Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
25544/15.6T8SNT.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ALIMENTOS
UNIÃO DE FACTO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: É da competência da secção cível e não das secções de família e menores a apreciação da ação deduzida contra o pai não unido pelo matrimónio à mãe do filho, na qual a mãe reclama os alimentos e as indemnizações previstas no art.º 1848.º do Código Civil.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 02.11.2015 Alexandra, divorciada, intentou na Instância Central Cível do Tribunal de Comarca de Lisboa ação declarativa de condenação contra Luis, solteiro.

A A. alegou que em 15.9.2001 nasceu Leonor, fruto do relacionamento da A. com o R.. O relacionamento entre a A. e o R. terminou em janeiro de 2001, quando a A. informou o R. de que estava grávida da Leonor. O R. recusou-se a assumir a paternidade da criança, tendo sido instaurada ação de investigação oficiosa de paternidade, que só em 07.5.2013 culminou com sentença que reconheceu a paternidade da menor em relação ao R., sentença essa confirmada pela Relação de Lisboa em 09.7.2014. O R. nunca quis saber da filha nem da A., não lhes dando qualquer apoio, nomeadamente do ponto de vista económico, apesar de dele carecerem. A A. tem direito a alimentos nos termos do art.º 1884.º do Código Civil, relativos ao período de gravidez e ao primeiro ano de vida da sua filha, e bem assim indemnização por danos não patrimoniais.

A A. terminou pedindo a condenação do R. a pagar à A.:

a)A quantia de 8.280,00 Euros, correspondente a € 920,00, mensais x 9, a título de alimentos referentes aos nove meses de gravidez da filha Leonor;
b)A quantia de 11.040,00 Euros, correspondente a € 920,00 mensais x 12, a título de alimentos da menor Leonor relativos ao seu primeiro ano de vida;
c)A quantia de 3.500,00, Euros, relativa às despesas com a gravidez e o parto da filha;
d)A indemnização de 100.000,00 Euros, pelos danos morais decorrentes do abandono a que a autora se viu votada na gravidez e após o nascimento da filha;
e)Acrescido de juros de mora, à taxa legal supletiva, contados desde a data da citação do R. para contestação até integral pagamento.

O R. contestou arguindo, além do mais, a litispendência da ação com ação de regulação das responsabilidades parentais proposta pela A. no Tribunal da Comarca de Lisboa, Instância Central de Lisboa, 1.ª Secção de Família e Menores, e bem assim a incompetência do tribunal quanto à matéria, por entender que a competência para julgar o presente litígio cabia às secções de família e menores.

A convite do tribunal, a A. respondeu às aludidas exceções, pugnando pela sua improcedência.

Em 09.6.2016 foi proferido despacho em que se julgou o tribunal incompetente quanto à matéria para julgar o litígio, e consequentemente se absolveu o R. da instância.

A A. apelou deste despacho, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
A.Advém o presente Recurso da Sentença de 09/06/2016 que decidiu julgar “verificada a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria da Secção Cível da Instância Central do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, em consequência do que absolvo o réu da instância.”

B.Decisão contra a qual se insurge a A. com fundamento na violação das regras de competência em razão da matérias aplicáveis ao caso, a saber os arts.º 64.º do CPC, 40º e 117.º da LOFTJ.

C.Resulta dos Autos a seguinte factualidade:
a)Da relação havida entre A. e R. nasceu a menor Leonor, em 15 de Setembro de 2001, residente com a Mãe.
b)A e R. iniciaram um relacionamento em Setembro de 1998, que cessou em Janeiro de 2001 no momento em que a ora A. deu conhecimento ao R. que se encontrava grávida, tendo o R. recusado assumir a paternidade da menor.
c)Em 17/06/2002 foi proposta pelo Ministério Público Acção Declarativa Ordinária de Investigação Oficiosa da Paternidade, em representação da menor Leonor contra o aqui R., que correram termos no Tribunal da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste –Sintra-Juízo Grande Instancia Cível – 1.ª Secção – Juiz 3, Proc. n.º 10709/09.8T2SNT.
d)Em 07/05/2013 foi proferida Sentença que julgou totalmente procedente a Acção interposta e reconheceu judicialmente a paternalidade do R. relativamente à menor Leonor, Sentença confirmada em 09/07/2014 por este Tribunal da Relação de Lisboa.
e)Na Conferência de Pais que teve lugar em 15 de Setembro de 2015 foi entre os progenitores acordado o Exercício das Responsabilidades Parentais e a fixação da residência relativamente à menor Leonor, Acordo esse definitivo e homologado por Sentença, tendo os Autos prosseguido apenas para fixação do valor a prestar pelo R. a titulo de Alimentos para a filha;

