Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
74/14.7TCLRS-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: RESPONSABILIDADE DO AVALISTA
LIVRANÇA EM BRANCO
DOCUMENTO ASSINADO EM BRANCO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. O credor tem o ónus de comunicar ao pré-avalista (avalista de uma livrança em branco) o vencimento da obrigação do subscritor da livrança, se quiser que a obrigação de garantia daquele cubra a totalidade do seu crédito.
II. Se o não fizer - e é ele que tem o ónus da provar que o fez - o avalista não responde pelos juros vencidos desde o vencimento da obrigação [da data que foi preenchida como data de vencimento] até ao momento em que foi citado para a execução.
III – Se a convenção de preenchimento de uma livrança em branco constar também de um documento parcialmente em branco, os embargantes não podem ser impedidos de tentar provar, para os efeitos do art. 10 da LULL, que o acordo de preenchimento tem um conteúdo diferente do invocado pelo exequente portador da livrança (tanto mais que se a convenção de preenchimento tivesse sido entretanto completada, situação que seria mais grave para os embargantes, o art. 378 do CC lhes daria a hipótese de ilidirem o valor probatório dele), pelo que a questão não podia ser decidida no saneador-sentença sem produção de prova sobre tal matéria.
IV – Para além de que a convenção de preenchimento em causa levanta ou pode levantar (dependendo do que se provar) a questão da nulidade de tal acordo (art. 280/2 do CC), questão que é de conhecimento oficioso.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

O Banco-SA, requereu uma execução contra, entre outros, E e E1, com base numa livrança assinada por eles como avalistas do subscritor.
Estes executados deduziram embargos de oposição à execução, com o fim de que ela fosse extinta, entre o mais excepcionando (mas classificam a defesa como impugnação) o preenchimento abusivo da livrança [dizem: embora tivessem assinado [a] livrança fizeram-no em branco e para garantir valores diferentes daqueles que estão a ser reclamados (art. 2 da PI); os embargantes avalizaram a compra de imóvel pelo valor de por metade do valor do leasing [sic], aliás foi o que lhe foi dito na data da outorga da livrança [sic] (6); os embargantes pensaram estarem [a] avalizar contrato pelo valor de 25.000€ (7); acresce, também, que o contrato que foi junto aos autos possui espaços em branco preenchidos posteriormente sem que os embargantes tenham tomado conhecimento dos mesmo [sic], conforme se retira do doc. n° 1 que se junta e se dá como integralmente reproduzido (12); o título junto aos autos contem a assinatura dos interessados, mas foi assinado em branco, para garantir metade de um contrato de leasing de 50.000€ (19); o contrato leasing apenas está assinado pelo subscritor da livrança, não pelos embargantes (30)] e o desconhecimento do preenchimento da livrança.
O exequente contestou, impugnando, concluindo pela improcedência dos embargos.
Os embargos foram julgados improcedentes no saneador.
Os embargantes recorrem deste saneador-sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1 - Não entendem porque se encontram a ser penhorados nos seus bens.
2 - Pois nunca foram notificados pelo exequente a informar que se encontravam em débito rendas.
3 - Pois se o tivesse feito, os executados teriam assumido o pagamento das rendas e até poderia ter assumido a divida.
4 - Nunca lhes foi dado o direito de preferência legal, que era obrigatório.
5 - O que se passou foi que os executados foram penhorados pelo exequente.
6 - O exequente vendeu depois o mencionado imóvel desconhecendo-se o valor.
7 - Sendo que o devedor principal se encontra insolvente tem toda a importância [sic].
8 - A verdade é que os embargantes ficaram sem possibilidade de ficar com o imóvel mas acabam por pagá-lo duas vezes.
9 - Pois se tivessem tido sido avisados teriam a pagar algo para si [sic].
10 - O que não é o caso e grave [sic].
11 - Acresce que os embargantes assinaram a livrança em branco.
12 - A livrança não foi preenchida por eles e como tal não podem estar anos depois a pôr valores diferentes daqueles que se assumiu a divida [sic].
13 - Além de que, os embargantes pensaram e imaginaram que estavam a avalizar metade da divida do leasing.
14 - O que aliás foi informado pelo gerente do banco.
15 - Os embargantes sentem que existe uma apreciação errada dos factos pelo tribunal a quo, pelo que vêm pedir a apreciação dos factos e alterada a decisão recorrida [sic].
O exequente não contra-alegou.
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Questões a decidir: se a consideração de algum dos factos como provados ou não provados, feita pela decisão recorrida, deve ser alterada e se, em consequência – ou independentemente disso – deve ser alterada a decisão de direito, julgando-se procedente os embargos.
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Estão dados como provados os seguintes factos:
A. O exequente é dono, possuidor e legítimo portador da livrança n.º 000, subscrita por MSS e avalizada pelos embargantes, preenchida com os seguintes dizeres: local e data de emissão: 000 06/03/2009; importância: 36.856,12€; valor: titulação contrato leasing 0000; vencimento: 07/10/2013. 
B. Em 06/03/2009, os referidos exequente e subscritor celebraram o contrato de locação financeira imobiliário n.º 0000, pelo montante total de financiamento de 139.000€, pelo prazo de 15 anos.
C. No momento da celebração do contrato foi disponibilizada a quantia de 106.500€, sendo as verbas referentes a obras disponibilizadas durante a execução destas.
D. Com referência ao montante inicial disponibilizado, acordaram as partes o pagamento de 180 rendas, a primeira no valor de 31.560€ e as restantes no valor de 530,13€, acrescidas do valor de despesas com processamento e comissões de gestão do controlo.
E. O imóvel objecto do contrato foi adquirido pelo locador/exequente, que cedeu ao locatário/executado/subscritor em locação financeira, obrigando-se o locador a vender o mesmo ao locatário se, após o decurso do prazo contratual, o locatário exercer a opção de compra (artigo 1º das condições gerais).
F. A livrança referida em A foi entregue em branco ao Banco exequente para garantia do contrato referido em B.
G. Os embargantes assinaram convenção de preenchimento de livrança, por via do que declararam autorizar o preenchimento da livrança pelo exequente quanto ao lugar, tempo e forma de pagamento, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, nos termos que correspondam às responsabilidades não satisfeitas, não podendo o montante ser superior às responsabilidades do locatário perante o locador à data do vencimento.
H. Por cartas registadas com AR, datadas de 09/07/2013, remetidas pelo exequente aos embargantes, o Banco exequente comunicou que naquela data se encontravam por liquidar as rendas n.ºs 34, 36 a 53, juros de mora vencidos e outras despesas.
I. As cartas referidas em H, remetidas para a morada sita em SJ, foram devolvidas ao remetente.
J. As cartas referidas em H, remetidas para a morada sita em VR, foram recebidas pelo subscritor da livrança.
K. Por cartas registadas com a/r, datadas de 26/09/2013, remetidas pelo exequente aos embargantes, o Banco exequente comunicou a resolução do contrato de locação imobiliário por incumprimento, solicitou a entrega imediata do imóvel e o pagamento da quantia de 36.856,12€, referente a rendas vencidas no montante de 15.135,19€, referente a 20% de indemnização no valor de 21.121,25€, e referente a outras despesas no montante de 599,68€; mais comunicou o exequente que naquela data preencheu a livrança, com vencimento no prazo de 8 dias a contar da data de emissão da carta, com indicação do local de pagamento.
L. As cartas referidas em K, remetidas para a morada sita na SJ, foram devolvidas ao remetente.
M. O executado subscritor foi declarado insolvente por sentença proferida no processo 50/14.0TBSTR do extinto Tribunal Judicial da Sertã, na data de 27/01/2014.
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Da comunicação do incumprimento, da resolução do contrato e do preenchimento da livrança
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Os embargantes dizem que nunca foram notificados pelo exequente a informar que se encontravam em débito rendas.
Visto que não foi produzida prova sujeita à livre apreciação do juiz, trata-se de ver se, no processo, perante os documentos e a posição assumida pelas partes, há prova ou não da notificação aos pré-avalistas, pelo exequente, do incumprimento, da resolução e do preenchimento da livrança.
 A nível dos factos provados aquilo que existe está consignado de H a J e de K a M.
Sobre o assunto, o que consta (na fundamentação de direito) da decisão recorrida é o seguinte:
 Dos factos provados decorre que o exequente remeteu aos embargantes cartas de interpelação, quer a comunicar a situação de incumprimento, quer a comunicar a resolução do contrato e concomitantemente o preenchimento da livrança, com indicação dos todos os elementos necessários à eventual regularização. Mais, resulta dos factos provados que as cartas foram expedidas pela via postal registada com a/r, para a morada dos embargantes sita em SJ, as quais foram devolvidas ao remetente.
Cumpriu a exequente a obrigação de comunicação do incumprimento (indicando as rendas/prestações vencidas por referência à data da carta), assim como a obrigação de comunicação do preenchimento da livrança, com indicação da importância e data de vencimento. Por cada uma das cartas foi deixado um aviso na caixa de correio dos embargantes, dispondo estes de alguns dias para proceder ao levantamento das cartas registadas na estação de correios respectiva.
Conclui-se, assim, que têm-se as comunicações efectuadas pela exequente como eficazes, uma vez que só por culpa do destinatário (embargante), não foram as mesmas recebidas – artigo 224/2 do Código Civil.
Improcede, por conseguinte, a pretensão do embargante, nada obstando à execução das livranças dadas à execução.
Decidindo:
A fundamentação da decisão recorrida está errada: não há factos provados que permitam dizer que as cartas foram expedidas pela via postal registada com a/r, para a morada dos embargantes sita em SJ [são as cartas de I e L]: primeiro, porque nos factos provados não consta qual é a morada dos embargantes; segundo, porque na convenção de preenchimento da livrança, invocada pelo exequente, não constam as moradas dos embargantes; terceiro, porque a morada dos embargantes, de que se tem conhecimento nestes autos, tem indicações diferentes daquelas que constam das cartas de I e L, quer quanto ao n.º (lote e não n.º) quer quanto ao código postal; quarto, as cartas de I foram devolvidas ao remetente e não consta, quer do processo quer dos factos dados como provados aquilo que se diz na decisão, isto é, que, ‘por cada uma das cartas foi deixado um aviso na caixa de correio dos embargantes, dispondo estes de alguns dias para proceder ao levantamento das cartas registadas na estação de correios respectiva.”
Poderia dizer-se que as cartas de J foram recebidas. Mas foram-no pelo subscritor da livrança, não pelos embargantes. E a morada para onde foram enviadas não é, ao que se sabe neste processo, a morada dos embargantes (será a do subscritor da livrança). E no a/r o subscritor não se obrigou a entregar a carta aos embargantes (a questão é desenvolvida no ac. do TRL de 14/09/2017, proc. 818/15.0T8AGH-A). E não se sabe sequer qual a relação daquele com estes.
Assim, não há factos que permitam dizer que os embargantes foram notificados do incumprimento e da resolução do contrato, nem que permitam a aplicação das regras do art. 224 do CC.  
Por isso, ao contrário da decisão recorrida, considera-se que os embargantes não foram notificados, pelo exequente, do incumprimento do contrato pelo subscritor da livrança, nem da resolução do contrato, nem do preenchimento da livrança.
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Da consequência da falta de comunicação
Qual a consequência de não se poder dizer que os embargantes – pré-avalistas de uma livrança em branco - foram notificados do incumprimento, da resolução do contrato e do preenchimento da livrança?
No ac. do TRP de 16/06/2016, proc. 1187/06.4TBVNG-A, publicado em https://outrosacordaostrp.com, com referências à doutrina e jurisprudência, já se deixou dito que:
I. O credor tem o ónus de comunicar ao pré-avalista (avalista de uma livrança em branco) o vencimento da obrigação do subscritor da livrança, se quiser que a obrigação de garantia daquele cubra a totalidade do seu crédito.
II. Se o não fizer - e é ele que tem o ónus da provar que o fez - o avalista não responde pelos juros vencidos desde o vencimento da obrigação até ao momento em que foi citado para a execução.
A consequência é pois apenas esta.
A fundamentação é a que se segue, adaptada daquele acórdão:
A questão que se pode ver aqui levantada pelos embargantes é aquela que aflora no ac. do TRL de 20/01/2011 (1847/08.5TBBRR-A.L1-6), na parte do sumário deste que diz que “É […] necessária interpelação prévia do avalista quando […] o título [é] entregue em branco ao credor (para este lhe apor a data de pagamento e a quantia prometida pagar, em termos deixados ao seu critério), pois só assim o avalista tem conhecimento do montante exacto e da data em que se vence a garantia prestada.”
Aderindo a este acórdão, veja-se o ac. do TRL de 08/11/2012, 5930/10.9TCLRS-A.L1-6, que nada adianta de novo, pois que a única fundamentação é a dupla remissão para aquele acórdão. Para além disso, este acórdão entende que era o embargante que tinha de fazer a prova de não ter sido interpelado o avalista, o que está errado, pois que, por um lado, quem tem um dever é quem tem de provar que o cumpriu (art. 342/2 do CC), e, por outro, está a pôr, sem qualquer fundamento, a cargo do embargante a prova normalmente impossível de um facto negativo.
Já o ac. do TRP de 03/04/2014, 1033/10.4TBLSD-A.P2, fundamenta o dever “no princípio da boa fé e [n]o dever de actuação em conformidade com ele” (art. 762/2 do CC) que “impõem ao exequente a obrigação de informar aos avalistas dos títulos, simultaneamente partes no pacto de preenchimento, os montantes em dívida, as datas de vencimento e em que termos os títulos serão preenchidos em caso de não pagamento” mas isto apenas para tirar a conclusão de que, “na ausência de prazo no pacto de preenchimento”, “a falta de interpelação pelo credor/exequente, implica que a obrigação apenas se considera vencida com a citação”, pelo que “releva[] somente para efeitos de contagem dos juros moratórios.” Este acórdão diz que este entendimento apesar de ser minoritário começa a ser perfilhado por parte da jurisprudência e para o comprovar cita os dois acórdãos do TRL já referidos (embora não aceite a parte da fundamentação do último quanto ao ónus da prova).
Contra, o ac. do TRL de 10/02/2009, 9001/2008-1, diz que “as comunicações do tomador escritas ao subscritor e aos avalistas deste em como as livranças foram acabadas de preencher, indicando o montante, a data de vencimento, e informando que estão patentes para pagamento, são actuações de mera informação e cortesia, de relacionamento institucional entre banco e cliente e não correspondem a qualquer exigência da legislação cambiária.” Por outro lado, considera que, nestes casos, se está perante uma livrança à vista, o que não é correcto: uma livrança em branco, com um acordo de preenchimento, não é uma livrança apenas incompleta quanto à data [neste sentido, Evaristo Mendes, Aval prestado…, ponto 4: pelos acordos ou pactos de preenchimento sabe-se que o documento não pretende ser imediatamente pagável à vista (embora, tendo em conta o art. 76, pudesse aparecer como tal) e ac. do TRP de 21/02/2016, 175/14.1T8LOU-A.P1 (embora para a letra): IV. Uma letra em branco não é uma letra à vista.]
Antes de continuar, diga-se que esta questão, nos termos em que os embargantes a colocaram, não tem a ver com a da necessidade de apresentação da letra a pagamento ao subscritor da livrança (que é resolvida pelo art. 38 da LULL, por força do art. 77 da LULL), nem com a da necessidade de protesto por falta de pagamento para poder accionar o avalista (que tem sido resolvida maioritariamente, com recurso ao disposto nos arts. 32 e 53 da LULL, por força do art. 77 da LULL, contra parte da doutrina, sem prejuízo desta parte aceitar que em dados casos, como o dos sócios, partes no acordo de preenchimento do título, que avalizam livranças em branco subscritas pelas sociedades, a garantia funciona independentemente de protesto: Evaristo Mendes. http://www.evaristomendes.eu/ficheiros/Evaristo_Mendes_Aval_e_protesto_Revisitaco.htm ponto 5).
Com efeito, os embargantes não dizem que a livrança não foi apresentada a pagamento nem dizem que não foi feito o protesto por falta de pagamento. O que dizem é que não lhes foi comunicado, as eles, pré-avalistas, que a livrança ia ser preenchida, nem, depois, que ela foi preenchida.
 Trata-se, assim, de saber se o portador de uma livrança em branco tem de comunicar, àquele que subscreveu um aval numa livrança em branco, que ele, portador da livrança, a vai completar ou preencher, ou que a completou.          
Do aval e do pré-aval
Entretanto note-se que, depois de todas as anotações doutrinárias que foram feitas ao ac. do STJ de 11/12/2012, AUJ 4/2003, é hoje muito claro que são situações muito diferentes aquela que resulta da aposição de um aval a uma livrança já completamente preenchida, em que o avalista sabe por qual quantia é que está a dar o aval e a data do vencimento da livrança, e aquela que resulta da aposição de uma assinatura para aval numa livrança ainda por preencher quanto à quantia e à data de vencimento.
Na primeira situação há uma livrança e um aval e o avalista sabe por quanto é que está obrigado e quando é que a livrança se vencerá. Na segunda há um documento que se destina a ser uma livrança, ou uma livrança em branco que ainda não vale como livrança (não produzirá efeito como livrança, diz o art. 76 da LULL), e um pré-aval, não sabendo o avalista se e por quanto responde nem quando se vencerá a obrigação, para além de correr o risco de o documento para livrança vir a ser preenchido contrariamente aos acordos realizados (art. 10 da LULL).
Neste sentido, Carolina Cunha, Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência, DSR 9, Março de 2013, págs. 91 a 114, que se baseia na posição que pouco tempo antes tinha assumido na tese de doutoramento, Letras e Livranças. Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, 2012, Filipe Cassiano dos Santos, Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao AUJ do STJ de 11/12/2012, RLJ 142, Maio/Junho de 2013, e Januário Gomes, O (in)sustentável peso do aval em branco prestado por sócio para garantia de crédito bancário revolving – AUJ 4/2013, proc. 5903/09», CDP 43, Agosto de 2013, e Evaristo Mendes, Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas, e perda da qualidade de sócio, http://www.evaristomendes.eu/ficheiros/Evaristo_Mendes_Aval_prestado_por_socios_de_SQ_Apontamento_(final)eu.htm, e, por último, Sara Aleixo, O aval cambiário dos sócios em títulos em branco. A paradoxa solução do AUJ n.º 4/2013, RDS, 2016/3, pág. 611-641, todos com inúmeras referências doutrinárias no mesmo sentido, entre elas aos professores Oliveira Ascensão e Pinto Coelho.
Nos termos do Prof. Evaristo Mendes, por último, veja-se:
[4] A subscrição-emissão pela sociedade de uma livrança em branco – isto é, sem algum dos requisitos essenciais indicados no artigo 75 da LULL, designadamente o montante da promessa de pagamento - a favor de um seu financiador não cria imediatamente um título cambiário, sujeito ao regime geral desta Lei (art. 76) e, em especial, independente, desprendido quer da relação subjacente quer do pacto de preenchimento a que alude o artigo 10 da LULL. Na verdade, o título – enquanto título de crédito, com as caracterís- ticas que a Lei lhe confere - apenas existirá se e quando apresentar os requisitos essenciais do artigo 75: designadamente, quando dele constar uma promessa de pagar perfeitamente identificada, com a indicação do valor devido, o tempo e o lugar do pagamento, etc. Até lá, temos meros documentos de livrança com pactos de preen-chimento, susceptíveis de serem legitimamente transformados pelo seu portador em verdadeiras livranças ao abrigo de tais pactos, se se verificarem os pressupostos neles contidos.
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Isto posto,
Do conteúdo da obrigação do pré-avalista e do ónus de lhe ser dado conhecimento do vencimento da obrigação
Se a obrigação do subscritor da livrança em branco é uma obrigação que não é de termo certo (como é o caso dos autos), aquele que pré-avaliza a livrança não pode saber em que data é que ela se vencerá porque está dependente de um acontecimento a que é estranho. Para que a possa pagar no momento do vencimento, sem incorrer no agravamento da dívida, tem que saber a data em que ela se vence. Pelo que se justifica que se ponha a cargo do credor o ónus de se lhe dar conhecimento dessa data. Note-se que não se trata de exigir a interpelação do pré-avalista, mas sim de lhe dar conhecimento do vencimento da livrança que já ocorreu e operou os seus efeitos na esfera do subscritor, abrindo caminho para o seu reflexo, por relação (a determinação dita per relationem), no âmbito da obrigação daquele que, com o preenchimento da letra, passa então a ser avalista (parafraseou-se, adaptando, a lição do Professor Januário Gomes, Assunção fidejussória de dívida, Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Almedina, 2000, nºs. 139 e 140, págs. 941 a 951, e conclusões 235 a 237).
Trata-se, assim, de exigir ao credor que dê conhecimento ao pré--avalista do vencimento da obrigação do subscritor, sob pena de este ser ineficaz quanto ao avalista e de por isso não lhe poder exigir a cobertura da garantia para todo o crédito.
Continuando a parafrasear Januário Gomes, diga-se que ao assinar o aval na livrança em branco quanto ao vencimento, o pré-avalista aceita, ex-ante, poder ter de cumprir, na data do vencimento, a prestação que, então, for devida e, a partir, daí, as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (art. 32/I da LULL). A assunção do risco tem esse limite. Assim sendo, se não for informado pelo credor do vencimento da obrigação, isto é, se não for colocado em condições de poder cumprir nos mesmos termos em que o pode fazer o subscritor, daí não poderá resultar um aumento do risco do pré-avalista. Ou seja: o pré-avalista, quando for, mais tarde, intimado para cumprir, não estará vinculado a mais do que aquilo que estaria se fosse esse o momento do vencimento da obrigação.
É este o regime que Januário Gomes explica para a fiança, apesar de, por força do art. 634 do CC, também aí se poder dizer que o credor não tem de dar conhecimento ao fiador do vencimento da obrigação para que o fiador responda também pela mora. Daí que Antunes Varela e Pires de Lima digam que não é necessário a interpelação do fiador. Só que, como lembra Januário Gomes isso só pode ser assim em relação às obrigações de termo certo, não em relação às outras.
Ora, o regime deve ser o mesmo para o pré-aval de uma obrigação que não tem termo certo conhecido, pois que a obrigação do pré-avalista é também uma obrigação que se vai medir pela do outro obrigado. Nesta parte não há diferenças entre o pré-avalista e o fiador de uma fiança de uma obrigação sem termo certo.
A consequência da não observância desse ónus, pelo credor, é a de ele não poder fazer responder o avalista pelo agravamento da dívida a partir do vencimento dela. É como se o vencimento da obrigação só tivesse ocorrido, do ponto de vista do avalista, a partir da citação para a execução, se esse tiver sido o primeiro momento em que teve conhecimento do vencimento da obrigação do subscritor.
Em suma: o tomador da livrança em branco não tem o dever de informar o pré-avalista de que vai preencher a letra mas, se quiser que o avalista cubra o crédito total representado pela livrança preenchida, tem o ónus de lhe comunicar o preenchimento da livrança com o consequente vencimento da obrigação e daí que também não se possa falar de uma actuação de cortesia.
Como no caso o exequente não deu essa informação (e é ele que tinha de provar esse facto), é como se a livrança, para os embargantes, só se tivesse vencido aquando da citação que lhes foi feita para a execução, pelo que só a partir de então é que a quantia nela inscrita passa a vencer juros quanto a si.
Note-se que tudo isto seria diferente se alguma coisa a este respeito tivesse sido expressamente acordada, ao abrigo da liberdade contratual (art. 405 do CC) entre as partes do pacto de preenchimento.
Isto tem como consequência que os embargantes só devem responder pelo valor da livrança (se ficar decidido que devem responder por ela), com juros só a partir da sua citação para a execução.
No mesmo sentido, vejam-se, ainda os acórdãos do TRL, de 20/12/2016, proc. 5528/11.4YYLSB-A.L1-7, do TRG de 04/04/2017, proc. 31/14.3TBCMN-A.G1; do TRL de 14/09/2017, proc. 818/15.0T8AGH-A; contra, considerando irrelevante tudo o que antecede, veja-se, no entanto, o ac. do TRE de 23/03/2017, proc. 779/14.2TBEVR-A.E1, confirmado pelo ac. do STJ de 28/09/2017, proc. 779/14.2TBEVR-B.E1.S1.
Note-se que, não se concordando com estes dois últimos acórdãos, eles servem para chamar a atenção para o que já resulta da posição assumida acima: a falta de conhecimento do incumprimento, da resolução e do preenchimento da livrança só tem efeito sobre os juros devidos a partir do preenchimento da livrança até ao momento em que os avalistas são citados para a execução, não para os juros incluídos no valor em dívida inscrito na livrança, o que, por outro lado, revela o muito pouco relevo prático da questão, já que normalmente a citação para a execução ocorre pouco depois do preenchimento da livrança.
                                                       *
                                                      II  
Os avalistas, no seu recurso, invocam a penhora do prédio objecto do contrato de locação financeira, implicitamente a venda dele na execução, e a falta de preferência legal na venda.
Nada disto tem razão de ser, como explicou a decisão recorrida, já que o imóvel foi comprado pelo exequente, pelo que é (ou era) ele o seu dono; não faz sentido, por isso, que tenha havido venda dele na execução e não há preferência nenhuma a ter em conta (o que haveria, no decurso do contrato – em que não são partes os avalistas – era a opção de compra pelo locatário).
                                               III
O alegado na parte anterior poderia ainda ter a ver com a necessidade de ter em conta o valor obtido com a venda para o descontar na quantia exequenda. De novo sem qualquer razão, pois o imóvel é do exequente e não do subscritor da livrança, pelo que, a ter havido alguma venda, o valor dela é irrelevante para a obrigação em dívida.
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                                                     IV
Violação dos acordos de preenchimento
Os avalistas dizem que a livrança em branco não foi preenchida conforme o acordado.
O acordo de preenchimento que invocam tem um conteúdo diferente daquele que aparece por escrito (alegam vários factos, na petição, que têm a ver com isso)
Esse acordo de preenchimento, diziam eles na petição de embargo, constava de um escrito com espaços em branco, preenchidos posteriormente sem o seu conhecimento.
Também juntaram – na petição de embargos - um documento para prova disso.
O saneador sentença diz (nesta parte e em síntese) que:
“Constituindo a invocada violação do acordo de preenchimento uma excepção peremptória, cabe ao embargante a alegação e prova dos respectivos factos, de acordo com o que dispõe o artigo 342 do Código Civil.
Dos factos provados não resulta que tenha ocorrido violação do acordo de preenchimento da livrança dada à execução.”
Decidindo:
O documento que deu origem ao facto provado sob G – fl. 15 do processo em papel = doc. 1 da oposição no processo electrónico - é, evidentemente, um documento enviado pela exequente depois do preenchimento do contrato, já que a livrança está já completamente preenchida. Disto parece decorrer, também, que tal documento é uma montagem fotocopiada da convenção de preenchimento com a livrança [não se diga que tal comprova, por outro lado, que afinal os embargantes receberam as cartas do exequente, o que tem a ver com a outra questão decidida acima – e não comprova porque, estando já a livrança completamente preenchida, ela só tinha que ver com as cartas referidas em K e estas, como resulta de L, foram devolvidas ao remetente].
A convenção de preenchimento – que não consta do contrato de locação financeira - ocupa cerca de 2/3 da tal montagem, está em branco na parte que deveria identificar o primeiro (locatário) e os segundos outorgantes (avalistas) e o contrato de locação financeira a que diz respeito, não tendo qualquer referência concreta a qualquer contrato ou valores em causa. Ou seja, não só a livrança foi assinada em branco, como a própria convenção de preenchimento invocada também foi assinada parcialmente em branco.
Assim, a mesma não tem valor probatório suficiente para provar que os embargantes, ao assinaram a convenção de preenchimento estavam a dar o seu acordo para que a livrança fosse preenchida nos termos de um concreto contrato de locação financeira, que, com base apenas na convenção de preenchimento, nem sequer se poderia saber qual fosse e, por isso, quais os valores que poderiam estar em causa.
O que, para além do mais que se dirá a seguir, levanta a questão da indeterminabilidade da vinculação dos embargantes e por isso da nulidade do acordo (arts. 280/2 do CC, com possíveis leituras divergentes: por violação dos bons costumes, devido à indeterminabilidade do valor e da duração da vinculação da embargante (veja-se, por exemplo, Carolina Cunha, Manual de letras e livranças, 2016, Almedina, págs. 195 a 199, e Jorge Morais Carvalho, Os limites à liberdade contratual, Almedina, 2016, págs. 53 a 62), ou por violação da ordem pública, tendo em conta os princípios fundamentais da nossa ordem jurídica: o princípio geral de liberdade e a dignidade da pessoa humana (Jorge Morais Carvalho, ob. cit. págs. 63-64 e 75 a 102), questão que é de conhecimento oficioso.
