Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
451/15.6YLPRT.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: DESPEJO
RENDAS
NOTIFICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (art.º 663º nº 7 do CPC)

1. Tendo o legislador no nº 3 do artigo 15º-F da Lei nº 6/2007, de 27 de Fevereiro (NRAU), com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14.08, determinado a isenção do beneficiário do apoio judiciário, da prestação de caução, exigida como condição de admissibilidade da oposição, a regulamentação que, em contrário, emana do artigo 10º da Portaria nº 9/2013, de 10 de Janeiro, é inválida, por força do princípio da preferência ou preeminência da lei.
2. No nº 4 do artigo 10º da Lei nº 6/2007, de 27 de Fevereiro consagra-se uma presunção juris tantum, que pode ser afastada mediante prova do contrário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I. RELATÓRIO

MARIA ………., residente na Rua ……, intentou, em 13.04.2015, contra FERNANDA ……, residente na Rua ……., procedimento especial de despejo, que teve início no requerimento apresentado no Balcão Nacional do Arrendamento, invocando como fundamento do despejo a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, nos termos do nº 3 do artigo 1083º do Código Civil.

Notificada, a ré deduziu oposição, em 02.07.2015, através da qual alega:

1. As comunicações alegadamente enviadas pela Requerente em 30 de Janeiro de 2014 (carta registada com comunicação de actualização de
renda) e em 13 de Março de 2014 (nova carta registada, remetida em face da devolução da anterior carta, e nos termos e para os efeitos do disposto do art.º 10º, n.º 3 do NRAU), não foram por si recebidas, nem quaisquer avisos relativamente às mesmas para o seu levantamento na Estação dos Correios, em causa, Alhandra;
2. A Requerida apresentou reclamação de tal facto junto dos CTT, sendo que estes últimos responderam-lhe por carta datada de 24 de Outubro de 2014 que “(…)Como o aviso de levantamento é um objecto de correio normal que não deixa vestígios de passagem nos circuitos postais, não possuímos qualquer prova factual da ocorrência que nos permita garantir com absoluta certeza que o mesmo tivesse sido depositado no receptáculo postal respectivo (…)” doc. n.º 2;
3. E, de tal facto deu a Requerida conhecimento aos Requerentes, através de seu Mandatário, mediante carta registada enviada em 21 de Outubro de 2014, e recebida pelo mesmo - doc. n.º 3;
4. São recorrentes os problemas com a recepção de correspondência postal em Alhandra, localidade onde a Requerida habita;
5. Sendo comum, a existência de correspondência de terceiros ser depositada no receptáculo postal da Requerida e, por sua vez, a sua correspondência ser depositada noutros receptáculos postais;
6. É recorrente a Requerida ou não chegar a receber correspondência sua, ou então esta mesma correspondência ser colocada na caixa de correio dos vizinhos que, mais tarde e por gentileza, lha fazem chegar;
7. A Requerida continuou a liquidar o valor de renda mensal de € 62,00, como sempre fez (depósitos de rendas nos meses de Janeiro de 2014 a Junho de 2015) - Docs. 4.

Por despacho de 14 de Julho de 2015 foi admitida a Oposição deduzida, com a concessão de Apoio Judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação a Patrono, considerando-se não haver lugar ao pagamento de caução (fls. 143).

Foi levada a efeito a audiência de julgamento, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, em 02.09.2015, constando do Dispositivo da Sentença o seguinte:

Nestes termos e em face do exposto, julgo a presente acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo a Requerida do pedido de despejo, formulado no âmbito do presente procedimento especial.

Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:

i. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença que julgou o procedimento especial de despejo improcedente.
ii. A decisão recorrida define o objeto do litígio como sendo um pedido de desocupação para habitação própria da Recorrente quando se pretende a desocupação do locado pela Recorrida pelo incumprimento no pagamento de renda.
iii. Considerou a Douta Sentença a oposição apresentada pela Recorrida, na inobservância do disposto no art. 10, n.º 2 da Portaria n.º 9/2013, de 10 de Janeiro.
iv. A Recorrida, ainda que beneficiando de proteção jurídica, devia prestar caução no valor das rendas em dívida, atento o preceituado no art. 10.º, n.º 2 da Portaria n.º 9/2013, de 10 de Janeiro, o que não fez, devendo a oposição ser considerada por não deduzida, convertendo-se o requerimento de despejo em título para desocupação do locado.
v. De facto, o art. 15.º-F, n.º 3 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na sua actual redação, prevê que as situações de isenção para quem beneficia de apoio judiciário são regulamentadas pela Portaria n.º 9/2013.
vi. A isenção estabelecida no art. 15.º-F, n.º 3, reporta-se e apenas ao pagamento da taxa de justiça pela apresentação de oposição e nunca para a prestação de caução.
vii. A Portaria n.º 9/2013 limita-se a complementar e definir a aplicação da própria Lei n.º 6/2006, como esta prescreve.
viii. Por outro lado, a matéria de facto dada como provada sob os artigos 2, 8, 9, 11 e 12 enferma de erro por resultar em contradição com a prova constante dos autos e/ou por esta impor decisão diversa da proferida.
ix. O facto provado sob o n.º 2 deve ser revogado e alterado no sentido de considerar que o primitivo proprietário do locado arrendou-o ao ex-marido da Recorrida, pelo prazo de seis meses, renováveis.