D.A A. e ora Recorrente intentou a presente Acção em 11/11/2015, com fundamento no art.º 1884º do CC, peticionando, em suma, a condenação do R. no pagamento de alimentos referentes aos nove meses de gravidez da filha Leonor e ao primeiro ano de vida da filha, das despesas com a gravidez e o parto, mais uma indemnização pelos danos morais decorrentes do abandono a que a Autora se viu votada na gravidez e após o nascimento da filha, acrescidos dos juros legais;

E.Dispõe o art. 1884º do Cód. Civil, sob a epígrafe “Alimentos à Mãe”:
“1-O pai não unido pelo matrimónio à mãe do filho é obrigado, desde a data do estabelecimento da paternidade, a prestar-lhe alimentos relativos ao período de gravidez e ao primeiro ano de vida do filho, sem prejuízo das indemnizações a que por lei ela tenha direito.
2-A mãe pode pedir os alimentos na acção de investigação de paternidade e tem direito a alimentos provisórios se a acção foi proposta antes de decorrido o prazo a que se refere o número anterior, desde que o tribunal considere provável o reconhecimento.”

F.No caso concreto, levanta-se a questão de saber se a competência material para a apreciação da presente Acção pertence ao Tribunal comum ou à Secção de Família e Menores.
G.A solução deste Recurso passa pela interpretação do disposto nos arts.º 122º e 123.º da Lei nº 62/2013 de 26/08, em conjugação com os citados arts.º 64º do CPC, 40º e 117.º da LOFTJ.
H.“São da competência dos Tribunais Judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” – art. 64º do C.P.C e art.º 40º da LOFTJ - A competência dos Tribunais comuns constitui a regra e a competência dos Tribunais especiais constitui a excepção, pelo que a competência concreta do Tribunal comum em razão da matéria determina-se por exclusão.
I.Nos termos do art. 117.º da LOFTJ aqui aplicável, compete à secção cível da instância central, as Acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000, como é o presente caso. Logo, a competência destes Tribunais é residual, pelo que há que começar por ver qual a competência específica atribuída ao Tribunal de Família e Menores que consta do disposto nos arts. 122º a 124º da mesma LOFTJ.
J.O disposto nos arts. 123º e 124º tratam, respectivamente, de competência relativamente a menores e filhos maiores – em cujas alíneas não cabe a presente Acção - e a competência em matéria tutelar educativa e a competência em matéria tutelar educativa e de protecção que também óbvia e claramente não está aqui em causa.
K.A Sentença recorrida, fazendo uma interpretação abrangente destes preceitos, entendeu que a competência para conhecer da presente Acção pertence ao Tribunal de Família e Menores, por estar integrada nos artigos 122.º, n.º 1, al. f) e 123.º, n.º 1, alíneas e) e l) da LOFTJ, o que não se aceita, atento o teor dos referidos preceitos;
L.Uma vez que os presentes Autos não são enquadráveis nas situações supra descritas, uma vez que A. e R. não são nem nunca foram casados entre si, donde a aplicabilidade ao caso do art.º 1884.º do CC e também porque não estão em causa os Alimentos à filha mas sim à Mãe e tão só a esta.
M.Nem todas as Acções que versam sobre o Direito da Família foram cometidas aos Tribunais de Família e menores – agora Secções de Família e Menores – como sejam as Acções relativas a Alimentos referidas no art.º 2009.º do C.C., e que não estão expressamente previstas nos aludidos arts.º 122º e 123º da LOFTJ – como é o caso sub judice.
N.Deste modo, se o legislador pretendesse romper com esta longa tradição já sedimentada, estendendo a competência daquele Tribunal de competência especializada a um tipo de Acções de verificação frequente nos Tribunais, não teria deixado de o fazer de forma mais clara ou expressa no texto da Lei, fazendo apenas a menção a “Acções e Execuções por Alimentos”, sem qualquer referência ao obrigado em questão, o que não se verificou.
O.É certo que, como se contém na Sentença em Recurso, ao pedido de fixação de Alimentos a filho menor ou maior nos termos do art.º 1880.º do CC, e bem assim a cônjuge ou ex-cônjuge, é competente para conhecer da Acção o Tribunal de Família e Menores, o que não é o presente caso.
P.Todas as demais Acções de Alimentos pelas quais se pretenda a fixação de Alimentos – por descendentes, irmãos, tios e padrastos - art.º 2009.º CC – caberão aos Tribunais de natureza civil residualmente competentes, seguindo a forma, sumária ou ordinária, consoante o valor, como é o presente caso.
Q.Ao pedido de Alimentos peticionado pela A. acresce também o pedido de condenação do R. ao pagamento da indemnização prevista no referido art.º1884º, pelo que em causa neste Autos não está apenas e tão só um pedido de Alimentos.
R.Pelo que, pedindo-se na presente Acção a fixação de Alimentos despesas e indemnização, com fundamento no art.º 1884º do CC, encontramo-nos fora do âmbito da Acção prevista nos referidos arts.º 122º e 123º da LOFTJ,
S.Encontrando-se assim excluída a competência do Tribunal de Família e Menores, competência que recairá sobre os Tribunais comuns, à semelhança das demais Acções de Alimentos previstas no art.º 2009º CC, deverá ser fixada a competência em razão da matéria para conhecer da presente Acção do Tribunal Cível demandado.

