISÃO

Nestes termos, acordam em revogar o despacho recorrido, determinando o prosseguimento dos autos, com notificação ao requerente para requerer o que tiver por conveniente e notificação à cabeça de casal para, em 10 dias, informar o que tiver por conveniente sobre o incumprimento da junção da relação de bens, sob pena de multa.

Custas a final.

Lisboa, 16 de Outubro de 2014.

(Fátima Galante)

(Gilberto Santos Jorge)

(António Martins)