Mesmo que se possa imaginar que a livrança estava “incorporada” na convenção de preenchimento – o que não é nada certo, já que ela ocupa o outro 1/3 da montagem, sendo que a expressão ‘continua no verso’ está entre a convenção e a livrança -, há que não esquecer que a mesma era uma livrança em branco, de onde apenas constaria a referência ao contrato mas não constavam os valores do contrato, nem obviamente os valores em dívida.
Assim, há duas hipóteses: ou a convenção de preenchimento é só os 2/3 do documento 1 e, só por si, tem muito pouco qualquer valor (por falta de identificação do contrato), ou a convenção de preenchimento de algum modo incorpora a livrança que é o restante 1/3 do documento 1 e já é possível que ela tenha mais algum valor, pois que a livrança identifica o contrato, o que, de qualquer modo, teria que ser esclarecido com produção de prova.
Em qualquer destas duas hipóteses, não existe, para já, prova suficiente da convenção de preenchimento, mas não é impossível que se venha a provar que o acordo de preenchimento teve em mente o contrato de locação financeira e os valores que neste estavam em causa.
Mas, sendo assim, também os embargantes podem ainda conseguir provar os factos por eles alegados na petição inicial relativos ao conteúdo do acordo de preenchimento.
Vistas as coisas de outra perspectiva a questão fica ainda mais clara:
Ao contrário do que os embargantes sugerem, a convenção de preenchimento nem sequer chegou a ser preenchida nos espaços em branco. Eles sugerem ter havido preenchimento desconforme provavelmente porque têm em conta o facto de a livrança aparecer já totalmente preenchida naquela fotocópia conjunta com a convenção de preenchimento; a verdade, no entanto, é que a convenção de preenchimento continua com todos os espaços em branco.
Mas se os espaços em branco da convenção de preenchimento tivessem sido preenchidos, a situação dos autos já não diria respeito apenas a uma livrança em branco, mas também a uma convenção de preenchimento parcialmente em branco que teria sido completada depois de assinada e, segundo os embargantes, em desconformidade com o acordado.
O regime a aplicar, por isso, não seria só o do art. 10 da LULL mas também o do art. 378 do Código Civil, sendo que este artigo, na parte que importa ao caso, dá ao signatário do documento assinado parcialmente em branco, o poder de ilidir o seu valor probatório, mostrando que nele se inseriram declarações divergentes do ajustado com ele.
Ou seja, mesmo nesta hipótese, mais grave para os embargantes – uma convenção de preenchimento já totalmente completada depois de assinada - tal não afastaria a possibilidade – que lhes seria dada pelo art. 378 do CC – de viram a provar, apesar disso, que aquilo que lhes foi dito apontava para a sua vinculação por valores diferentes, tanto mais que o avalista pode apenas garantir o pagamento parcial de uma livrança (arts. 30/I e 77 da LULL). E os arts. 393 e 394 do CC não seriam impedimento à prova de tal com base em testemunhas.
Assim, conclui-se que a questão levantada pelos embargantes de a livrança em branco ter sido completada contrariamente aos acordos realizados (art. 10 da LULL) não pode ser resolvida sem produção de prova sobre os factos alegados pelos embargantes (que também têm a ver com o acordo de preenchimento assinado parcialmente em branco – art. 378 do CC).
Pelo que impõe-se a revogação do saneador-sentença, a fim de que o processo possa prosseguir para posterior produção de prova sobre a matéria em causa (arts. 662/2-c, parte final, e 596/1, ambos do CPC).
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, decidindo-se revogar o saneador sentença, na parte em que julgou improcedente os embargos no que se refere ao preenchimento abusivo e à falta de comunicação aos embargantes, e
- determina-se que o processo prossiga para posterior produção de prova sobre os factos alegados pelos embargantes relativamente ao preenchimento abusivo, sem prejuízo de outras questões de conhecimento oficioso que se venham a revelar;
- decidindo-se desde já que, na hipótese de os embargos virem a ser julgados improcedentes quanto ao resto, a execução, quanto aos embargantes, não pode abranger os juros de mora que se tiverem vencido desde a data que consta como sendo de vencimento da livrança até à data em que eles foram citados para a execução.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte dos embargantes, pelo exequente em 50%.

Lisboa, 28/06/2018

Pedro Martins
Arlindo Crua
António Moreira