A apelante terminou pedindo que fosse concedido provimento ao recurso e revogada a sentença recorrida, com as legais consequências.

Não houve contra-alegações, tendo tão só o recorrido alegado que o recurso era extemporâneo, por se mostrar excedido o prazo legal de 15 dias.

O recurso foi admitido, tendo sido julgado tempestivo, o que efetivamente é, uma vez que, incidindo sobre decisão que pôs fim ao processo, não lhe é aplicável o disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 645.º do CPC, mas sim o n.º 1 do mesmo artigo, conjugado com o art.º 638.º n.º 1 do CPC – ou seja, a apelante dispunha de 30 dias para recorrer.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO.

A questão a apreciar neste recurso é se o litígio objeto destes autos é da competência das secções de família e menores e não do tribunal onde a ação fora proposta, secção cível da instância central.

O factualismo a levar em consideração é o supra exposto no Relatório.

O Direito.

O exercício da função jurisdicional é repartido por diversos órgãos jurisdicionais, atendendo a diversos critérios entre os quais avulta o da matéria a que respeitam as respetivas causas.

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.º 211.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e art.º 40.º n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – LOSJ; cfr. também o art.º 64.º do CPC).

A instituição de diversos tribunais e a demarcação da respetiva competência de acordo com a natureza da relação substancial pleiteada visa a fruição das vantagens inerentes à especialização, que são a maior celeridade e a maior adequação das decisões aí proferidas, por força da particular experiência e preparação dos respetivos magistrados e, quiçá, dos seus funcionários.

Assim, a Constituição da República Portuguesa prevê que “na primeira instância pode haver (…) tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas” (art.º 211.º n.º 2) e que “os tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça podem funcionar em secções especializadas” (n.º 4 do art.º 211.º). Tal possibilidade é reafirmada, como princípio geral, na LOSJ, no art.º 80.º (cfr. igualmente o art.º 65.º do CPC) e explicitada nos artigos 81.º e 83.º, 111.º e seguintes (tribunais de competência territorial alargada, tribunais de instância central e tribunais de instância local) através da enunciação dos tribunais de competência especializada que poderão existir e da definição da respetiva área de competência. Os litígios que não couberem no âmbito da competência de nenhum outro tribunal serão preparados e julgados pelos tribunais de comarca (art.º 80.º n.º 1) e, dentro dos tribunais de comarca, caberá às secções de competência genérica da instância local preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência alargada (alínea a) do n.º 1 do art.º 130.º). Havendo que levar em consideração que compete à secção cível da instância central, além do mais, a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000,00 (n.º 1 do art.º 117.º da LOSJ).

A presente ação assenta no disposto no art.º 1884.º do Código Civil.

Trata-se de artigo integrado no Livro IV (Direito da Família), Título III (Da filiação), Capítulo II (Efeitos da filiação), Secção II (Responsabilidades parentais), Subsecção I (Princípios gerais) daquele Código.

Sob a epígrafe “Alimentos à mãe”, o seu teor é o seguinte:
1.O pai não unido pelo matrimónio à mãe do filho é obrigado, desde a data do estabelecimento de paternidade, a prestar-lhe alimentos relativos ao período da gravidez e ao primeiro ano de vida do filho, sem prejuízo das indemnizações a que por lei ela tenha direito.
2.A mãe pode pedir os alimentos na acção de investigação de paternidade e tem direito a alimentos provisórios se a acção foi proposta antes de decorrido o prazo a que se refere o número anterior, desde que o tribunal considere provável o reconhecimento.”

Conforme informam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, volume V, Coimbra Editora, 1995, página 346), a origem deste preceito está na chamada Lei de protecção dos filhos, incluída no capítulo V do Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro de 1910, capítulo esse que tratava “dos alimentos e socorros às mães dos filhos ilegítimos” e em que se prescrevia, no art.º 47.º, que “o pai tem obrigação de prestar alimentos à mulher pobre de quem houve um filho ilegítimo, e para este efeito pode ser por ela demandado a partir do momento em que lhe é lícito propor a acção referida no artigo 38.º, seguindo-se os termos gerais do processo sobre alimentos provisórios e definitivos, e aplicando-se aos provisórios o disposto no § único do artigo 44.º”. Na disposição subsequente permitia-se à mulher (pobre e mãe ilegítima) cumular com o pedido de alimentos a indemnização de todas as despesas com a gravidez e o parto e dos restantes prejuízos causados pelos mesmos factos.

O Código de 1966 repescou as soluções do diploma de 1910, consagrando-as então no art.º 1907.º, na secção consagrada ao poder paternal e, dentro dessa mesma secção, na subsecção que regulava o “poder paternal em relação aos filhos ilegítimos”. Pires de Lima e Antunes Varela encontram na solução assim consagrada no Código Civil, sob a égide do poder paternal, a doutrina estabelecida no Código francês, cujo artigo 342.º concede ao filho natural (ou ilegítimo) que como tal não tenha sido legalmente reconhecido o direito de exigir alimentos da pessoa que comprovadamente teve relações com a sua mãe, durante o período legal da sua conceção. Para P. de Lima e A. Varela, ambos os regimes (francês e português) têm uma dupla característica: por um lado, ambos visam prover ao sustento de crianças concebidas fora do casamento; por outro lado, ambos têm “um indisfarçado sabor sancionatório contra a conduta do progenitor (natural), assim se explicando, cá como lá, a extrema facilidade com que a obrigação alimentícia aparece associada, num e noutro caso, às restantes obrigações de indemnização que recaem sobre o mesmo progenitor, seja com base no direito civil, seja com fundamento no direito penal.”

Com as alterações introduzidas no Código Civil pelo Dec.-Lei n.º 496/77, de 25.11, o artigo 1907.º passou a constituir o art.º 1884.º, supra transcrito.

Conforme notam P. de Lima e A. Varela, “o artigo 1907.º, que manteve no Código de 1966 o direito especial de alimentos a favor da mãe ilegítima, integrou justificadamente esse direito no instituto do poder paternal, mas em obediência à dicotomia clássica da época (filiação legítima, para um lado; filiação ilegítima para o outro), não deixou de implantá-lo na subsecção II que tratava do poder paternal em relação aos filhos ilegítimos” (obra citada, pág. 348).

A atual disposição, desaparecida a destrinça entre filhos legítimos e ilegítimos, “manteve esse direito a alimentos no feudo do poder paternal, atento ao seu pressuposto fundamental, mas enquadrou-o antes na subsecção que fixa os princípios gerais aplicáveis ao instituto” (obra citada, pág. 348).

Posto isto, vejamos em que termos o legislador define o âmbito da competência das secções de família e de menores.

Esta está distribuída pelos artigos 122.º, 123.º e 124.º da LOSJ.

Estes artigos têm como antecedentes, reproduzindo-os, os artigos 114.º, 115.º e 116.º da Lei n.º 52/2008, de 28.8, que aprovou a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, introduzindo a título experimental um regime de organização dos tribunais que vigorou num certo espaço territorial, até à entrada em vigor da LOSJ.

Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 187/X, que deu origem à LOFTJ 2008, no que concerne à competência material dos diversos tribunais refere-se, como sendo uma das linhas de orientação do diploma, “apostar no reforço da justiça especializada no tratamento de matérias específicas, como sejam, família e menores, comércio, trabalho, níveis diferenciados de criminalidade.” No Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (DAR II série A n.º 91/X/3, de 03.5.2008), a respeito dos juízos de família e menores escreveu-se “de referir que se atribui aos juízos de família e menores a competência para preparar e julgar processos de jurisdição voluntária relativos a situação de união de facto ou economia comum – cfr. art.º 113.º alínea b) – e acções de investigação da maternidade e paternidade – cfr. art.º 114.º, n.º 1,alínea l), competências que não se encontram actualmente acometidas aos Tribunais de Família e Menores.”

Pondo de lado o art.º 124.º, atinente à competência em matéria tutelar educativa e de proteção, manifestamente inaplicável ao caso sub judice, analisemos os dois outros artigos.

O art.º 122.º, sob a epígrafe “competência relativa ao estado civil das pessoas e família”, tem a seguinte redação:

1-Compete às secções de família e menores preparar e julgar:
a)Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b)Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c)Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d)Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e)Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;
f)Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g)Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.
2-As secções de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.

Ora, a presente ação não constitui processo de jurisdição voluntária relativo a cônjuges (alínea a) – vide artigos 990.º a 992.º do CPC, que provêm às controvérsias sobre a atribuição da casa de morada de família, à fixação ou alteração da residência da família e à contribuição do cônjuge para as despesas domésticas) ou a situações de união de facto ou de economia comum (alínea b)). Não é uma ação de separação de pessoas e bens nem de divórcio (al. c)); não é uma ação de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil (al. d)); não é uma ação intentada com base no art.º 1647.º (efeitos do casamento declarado nulo ou anulado) ou no n.º 2 do art.º 1648.º do Código Civil (conhecimento judicial da boa fé no casamento putativo) – alínea e); não é uma ação respeitante a alimentos entre cônjuges ou entre ex-cônjuges (alínea f)) – pelo contrário, trata-se de uma ação respeitante a alimentos decorrentes de uma filiação nascida de uma união entre pessoas que não estavam nem estiveram ligadas pelo matrimónio. E, quanto à cláusula contida na alínea g) (Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família), também nela não se contém, na medida em que estão aqui em vista questões atinentes ao posicionamento das pessoas face ao matrimónio (solteiro, casado, divorciado, separado, viúvo – vide acórdão do STJ, de 13.11.2012, processo 13466/11.4T2SNT.L1.S1).

