Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
196/11.6TVLSB.L1-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
ANULAÇÃO
LEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. O contrato de locação financeira é um contrato destinado a «financiar» alguém mediante o uso de um bem, tendo subjacente a intenção de proporcionar ao «locatário», não tanto a propriedade de determinados bens, mas antes a sua posse e utilização, para certos fins.
2. O designado contrato de ALD tem sido configurado como um contrato atípico ou inominado, desprovido de estrita natureza locatícia, tratando-se de uma coligação funcional de três tipos contratuais distintos que constituem o seu esqueleto estrutural: um contrato de aluguer de longa duração, um contrato de compra e venda a prestações e um contrato promessa de compra e venda do bem alugado.
3. O ALD é subsumível à matriz do contrato de mandato sem representação, cujos elementos em que o seu conteúdo típico se desdobra, nele se reveem, igualmente: vinculação do mandatário [locador], em nome próprio, mas por conta do mandante [locatário], a adquirir o bem por este, expressamente, escolhido e indicado, transferindo, em seguida, para o mesmo os direitos que haja adquirido na execução do mandato, a propriedade do bem adquirido por sua conta, e no dever do mandante em reembolsar o mandatário das despesas que este haja efetuado.
4. Tendo o autor escolhido junto da vendedora o veículo que pretendia adquirir, contratou/mandatou a compradora para celebrar a compra e venda do mesmo, em nome dela, mas por conta dele, obrigando-se a pagar-lhe a quantia despendida e a remunerá-la, mensalmente, durante o período também estabelecido, findo o qual, cumpridas regularmente todas as prestações a que ambos se obrigavam, a compradora transferiria formalmente a propriedade do veículo para o autor.
5. Assim, o autor, enquanto mandante desse contrato de compra e venda, detetados por si vícios ou falta de qualidades na coisa vendida, pode ter interesse em demandar o vendedor, sem que lhe possa ser oposta a sua qualidade de terceiro, tendo para tal legitimidade processual.
6. Não tendo o veículo alugado pela compradora ao autor, com promessa de venda, revelado as qualidades que lhe eram supostas e exigíveis para assegurar a sua normal finalidade, a situação reconduz-se ao regime da venda de coisa defeituosa, donde derivaria que a compradora (e, subsequentemente e a favor desta, a vendedora) estava obrigada a reparar ou substituir o veículo (logo que detectada a anomalia), sob pena do autor/locatário, ulterior adquirente, poder pedir a anulabilidade do negócio.
7. Não obstante as sucessivas reparações, a repetição das anomalias, sem reparação definitiva, tem que reconduzir-se ao reconhecimento de cumprimento defeituoso também no aluguer de longa duração, pois impossibilita o gozo que era suposto tirar da utilização e ulterior faculdade de aquisição do mesmo, sendo de reconhecer ao autor a pedida anulação do contrato de aluguer de longa duração.(AAC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA    

1. No dia 28.01.2011, D… intentou, no Tribunal Cível de Lisboa (3ª Vara), a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra:

- “M… - Instituição Financeira de Crédito, S.A.”;

- “A…, Lda.”, pedindo que:

a) Fosse anulado ou resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre a 1ª Ré e a 2ª Ré, sendo a 2ª Ré condenada a receber da 1ª Ré a viatura automóvel vendida e a restituir-lhe o valor do preço;

b) Fosse declarado extinto o contrato de aluguer de longa duração celebrado pelo A. com a 1ª Ré e, consequentemente, esta condenada a restituir ao A. o valor de todas as rendas e demais prestações pecuniárias recebidas em execução do contrato de aluguer de longa duração, que liquidará em execução de sentença, acrescida de juros de mora;

c) Fossem as RR. condenadas no pagamento dos danos sofridos pelo A., no montante de € 1.359,64 e, bem assim, nos danos futuros a liquidar em execução de sentença;

d) Fossem as RR. condenadas no pagamento de todas as despesas inerentes ao presente litígio, incluindo custas e outras despesas, nomeadamente os honorários do mandatário do A., no montante também a liquidar em execução de sentença.

Para tanto, o autor alegou, em síntese, que, em 21 de Julho de 2009, por sua indicação, a 1ª Ré no exercício da sua actividade efectuou a compra à 2ª Ré do veículo automóvel M...-Benz E 250 CDI, matrícula nº 00-IA-00, pelo preço de € 69.535,70; em 28 de Julho de 2009, o A., por documento escrito denominado “Aluguer de Longa Duração a Consumidor” tomou de aluguer à 1ª Ré a referida viatura automóvel tendo optado pela inclusão do serviço de assistência técnica e reparação, M…; nos termos da cláusula 14ª constante das condições gerais previstas no referido contrato de aluguer de longa duração ficou estabelecido que, em caso de incumprimento ou desconformidade no contrato de compra e venda ou de prestação de serviços coligado com o presente contrato, o locatário que, após interpelação do fornecedor, não tenha obtido a satisfação do seu direito à conformidade do bem ou à prestação do serviço nos termos contratados, pode interpelar o locador para exercer a sua pretensão, quer ela seja de excepção do não cumprimento do contrato, quer seja a redução do montante do contrato em montante igual ao da redução do preço, quer seja a própria resolução do contrato.

Mais invocou que necessita de se deslocar diariamente, em cumprimento dos seus compromissos pessoais e profissionais, quer a nível nacional, quer internacional; após a celebração do dito contrato de Aluguer foi-lhe entregue o veículo que começou a ser por si usado; em meados de Outubro de 2009, aquando da preparação de uma deslocação profissional ao estrangeiro o A. foi obrigado a chamar a assistência em viagem, tendo a viatura sido rebocada para a oficina devido a falha/deficiência técnica; levantada a viatura por estar alegadamente resolvido o problema, três dias decorridos, surgiu o mesmo problema o que determinou nova reparação; três dias decorridos, surgiu de novo o mesmo problema; só em 21 de Dezembro de 2009, foi o A. informado de que a deficiência teria ficado resolvida.

Tal implicou transtornos, encargos adicionais e despesas extra para o A. pelo que este, interpelou a M… pedindo o pagamento de € 6.000,00 o que esta não satisfez até à data. O A. continuou a usar a viatura, receando, porém, novas avarias;

Em 25 de Julho de 2010 a M… comunicou-lhe por carta a possibilidade de existência de irregularidades de funcionamento do sistema de injecção do veículo e a necessidade de contactar oficina autorizada, o que o A. fez, em 5.8.2010; porém, em 21 de Agosto de 2010, o veículo voltou a avariar, mais uma vez ao nível do sistema de injecção e desta vez em França; ao A. foi atribuída viatura de substituição; a avaria do veículo acarretou o cancelamento da reserva no hotel em Paris, pois já não pode chegar no dia marcado, o que lhe causou um prejuízo no valor de € 250,00, ao que acrescem despesas de restaurante, alojamento tudo no montante de € 984,64.