x. O artigo 8. da matéria de facto dada como provada deve ser revogado parcialmente, porquanto a primeira parte é contrariada pelo disposto no facto dado por provado sob o n.º 9.
xi. O segundo segmento do facto 8. deve ser dado como não provado, uma vez que o Tribunal estribou a sua apreciação quanto a este ponto, e apenas, nas declarações de parte da Recorrida, contestando-se a valorização atribuída a este meio de prova.
xii. Existe documentação junta ao processo que impõe ao Tribunal decisão oposta, concretamente o ofício dos CTT, datado de 03-08-2015, que expressamente refere que “1. Relativamente ao registo RD368620473PT (…) foi deixado um aviso para que o registro fosse levantado na Loja CTT de Alhandra (cfr. docs. 1 a 5 que se juntam), (…) 3. Quanto ao registo RD368620796PT (…) foi deixado um aviso para que o registo fosse levantado na Loja CTT de Alhandra (cfr. doc. 7)”, bem como a informação que se retira do verso dos envelopes correspondentes às comunicações devolvidas à Recorrente, violando assim o Tribunal o disposto no art. 607.º, n.º 4 do CPC.
xiii. Igualmente deve ser revogada a primeira parte do facto n.º 9, porquanto a documentação constante dos autos é suficiente, designadamente o ofício dos CTT, de 03-08-2015, para sustentar decisão diversa, devendo este ponto ser alterado em conformidade.
xiv. Quanto ao facto 11 se refira ter o Tribunal, mais uma vez, utilizado como único meio de prova as declarações da Recorrida, o que, também aqui se contesta.
xv. As declarações de parte devem ser consideradas como um meio de prova complementar, que não pode fundar a decisão de uma causa.
xvi. Do depoimento das testemunhas, em momento algum resulta comprovado o facto dado como provado sob o n.º 11, devendo ele ser dado por não provado.
xvii. O ponto 12, fundamentado pelas declarações de parte, deve ser dado como não provado, porquanto, a documentação junta aos autos e a prova testemunhal não permitem concluir pela recorrência da não entrega de correspondência à Recorrida.
xviii. Os meios de prova colocados à disposição do Tribunal a quo impunham a fixação de matéria de facto diversa da produzida, tendo sido violado o disposto no art. 607.º, n.º 4 do CPC.

xix. A Sentença em crise incorreu em erro na aplicação do Direito, ao recusar a aplicação do art. 10.º, n.º 3 e 4 do NRAU, com a produção dos competentes efeitos.
xx. O Tribunal a quo, embora reconhecendo a idoneidade do meio de comunicação a utilizar entre senhorio e arrendatário, impediu a produção dos respetivos efeitos e colocou em causa o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos.

Pede, por isso, a apelante, que o recurso seja julgado procedente e, consequentemente, seja revogada a decisão recorrida e substituída por Acórdão que determine:
a) A não admissão da oposição apresentada pela Recorrida, considerando-a não deduzida; ou a assim se não entender,
b) A procedência da ação, decidindo no sentido da notificação eficaz e regular da Recorrida para efeitos de atualização da renda do locado.

A ré apresentou contra-alegações, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

i. É jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa que “Impõe-se interpretar o art. 15º F nº 3 do NRAU, aprovado pela Lei 6/2007 de 27 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14-08 no sentido de que o legislador pretendeu isentar o arrendatário que goza do benefício do apoio judiciário da obrigação de demonstrar, aquando da apresentação do articulado de oposição (ao pedido de despejo), que pagou a taxa de justiça devida (responsabilidade perante o Estado) e que pagou a caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso (responsabilidade perante o senhorio);
É por isso de afastar a regulação que, em contrário, emana do art. 10º da Portaria n.º 9/2013 de 10 de Janeiro, verificando-se uma invalidade da portaria aludida, porquanto o seu conteúdo é incompatível com a respectiva fonte de produção.”
ii. Por esse mesmo motivo não assiste razão à recorrente quando faz depender a admissão da oposição com a prestação de caução;

iii. Todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento foram coerentes e razoáveis no seu depoimento e, nessa medida, credíveis;
iv. Todas as testemunhas foram unanimes em referir todas as dificuldades existentes na freguesia de Alhandra na distribuição do correio;
v. O que também foi confirmado pelas declarações de parte da própria recorrida;
vi. Por esses motivos deve considerar-se a presunção do artigo 9º do NRAU como ilidida nos termos e para os efeitos no artigo 350º, n.º 2 do Código Civil;
vii. Logo, não existiu errada aplicação do direito: o contrato de arrendamento aqui em causa não transitou para o NRAU, logo não pode existir aumento de renda e, por isso mesmo, não há causa de resolução do contrato de trabalho por motivo de não pagamento de rendas.
viii. Nestes termos, deve ser confirmada a douta sentença proferida pelo douto Tribunal a quo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Novo Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões, as quais serão apreciadas segundo a sua precedência lógica:

i) DA OBRIGAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO PELO VALOR DAS RENDAS EM DÍVIDA, COMO CONDIÇÃO DA OPOSIÇÃO AO REQUERIMENTO DE DESPEJO APRESENTADO NO BALCAO NACIONAL DO ARRENDAMENTO;

ii) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da matéria de facto;
iii) DA SUBSUNÇÃO JURÍDICA FACE À MATÉRIA APURADA E À PRETENSÃO FORMULADA PELA AUTORA