Sob a epígrafe “Competência relativa a menores e filhos maiores”, o art.º 123.º tem a seguinte redação:

1-Compete igualmente às secções de família e menores:
a)Instaurar a tutela e a administração de bens;
b)Nomear pessoa que haja de celebrar negócios em nome do menor e, bem assim, nomear curador-geral que represente extrajudicialmente o menor sujeito a responsabilidades parentais;
c)Constituir o vínculo da adoção;
d)Regular o exercício das responsabilidades parentais e conhecer das questões a este respeitantes;
e)Fixar os alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966, e preparar e julgar as execuções por alimentos;
f)Ordenar a confiança judicial de menores;
g)Decretar a medida de promoção e proteção de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção;
h)Constituir a relação de apadrinhamento civil e decretar a sua revogação;
i)Autorizar o representante legal dos menores a praticar certos atos, confirmar os que tenham sido praticados sem autorização e providenciar acerca da aceitação de liberalidades;
j)Decidir acerca da caução que os pais devam prestar a favor dos filhos menores;
k)Decretar a inibição, total ou parcial, e estabelecer limitações ao exercício de responsabilidades parentais, previstas no artigo 1920.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;
l)Proceder à averiguação oficiosa da maternidade e da paternidade e preparar e julgar as ações de impugnação e de investigação da maternidade e da paternidade;
m) Decidir, em caso de desacordo dos pais, sobre o nome e apelidos do menor.
2-Compete ainda às secções de família e menores:
a)Havendo tutela ou administração de bens, determinar a remuneração do tutor ou do administrador, conhecer da escusa, da exoneração ou da remoção do tutor, do administrador ou do vogal do conselho de família, exigir e julgar as contas, autorizar a substituição da hipoteca legal e determinar o reforço e a substituição da caução prestada e nomear curador especial que represente o menor extrajudicialmente;
b)Nomear curador especial que represente o menor em qualquer processo tutelar;
c)Converter, revogar e rever a adoção, exigir e julgar as contas do adotante e fixar o montante dos rendimentos destinados a alimentos do adotado;
d)Decidir acerca do reforço e da substituição da caução prestada a favor dos filhos menores;
e)Exigir e julgar as contas que os pais devam prestar;
f)Conhecer de quaisquer outros incidentes nos processos referidos no número anterior.
3-Nos casos em que a lei reserve a competência referida nos números anteriores a outras entidades, a competência das secções de família e menores respeita à reapreciação das decisões dessas entidades.
4-A prática de atos urgentes é assegurada pelas secções de competência genérica de instância local, ainda que a respetiva comarca seja servida por secção de família e menores, nos casos em que esta se encontre sediada em diferente município.

Relativamente à listagem de matérias e procedimentos processuais que, relativamente a menores e filhos maiores, serão da competência da secção de família e de menores, é patente que em nenhuma é referida a ação destinada a providenciar pelos direitos consignados no art.º 1884.º do Código Civil.

Assinalando-se embora que nessa listagem consta um meio processual onde o legislador admite que, acessoriamente, a mãe possa reclamar os alimentos previstos no art.º 1884.º, que é a ação de investigação de paternidade (alínea l) do n.º 1), ação onde a mãe poderá pedir os aludidos alimentos e poderá, ainda, obter alimentos provisórios se a ação for proposta antes de decorrido o primeiro ano de vida do filho e o tribunal considerar provável o reconhecimento da paternidade (n.º 2 do art.º 1884.º). Ação de investigação de paternidade que, tradicionalmente, como se notou na Proposta de Lei n.º 187/X, que deu origem à LOFTJ 2008, não cabia na competência dos tribunais de família e de menores.

Por outro lado, o legislador atribui à secção de família e de menores a competência para “Regular o exercício das responsabilidades parentais e conhecer das questões a este respeitantes” (alínea d) do n.º 1).

Embora, como se viu supra, o legislador tenha (com o aplauso de P. de Lima e A. Varela) inserido a consagração do direito a alimentos da mãe não unida ao progenitor pelo matrimónio, relativos ao período de gravidez e ao primeiro ano de vida do filho, no conjunto das regras atinentes à responsabilidade parental, afigura-se-nos que a alínea d) supra citada, ao referir-se ao “exercício” das responsabilidades parentais e ao conhecimento das questões a “este” respeitantes, tem em vista as obrigações e direitos dos progenitores diretamente relativos aos filhos. Estão aqui em causa as ações antigamente reguladas na OTM, atualmente previstas no Regime Geral do Processo Tutelar Cível – RGPTC -, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08.9, ou seja, as providências tutelares cíveis, e de entre estas, os processos de “regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas”(Secção I do Capítulo III da RGPTC), que desejavelmente deverão culminar com um acordo entre os pais, “que corresponda aos interesses da criança sobre o exercício das responsabilidades parentais” (n.º 1 do art.º 37.º do RGPTC) ou, não se logrando tal acordo, desembocará numa sentença, em que “o exercício das responsabilidades parentais é regulado de harmonia com os interesses da criança” (n.º 1 do art.º 40.º do RGPTC).

Ora, in casu a A. reclama o pagamento das despesas que suportou no período de gravidez e bem assim, relativamente à filha Leonor, durante o primeiro ano de vida desta. E, além disso, reclama indemnização pelos danos alegadamente sofridos em virtude da conduta do R. atinente aos factos em causa – indemnização essa que, também, não vislumbramos que caiba em qualquer uma das alíneas definidoras do âmbito de competência das secções de família e de menores.

Se o legislador pretendesse atribuir às secções de família e de menores a competência para dirimir todas as questões emergentes de disposições legais integradas no Direito da Família, maxime as contidas no Livro IV do Código Civil, certamente teria concomitantemente adotado uma formulação genérica e abrangente, e não procederia, como ainda agora ocorre, a uma enunciação pormenorizada e casuística de situações sujeitas a essa jurisdição, inclusive com indicação concreta de preceitos do Código. Pese embora a inserção na jurisdição de família e menores de algumas matérias que anteriormente dela estavam excluídas, como é exemplo o das ações de investigação de paternidade e maternidade, mantém-se ainda a matriz de alguma fragmentação na efetivação dessa competência, como são exemplo as ações de atribuição dos alimentos previstos no art.º 2009.º que não digam respeito a cônjuges e a ex-cônjuges e, no que respeita a descendentes maiores, não se integrem na previsão dos artigos 1880.º e 1905.º n.º 2 do Código Civil, as quais são da competência das secções cíveis.

Discorda-se, assim, do acórdão da Relação do Porto, mencionado na decisão recorrida, datado de 20.10.2014 (processo 1617/13.9TMPRT-A.P1), em que, revogando-se a decisão do Tribunal de Família e de Menores do Porto, que não admitira, em ação de regulação de responsabilidades parentais, a cumulação, pela mãe, de pedido de alimentos ao abrigo do art.º 1884.º do Código Civil, se entendeu que tal cumulação era possível e, para defender a competência material daquele tribunal para apreciar esse pedido, se defendeu uma interpretação “abrangente” da norma contida na alínea f) do art.º 81.º da Lei n.º 3/99, de 13.01, então aplicável (“acções e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges”).

Tanto mais que, nos presentes autos, e contrariamente à aludida espécie julgada pela Relação do Porto, não nos confrontamos com a cumulação de uma pretensão indubitavelmente da competência das secções de família e de menores (regulação do exercício das responsabilidades parentais) com uma pretensão que nesse aspeto se mostre duvidosa. Pelo contrário, a par do direito a alimentos por parte de mãe não ligada pelo matrimónio ao devedor (questão de atribuição judicativa pelo menos duvidosa), encontramos a pretensão de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela A., situação atinente ao regime geral da responsabilidade civil (que P. de Lima e A. Varela em 1995 reportavam à “ofensa da sua honra”, “violação da sua virgindade”, “privação da sua liberdade”, etc – obra citada, pág. 347), alheia aos particulares valores adstritos à jurisdição de família e menores.

Afigura-se-nos, assim, e atendendo ao valor fixado à ação (€ 122 820,00) que o presente litígio cabe na competência do tribunal recorrido, Secção Cível da Instância Central.

Conclui-se, pois, que a apelação é procedente.

DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e consequentemente revoga-se a decisão recorrida e em sua substituição determina-se que a ação prossiga os seus termos, no tribunal a quo, por para tanto ser materialmente competente.
As custas da apelação serão a cargo de quem ficar vencido a final na ação.



Lisboa, 15.12.2016



Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins