Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6375/17.5T8SNT.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: DESPEJO
INEPTIDÃO DO REQUERIMENTO INICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I.– Requerido o despejo no BNA, indicando o senhorio como fundamento do mesmo “a resolução pelo senhorio (nos termos do nº 3 do art. 1083º do Código Civil) e juntando notificação judicial avulsa à inquilina na qual, além do mais, indica o período temporal em que vem ocorrendo o não pagamento das rendas, e tendo a inquilina, na sua oposição aceite a existência de mora no pagamento das rendas desde 2014, embora invoque diversas circunstâncias a título de excepção impeditiva do direito do requerente, existem elementos suficientes para o prosseguimento dos autos.

II.– O requerimento havia sido recebido no BNA que notificou a requerida nos termos do art. 15º-D da Lei nº 31/2012.

III.– Não se justificando assim a absolvição da instância da requerida, por ineptidão do requerimento inicial, já que os fundamentos do procedimento foram claramente entendidos pela requerida que aos mesmos deduziu oposição, invocando diversas excepçõpes, entre elas a da caducidade.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


Veio em sede de procedimento especial de despejo, ML requerer o despejo de ES, nos termos de fls. 2 a 4 dos autos.

A Ré deduziu oposição, nos termos de fls. 57 e 58.

Vindo a ser proferido despacho, nos seguintes termos:
“ O procedimento especial de despejo vem previsto no art. 15.° da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com as alterações da Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, que aprovou o regime do novo arrendamento urbano (NRAU).
No requerimento inicial de despejo, o Requerente deve indicar o fundamento de despejo e juntar ainda os documentos comprovativos (art. 15º-B do NRAU).
No âmbito do fundamento do despejo deve considerar-se compreendida a alegação dos factos essenciais à produção do efeito pretendido, o que não se confunde com a mera junção de documentos, na medida em que estes devem ser juntos com o requerimento em que se aleguem os factos correspondentes (art. 423.° do CPC).
Tal obrigação reveste-se de particular importância, na medida em que em caso de oposição, a actividade do tribunal irá incidir sobre os factos alegados e impugnados.

A Requerida apresentou oposição alegando excepção e impugnando os documentos.

Nesse sentido, face à oposição apresentada, careceria o tribunal agora de apurar por referência às rendas alegadamente em dívida mencionadas pela Requerida, se as mesmas foram pagas ou se existiu algum facto impeditivo dessa circunstância, para em consequência verificar se houve ou não falta de pagamento, a qual constitui fundamento de despejo.

Porém, o Requerente não apresentou no campo destinado à descrição dos factos qualquer alegação dos factos que fundamentam o pedido de despejo, nomeadamente, indicando as rendas em dívida, limitando-se a juntar os documentos que em seu entender consideram justificada a resolução do contrato pelo motivo de falta de pagamento de rendas.

Logo, está o tribunal impedido de saber quais são os factos essenciais, que no entender dos Requerente fundamenta o despejo, sendo que a mera junção de documentos não dispensa o Requerente da alegação dos factos correspondentes.

Assim, ocorre manifesta falta de causa de pedir, por inexistência de alegação de factos essenciais à apreciação do efeito pretendido, o que constitui causa de ineptidão da petição inicial por esvaziar a possibilidade de qualquer actividade instrutória do tribunal (art. 186.°, nº 2, alínea a) CPC).

Por conseguinte, ocorre nulidade de todo o processo (art. 186.°, nº 1 CPC) vício que é de conhecimento oficioso (art. 196.° do CPC).
Pelo supra exposto, declaro a ineptidão do requerimento inicial de despejo e determino a anulação de todo o processo, e em consequência, determino a absolvição da Requerida da instância (art. 278.°, nº 1, alínea b) CPC).”