III . FUNDAMENTAÇÃO

A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foi dado como provado na sentença recorrida, o seguinte:

1. Maria …….., casada com João ….., no regime da comunhão de adquiridos, tem registada a seu favor a aquisição da fracção autónoma designada pela letra “F”, correspondente ao 2º andar direito, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Rua ……, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira, sob o n.º 435, mediante Ap. 16 de 2008/05/02, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1000, conforme docs. de fls. 8 e ss dos autos;

2. Por escrito datado de 16 de Abril de 1975, o primitivo proprietário da referida fracção cedeu à Ré, o gozo e fruição da referida fracção, para habitação, por um prazo de seis anos, renováveis, mediante a contrapartida monetária mensal de Esc.: 1.850$00, a pagar no 1º dia útil do mês anterior àquele a que respeitasse;

3. Mediante carta registada, com aviso de recepção, datada de 30 de Janeiro de 2014, e dirigida à morada do locado, a Requerente comunicou à Requerida, a actualização de renda relativa ao contrato referido em 2), no valor de € 62,00 para o valor de € 357,85, conforme doc. de fls. 12 e ss. dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;

4. Tal carta foi devolvida com menção de “objecto não reclamado”, conforme doc. de fls. 18 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;

5. Mediante nova carta registada, com aviso de recepção, datada de 13 de Março de 2014, e dirigida à morada do locado, a Requerente comunicou à Requerida, a actualização de renda relativa ao contrato referido em 2), no valor de € 62,00 para o valor de € 357,85, conforme doc. de fls. 19 e ss. dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;

6. Tal carta foi devolvida com menção de “objecto não reclamado”, conforme doc. de fls. 21 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;

7. Mediante contacto pessoal através de mandatário judicial, realizado no dia 18 de Setembro de 2014, pelas 10:30 horas, a Requerente comunicou à Requerida, a resolução do contrato referido em 2), com fundamento na falta de pagamento de rendas, conforme doc. de fls. 22 a 25 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;

8. As devoluções das cartas referidas em 3) e 5), não foram comunicadas à Requerida, nem lhe foram entregues os correspondentes avisos para levantamento da correspondência postal, na Estação dos Correios de Alhandra;

9. A Requerida apenas tomou conhecimento do sucedido mediante o contacto pessoal referido em 7), após o que apresentou reclamação junto dos serviços dos CTT, tendo estes últimos respondido por carta datada de 24 de Outubro de 2014 que “(…)Como o aviso de levantamento é um objecto de correio normal que não deixa vestígios de passagem nos circuitos postais, não possuímos qualquer prova factual da ocorrência que nos permita garantir com absoluta certeza que o mesmo tivesse sido depositado no receptáculo postal respectivo (…)”, conforme doc. n.º 2 com a Oposição, cujo teor se dá por reproduzido;

10. De tal facto deu a Requerida conhecimento à Requerente, através de seu Mandatário, mediante carta registada enviada em 21 de Outubro de 2014, e recebida pelo mesmo, conforme doc. n.º 3 com a Oposição, cujo teor se dá por reproduzido;

11. No prédio do locado, é recorrente a existência de correspondência de terceiros ser depositada no receptáculo postal da Requerida e, por sua vez, a correspondência da Requerida, ser depositada noutros receptáculos postais.
12. É recorrente a Requerida ou não chegar a receber correspondência sua, ou então esta mesma correspondência ser colocada na caixa de correio dos vizinhos que, mais tarde e por gentileza, lha fazem chegar;

13. Desde a data referida em 3), até à presente, a Requerida vem liquidando mensalmente o valor de € 62,00.


B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

i) DA OBRIGAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO PELO VALOR DAS RENDAS EM DÍVIDA, COMO CONDIÇÃO DA OPOSIÇÃO AO REQUERIMENTO DE DESPEJO APRESENTADO NO BALCAO NACIONAL DO ARRENDAMENTO

Prescreve o artigo 1083º do Código Civil, quanto aos fundamentos da resolução, o seguinte:
1. Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais do direito, com base em incumprimento pela outra parte.
2. É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio:
(…).
3. É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a dois meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo seguinte.
4. É ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpeladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo seguinte.”

O artigo 15º-F, da Lei nº 6/2006, de 27.02 (NRAU), na redacção dada pela Lei n.º 31/2012, de 14.08, com a epígrafe procedimento especial de despejo, dispõe:
1. O requerido pode opor-se à pretensão no prazo de 15 dias a contar da sua notificação.
(…)
3. Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa devida de justiça e, nos casos previstos nos nºs. 3 e 4 do artigo 1083.° do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.

E, por outro lado, o artigo 10º da Portaria nº 9/2013, de 10.10 estatui que:
1. O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do nº 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, é efetuado através dos meios eletrónicos de pagamento previstos no artigo 17.° da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, após a emissão do respetivo documento único de cobrança.
2. O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.

Constata-se, então, que o nº 3 do artigo 15º-F, da Lei nº 6/2006 isenta o beneficiário de apoio judiciário de efectuar o pagamento da caução normalmente exigida como condição de admissibilidade da oposição. Ao invés, o nº 1 do artigo 10º da Portaria nº 9/2013, exige o pagamento da caução, independentemente de o arrendatário gozar daquele benefício, contrariando a aludida norma, quando apenas deveria definir os termos dessa isenção.

Verifica-se, portanto, um conflito de normas de hierarquia diversa. Uma, lei ordinária da Assembleia da República, e outra constante de Portaria que é um regulamento dimanado de um ou mais ministros em nome do Governo e que traduz o exercício do poder regulamentar, que é uma actividade especificamente administrativa, por confronto com a lei – v.
FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2003 (2ª Reimpressão), 187.

Como resulta do disposto no artigo 112º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Actos normativos”:
1. São actos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais.
2. As leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos.
(…)

6. Os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes.
7. Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão;
(…)

Como bem salienta GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. II, 4ª Ed., Coimbra Editora, 2010, no comentário ao nº 5 do artigo 112º da CRP, 70-71, “a norma regulamentar é uma norma de diferente natureza da norma legal, e a intervenção regulamentar visa regular aquilo que a lei se absteve de regular, e não «integrar» a regulamentação legislativa (o n.º 5 exclui expressamente os regulamentos integrativos), pelo que o regulamento nunca pode intervir sub specie legis (…) Em segundo lugar, o reenvio da lei para regulamento está também sujeito aos limites constitucionais da reserva de lei, não podendo a lei, no âmbito da reserva de lei, deixar de esgotar toda a regulamentação «primária» das matérias, só podendo remeter para regulamento os aspectos «secundários» (isto, independentemente do facto de as leis de bases deverem ser desenvolvidas por decretos-leis e não por actos regulamentares).”

Tal significa que a CRP não se limitou a obrigar os regula­mentos a respeitar a lei. Determina também que nem a própria lei pode autorizar a sua revogação, derrogação ou suspensão, por outra via que não outra lei, estando vedados portanto os chamados "regulamentos delegados". Trata-se de afirmar o princípio de preeminência da lei, mesmo contra a própria lei, que o não pode afastar.

O princípio da preferência ou preeminência da lei significa que o regulamento não pode contrariar um acto legis­lativo ou equiparado. A lei tem absoluta prioridade sobre os regulamentos, proibindo-se expressamente os regulamentos modificativos, suspensivos ou revogatórios das leis – v. a propósito J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., 833 e ss.

De resto e como frequentemente tem sido evidenciado pelo Tribunal Constitucional, estando em causa um conflito entre duas normas de direito infraconstitucional, mormente a violação de uma lei por um ato regulamentar existe um vício de ilegalidade – cfr. Acs. Nºs 113/88, de 01.06.1988, 247/93, de 18.03.1993, 404/09, de 30.07.2009 e, mais recentemente Ac. nº 779/2013, de 19.03.2013, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

Bem andou, consequentemente, a decisão recorrida, já que atenta a ressalva constante do nº 3 do artigo 15º-F, da Lei nº 6/2006, de 27.02 (NRAU), na redacção dada pela Lei n.º 31/2012, de 14.08, outro sentido não poderia comporta a letra da lei, senão a de que o legislador pretendeu isentar o arrendatário que goza do benefício do apoio judiciário da obrigação de demonstrar, aquando da apresentação do articulado de oposição, que pagou, quer da taxa de justiça devida (traduzida numa responsabilidade perante o Estado), quer a caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso (traduzida numa responsabilidade perante o senhorio).

Improcede, por conseguinte, e nesta parte, a apelação (CONCLUSÕES iii. a vii)

ii) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da impugnação da matéria de facto

O Novo Código de Processo Civil, no seu artigo 662º, veio reforçar os poderes do Tribunal da Relação relativamente à modificabilidade da decisão de facto, os quais se mostram ampliados no seu nº 2.

Estatui agora o citado normativo que:
1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2. A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

No que concerne ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelece o artigo 640º, do Novo Código Processo Civil (preceito corresponde ao artigo 685º-B do anterior Código Processo Civil, com a inovação da alínea c) do nº. 1) que:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Considerando que, no caso vertente, a prova produzida em audiência foi gravada, e a recorrente deu cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º do NCPC pode este Tribunal da Relação proceder à sua reapreciação uma vez que dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa.

A recorrente está em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente aos Nºs 2, 8, 9, 11, 12 que, no entender da apelante, deveriam ser alvo de rectificação (Nºs 2, 8, 1ª parte) ou dada diferente formulação, por terem sido valorados erroneamente os depoimentos das testemunhas e das declarações de parte, quanto a esses pontos, em confronto com a prova documental (Nºs 8, 2ª parte, 9, 11 e 12).

Há que aferir da pertinência da alegação da apelante, ponderando se, in casu, se verifica a ausência da razoabilidade da respectiva decisão em face de todas as provas produzidas, conduzindo necessariamente à modificabilidade da decisão de facto.

Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Exma. Juíza do Tribunal a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto directo com a prova testemunhal que, em regra, melhor possibilita ao julgador a percepção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.

Há, pois, que atentar na prova gravada e na supra referida ponderação, por forma a concluir se a convicção criada no espírito do julgador de 1ª instância é, ou não, merecedora de reparos.
Þ Vejamos:

Consta do nº 2 dos Factos dados como Provados:
Por escrito datado de 16 de Abril de 1975, o primitivo proprietário da referida fracção cedeu à Ré, o gozo e fruição da referida fracção, para habitação, por um prazo de seis anos, renováveis, mediante a contrapartida monetária mensal de Esc.: 1.850$00, a pagar no 1º dia útil do mês anterior àquele a que respeitasse;

Consta do nº 8 dos Factos dados como Provados:
As devoluções das cartas referidas em 3) e 5), não foram comunicadas à Requerida, nem lhe foram entregues os correspondentes avisos para levantamento da correspondência postal, na Estação dos Correios de Alhandra;


Consta do nº 9 dos Factos dados como Provados:
A Requerida apenas tomou conhecimento do sucedido mediante o contacto pessoal referido em 7), após o que apresentou reclamação junto dos serviços dos CTT, tendo estes últimos respondido por carta datada de 24 de Outubro de 2014 que “(…)Como o aviso de levantamento é um objecto de correio normal que não deixa vestígios de passagem nos circuitos postais, não possuímos qualquer prova factual da ocorrência que nos permita garantir com absoluta certeza que o mesmo tivesse sido depositado no receptáculo postal respectivo (…)”, conforme doc. n.º 2 com a Oposição, cujo teor se dá por reproduzido;

Consta do nº 11 dos Factos dados como Provados:
No prédio do locado, é recorrente a existência de correspondência de terceiros ser depositada no receptáculo postal da Requerida e, por sua vez, a correspondência da Requerida, ser depositada noutros receptáculos postais.

Consta do nº 12 dos Factos dados como Provados:
É recorrente a Requerida ou não chegar a receber correspondência sua, ou então esta mesma correspondência ser colocada na caixa de correio dos vizinhos que, mais tarde e por gentileza, lha fazem chegar;


Fundamentou a Exma. Juíza do Tribunal a quo, da seguinte forma a decisão sobre a matéria de facto.
Para a formação da convicção do Tribunal concorreram os documentos juntos aos autos, conforme supra elencados e a saber, fotocópia não certificada do registo predial, certidão matricial, comunicações da Requerente à requerida e respectivos sobescritos postais, duas cartas dos CTT em resposta à Requerida, uma carta dirigida ao Mandatário da Requerente pela Requerida e vários comprovativos de depósito de rendas (nos meses de Janeiro de 2014 a
Junho de 2015, no valor de € 62,00 mensais, a par dos depoimentos prestados pelas testemunhas Conceição …., Ana …. e Leonor….., as quais depuseram de forma isenta revelando credibilidade, alicerçando-se ainda o Tribunal no acordo das partes revelado nos autos.
As referidas testemunhas, na qualidade de vizinhas de longa data da Requerida e residentes no Prédio onde se situa o locado, depuseram sobre factos de que tomaram conhecimento pessoal relativamente à entrega da sua própria correspondência postal ( e bem assim, pelo menos uma das testemunhas, quanto à correspondência da própria Requerida) e à qualidade dos serviços prestados pelos distribuidores postais naquela área geográfica, criando no Tribunal a dúvida razoável sobre a verificação do facto firmado
pela Requerente, ie de que foram efectivamente entregues à Requerida, os dois avisos de levantamento de correspondência postal, em causa nos autos, duvida essa que se entende resolver contra a parte a quem aproveita, no caso a Requerente.
Não se olvida que o legislador efectivamente erigiu tal meio de comunicação como idóneo para a produção dos efeitos (bastante gravosos) que estabeleceu, nos termos do disposto nos art.ºs 9º, n.ºs 1 e 2 e 10º, n.ºs 1, al. a), 2ª parte, 2, al.
a), 3 e 4 do NRAU, todavia a presunção estabelecida no n.º 4 do citado preceito legal, admite ser ilidida (cfr. art.º 350º, n.º 2 do CC).
Finalmente atendeu este Tribunal ainda às declarações de parte prestadas pela Requerida que, no essencial, corroborou os depoimentos das testemunhas ouvidas, mais esclarecendo sobre as diligencias encetadas pela Requerida quando confrontada com a situação evidenciada (falta de avisos de levantamento de correspondência) e a decisão da Requerente de pôs termo ao contrato.

Foram indicadas para responder à matéria aqui em apreciação, as testemunhas arroladas pela ré (Conceição ….., Ana …….., Leonor ……), tendo ainda sido ouvida, a ré, em declarações de parte.

Defende, em suma, a apelante, que o Tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova, quer no que concerne à prova documental, quer quanto aos depoimentos das testemunhas.

Importa, então, analisar os depoimentos prestados em audiência, a propósito da matéria de facto aqui em causa, em confronto com a restante prova produzida, designadamente documental, para verificar se a aludida matéria de facto deveria ter sido decidida em consonância com o preconizado pela apelante, ou se, ao invés, tal decisão não merece censura, atenta a fundamentação aduzida pela Exma. Juíza do Tribunal a quo.

De todo o modo, é sempre importante realçar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a Lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial.

De harmonia com este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, apenas cedendo este princípio perante situações de prova legal, nomeadamente nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, documentos particulares e por presunções legais.
Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396.º do C.C. e do princípio geral enunciado no artigo 607º, nº 5 do NCPC (artigo 655.º do anterior CPC) o depoimento testemunhal é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência – v. sobre o conteúdo e limites deste princípio, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A livre apreciação da prova em processo Civil, Scientia Iuridica, tomo XXXIII (1984), 115 e seg.

A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada – cfr. a este propósito ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 435-436.

É certo que, com a prova de um facto, não se pode obter a absoluta certeza da verificação desse facto, atenta a precariedade dos meios de conhecimento da realidade. Mas, para convencer o julgador, em face das circunstâncias concretas, e das regras de experiência, basta um elevado grau da sua veracidade ou, ao menos, que essa realidade seja mais provável que a ausência dela.

Ademais, há que considerar que a reapreciação da matéria de facto visa apreciar pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em determinados depoimentos que são indicados pelo recorrente.

Porém, a convicção probatória, sendo um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, implica a valoração de todo o acervo probatório a que o tribunal recorrido teve acesso – v. neste sentido, Ac. STJ de 24.01.2012 (Pº 1156/2002.L1.S1).

No caso vertente, e face ao teor dos depoimentos das testemunhas ouvidas, globalmente analisado e ponderado, entende-se, tendo em conta as considerações antes aduzidas, que não há como alterar a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, no que concerne aos Nºs 8, 2ª parte, 9, 11 e 12, tendo presente os depoimentos das testemunhas Conceição ……, Ana ………. Leonor ……, todas moradoras há muitos anos no prédio onde habita a ré, e cujos depoimentos visaram demonstrar as deficiências existentes na localidade, no que concerne à distribuição do correio, às frequentes trocas e extravio de correspondência, quer em relação àquela que se destina aos moradores daquele prédio, quer no que se refere a correspondência recebida no prédio e destinada a outras moradas.

Cada uma dessas testemunhas relatou casos pessoais de frequente ocorrência de extravio ou troca da sua própria correspondência, todas tendo admitido, no entanto, nunca terem elaborado queixas formais junto dos CTT, justificando tal omissão por nunca ter estado em causa qualquer grave consequência para as próprias dessas irregularidades. Sempre se trataram, segundo afirmaram, ou do não recebimento de facturas para efectuarem pagamento, ou o seu recebimento tardio, quando a data limite estava ultrapassado, o extravio de nota de liquidação do IRS (Conceição ….., Ana ……..), carta da Segurança Social relacionada com uma questão de isenção, recebida já fora de prazo, e já aberta, o que a levou a concluir que teria sido colocada em receptáculo de correio que não o seu, mais salientando que, por tal motivo, deixou de usufruir da pretendida isenção (Leonor …….).

Perante o teor dos depoimentos das testemunhas ouvidas, globalmente analisado, os quais se mostraram consistentes, credíveis e isentos, concomitantemente com a análise dos documentos juntos aos autos, nomeadamente o que resulta do documento de fls. 112 – carta dirigida à ré pelos CTT – no qual se admite que: “Como o aviso de levantamento é um objecto de correio normal que não deixa vestígios de passagem nos circuitos postais, não possuímos qualquer prova factual da ocorrência que nos permite garantir com absoluta certeza que o mesmo tivesse sido depositado no receptáculo postal respectivo.

Finalmente, os depoimentos das testemunhas foram corroborados pelas declarações da ré, ouvida em declarações de parte, demonstrando também esta, num relato simples, mas convincente, não só as deficiências ocorridas na distribuição do correio, referindo exemplos de anomalias que ocorreram com a sua correspondência e com a correspondência do namorado da sua filha que, por anuência da ré, passou a ser remetida para a sua habitação, como se afigurou peremptória e credível a afirmação do não recebimento dos avisos para levantamento das cartas endereçadas pela autora, fazendo, de resto, alusão à precaridade da sua situação económica, o que sempre inviabilizaria o imediato aumento do valor da renda pretendido pela senhoria.

E, como resulta do disposto no artigo 466º do CPC, o juiz aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão. A apreciação desta prova faz-se segundo as regras normais da formação da convicção do juiz, sendo que tais declarações da ré, conjugadas com os demais depoimentos das testemunhas ouvidas, mereceram credibilidade.

Há inteira razoabilidade na dúvida que se suscitou à Exma. Juíza do Tribunal a quo, explanada com suficiente pormenor na motivação da decisão de facto e que se prende com a ausência de inequívoca demonstração do recebimento, por parte da ré, dos avisos para se deslocar aos correios para proceder ao levantamento das cartas registadas com aviso de recepção remetidas pela autora.

Como se determina no artigo 8º, nº 1 do Código Civil, o tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio.

Ora, o juiz ainda que tenha dúvidas quanto à ocorrência ou não dos factos em causa, não pode deixar de proferir uma decisão de fundo sobre a questão suscitada. Tem, portanto, de dirimir o conflito suscitado entre as partes.

São, por isso, as regras do ónus da prova que definem o critério que o juiz deve adoptar para proferir a decisão.

Como esclarece MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 196, O ónus probandi respeita aos factos da causa, distribuindo-se entre as partes segundo certos critérios. Traduz-se para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto, trazida ou não pela mesma parte.

A parte sobre a qual impende o ónus da prova tem de alegar o facto e de trazer ao processo os respectivos elementos de prova, que sejam suficientes para formar a convicção do juiz. Se não alcançar tal objectivo, o juiz decidirá contra ela.

Sucede que não é indispensável que a prova seja feita pela parte sobre a qual recai o ónus, já que tendo em consideração o princípio da aquisição processual e o princípio do inquisitório do Tribunal, o que importa é que a prova seja efectuada.

Mas, se o juiz ficar com dúvidas sobre a realidade do facto, decidirá contra a parte a quem incumbia o ónus da prova desse facto.

O regime jurídico da repartição do ónus da prova encontra-se consagrado nos artigos 341º e seguintes do Código Civil e 414º nCPC.

O artigo 342º do Código Civil contém a regra geral sobre a repartição do ónus da prova, estabelecendo os artigos 343º e 344º, desvios a esta regra.

E, com efeito, segundo o nº 1 do citado artigo 342º do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. À parte contrária cabe a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito (nº 2)

Acresce que, de harmonia com o disposto no artigo 344º, nº 1 do Código Civil As regras dos artigos anteriores invertem-se, quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus de prova, ou convenção válida nesse sentido e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.

No caso em apreciação, concorda-se e corrobora-se a afirmação da Exma. Juíza do Tribunal recorrido quando, na motivação da decisão de facto, esclarece: Não se olvida que o legislador efectivamente erigiu tal meio de comunicação como idóneo para a produção dos efeitos (…) que estabeleceu, nos termos do disposto nos art.ºs 9º, n.ºs 1 e 2 e 10º, n.ºs 1, al. a), 2ª parte, 2, al. a), 3 e 4 do NRAU, todavia a presunção estabelecida no n.º 4 do citado preceito legal, admite ser ilidida (cfr. art.º 350º, n.º 2 do CC).

Daí que ilidida que se mostra a presunção decorrente do nº 4 do aludido artigo 10º do NRAU, não pode deixar de se concluir que fez a ré prova de que não lhe haviam sido entregues os correspondentes avisos para proceder ao levantamento das cartas endereçadas pela autora e, por isso esta só tomou conhecimento do envio dessas cartas aquando do contacto pessoal com o mandatário judicial, no dia 18.09.2014 (v. Nº 7 da Fundamentação de Facto).

Entende-se, assim, que nada permite afastar a convicção criada no espírito do julgador do tribunal recorrido, convicção essa que não é merecedora de reparo, no que respeita à matéria ínsita no Nºs 8, 2ª parte, 9, 11 e 12 dos Factos Não Provados e impugnada no recurso.

Por outro lado, sempre se dirá, quanto à Factualidade ínsita nos Nº 8º, 1ª parte, que não se vislumbra qualquer contradição entre o que resulta do facto provado 8, 1ª parte e o facto provado nº 9, ambos se complementando.

Já no que concerne ao nº 2 da factualidade apurada, tem a apelante razão, atento o que decorre do contrato de arrendamento, cuja cópia consta de fls. 6, pelo que se procede à rectificação do manifesto lapso, sendo que onde se diz: “Por escrito datado de 16 de Abril de 1975, o primitivo proprietário da referida fracção cedeu à Ré, o gozo e fruição da referida fracção, para habitação, por um prazo de seis anos, renováveis (…), deverá passar a constar, por um prazo de seis meses, renováveis (…).

Mantém-se, pois, e nos seus precisos termos, a factualidade dada como provada na 1ª instância, salvo quanto ao mencionado lapso material constante do Nº 2 dos Factos Provados

Improcede, por conseguinte, tudo o que, em adverso, consta da alegação de recurso do réu/apelante (CONCLUSÕES viii, x. a xviii).

E, improcedendo a pretensão do apelante, no que concerne à alteração da decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se a mesma inalterável, há que ponderar se a sentença recorrida incorreu em erro na aplicação do Direito.

iii) DA SUBSUNÇÃO JURÍDICA FACE À MATÉRIA APURADA E À
PRETENSÃO FORMULADA PELA AUTORA

A Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, veio introduzir profundas alterações em matéria de correcção extraordinária das rendas nos contratos mais antigos, celebrados antes da vigência do RAU, por iniciativa do senhorio, mostrando-se esta matéria regulada, quanto aos arrendamentos para habitação, nos artigos 30º a 37º do NRAU.

A actualização da renda depende, portanto, da iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando, como prescreve o artigo 30º:

1. O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;
2. O valor actualizado do Valor Patrimonial Tributário (VPT) do locado, em conformidade com as regras do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, acompanhado de cópia da caderneta predial urbana.

As normas que acabaram de ser citadas estabelecem um processado específico destinado a regular as comunicações e os termos iniciais e finais relativamente aos prazos previstos para a prática dos actos aí mencionados.

Estabelece-se no n.º 1, do artigo 9.º, do NRAU que, «Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção».

E, no artigo 10.º deste regime prevê-se, nos seus primeiros três números, o seguinte:

1. A comunicação prevista no n.º 1 do artigo anterior considera-se realizada ainda que:
a) A carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou não a ter levantado no prazo previsto no regulamento dos serviços postais;
b) O aviso de receção tenha sido assinado por pessoa diferente do destinatário
2. O disposto no número anterior não se aplica às cartas que:
a) Constituam iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 30.º e 50.º;
b) Integrem título para pagamento de rendas, encargos ou despesas ou que possam servir de base ao procedimento especial de despejo, nos termos dos artigos 14.º -A e 15.º, respetivamente, salvo nos casos de domicílio convencionado nos termos da alínea c) do n.º 7 do artigo anterior.
3. Nas situações previstas no número anterior, o senhorio deve remeter nova carta registada com aviso de receção decorridos que sejam 30 a 60 dias sobre a data do envio da primeira carta (…)».

De acordo com o disposto no artigo 31º, o arrendatário, poderá responder à pretensão do senhorio, no prazo de 30 dias, tomando uma de três posições:
a) aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio;
b) opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor;
c) pronunciar-se quanto ao tipo e/ou à duração do contrato propostos pelo Senhorio; ou
d) denunciar o contrato de arrendamento.

Quando o arrendatário tenha no locado a sua residência permanente, ou quando a falta de residência permanente for devida a caso de força maior ou doença, pode ainda o arrendatário invocar na sua resposta que:
i) O rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar é inferior a 5 retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA);

ii) Tem idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.

Deverá, o arrendatário, em qualquer uma destas circunstâncias, juntar os documentos comprovativos previstos no artigo 32º do NRAU.

Na falta de resposta do arrendatário dentro do prazo legal, a lei presume que ele aceita a renda pretendida pelo senhorio, bem como a alteração do regime de duração do contrato, ficando, assim, o contrato submetido ao NRAU e, no silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, este considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de 5 anos.

Se, pelo contrário, o arrendatário efectuar uma contraproposta ao valor da renda, ao tipo e ou à duração do contrato, o senhorio, no prazo de 30 dias, deve comunicar ao arrendatário se aceita, ou não, a proposta, valendo a falta de resposta como aceitação.

Esta regulamentação padroniza o comportamento do senhorio e do inquilino tendo em vista os fins aí estabelecidos, nomeadamente o acordo quanto ao valor da renda e/ou a passagem de um regime legal de arrendamento para outro regime legal de arrendamento e destina-se a estabelecer o modo como cada um deles deve proceder para defender os respectivos interesses.

Ora, se provado ficou que a ré não recebeu os avisos para levantamento das cartas que lhe foram remetidas pela autora, impossibilitada ficou - sem que se haja demonstrado a sua culpa na não recepção dessas cartas - de defender os seus interesses, nomeadamente, provando que o rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar seria inferior a 5 retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), logrando deste modo que permanecesse inalterado o regime temporal do contrato de arrendamento durante cinco anos, findo o qual o senhorio poderá, então, promover a transição do contrato para o NRAU, e voltar a exigir a renda máxima calculada com base no valor patrimonial do arrendado (artigo 35º).

Mas, invoca a apelante que, ao se impedir a produção dos efeitos da aplicação do artigo 10º, nºs 3 e 4 do NRAU, foi colocada em causa o princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos.

De harmonia com o disposto no artigo 2º da Constituição, a República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático, decorrendo do princípio do Estado de Direito Democrático o princípio constitucional da segurança jurídica, na vertente da protecção da confiança dos cidadãos.

O conteúdo deste princípio tem sido objecto de apreciação pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que são exemplos, entre muitos, o Acórdão nº 128/2009, de 12.03, D.R. 2ª série, de 24 de Abril de 2009 que, citando o anterior Ac. T.C. nº 287/90, de 30 de Outubro, concluiu que, para tutelar o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, necessário se torna que se reúnam dois pressupostos essenciais:

a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela cons­tantes não possam contar;
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da propor­­cionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

Mais ali se refere que “Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa”.

Finalizando por reconhecer que “Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção”.

No caso vertente, atento o explanado regime legal introduzido pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, em matéria de correcção extraordinária das rendas nos contratos mais antigos, necessário se torna que as comunicações entre o inquilino e senhorio sejam asseguradas da forma prevista nos artigos 9º e 10º da Lei nº 6/2006 e, em regra, se tais normativos hajam sido cumpridos, as notificações consideram-se efectuadas regular e eficazmente.

Sucede porém que, como se estatui no nº 1 do artigo 349º do Código Civil, as presunções consistem nas ilações que a lei ou o julgador tiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido e, nos termos do artigo 350º do mesmo diploma, quem beneficiar dessa presunção legal está dispensado de provar o facto que daí resulta.

E, como decorre do nº 2 do citado normativo, as presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proíba.

Como já antes de aludiu, aquando da reapreciação da prova gravada, considerou a 1ª instância – e aqui de novo igualmente se corrobora - que no artigo 10º da Lei nº 6/2006, nomeadamente no seu nº 4, não está em causa uma presunção juris et de jure, mas sim, e apesar do reforço de notificações aí consignado, uma presunção juris tantum, por forma a não impedir que o destinatário da carta devolvida, sem culpa, possa demonstrar que não havia recebido o correspondente aviso para o seu levantamento.

É que, ocorrendo tal situação, então competirá à contraparte, para destruir a prova feita através da prova da presunção juris tantum, fazer a prova do contrário – como sucedeu no caso concreto.

De resto, tal igualmente ocorre com as presunções consignadas no Código de Processo Civil, com relação às notificações, mormente no que concerne aos nºs 1 e 2 do artigo 249º. E, decerto, sempre seria insustentável que ao notificando não fosse facultada a possibilidade de fazer prova de que, sem culpa, não havia recebido a notificação.

Não se afigura, por consequência, ao contrário do que a apelante invoca, que este entendimento, gozando do adequado suporte legal, afecte os princípios da segurança jurídica ou da protecção da confiança, dentro dos parâmetros definidos pelo Tribunal Constitucional, e acima aludidos.

Destarte, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida, salvo quanto ao manifesto lapso ínsito no Nº 2 da Fundamentação de Facto, substituindo-se “prazo de seis anos”, por “prazo de seis meses”.

A apelante será responsável pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.


IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em, corrigir o manifesto lapso ínsito no Nº 2 da Fundamentação de Facto, substituindo-se “prazo de seis anos”, por “prazo de seis meses”, e julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Condena-se a apelante no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2015
Ondina Carmo Alves - Relatora
Olindo dos Santos Geraldes

Lúcia Sousa