Regressou a Portugal na viatura de substituição tendo sido a M… a devolver a viatura, em França, no dia 31 desse mesmo mês; tendo em conta que cada dia adicional à data do termo do aluguer ascendia a € 75,00 o autor viu-se obrigado a pagar € 375,00; em 29.10.2010 foi o A. informado pela M... de possível nova avaria no veículo e da necessidade de contactar oficina o que o A. fez, tendo ficado nesse dia, mais uma vez, privado do uso da viatura;

De acordo com os antecedentes, o A. não está convencido do êxito da intervenção e se o A. soubesse dos vícios de que padecia a viatura, nunca teria celebrado o contrato dos autos; é manifesto que o veículo em questão sofre de vício que o desvaloriza impedindo a realização do fim a que se destina, pelo que pretende que o contrato seja anulado e restituído ao A. tudo o que tiver sido prestado durante a execução do mesmo até à data da sentença transitada em julgado.

Citadas, as Rés contestaram.

A Ré M......Portugal deduziu a excepção da ilegitimidade do Autor para promover a resolução ou anulação do contrato de compra e venda invocando, basicamente, que aquele não foi parte nesse aludido contrato.

Mais invocou que, de harmonia com o DL nº 133/2009 conjugado com o DL nº 67/2003 bem como do acordado, o consumidor só pode fazer valer perante o financiador, qualquer um dos seus meios de defesa se o vendedor, uma vez interpelado para cumprir em tempo o contrato de compra e venda, não o fizer; ora, da p. i. não resulta qualquer facto do qual se possa retirar que a Ré A… se tenha recusado a cumprir o peticionado pelo A., pelo que a Ré vendedora não se encontra em incumprimento e, como tal, não pode proceder o pedido de resolução formulado pelo A.; do alegado pelo mesmo também não resulta a existência de qualquer erro sobre o objecto do negócio.

Impugnou os prejuízos por desconhecimento e concluiu, pedindo, a improcedência da acção.

Por seu turno, a Ré A... voltou a invocar a ilegitimidade do Autor para pedir a resolução do contrato de compra e venda por não ter sido parte no mesmo e deduziu excepção da prescrição, alegando que, até à data a compradora não apresentara qualquer reclamação junto da vendedora pelo que, há muito, prescreveram quaisquer direitos decorrentes da alegada existência de defeitos na viatura.

Impugnando invocou, essencialmente, que o veículo foi entregue apto para o fim a que se destina, tendo a A... reparado em garantia todos os defeitos que lhe foram comunicados; o A. carece de legitimidade para pedir a resolução do contrato de compra e venda e o mesmo acontece relativamente ao contrato de ALD já que a A... não pode ser condenada a restituir quantias que nunca recebeu.

E requereu a intervenção principal provocada da “M... SA” alegando que se se viesse a considerar que as anomalias do veículo constituem defeitos, seria aquela sociedade quem teria de responder no âmbito da garantia prestada.

O Autor respondeu à matéria das excepções e do incidente de intervenção deduzido, incidente que acabou por ser indeferido, por despacho de fls. 131 e 132.

Em sede de despacho saneador, foi logo julgada procedente a excepção da ilegitimidade do Autor relativamente ao 1º pedido - pedido de anulação/resolução do contrato de compra e venda - e as rés absolvidas da instância relativamente a ele (cfr. fls. 133).

E foi relegado para final o conhecimento das restantes excepções.

Corridos os subsequentes termos processuais, realizada a audiência de julgamento foi, com data de 7.11.2012, proferida sentença a julgar a acção improcedente e a absolver as Rés do pedido.

Inconformado, apela o Autor.

Alegou e, no final, formulou as seguintes conclusões:

- Considerando a matéria de facto alegada supra, poder-se-á classificar o contrato celebrado entre o A. e a R. como um contrato de Aluguer de Longa Duração, cuja coisa locada é um veículo automóvel sem condutor, logo é um contrato de aluguer de natureza especial, que se regula pelas norma do Decreto-Lei nº 354/86, alterado pelos Dec. Leis nº 373/90 de 27/11 e 44/92 de 31/03, tal como pelas normas gerais dos contratos e pelas cláusulas estabelecidas pelos contraentes que não estejam em contradição com as normas de natureza imperativa, aplicando-se, assim, supletivamente, as regras do regime geral da locação, previsto e regulado nos artigos 1022º e seguintes do Código Civil.

- A aquisição de veículos automóveis com recurso ao “aluguer de longa duração” tem de obedecer obrigatoriamente, à celebração de dois contratos distintos: um contrato de aluguer e um contrato-promessa de compra e venda da respectiva viatura.

- No caso sub judice, o A. alugou o veículo mencionado à 1ª R., a qual por indicação daquele o comprou à 2ºR., com o fim ser locado ao A. por aquela.

- O vendedor é “terceiro” relativamente ao contrato de aluguer de longa duração, mas a relação económica do aluguer de longa duração configura-se de forma triangular entre vendedor, o locador e o locatário.

- O A convenceu-se, aliás, até pela notoriedade da marca do veículo automóvel em causa, que as qualidades do mesmo estavam asseguradas e deveriam existir e estas eram fundamentais ao fim ao qual o A., locatário, o destinava.

– Encontra-se provado que: “No final do contrato e desde que nessa data não estejam por liquidar à locadora dívidas vencidas, o Locatário poderá proceder à aquisição do veículo mediante o pagamento do valor de retoma, acrescido das despesas e encargos conexos”.

– E ainda que: “No final do presente contrato e desde que nessa data não estejam por liquidar ao Locador dívidas vencidas, o Locatário poderá proceder à aquisição do veículo mediante o pagamento do valor de compra e venda previsto nas Condições Particulares, acrescido das despesas e encargos conexos, podendo esta opção de compra ser exercida entre a data de vencimento do último aluguer e o termo do presente Contrato. A transferência da propriedade sobre o veículo fica condicionada ao efectivo pagamento daqueles valores”.

- A legitimidade, não sendo uma qualidade pessoal das partes, exprime-se pela relação entre elas e o objecto do processo, em termos da pretensão que se pretende ver acolhida.

- Assiste legitimidade para ser parte a quem for titular dos interesses em jogo no processo.

- Decorre da alegação do A. que os dois contratos, o de compra e venda e o de aluguer de longa duração sem condutor, constituíram uma solução de financiamento para poder proceder à aquisição do veículo automóvel, tendo sido devidamente contratualizada e formalizada a obrigação de transferência do M... para a esfera jurídica do Locatário/A.

- Assim, face à configuração dos factos tal como apresentados na petição inicial, o direito à anulação/resolução poderá necessariamente ser efectivado pelo locatário em relação à vendedora e obviamente em relação à locadora.

- Face aos contraditórios interesses contratuais da 1ª R./locadora, deverá ser entendido que os direitos do A., enquanto locatário, só estão suficientemente protegidos, reconhecendo-se-lhe o direito de poder usar “todos” os direitos do comprador, nomeadamente, o direito de anular ou resolver o contrato de compra e venda celebrado entre a 1ª e a 2ª RR.

- Os interesses da 2ª R., nomeadamente processuais, não são postergados com essa solução, porquanto foi igualmente demandada, tendo, na presente acção, podido defender os seus direitos.

- Deve por isso concluir-se pela legitimidade do A., enquanto locatário, para o exercício dos direitos nesta acção exercidos contra o vendedor e locador relativamente ao automóvel dado de aluguer de longa duração com direito de aquisição desse bem pelo mesmo locatário, devendo, ser revogada a decisão ora impugnada, com as legais consequências. Por outro lado,

- Como demonstrado a operação global pretendida pelo A. consistiu na compra de uma viatura automóvel pela 1ª R. à 2ª R., a pedido do A., que a escolheu e que se destinava a ser-lhe dada em aluguer de longa duração por aquela.

- O A. convenceu-se, aliás até pela notoriedade da marca veículo automóvel em causa – Topo de Gama - que as qualidades do mesmo estavam asseguradas e deveriam existir e estas eram fundamentais ao fim que o A. o destinava.

- Contudo, cerca de dois meses após a realização do mesmo, começou a aperceber-se que o veículo automóvel M... em causa apresentava um vício grave que se repetiu durante várias vezes e até hoje. (cfr. Docs. 1 a 4, aqui junto).

- Vício este, que apesar da realização de várias intervenções com o intuito de o reparar, nunca foi efectivamente resolvido, mantendo-se o mesmo vício na presente data ainda por solucionar. (Cfr. Doc.s 1 a 4)

- O A. vem procedendo ao pagamento pontual de todas as rendas e demais encargos e prestações referentes ao acordo referido em 2.).

- Ficou provado que, “Se o A. soubesse que o veículo em questão padecia das avarias não teria celebrado o acordo referido em 2..” (Ponto 47).

- Presume-se segundo a Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, que os bens de consumo são conformes ao contrato se:

a) forem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor e possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;

b) forem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine do qual tenha informado o vendedor quando celebre o contrato e que o mesmo tenha aceite;

c) forem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;

d) apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente às declarações públicas sobre suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

- De acordo com o art. 913º nº1 do Código Civil há venda de coisa defeituosa quando a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou que impeça a realização do fim a que é destinada ou quando não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, remetendo a lei para o regime próprio da venda de bens onerados.

- Ora, tratando-se de um contrato aluguer de longa duração a consumidor e do seu cumprimento defeituoso, concorrendo as normas e princípios gerais e outros decorrentes de normas especiais, aplicar-se-á o regime especial no que lhe for próprio, recorrendo ao regime geral fora dele.

- No caso, as partes subscreveram instrumento contratual que integra os elementos da figura do contrato de aluguer – arts. 1022º e 1023º do Código Civil.

 - De veículo automóvel sem condutor (aluguer de longa duração), a par da assunção, por quem nele figura na posição de locador – a 1ª R. – a favor de quem nele tem aposição de locatário – o A.-, da obrigação de assegurar o gozo pleno e a execução de serviços de manutenção do veículo locado, sendo que as prestações a realizar por aquela têm como contrapartida a prestação única, a cargo desta última, do pagamento da retribuição acordada.

- Eram obrigações da 1ª R, quer a de proporcionar ao A. o gozo temporário da coisa, assegurando-lhe o uso desta para os fins a que se destina – arts. 1022º e 1031º, alínea b), ambos do Código Civil -, quer a de assegurar a reparação definitiva ( e não repetida, reiterada do mesmo vício-substituição dos injectores) dele nos termos convencionados, assim viabilizando a preservação e o bom e normal funcionamento do objecto locado e assegurando o seu gozo pleno pela parte contrária.

- A não satisfação desta obrigação conduz ao seu incumprimento definitivo, capaz de gerar, como gerou, direito à resolução, peticionada pelo A. (art. 808º, nº 1 do C. Civil.).

- O A. foi sempre denunciando as sucessivas anomalias/avarias detectadas na viatura, logo que elas foram surgindo, tendo as R.R. intervindo na sua correcção/reparação pontual, mas sem que daí tenha resultado uma completa e eficiente reparação de tal vício, por forma a não voltar a apresentar tais defeitos, que não aconteceu, como é manifesto.

– Não sendo reparada de forma definitiva a avaria repetidamente verificada está-se a onerar ilegítima e infundadamente e, nessa medida a prejudicar, o gozo do bem pelo A., em óbvio desrespeito pela obrigação assumida pela 1ª R. no contrato de aluguer de longa duração de lhe assegurar esse mesmo pleno gozo.

- E, nessa medida, a sua omissão envolve também a não satisfação da obrigação de proporcionar o gozo do bem, havendo também incumprimento do contrato de aluguer que, tendo-se tornado definitivo, legitima o pedido de resolução e extinção do contrato.

- Face ao exposto e à matéria de facto provada não resta outra alternativa senão decretar-se a anulação do contrato de compra e venda ao abrigo do disposto nos artigos 913.º e 905.º do Código Civil e, na sequência da anulação desse contrato, ordenar, ao abrigo do disposto no art. 289.º n.º 1do Código Civil, que o A. restitua à 1ª R. a viatura e esta lhe restitua todas as quantias por ele pagas ao abrigo do contrato de aluguer.

- O art.º 12º, nº 1, da Lei 24/96, estabelece que “ O consumidor a quem seja fornecida a coisa com defeito, salvo se dele tivesse previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a resolução do contrato”.

– Do regime do Decreto-Lei nº67/2003, de 08 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de Maio, resulta igualmente que o A., enquanto consumidor de um bem, tem direito à qualidade do bem que adquire, no sentido de este dever ser apto a satisfazer os fins a que se destina e a ter garantido o seu bom funcionamento, por período nunca inferior a dois anos, atribuindo-lhe os direitos aqui exercidos.

- E uma vez que quer a anulação quer a resolução do negócio tem efeito retroactivo, nos termos do art. 289º, nº 1 do Código Civil, devem ser restituídas ao A. todas as quantias pagas e as quantias futuras que venham a ser ainda liquidadas a título de renda e despesas de manutenção e seguro pelo aluguer do veículo em análise, até à data do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial.

O Autor terminou pedindo a procedência da acção, com excepção do pedido de indemnização formulado, e nesta medida ser julgada procedente a presente Apelação e revogada a sentença recorrida.

E, finalmente que, considerando a matéria provada constante do ponto 9 da matéria de facto provada, fossem as R.R. condenadas no pagamento de todas as despesas inerentes ao presente litígio, incluindo custas e outras, nomeadamente os honorários do seu mandatário, no montante que se vier a liquidar em incidente de liquidação.

 O Autor juntou com a alegação quatro documentos, todos com data de 21.11.2012, referentes a uma nova reparação levada a efeito nessa data, pela C…Veículos e Peças, no veículo do Autor, tendo como objecto, essencialmente, a bomba de água. 

As recorridas contra alegaram pugnando pela manutenção do decidido, quer no saneador, quer na sentença.

E pronunciaram-se pela inadmissibilidade da junção de documentos feita pelo recorrente, por impertinência e desnecessidade a recorrida M... /1ª Ré e por inadmissibilidade legal a 2ª Ré.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Matéria de Facto.

2. O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. Em 21 de Julho de 2009 a 1ª Ré, no exercício da sua actividade, efectuou a compra à 2ª Ré do veículo automóvel da marca M..., modelo E-250 CD1 Avantgarde Blueefficiency, nº de chassis 000000000000000, com a matrícula 000-IA-000;

2. Com data de 28 de Julho de 2009, o A. por documento escrito intitulado "Contrato de Aluguer de Longa Duração ao Consumidor" com o nº 00000 tomou de aluguer a viatura referida em 1) nos termos do documento junto de fls. 28 a 31, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pelo preço de € 57 946,42;

3. Com data de 20 de Agosto de 2009, foi acordado entre o A. e a 1ª Ré, aditamento ao acordo referido em 2) constando da cláusula 4º do mesmo:

“1 – No final do prazo do contrato e desde que nessa data não estejam por liquidar à locadora dívidas vencidas, o Locatário poderá proceder à aquisição do veículo mediante o pagamento do valor de retoma, acrescido das despesas e encargos conexos.

“2 - Se o locatário não cumprir a obrigação prevista na Cláusula Primeira deste aditamento, a Locadora poderá exigir ao locatário no fim do contrato que este proceda à aquisição do veículo pelo valor residual”. (Cfr. Doc. 3).

4. No n° 5 da cláusula quinta, ficou estabelecido que, "A locadora poderá exercer a opção prevista no nº 2 da Cláusula Quarta deste aditamento caso o veículo tenha sido objecto de reparações de valor superior a 1500 euros, excluindo IVA, ou deva ser sujeito a reparação, a efectuar nos termos do número anterior, de valor superior àquele";

5. Com a mesma data foi elaborada adenda ao contrato de Serviço M.., celebrado entre a 1ª R. e o A.;

6. Nos termos do supra referido contrato de Aluguer de Longa Duração a Consumidor nº 00000 foi acordado que o contrato objecto dos presentes autos vigoraria por um período de 48 meses, sendo o 1º aluguer no valor total de € 10 430.35 (dez mil quatrocentos e trinta euros e trinta e cinco cêntimos) e os restantes 47 alugueres, cada um, no valor total de € 944.84, ficando acordado a título de valor residual o montante de € 30 094,10;

7. Tendo sido estabelecido na cláusula 1ª, do acordo mencionado em 5) a possibilidade de aquisição do veículo por parte do Locatário, aqui A., nos seguintes termos:

 "No final do presente Contrato e desde que nessa data não estejam por liquidar ao Locador dívidas vencidas, o Locatário poderá proceder à aquisição do veículo mediante o pagamento do valor de compra e venda previsto nas Condições Particulares, acrescido das despesas e encargos conexos, podendo esta opção de compra ser exercida entre a data de vencimento do último aluguer e o termo do prazo de presente Contrato. A transferência da propriedade sobre o veículo fica condicionada ao efectivo pagamento daqueles valores".

8.         Nos termos da cláusula 14ª, constante das condições gerais previstas no referido Contrato de Aluguer de Longa Duração a Consumidor, ficou estabelecido que, em caso de incumprimento ou desconformidade no contrato de compra e venda ou de prestação de serviços coligado com o presente Contrato, o Locatário (A.), que após interpelação do fornecedor, não tenha obtido a satisfação do seu direito à conformidade do bem ou à prestação do serviço nos termos contratados, pode interpelar o locador para exercer a sua pretensão, quer ela seja a excepção de não cumprimento do contrato, quer seja a redução do montante do contrato em montante igual ao da redução do preço, quer seja a própria resolução do contrato;

9. As partes acordaram ainda que, em caso de litígio, a parte vencida será responsável por todas as despesas inerentes ao litígio, incluindo custas e outras despesas judiciais, nomeadamente honorários dos mandatários forenses;

10. Após a celebração do acordo referido em 2) o veículo foi entregue ao A, que o passou a usar;

11.       O A., por mail de 3.11.2009, comunicou avaria no veículo à M.., SA., com conhecimento do mesmo para a 2ª R., conforme documento junto a fls. 36/37, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

12. O A. necessita de deslocar-se diariamente de automóvel em cumprimento de compromissos pessoais e profissionais, a nível nacional e internacional;

13, Em meados de Outubro de 2009, aquando da preparação de uma deslocação profissional ao estrangeiro, o veículo avariou....

14. Tendo o A. chamado a assistência em viagem, e o veículo sido rebocado para a oficina B…, em Cascais;

15. A avaria referida em 11), 13) e 14) ficou a dever-se a falha/deficiência técnica no sistema de injecção;

16. Alguns dias após o sucedido, foi o A. informado de que o problema havia sido resolvido e que a viatura estaria já em plenas condições, tendo o A. procedido ao seu levantamento;

17. Cerca de três dias após o levantamento referido o mesmo problema voltou a surgir;

18. Tendo sido necessária uma nova intervenção, desta feita na oficina da "C…" em Sintra..;

19. Tendo a viatura em questão permanecido aí mais quatro dias para que a sua reparação fosse levada a cabo;

20. Tendo o A. sido informado de que se tratava de problemas nos injectores mas que o problema estava devidamente resolvido;

21 O A. procedeu ao levantamento do veículo disso convencido;

22. Cerca de três dias depois do referido em 21), surgiu novamente o mesmo problema, tendo o veículo perdido quase por completo a sua força;

23. Levando o A. o veículo para as instalações da A... em Sete Rios;

24. A avaria em causa resultou de uma falha técnica no sistema de injecção combustível ao nível do injector piezoeléctrico;

25. No dia 21 de Dezembro de 2009 o A. foi informado de que o problema havia sido solucionado e que a viatura estaria já em plenas condições, podendo ser levantada nas instalações do concessionário da marca;

26. No dia 25 de Julho de 2010, o A. foi interpelado pela M..., Comércio de Automóveis, SA., via correio postal registado, na qual aquela vem informar que " Durante os nossos constantes controlos de qualidade, constatamos que, devido a flutuações no processo de fabrico de um fornecedor, poderão ocorrer irregularidades de funcionamento do sistema de injecção do seu veículo abaixo indicado."'

27. Na sequência de tal missiva a M...-, Comércio de Automóveis, SA. solicitou que o A. contactasse uma oficina autorizada da marca a fim de verificar preventivamente o veículo de forma a actualizar gratuitamente o sistema do Injecção;

28. Tendo o A. concordado com a referida actualização técnica;

29. No dia 5 de Agosto de 2010, dirigiu-se junto do concessionário e oficina autorizada M...-Benz, tendo aí entregue o veículo para que o mesmo fosse intervencionado conforme havia sido solicitado pela M.., COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, SA"

30. Tal intervenção foi levada a cabo nesse mesmo dia tendo o A, levantado o referido veículo automóvel no final do dia 05 de Agosto de 2010;

31. Convencido que teriam sido solucionados de vez por todas todos os problemas mecânicos ao nível do sistema de injecção do veículo supra mencionado;

32. O A. vem procedendo ao pagamento pontual todas as rendas e demais encargos prestações referentes ao acordo referido em 2);

33. No dia 21 de Agosto de 2010 o veículo avariou em França;

34. Tendo a viatura sido rebocada para a oficina autorizada mais próxima do local, através da assistência 24h da M...;

35. A avaria técnica, que provocou a imobilização da viatura em território francês, foi ao nível do sistema de injecção de combustível, que acarretou novamente a substituição do kit de injectores;

38. Perante tal situação, e no âmbito das condições do pacote de mobilidade M...-Benz Mobil, foi atribuída ao A. uma viatura de substituição;

37. Sendo o destino da viagem do A. Paris, este havia feito reserva para o Hotel …., através do serviço on lide booking.com, de 21 a 23, de Agosto de 2010, reserva que cancelou;

38. O A. regressou a Portugal com a viatura de substituição que lhe havia sido atribuída;

39. O A. pernoitou em Espanha;

40. Uma vez que já estava em Portugal, o A. não procedeu à entrega do veículo de substituição em França, no dia 26 de Agosto de 2018, tendo a M..., SA se prontificado a devolver a viatura de substituição à rent-a-car francesa;

41.Tal devolução apenas foi efectuada no dia 31 de Agosto de 2010;

42. Cada dia adicional ao termo do aluguer teve um custo de € 75,00;

43. Em 29/10/2010, foi o A. informado, por escrito, pela M.. S.A., de uma nova e possível avaria do veículo objecto dos presentes autos, nomeadamente no que diz respeito à falta de estanquicidade na zona de união da tubagem da bomba da direcção assistida;

44. Tendo solicitado novamente que o A. contactasse uma oficina autorizada M.., a fim de verificar preventivamente a bomba da direcção assistida e, caso necessário proceder aos ajustes adequados;

45. Com o objectivo de esclarecer esta situação, o A. dirigiu-se, no dia 11.11.2010, junto de uma oficina autorizada – C…, SA., onde a viatura em questão foi intervencionada, tendo sido substituída a junta de ligação da tubagem de alta pressão, na bomba da direcção assistida;

46. A viatura permaneceu na oficina referida durante o dia 11/11/2010;

47. Se o A. soubesse que o veículo em questão padecia das avarias não teria celebrado o acordo referido em 2.

O Direito.

3. Antes de mais há que referir que tendo a acção sido intentada em Janeiro de 2011 e decidida, em 1ª instância, em Novembro de 2012, portanto tudo antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, vigente desde 1 de Setembro do mesmo ano, ao presente recurso são aplicáveis as disposições do anterior CPC, na redacção do DL nº 303/2007, de 24 de Agosto (cfr. artigos 5º nº1, 7º nº1 e 8º todos da citada Lei nº 41/2013), que facultava já a impugnação de certas decisões interlocutórias no recurso que viesse a ser interposto da decisão final, como era o caso de decisões proferidas no despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, não conhecessem do mérito – art. 691º nº2, h) e nº3 do CPC.

 Assim, e em consonância com esta última norma, no presente recurso vêm impugnados não só a sentença recorrida como o segmento do despacho saneador que julgou procedente a excepção da ilegitimidade do Autor relativamente ao 1º pedido por ele formulado – de anulação ou resolução do contrato de compra e venda celebrado entre a 1ª e a 2ª Ré, com a condenação desta a receber daquela a viatura automóvel vendida e a restituir-lhe o valor do preço - e que absolveu as rés da instância relativamente ao mesmo.

Posto isto, vejamos.

3.1. Face ao teor das conclusões da alegação do recorrente, delimitadoras do objecto do recurso, as questões a decidir são:

(i) saber se o Autor é ou não parte legítima, quanto ao 1º pedido;

(ii) saber se, face aos factos provados, houve ou não incumprimento contratual definitivo de alguma das rés (ou de ambas) e, em caso afirmativo, quais as consequências face às pretensões formuladas pelo autor.

3.1.1. Como evidencia o relatório que antecede, o autor invocando a celebração com a 1º ré de um contrato de aluguer de longa duração sem condutor, antecedido de um contrato de compra e venda do veículo entre as rés, a seu pedido, com a estrita finalidade do mesmo lhe ser alugado, e alegando que o dito veículo padece de vícios redibitórios que, apesar das sucessivas tentativas de reparação, inviabilizam a sua normal utilização, veio pedir que: - fosse anulado ou resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre a 1ª Ré e a 2ª Ré, sendo esta condenada a receber daquela a viatura automóvel vendida e a restituir-lhe o respectivo preço; - fosse declarado extinto o contrato de aluguer de longa duração celebrado pelo A. com a 1ª Ré e, consequentemente, esta condenada a restituir ao A. o valor de todos os alugueres e demais prestações pecuniárias recebidas em execução do contrato de aluguer de longa duração, que liquidará em execução de sentença, acrescido de juros de mora; - fossem as RR. condenadas no pagamento dos danos sofridos pelo A., no montante de € 1.359,64 e, bem assim, de danos futuros a liquidar em execução de sentença; -fossem as RR. condenadas no pagamento de todas as despesas inerentes ao presente litígio, incluindo custas e outras despesas, nomeadamente os honorários do mandatário do A., no montante que se vier a liquidar em execução de sentença. 

A 1ª instância, após declarar o autor parte ilegítima para o pedido de anulação do contrato de compra e venda do veículo (com o argumento de que aquele não fora parte no dito contrato) e de absolver as rés da instância quanto ao mesmo, veio a julgar a acção totalmente improcedente e a absolver as rés dos demais pedidos, basicamente com fundamento na circunstância do autor não ter logrado demonstrar factos integradores quer de incumprimento definitivo, quer de cumprimento defeituoso por parte das rés.

O Autor apelou, deixando, todavia, excluído do âmbito do recurso o pedido de indemnização formulado, conformando-se, portanto, nessa parte com a absolvição das rés.

O conhecimento das questões trazidas ao recurso, atrás enunciadas, impõem, em primeiro lugar, a qualificação jurídica do contrato, ou contratos, celebrados entre as partes, qualificação essa que deve ser feita em função das cláusulas acordadas, do regime e disciplina geral dos contratos, tendo em conta, sobretudo, os factos provados.

Ora destes emerge que, a 1ª Ré, no exercício da sua actividade de realização de operações financeiras e prestação de serviços conexos, como evidencia a sua própria denominação, celebrou com o autor, no dia 28.07.2009, o contrato intitulado “Contrato de Aluguer de Longa Duração a Consumidor nº 00000” e subsequentes adendas, com o teor constante de fls. 28 a 35, no qual a 1ª ré é identificada como “Locadora”, o Autor como “Locatário” e a 2ª ré como “Mediador de Crédito/Fornecedor”, relativamente a um veículo M.., modelo E 250 CDI (Avantgarde Blueefficiency Cx Aut.), matrícula nº 000-IA-000.

E vistas as denominadas Condições Gerais anexas ao do dito contrato, delas resulta ter o locatário expressamente declarado ser sua a escolha do veículo objecto do contrato, “bem como o respectivo fornecedor, com o qual acordou todos os aspectos constantes das Condições Particulares relativas ao veículo, nomeadamente as suas características, preço e condições de pagamento, bem como a data de entrega e o local de entrega do veículo, sem que o locador tenha tido qualquer intervenção em tais acordos” (cl. 1ª, nº 2).

Mais resulta do dito clausulado ser o locatário quem recepcionaria o veículo e subscreveria o respectivo auto de recepção se revestisse as características e condições pretendidas, servindo o respectivo auto de recepção, “devidamente assinado e datado pelo fornecedor e pelo locatário”, “autorização bastante para que este proceda ao pagamento do preço ao fornecedor e prova suficiente da efectiva concessão do gozo do veículo pelo locador ao locatário, sendo a data dessa recepção a data da entrega do veículo”(cl. 3º nºs 1 e 3).

Por outro lado, era do locatário “o risco inerente à utilização do veículo”, ao mesmo cabendo a sua manutenção, “como se fosse proprietário” (cfr. cl. 7ª) e 10ª), podendo o mesmo adquiri-lo a final, verificado o condicionalismo enunciado na cláusula 14ª.

Perante estes factos, defendem as rés, entendimento que teve pleno acolhimento na sentença recorrida, que a situação configuraria juridicamente dois contratos distintos – um aluguer de longa duração (regido por normas especiais e pelas regras do regime geral da locação, previstas nos art. 1022º e seguintes do C. Civil) e uma promessa de compra e venda – antecedidos de um outro contrato, a que o autor seria alheio - o contrato de compra  e venda do veículo, celebrado apenas entre as rés, na qualidade de compradora e vendedora, respectivamente.

Daí ter sido entendido ser o autor parte ilegítima para o pedido de anulação deste último contrato e terem sido as rés logo absolvidas da instância relativamente ao mesmo, no saneador.

           3.1.2. Doutrinária, e também jurisprudencialmente, “o contrato de locação financeira é um contrato destinado a «financiar» alguém, não através da prestação de uma quantia em dinheiro, mas mediante o uso de um bem, tendo subjacente a intenção de proporcionar ao «locatário», não tanto a propriedade de determinados bens, mas antes a sua posse e utilização, para certos fins.

“Na figura do contrato de locação financeira com amortização integral [full-pay-out leasing], que a ordem jurídica nacional institucionalizou, prevêem-se pagamentos do utente, calculados de modo a cobrir a totalidade dos desembolsos do locador, bem como a margem de lucro deste, contendo ainda, ou uma cláusula de devolução do bem ao locador, terminado o contrato, ou a faculdade de prorrogação da compra do bem, em benefício do locatário, neste caso, mediante o pagamento de um preço residual, mais ou menos simbólico.

São elementos, essencialmente, constitutivos do contrato de locação financeira, como decorre da conceitualização estabelecida pelo artigo 1º, do DL nº 149/95, de 24 de Junho, [com as alterações subsequentemente introduzidas] a cedência, pelo locador, do gozo temporário de uma coisa, a obrigação do locador adquirir ao fornecedor a coisa imóvel ou móvel, por indicação do locatário, mediante celebração do contrato de compra e venda, a obrigação do locatário pagar ao locador uma renda, que funciona, simultaneamente, como retribuição correspondente pelo serviço financeiro e amortização do financiamento prestado e o direito do locatário comprar, total ou parcialmente, a coisa, pelo respectivo preço residual, no termo do contrato (cfr., por todos, Leite de Campos, Ensaio de Análise Tipológica do Contrato de Locação Financeira, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, LXIII, 1987, 5 a 10, citado no Acórdão do STJ, de 1.02.2011- processo nº 884/09.7YXLSB.L1.S1 – com cuja doutrina se concorda inteiramente e se seguirá quase ipsis verbis).

Porém, e conforme continua o mencionado Acórdão do STJ, “diferentemente, o designado contrato de ALD tem sido configurado como um contrato atípico ou inominado, desprovido de estrita natureza locatícia e, por isso, sem se encontrar, directamente, sujeito ao regime consagrado pelo artigo 1022º e seguintes, do CC.

“Assim, o contrato de ALD de automóveis novos seria um contrato indirecto, em que o tipo de referência é o aluguer, e o fim indirecto é o da venda a prestações com reserva de propriedade, um verdadeiro contrato misto, em que o fim indirecto prosseguido pelos contraentes é alcançado, através da conjugação de estipulações típicas dos contratos de aluguer e da venda a prestações com reserva de propriedade [Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 1995, 245 e 246], podendo conter uma promessa, bilateral ou unilateral, de venda ou até uma proposta irrevogável de venda inserida na própria locação [F. Gravato, Contratos de Crédito ao Consumo, 2007, 57], ou configurar-se como uma simples relação bilateral, sem qualquer intermediação financeira especializada, sob a forma de uma locação acoplada a uma promessa unilateral de proposta irrevogável de venda [Teresa Anselmo Vaz, em Alguns Aspectos do Contrato de Compra e Venda a Prestações e Contratos Análogos, 1995, 86, e na Revista Portuguesa do Direito do Consumidor, nº14 125 e 126].

“O denominado contrato de ALD seria antes uma pluralidade multilateral de contratos interligados por uma relação de coligação funcional, e não um único contrato, ainda que, teleologicamente, indirecto, consubstanciando um conjunto integrado de negócios distintos, bem diverso da compra e venda a prestações, que não ultrapassa a fronteira de uma simples e linear relação de contrato bilateral.

“Tratar-se-ia de uma coligação funcional de três tipos contratuais distintos que constituem o seu esqueleto estrutural, ou seja, de um contrato de aluguer de longa duração, donde deriva, por metonímia, a sigla ALD, de um contrato de compra e venda a prestações e de um contrato promessa de compra e venda do bem alugado.

“Este triângulo contratual existente no ALD ocorreria entre o locador que se obriga a adquirir o bem a terceiro, sob indicação do locatário, para depois lhe proporcionar o gozo, o locatário carecido da coisa e o terceiro vendedor ou fornecedor da mesma.

“Esta pluralidade contratual, de natureza triangular, afasta, desde logo, a recondução do ALD à categoria dogmática do negócio misto e à do contrato indirecto.

“Há, porém, identidades entre o ALD e o contrato de locação financeira, desde logo, na obrigação, a cargo do locador, de adquirir o bem a terceiro, sob proposta do locatário, para depois lhe proporcionar o respectivo gozo temporário, em segundo lugar, a faculdade do locatário exigir ao locador, em certas circunstâncias, a celebração do contrato de compra e venda que opere a transferência do direito de propriedade sobre o bem locado e, finalmente, as rendas devidas pelo locatário, acrescidas dos juros remuneradores da intermediação financiadora, em que, afinal, se traduz a intervenção do locador, o correspondente lucro financeiro, que não são a simples contrapartida do valor do uso do bem locado, mas, antes, representam uma antecipação do pagamento do preço, tendo em vista a sua aquisição futura pelo locatário, constituindo a execução parcelar da obrigação de reembolso dos fundos adiantados pelo locador na sua aquisição, caso queira optar pela compra do bem, findo o período da locação.

Contudo, diversamente do que acontece no contrato de locação financeira, no ALD, o locatário não se torna, automaticamente, proprietário do bem locado, mas tal acontece, apenas, na hipótese de o pretender, atento o disposto pelos artigos 2º, nº 1, a), 3º, a), parte final, e 9º, nºs 1 e 5, do DL nº 359/91, de 21 de Setembro.

No termo do prazo do contrato, o bem encontra-se, integralmente, pago, pelo que o locatário tem todo o interesse na sua aquisição, procedendo-se à venda depois de manifestar essa vontade ao locador, pois só, então, se transfere a propriedade do bem, por um preço pré-determinado, em regra, equivalente ao valor do objecto à data do aluguer de longa duração (13).

Assim sendo, o designado contrato de ALD, pese embora a componente funcional-económica de fruição temporária do bem locado que regista, não é, de modo algum, um contrato «a se», assimilável à mera locação do direito civil, isto porque o preço da renda pode visar a amortização do preço do bem de que o consumidor goza da faculdade de comprar, esgotado o prazo por que vigora o contrato, se tiver sido estabelecida opção de compra ou celebrado contrato promessa de compra e venda, ainda que unilateral, sendo certo, como já se disse, que do que se trata, não é de retribuir o locador pela concessão temporária do gozo da coisa locada, mas antes de o reembolsar da quantia que adiantou na sua aquisição, acrescida dos juros remuneradores da intermediação financiadora em que, afinal, se traduz a sua intervenção .

“Porém, tendo sido convencionada a opção de compra (….) nem, por isso, se estará, sem mais, apesar da relação de afinidade existente, perante um contrato de locação financeira, pese embora, no plano funcional dos interesses, possa constituir uma operação de natureza similar ou com resultados económicos equivalentes.

“A aludida coligação funcional dos três tipos contratuais distintos, isto é, de um contrato de aluguer de longa duração, de um contrato de compra e venda a prestações e de um contrato promessa de compra e venda do bem alugado, em que se consubstancia o ALD, é subsumível à matriz do contrato de mandato sem representação, a que se reporta o artigo 1180º, cujos elementos em que o seu conteúdo típico se desdobra, nele se revêem, igualmente, ou seja, por um lado, na vinculação do mandatário [locador], em nome próprio, mas por conta do mandante [locatário], a adquirir o bem por este, expressamente, escolhido e indicado, transferindo, em seguida, para o mesmo os direitos que haja adquirido na execução do mandato, a propriedade do bem adquirido por sua conta, nos termos do disposto pelo artigo 1181º, nº1, e, por outro lado, no dever do mandante em reembolsar o mandatário das despesas que este haja efectuado no cumprimento do encargo de que foi incumbido com a aquisição do bem, atento o estipulado pelos artigos 1182º e 1167º, c), todos do CC.

“Numa primeira fase do percurso evolutivo pós-revolução industrial, a concessão de crédito ao consumidor apoiou-se, predominantemente, no esquema contratual da compra e venda a prestações, sendo o crédito concedido pelo próprio vendedor, através do diferimento da exigibilidade da obrigação de pagamento do preço para um momento futuro, posterior ao imediato cumprimento do dever de entrega da coisa.

“Afinal, trata-se da única semelhança que existe entre o contrato da compra e venda a prestações e o ALD, ou seja, em ambos os casos, existe uma obrigação pecuniária de execução fraccionada, no primeiro, de pagamento do preço, e, no segundo, de reembolso dos fundos adiantados pelo locador.

“E, para que de um contrato de concessão de crédito se possa falar, importa que se trate de um instrumento técnico-jurídico capaz de permitir que alguém conceda, temporariamente, a outrem o poder de compra de que este não dispõe” (Acórdão do STJ, acima melhor identificado).

Foi o caso, em que o autor, após ter escolhido junto da 2ª Ré o veículo que pretendia adquirir, contratou/mandatou a 1ª Ré para celebrar com a segunda a compra e venda do mesmo, em nome dela, mas por conta dele, obrigando-se a pagar-lhe a quantia despendida e a remunerá-la, mensalmente, durante o período também estabelecido, findo o qual, cumpridas regularmente todas as prestações a que ambos se obrigavam, a 1ª ré transferiria formalmente a propriedade do veículo para o autor.

E entregue, pela 2ª ré ao autor, o objecto do contrato, a 1ª ré procedeu ao pagamento do preço devido por aquele à mesma 2ª Ré, ficando dessa forma integralmente cumpridas as prestações inerentes ao contrato de compra e venda propriamente dito (art. 874º do C. Civil).   

Do exposto decorre que, contrariamente ao decidido, o autor enquanto mandante desse contrato de compra e venda, detectados por si vícios ou falta de qualidades na coisa vendida, pode ter interesse em demandar o vendedor, sem que lhe possa ser oposta a sua qualidade de terceiro.

E sabido que a legitimidade, processualmente falando, se afere pela relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenha na petição inicial (art. 26º nº 3 do CPC), derivando dos factos alegados na p.i. a dita relação triangular, em que a 2ª ré é fornecedora/vendedora do veículo escolhido pelo autor para si, alegadamente com defeitos ou falta de qualidades que lhe eram exigidas, o autor é parte legítima para pedir a anulação ou resolução do invocado contrato de compra e venda.

Conclui-se do exposto, que contrariamente ao decidido no despacho saneador, o autor é parte legítima e, como tal, procede nesta parte o recurso, impondo-se revogar o dito despacho no segmento em que julgou o autor parte ilegítima e absolveu as rés do primeiro pedido.

Saber se essa pretensão deve ou não proceder é questão atinente ao mérito, excedendo o prévio pressuposto da legitimidade processual das partes.

4. Aqui chegados resta apreciar se, face aos factos assentes e às normas contratuais e legalmente aplicáveis, a acção deve ou não improceder, conforme decidido na 1ª Instância.

Não obstante as negociações e acordos estabelecidos entre o Autor/locatário e a fornecedora, certo é que, atentos os elementos caracterizadores do contrato de compra e venda, tal como definidos no art. 874º do C. Civil – contrato de compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa mediante um preço – e vistos os factos provados, a 1ª ré comprou à 2ª ré o veículo em causa.

E embora o mesmo tivesse sido escolhido e recepcionado pelo autor do fornecedor, em estrito rigor formal, o contrato de compra e venda inicial, só às rés atribuiu direitos e obrigações e, consequentemente, só elas podem pedir a sua extinção ou modificação, seja qual for o respectivo fundamento.

Por seu turno, a relação atinente ao Contrato de Aluguer sem condutor, conjugado com a promessa de compra e venda, a final e verificado o condicionalismo acordado, em rigor, desenvolver-se-ia apenas entre o locador/1ª ré e o respectivo locatário/autor, obrigando-se aquele a ceder ao último o gozo do veículo, a fim do mesmo lhe dar a utilização expectável e compatível com as suas características e potencialidades, mediante o pagamento de um quantia mensal integradora do capital despendido e respectiva remuneração, dado o carácter financeiro da actividade comercial da dita ré.

Ora, vistos os factos provados, deles resulta, até por presunção judicial que este Tribunal pode extrair, que o veículo cujo gozo a 1º ré cedeu ao autor não tinha as qualidades exigidas a qualquer carro novo e, muito menos de um da marca M..., publicitado e notoriamente tido por carro de marca consagrada a nível europeu, se não mesmo mundial, já que, como é sabido, nenhum carro novo normal tem avarias sucessivas e exige intervenções nos primeiros anos.

E tanto assim é que o Estado, movido por razões de operacionalidade e segurança, só impõe inspecções obrigatórias a partir do quarto ano de uso.

O veículo alugado pela 1ª ré ao autor, com promessa de venda, não revelou pois, até ao momento data da propositura da acção, (e só este releva), as qualidades que lhe eram supostas e exigíveis para assegurar a sua normal finalidade e, consequentemente, as que o autor dele esperaria, tanto mais que ficou provado que se ele soubesse que o carro vinha a evidenciar os defeitos que evidenciou não teria celebrado o contrato que celebrou com a 1ª ré (facto nº 47).

A situação tem, por isso que ser reconduzida “mutatis mutandis”, ao regime da venda de coisa defeituosa, constante do art. 913º e seguintes do C. Civil, donde derivaria que a 1ª ré (e, subsequentemente e a favor desta, a 2ª ré) estava obrigada a reparar ou substituir o veículo (logo que detectada a anomalia), sob pena do autor/locatário, ulterior adquirente, poder pedir a anulabilidade do negócio.

É que, não obstante o veículo ter sido sucessivamente reparado, a repetição das anomalias, sem reparação definitiva, tem que reconduzir-se ao reconhecimento de cumprimento defeituoso (primeiro por parte da fornecedora/vendedora do veículo a tratar entre as rés e depois no aluguer de longa duração de coisa igualmente defeituosa e incapaz de assegurar a sua finalidade normal, este sim envolvendo o autor e a 1ª ré.

E assim sendo, visto o estatuído no citado art. 913º, conjugado com os artigos 905º, 287º e 289º todos do C. Civil, bem como as disposições atinentes ao regime da venda de bens de consumo (cfr. DL nº 67/2003, de 8 de Abril) tem o autor direito há anulação do contrato de aluguer pedido, com restituição de tudo o prestado quer por si, quer pela locadora.

Mas, não obstante a alegada e provada intervenção do autor na escolha e recepção do veículo, o que face aos termos da p. i. o torna parte legítima para o pedido de anulação do contrato de compra e venda como se disse, certo é que, desenvolvendo-se formalmente esse último contrato, apenas entre as rés – uma transferiu a propriedade do veículo para a outra, que pagou o respectivo preço – não tem o autor o direito à sua resolução ou extinção.

Os efeitos da falta de qualidades apresentada pelo veículo, relativamente a si, derivada do defeito nunca definitivamente reparado, tem a ver apenas com a circunstância de impossibilitar o gozo que era suposto tirar da utilização e ulterior faculdade de aquisição do mesmo, pelo que é de reconhecer ao autor a pedida anulação do contrato de aluguer de longa duração, mas não também o de anulação do contrato inicial de compra e venda.

Extinto o ALD, restituído o veículo à 1ª ré e devolvidas, por esta, as quantias entregues a título de “rendas” pagas, ficam, sem mais, assegurados os efeitos retroactivos a que alude o citado art. 289º, entendendo-se equitativo não impor à locadora o pagamento de quaisquer juros de mora, uma vez que, apesar de tudo, o autor sempre fez alguma utilização do veículo.

E, na falta de critério mais objectivo, entende-se razoável fazer corresponder o valor dessa utilização ao dos juros pedidos e, em princípio devidos.

Procede, assim, apenas em parte o recurso.

Decisão.

5. Termos em que acordam os juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento parcial ao recurso.

Consequentemente, revoga-se o segmento recorrido do despacho saneador, declarando-se o autor parte legítima relativamente a todos os pedidos.

E julgando-se a acção, na parte objecto recurso, parcialmente procedente, altera-se a sentença recorrida, declarando-se anulado o contrato de aluguer de longa duração celebrado pelo A. com a 1ª Ré e, consequentemente, condena-se esta - M... Instituição Financeira de Crédito, S.A. - a restituir ao A. o valor de todos os alugures/”rendas” e demais prestações pecuniárias recebidas em execução do contrato de aluguer de longa duração, mediante a entrega por aquele do veículo alugado, absolvendo-se a mesma ré do mais que lhe vinha pedido.

E julga-se a acção totalmente improcedente relativamente à 2ª ré – A..., Lda – absolvendo-a da totalidade do pedido.

As custas, nas duas instâncias, serão suportadas pelo autor/recorrente e pela 1ª Ré, na proporção do respectivo vencimento.

         Lisboa, 8 de Maio de 2014

          (Maria Manuela B. Santos G. Gomes)

          (Olindo dos Santos Geraldes)

          ( Fátima Galante )