Incnformado, recorre o Autor, concluindo que:
- A douta sentença recorrida levou à declaração da ineptidão do requerimento inicial de despejo, determinando a anulação de todo o processado, e em consequência, absolvendo a Recorrida da instância.
- Estranhamente, entendeu o tribunal "a quo" que " ... ocorre manifesta falta de causa de pedir, por inexistência de alegação de factos essenciais à apreciação do efeito pretendido, o que constitui causa de ineptidão da petição inicial por esvaziar a possibilidade de qualquer atividade instrutória do tribunal (art. 186.°, nº 2, alínea a) do CPC)".
- Com semelhante entendimento não poderá o Recorrente concordar, pois salvo devido respeito, tal decisão fez errada interpretação e enquadramento das normas aplicáveis, uma vez que não levou em conta a especificidade e limitações do requerimento próprio, disponibilizado pré-formatado via eletrónica.
- Aquando da entrada do procedimento especial de despejo (26.12.2016), o Recorrente apenas pôde assinalar as suas indicações, em espaços pré-delimitados para o efeito e que representam pequenos círculos ou retângulos, não disponibilizando o formulário qualquer espaço para a explicitação dos fundamentos do despejo, a menos que pelo mesmo Procedimento Especial de Despejo, se pretenda cumular o despejo com a cobrança coerciva dos valores em dívida, o que não foi o caso.
- Na verdade, a explicitação factual subsume-se ao conteúdo que consta da comunicação prevista no nº 2, do artigo 1084.° do Código Civil, que é prévia ao Procedimento Especial de Despejo e que foi devidamente junta com o requerimento inicial.
- Não está na disponibilidade do Recorrente a apresentação de outra forma ou conteúdo que esteja fora do modelo disponibilizado e aprovado pela Portaria n.º  9/2013, de 10.01.

- Por outro lado, também os artigos 15° B e 15° C da Lei 6/2006, de 27/02, com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14.08 e Lei nº 79/2014, de 19112, definem como deve ser a apresentação, forma e conteúdo do requerimento de despejo e as situações possíveis da sua recusa liminar.
- O Recorrente deu cumprimento a todas as exigências ditadas pelos referidos artigos, tendo o Balcão Nacional de Arrendamento aceite o Requerimento de Despejo apresentado, expedindo consequentemente notificação à Arrendatária/Recorrida.
- A Recorrida apresentou oposição, manifestando dessa forma que considerou o requerimento inicial, suficientemente inteligível.
- Impunha-se assim, um caminho diferente a seguir pelo Tribunal "a quo", no prosseguimento dos autos e não na recusa liminar do requerimento inicial de despejo, com o qual o Recorrente não se conforma, porquanto não estava ou está na sua disponibilidade acrescentar seja o que for no requerimento inicial que apresentou.
- Ao decidir como decidiu, fez o Tribunal "a quo" uma errada interpretação e enquadramento dos artigos 15° B, alínea g) e 15° C, alínea b), não tendo assim em conta o disposto no nº 1 e 5 do artigo 15° B e artigo 2° e 4° da Portaria 9 de 2013 de 10.01.
- Na verdade, uma melhor caracterização dos factos essenciais principais cabia apenas ser concretizada através de um despacho judicial de aperfeiçoamento e não de um despacho judicial a convidar as partes a pronunciarem-se quanto a uma eventual ineptidão.
- Portanto, recusar a petição, no caso do procedimento especial de despejo, por falta de causa de pedir (sendo que o pedido é necessariamente o despejo imediato do locado - art. ° 15°, n. ° I da Lei 6/2006, de 27/02, com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14.08 e Lei nº 79/2014, de 19/12) é renovar o fundamento da apreciação administrativa suscetível de recusa de requerimento.
- Ainda que assim não se entenda o que apenas por mera cautela de patrocínio se concebe, sempre se dirá que com o despacho proferido pelo Tribunal "a quo" no sentido das partes se pronunciarem sobre uma eventual ineptidão do requerimento de despejo, veio o Recorrente proceder à descrição dos factos, por requerimento datado de 26 de Junho de 2017.
- Nesse sentido, face à descrição dos factos feita pelo Recorrente sempre seria de considerar sanado qualquer "vício" que daí pudesse decorrer, encontrando-se mais do que fundamentado o pedido de despejo.

Cumpre apreciar.

A questão colocada tem a ver com a decisão de julgar inepto o requerimento inicial com absolvição da requerida da instância.

Verifica-se que o requerente no requerimento de despejo indicou no espaço reservado ao fundamento do despejo: “resolução pelo senhorio (nos termos do nº 3 do art. 1083º do Código Civil)”.

Juntou documentação com o contrato de arrendamento, o comprovativo de pagamento do imposto de selo e comprovativo da comunicação ao inquilino do montante em dívida em rendas, encargos ou despesas.

Entende o Mº juiz a quo o requerente não indicou factos, nomeadamente as rendas em dívida, estando assim o tribunal impedido de saber quais são os factos essenciais que fundamentam o despejo.

O art. 1083º nº 3 do Código Civil reporta-se a casos em que não é exigível ao senhorio a manutenção do arrendamento, nomeadamente a mora no pagamento das rendas igual ou superior a dois meses, tal como encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou oposição por este de realização de obra ordenada por autoridade pública.

Com o requerimento inicial juntou o ora recorrente requerimento de notificação judicial avulsa da Ré inquilina, no qual, e além do mais, invoca o não pagamento das rendas vencidas de Novembro de 2014 a Outubro de 2016.

Note-se que o despacho a que alude o recorrente, no qual o Mº juiz convida as partes a tomarem posição sobre eventual ineptidão do requerimento inicial, não é um despacho de aperfeiçoamento e como tal não se destina a colmatar erros ou omissões no requerimento inicial, mas tão só a pronunciar-se sobre a eventual ineptidão do requerimento inicial tal como foi apresentado.

Pensamos que o requerimento inicial peca por um laconismo excessivo, limitando-se a remeter para um preceito legal, que obviamente não alude ao período concreto em que se verifica a mora no pagamento das rendas (além de prever outras situações de resolução além do não pagamento de rendas).

O espaço disponível no módulo de requerimento de despejo não pode ser desculpa. Seria possível ao requerente indicar como fundamento do despejo a falta de pagamento de rendas de Novembro/2014 a Outubro/2016, gastando praticamente o mesmo espaço e número de caracteres que os que usou.
Uma norma legal não é um facto.

Contudo, a requerida deduziu oposição ao requerimento inicial. No art. 7º desse articulado impugna o alegado pelo requerente.

Mas, nos artigos 13º, 14º, 15º17º e 19º, afirma:
“Acontece que em 2014 a requerida deixou de receber um dos subsídios da Segurança Social e deixou de conseguir liquidar todas as suas despesas (...) Nessa altura, imediatamente comunicou a situação ao requerente, tendo sugerido uma diminuição do valor da renda (...) Uma vez que o imóvel incluía uma garagem à qual a requerida não tinha acesso (...) Contudo nunca obteve qualquer resposta por parte do requerente (...) Ora, salvo melhor entendimento, nunca foi dada à requerida a oportunidade de fazer cessar a mora ou justificar o motivo pelo qual as mesmas não se mostram liquidadas(sublinhado nosso).

Ou seja, a requerida reconhece a situação de mora e o não pagamento das rendas.

Tal como reconhece ter recebido a notificação judicial avulsa de 25/10/2016, em que lhe é comunicada a resolução do contrato.

No art. 22º reafirma, a propósito da invocação de caducidade, que nunca lhe foi dada a oportunidade de fazer cessar a mora.

Nos termos do art. 186º nº 2 a) a petição é inepta quando “falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”.
Contudo, prevê o nº 3 do mesmo preceito que “se o Réu contestar , apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando (...) se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.

No caso que nos ocupa a Ré não invocou a ineptidão do requerimento inicial, tendo a mesma sido suscitada oficiosamente pelo tribunal, o que não impede a sanação da irregularidade nos termos do citado nº 3.

É que a Ré aceitou estar em mora quanto ao pagamento das rendas desde 2014. A sua oposição ao requerimento inicial não assenta na impugnação de tal mora mas sim na invocação de caducidade, da falta de oportunidade de fazer cessar a mora e no adiamento do despejo.

Assim, o problema colocado no despacho recorrido já não se coloca. De resto, é o próprio Mº juiz a quo que refere:
“Nesse sentido, face à oposição apresentada, careceria o tribunal  agora de apurar por referência às rendas alegadamente em dívida mencionadas pela requerida, se as mesmas foram pagas ou se existiu algum facto impeditivo dessa circunstância, para em consequência verificar se houve ou não falta de pagamento (...)”.
Ora, se não restam dúvidas de que existem rendas em dívida – facto aceite pela própria requerida – a questão de saber se existiu facto impeditivo do pagamento constitui matéria de excepção cujo ónus probatório incumbe à requerida – art. 342º nº 2 do Código Civil.

Perante isto, a notificação judicial avulsa enviada pelo Autor à Ré, concretizando o período das rendas em dívida, e junta com o requerimento inicial, pode, neste contexto, coadjuvar a percepção da causa de pedir do Autor, já que, insiste-se, a própria Ré aceita a existência de mora.

De salientar ainda que o requerimento do senhorio no BNA foi admitido. Se tivesse sido recusado, tal poderia conferir ao requerente a faculdade prevista no nº 2 do art. 15º-C  da Lei nº 31/2012, com apresentação de novo requerimento no prazo de 10 dias, mas considerando-se iniciado na data em que teve lugar o pagamento da taxa devida pela apresentação do primeiro requerimento.

Por outro lado, nos termos do art. 15º-H nº 2 do mesmo diploma, pode o juiz, após deduzida a oposição, convidar as partes para em 5 dias, aperfeiçoarem as peças processuais ou apresentarem novo articulado.

Como sublinha Maria Olinda Garcia - “Arrendamento Urbano Anotado” pág. 211 - “caso o juiz entenda que dos autos não resulta informação exacta ou suficiente para poder apreciar a questão, pode convidar as partes a aperfeiçoarem as peças processuais no prazo de 5 dias ou a apresentarem novo articulado no prazo de 10 dias, tendo em vista a garantia do contraditório”.

Tendo em conta o teor do requerimento inicial e da oposição, esta poderia ter sido igualmente uma solução viável.

O Mº juiz a quo optou pela decisão de julgar o procedimento inepto, absolvendo a Ré da instância, o que, em nosso entender constitui uma opção desajustada, tendo até em atenção o carácter extremamente simplificado deste tipo de procedimento.

Do conjunto do requerimento inicial e da oposição resultam elementos suficientes para tornar entendível a causa de pedir e para assim prosseguir a acção com apreciação das excepções suscitadas pela Ré.

Conclui-se assim que:
– Requerido o despejo no BNA, indicando o senhorio como fundamento do mesmo “a resolução pelo senhorio (nos termos do nº 3 do art. 1083º do Código Civil) e juntando notificação judicial avulsa à inquilina na qual, além do mais, indica o período temporal em que vem ocorrendo o não pagamento das rendas, e tendo a inquilina, na sua oposição aceite a existência de mora no pagamento das rendas desde 2014, embora invoque diversas circunstâncias a título de excepção impeditiva do direito do requerente, existem elementos suficientes para o prosseguimento dos autos.
– O requerimento havia sido recebido no BNA que notificou a requerida nos termos do art. 15º-D da Lei nº 31/2012.
– Não se justificando assim a absolvição da instância da requerida, por ineptidão do requerimento inicial, já que os fundamentos do procedimento foram claramente entendidos pela requerida que aos mesmos deduziu oposição, invocando diversas excepçõpes, entre elas a da caducidade.

Face ao exposto, julga-se a apelação procedente, revogando-se a decisão de ineptidão do requerimento inicial e ordenando-se o prosseguimento dos autos com a apreciação das circunstâncias invocadas pela requerida na oposição.
Sem custas.



LISBOA, 12-04-2018


António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais