Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1765/13.5TVLSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: SEGURO-CAUÇÃO
GARANTIA AUTÓNOMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -  O seguro-caução à primeira solicitação (on first demand) implica que a seguradora pague a quantia garantida com base no mero pedido do beneficiário.
-  Trata-se de uma garantia autónoma, em que não é lícito à seguradora invocar qualquer vício no negócio celebrado entre o tomador do seguro e o beneficiário.
-  Tal garantia implica o intuitu personae, não podendo ser transmitida a terceiro pelo beneficiário, sem consentimento da seguradora.
     (Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.



I-RELATÓRIO:



S... S.A., instaurou a presente ação declarativa com processo comum contra C... S.A., pedindo a condenação da ré a pagar à autora o montante de € 220.575,00, no âmbito do seguro caução, à primeira solicitação, correspondente à apólice nº 100009980/200, acrescido dos respetivos juros de mora à taxa comercial desde 18.01.2013 até integral pagamento.

Como fundamento, a autora alega, em suma, que é beneficiária do referido seguro na qualidade de sucessora dos direitos do beneficiário original, o P... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, que enquanto dono de obra nas empreitadas de imóveis celebradas com a sociedade E..., Lda. é titular das garantias bancárias e seguros caução pela empreiteira prestados, como garantia do bom e pontual cumprimento dos contratos de empreitada. Ora, a autora interpelou a ré para lhe pagar a quantia discriminada titulada pela apólice identificada, o que esta recusou invocando desconhecer que a autora tivesse substituído o Fundo nos direitos decorrentes da apólice e por nunca se ter pronunciado acerca da cedência desses direitos. 

A ré contestou, invocando o seguinte:

- A existência de caso julgado, pois a questão já foi objeto de decisão nos autos de procedimento cautelar comum que correu termos sob o nº 202/13.0TVLSB na 4ª Vara Cível de Lisboa, com a absolvição do pedido da requerida (a ora ré) por ausência de legitimidade substantiva da requerente (a ora autora) em promover o chamamento da caução;
- A ré celebrou com a empresa E... Lda. um contrato de seguro caução em benefício do fundo «P... Fundo Investimento Imobiliário Fechado», titulado pela apólice identificada nos autos, destinado a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações assumidas por aquela empresa, no contrato de «Empreitada Geral de Construção de Edifício de Habitação» sito na Rua Presidente Arriaga, Tv. D. Brás e Janelas Verdes, em Lisboa, nos termos dos artigos 110º nº 2 e 112º nº 1 do Decreto-Lei nº 59/99, de 02/03;
- Do clausulado geral da apólice e pela análise das condições particulares, verifica-se que a garantia contratada se configura com autonomia e automaticidade próprias de uma garantia pessoal, autónoma de funcionamento à primeira interpelação - on first demand;
- Por carta de 17.01.2013, a autora promoveu o chamamento da caução prestada pela ré através da apólice em causa invocando que adquiriu a totalidade do património imobiliário do referido Fundo e, por via dessa aquisição, foram-lhe transmitidos todos os direitos e créditos inerentes à propriedade dos imóveis de que o mesmo era titular, incluindo a qualidade de dono de obra nas empreitadas celebradas com a E... Lda., bem como as garantias bancárias à primeira solicitação e seguros caução à primeira solicitação entregues pela referida sociedade empreiteira para garantia do bom e pontual cumprimentos dos contratos de empreitada;
- A ré apurou então que não lhe foi pedida, ou comunicada, a substituição do Fundo, que figura como beneficiário do seguro caução, por parte da autora, não tendo a ré tomado conhecimento ou aceite qualquer cedência, e por isso não reconheceu à mesma a legitimidade para promover o chamamento da caução prestada, tendo informado a autora por carta de 22.01.2013;
- A ré mantém a posição assumida e, mesmo a demonstrar-se que a autora à data da constituição do seguro caução (em Novembro de 2006) era a única participante do fundo de investimento imobiliário beneficiário do seguro, tal não significa que o património do fundo fosse um património exclusivo da autora, pois a mesma não era titular de qualquer direito de propriedade sobre os bens imóveis integrando o ativo do Fundo, cuja administração não estava a cargo da autora, mas sim de uma sociedade distinta, a sociedade gestora;
- Além disso, da escritura de compra e venda outorgada em 15.07.2008, junta aos autos pela autora, apenas resulta que lhe foram transmitidos os direitos de propriedade integrando o património imobiliário do aludido Fundo, sem qualquer transmissão de direitos e/ou créditos inerentes à propriedade dos imóveis, designadamente, a posição de dono da obra, que não se transmite ao adquirente do direito de propriedade, sem convenção expressa nesse sentido;
- Assim, o direito de crédito resultante do contrato de seguro caução celebrado não foi objeto de venda na referida escritura, nem de cessão a terceiros;
- Por último, após a liquidação voluntária do Fundo, não ocorreu qualquer partilha do ativo do mesmo por aplicação analógica dos artigos 156º e 164º do Código das Sociedades Comerciais, pois os fundos de investimento imobiliário obedecem a um regime jurídico próprio, que prevê o processo de liquidação através do reembolso das respetivas unidades de participação aos participantes e não pela sucessão de eventuais direitos/obrigações ainda existentes.

Foi proferida decisão, em sede de despacho saneador, que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido, por considerar que a Autora carece de legitimidade substantiva para acionar o seguro caução objecto dos autos.

Foram dados como assentes os seguintes factos:

1) Em Novembro de 2006, a E..., Lda. entregou ao «P... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, em substituição da garantia bancária, um seguro caução à primeira solicitação, no valor de € 220.575,00, correspondente à Apólice Nº 100009980/200, emitida pela ré. 
2) E..., Lda., na qualidade de tomador do seguro, e C... S.A., na qualidade de seguradora, subscreveram o contrato de seguro-caução, datado de 11.04.2006, titulado pela apólice Nº 100009980/200, de fls. 70 a 73, mediante o qual a ré «declara prestar a favor de P... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, um seguro caução, em primeira interpelação, no valor de € 220.575,00» para garantia do contrato de empreitada geral de construção de edifício de habitação sito na Rua Presidente Arriaga, Tv. D. Brás e Janelas Verdes, em Lisboa, que será exigível mediante simples interpelação para o efeito dirigida à ré pela beneficiária da caução «alegando o incumprimento, total, parcial ou defeituoso do contrato de empreitada supra-referido».
3) Em Setembro de 2006, foi efetuada a fusão por incorporação da P.. Lda. na sociedade ora autora, conforme inscrição 4ap. 11/20060918 constante na certidão permanente de fls. 65 a 68.
4) O fundo «P... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado» iniciou a sua atividade em 14.04.2005 e encontra-se liquidado desde Julho de 2008, conforme ficha acessível, fls. 295.
5) O Fundo era gerido pela sociedade «E... S.A.», conforme Regulamento de Gestão de fls. 41 a 57.
6)  Por deliberação da Assembleia de Participantes, realizada em 18.07.2008, foi decidida a liquidação do Fundo, fixando-se um prazo máximo de 90 dias para o reembolso das unidades de participação. 
7) Na data de liquidação do Fundo, a única participante era a autora, segundo informação da C.M.V.M. de fls. 316 e 317.
8) Por escritura pública de compra e venda, realizada em 15.07.2008, de fls. 74 a 91, o Fundo «P... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado» vendeu todo o seu património à autora. 
9) Em 16.07.2008, por documento de fls. 94, a sociedade gestora do Fundo, E... S.A., na qualidade de legal representante do mesmo declara que transmite para a autora «todos os direitos e créditos inerentes à propriedade dos imóveis de que aquele Fundo era proprietário, nomeadamente os que resultam da qualidade de dono da obra nas empreitadas celebradas» com a E... Lda., «bem como todos aqueles que resultam das garantias bancárias à primeira solicitação e seguros caução à primeira solicitação que foram entregues por aquela sociedade para garantia do bom e pontual cumprimento dos contratos de empreitada”.
10) Por carta de 17.01.2013, de fls. 119 a 121, a autora interpela a ré para proceder ao pagamento, no prazo máximo de 3 (três) dias úteis, da quantia de € 220.575,00 (duzentos e vinte mil quinhentos e setenta e cinco euros) titulada pela apólice nº 100009980/200, através de transferência bancária.
11) Na referida comunicação, a autora junta cópia da escritura pública e da declaração identificadas em 8. e 9., invocando que adquiriu a totalidade do património imobiliário do Fundo e este lhe transmitiu todos os direitos e créditos inerentes à propriedade dos imóveis, designadamente, os que resultam da qualidade de dono de obra nas empreitadas e das garantias bancárias à primeira solicitação e seguros-caução à primeira solicitação entregues pela E..., Lda. 
12) Por carta de 22.01.2013, de fls. 122, a ré informou a autora que não aceitava pagar a quantia titulada pelo seguro caução porque «do processo não consta qualquer documentação, relativa a pedido efetuado a esta companhia para que o P... - Fundo de Investimento Imobiliário Fechado fosse substituído pela S...  S.A., nos direitos da apólice, nem a C... se pronunciou acerca desses mesmos direitos».

Inconformada recorre a Autora, concluindo que:

-Considera a recorrente que o Tribunal a quo não teve em conta factos alegados na petição inicial e que são relevantes para a decisão de mérito;
-É relevante para a decisão de mérito saber, pelo menos, qual a razão da constituição do "Fundo P...", a relação entre as três sociedades que constituíram o referido Fundo, as razões pelas quais foi extinto e liquidado e se, na data da constituição da garantia dos autos, a Autora já era a única titular do fundo., conforme alegado nos artigos 1º, 2º, 3º, 7º, 8º, 10º, 12º, 13º, 14º, 15º, 17º e 21º da petição inicial.
-Também é relevante saber se a empreiteira E... aceitou a recorrente, após a extinção e liquidação do Fundo P..., como dona de obra e como tal beneficiária da garantia, conforme alegado nos artigos 31.° a 37.° da petição inicial; -
- Assim, existindo matéria de facto controvertida que releva para a apreciação da causa à luz das várias soluções jurídicas possíveis, importa prosseguir com a fase de instrução;
-Por violação do 595.° nº 1 b) do CPC, deve ser anulado o saneador sentença proferido, ordenando-se a baixa dos autos ao Tribunal a quo  para que aí prossigam os seus termos com vista à submissão a instrução e julgamento da factualidade controvertida relevante para a decisão do mérito do pedido.
-Começa o Tribunal a quo por defender que não existiu cessão da posição contratual do Fundo P... para a Autora, porquanto a Ré não deu a sua necessária autorização, o que não pode ser aceite;
-No caso dos autos, é patente a natureza "on first demand" da garantia assumida pela recorrida, que se configura com a autonomia e a automaticidade que são próprias das garantias à primeira interpelação.
-Nos termos do disposto no artigo 424° do Código Civil "No contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão";
-No caso em apreço a obrigação da recorrida não assenta num contrato sinalagmático, na medida em que o beneficiário da garantia não tem obrigações recíprocas perante aquela;
-Estamos, assim, em rigor, perante uma cessão de créditos e não de uma cessão da posição contratual;
-Nos termos do disposto no artigo 577º do Código Civil, a cessão de créditos é válida e eficaz, independentemente da autorização ou consentimento do devedor;
-Ao contrário do defendido pelo Tribunal a quo, sempre teria que se considerar de aplicar ao caso dos autos o disposto no art. 582º do CC, nos termos do qual "Na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente";
-A Autora comunicou a cessão por carta de 17 de Janeiro de 2013, a qual é suficiente para que a mencionada cessão produza os seus efeitos em relação ao devedor;
-Mesmo que se considere estarmos perante uma cedência de posição contratual, sempre teria que se considerar que, por se tratar da cessão da posição de beneficiário da garantia, a mesma não carece de autorização da Recorrida;
-O intuito personae só deverá ser aceite relativamente à posição do devedor garantido e não do beneficiário, conforme, aliás, é defendido pela mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça;
-A existir intuito personae será apenas relativamente ao devedor garantido, porquanto é totalmente indiferente à recorrida pagar a garantia dos autos ao "P...Fundo de Investimento Imobiliário Fechado" ou à Autora S... S.A; - É necessário diferenciar a transmissão da posição de devedor, da transmissão da posição do credor (beneficiário). Se a primeira é inadmissível, a segunda deverá ser aceite;
-Em Setembro de 2006 foi efetuada a fusão por incorporação da P.., Lda na ora Autora S... S.A. e a partir dessa data, a Autora passou a ser dona da totalidade (100%) das unidades de participação do "P...  Fundo de Investimento Imobiliário Fechado';
-Nos termos do n.o 2 do artigo 2.° do Regime Jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliário (RJFII), os Fundos de Investimento Imobiliário constituem patrimónios autónomos, pertencentes, no regime especial de comunhão, aos participantes.
-O "P... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado" era assim um património autónomo da Autora,
-Ora, por força do tipo de atividade comercial exercida (investimento imobiliário), grande parte dos contratos celebrados pelo fundo tinham carácter duradouro como é caso das empreitadas para construção (garantia);
-No regime legal dos fundos imobiliários e no regulamento de gestão, não existe qualquer previsão relativamente aos direitos e obrigações que perduram no tempo após a liquidação do Fundo;
-Com o desaparecimento do Fundo, por liquidação voluntária, não ficou a recorrente inibida, enquanto sua sucessora, de exercer os direitos ainda existentes, nomeadamente os de garantia de obra;
-Mantendo-se a existência do seguro caução - válido até à emissão do auto de receção definitiva - o mesmo poderá ser exercido pelo único participante do fundo: a autora;
-Nos termos dos artigos 156.° e 164.° do Código das Sociedades Comerciais, os sócios da sociedade liquidada passam a ser sucessores de eventuais direitos/obrigações ainda existentes;
-Tendo em conta a natureza verdadeiramente comercial do referido do fundo em causa, não poderia deixar de se aplicar analogicamente tais disposições legais;
-No ano de 2008, em consequência de alterações legislativas relativamente a benefícios fiscais dos fundos imobiliários, foi decidido proceder à extinção do "P...Fundo de Investimento Imobiliário Fechado";
-O fundo apenas tinha como ativo o património imobiliário de que era titular e a recorrente era a titular da totalidade das unidades de participações do fundo (única participante);
-Para o efeito, previamente à extinção, foi necessário transmitir todo o seu ativo para a dona do Fundo: a ora Autora;
-Com essa transmissão, a recorrente sucedeu na posição de beneficiário da garantia dos autos;
-Aliás, como tem sido defendido nas sociedades comerciais, o titular da totalidade das quotas (ou seja, o único sócio) é o titular indirecto ou substancial do património social;
-A recorrente era a titular da totalidade das unidades de participações do Fundo P..., pelo que já era a titular indireta ou substancial do seu património;
-A Autora e ora recorrente tem o direito de acionar o seguro caução dos autos na qualidade de beneficiária do mesmo.

A Ré contra-alegou defendendo a bondade da decisão recorrida.        

Cumpre apreciar.

Coloca a recorrente três questões: uma, a da necessidade de aprofundar a factualidade dos autos, nomeadamente proporcionando a prova de matéria constante de diversos artigos da petição.

As outras questões são, por um lado a defesa de que estamos perante uma cessão de créditos e não uma cedência da posição contratual; por outro lado, a tese de que mesmo que se apure tratar-se de cedência da posição contratual esta será válida e eficaz, mesmo sem comunicação ou aceitação da seguradora.

Para avaliar da viabilidade da primeira das pretensões da recorrente é necessário, antes do mais, delinear a natureza factico-jurídica da matéria em causa, o que leva, necessariamente, a conhecer das outras duas questões suscitadas.

Provou-se que E... Lda enquanto tomadora do seguro e a ora Ré Cosec, na qualidade de seguradora, subscreveram o contrato de seguro-caução, nos termos do qual a Ré “declara prestar a favor de P... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado um seguro-caução, em primeira interpelação (...) para garantia do contrato de empreitada geral de construção do edifício sito na Rua Presidente Arriaga (...) que será exigível mediante simples interpelação para o efeito dirigida à Ré pela beneficiária da caução, alegando o incumprimento, total, parcial ou defeituoso do contra de empreitada supra-referido”.

O contrato de seguro caução “on first demand” é assim um contrato mediante o qual a seguradora cobre um risco determinado, obrigando-se a indemnizar o beneficiário em caso de incumprimento ou mora do tomador do seguro, de uma obrigação caucionável. No caso em apreço, o seguro garante a indemnização ao beneficiário Fundo de Investimento Imobiliário Fechado no caso de incumprimento da empreiteira E... no contrato de empreitada relativo à construção de um edifício.

Estamos perante um contrato de seguro que funciona igualmente como garantia em relação ao beneficiário. A sua especificidade resulta da característica “on first demand” (ou de funcionamento à primeira interpelação) que implica a obrigatoriedade da seguradora satisfazer a garantia logo que para tal solicitada pelo beneficiário, nos termos acordados, sem que lhe possa opor qualquer excepção ou vício da relação contratual de que emerge o crédito garantido.

Isto pois que o tomador do seguro (aqui a E...) é o devedor da obrigação assumida para com o beneficiário (aqui o Fundo), garantindo a seguradora o pagamento de indemnização ao beneficiário em caso de incumprimento do tomador do seguro.

Como se refere no Acórdão desta Relação de Lisboa de 28/01/1999, CJ 1999, t. 1, pág. 91, “o garante, ao ser interpelado pelo credor, terá sempre de pagar a quantia garantida, sem qualquer contestação e, sendo assim, as nulidade invocadas pela seguradora não são oponíveis à recorrida, enquanto beneficiária da garantia por aquela assumida, com o que fica prejudicado saber-se se o contrato (...) está ou não inquinado das nulidades apontadas”.

O contrato de seguro-caução, regulado pelo DL nº 183/88, actualizado pelo DL nº 31/07 de 14/02, é um negócio formal – art. 426º do Código Comercial – não podendo ser interpretado de um modo que não tenha o mínimo de correspondência no seu clausulado, ainda que imperfeitamente expresso.

O problema que aqui se coloca é que a Autora, que se assume como beneficiária do seguro-caução, não é quem figura como tal no contrato celebrado e constante de fls. 70 e seguintes.

Como vimos e tal como consta da matéria de facto provada sob o nº 2, o presente contrato tem como intervenientes E... Lda, tomador do seguro, e C... SA enquanto seguradora, sendo o beneficiário P... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado.

A tese da Autora e ora recorrente, por um lado, é a de que é a sucessora do Fundo, já que, quando este foi extinto, a Autora era a titular da totalidade das unidades de participação do mesmo, pelo que, previamente à extinção, foi necessário transmitir todo o seu activo para a Autora.

Entende assim ter sucedido nos eventuais direitos e obrigações do Fundo, por analogia com o regime previsto nos artigos 156º e 164º do Código das Sociedades Comerciais, no tocante à posição dos sócios da sociedade liquidada.

O P... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado é um património autónomo, destituído de personalidade jurídica, gerido por uma sociedade gestora (artigos 2º  nº 2 e 6º do Regime Jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliário).

A extinção do Fundo está regulada no art. 26º do seu Regulamento de Gestão, fls. 41 e seguintes.

Prevê-se nomeadamente que “os participantes que detenham em conjunto, pelo menos 2/3 das unidades de participação do Fundo, poderão, em Assembleia de Participantes deliberar a liquidação e partilha do Fundo (...) A Assembleia de Participantes ... poderá igualmente definir o prazo de pagamento da liquidação do fundo, sem prejuízo do previsto no nº 3 do art. 18º ...”

Este último preceito determina que “a sociedade gestora procederá por uma só vez à liquidação financeira dos reembolsos solicitados, no prazo de noventa dias, contados a partir do termo do prazo estabelecido para apresentação do respectivo pedido, podendo aquele prazo ser prorrogado até um ano, sempre que para o efeito se verifique a necessidade de proceder à alienação de imóveis”.

Ou seja, a extinção do Fundo implica o reembolso das unidades de participação aos participantes, no prazo máximo de um ano. Não vemos razão para aplicar aqui, neste regime específico e perfeitamente regulado, os normativos concernentes à extinção e liquidação das sociedades comerciais, já que a analogia apenas seria admitida em casos omissos que aqui se não vislumbram.

A recorrente não sucedeu nos direitos e obrigações do Fundo, mediante a extinção deste: o que sucedeu, como de resto resulta provado em 8), é que, pouco antes de ser deliberada a liquidação do Fundo, este vendeu à Autora todo o seu património. Na realidade, quando se dá a extinção do Fundo, a Autora é a proprietária do património do mesmo.

A sociedade gestora do Fundo, em paralelo com tal compra e venda, transmitiu para a Autora “todos os direitos e créditos inerentes à propriedade dos imóveis de que aquele Fundo era proprietário, nomeadamente os que resultam da qualidade de dono da obra nas empreitadas celebradas com a E... Lda bem como todos aqueles que resultam das garantias bancárias à primeira solicitação e seguros caução à primeira solicitação que foram entregues por aquela sociedade para garantia do bom e pontual cumprimento dos contratos de empreitada”.

Como se vê, em 16/07/2008, dois dias antes da deliberação de extinção do Fundo pela Assembleia de Participantes, os direitos emergentes do seguro caução à primeira solicitação foram transmitidos à Autora.

A Autora não podia suceder – mesmo a admitir que esta seja a qualificação jurídica apropriada – no direito do Fundo emergente do seguro caução pois já era a sua detentora e titular antes da liquidação e extinção do Fundo.

Aceitando-se que com a transmissão para a Autora, além do mais, do seguro caução à primeira solicitação aqui em causa, a Autora assume a titularidade do mesmo, é necessário contudo acrescentar que tal ocorre  no âmbito das relações entre a Autora e o Fundo representado pela sociedade gestora.

O seguro caução em apreço é indubitavelmente um contrato, que se desdobra em diversas vertentes, quer na relação do tomador do seguro (E...) e a seguradora, quer na relação entre tomador do seguro e o beneficiário do mesmo (o Fundo), quer na relação entre o beneficiário e a seguradora.

Nos termos do art. 424º nº 1 do Código Civil, “no contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão”.
  
E aqui suscita-se o problema de saber se podemos falar de prestações recíprocas no contrato de seguro-caução. Se estivermos a analisar o contrato no plano das relações tomador do seguro e seguradora a resposta terá de ser afirmativa. O tomador do seguro paga os prémios, a seguradora assume o pagamento ao beneficiário, logo que para tal solicitada.

Mas, e nas relações entre seguradora e beneficiário? Este limita-se a solicitar o pagamento invocando a verificação das circunstâncias que contratualmente o desencadeiam – no caso, incumprimento ou mora da do empreiteiro (e tomador do seguro) na empreitada identificada. O beneficiário não tem de efectuar qualquer contra-prestação: a sua única actuação no âmbito contratual é a de aceitar os termos do contrato, mesmo que tacitamente.

Entendemos contudo que o contrato de seguro-caução on first demand que aqui se nos depara tem de ser visto como um todo e nessa medida é um contrato que pressupõe prestações recíprocas e que, como tal, admite em princípio a cessão da posição contratual. Não nos esqueçamos que na sua essência, se trata de um contrato em que o empreiteiro subscreve um seguro-caução com a seguradora, que visa proporcionar ao dono da obra uma garantia para que, em caso de incumprimento ou mora do empreiteiro, possa receber a indemnização “à primeira solicitação” por parte da seguradora.

Visto nesta perspectiva, o contrato é sinalagmático.

Mas será inadmissível a cessão da posição contratual do beneficiário, na medida em que este nada tem de prestar?

Sobre esta matéria entendemos judiciosas as seguintes considerações de Menezes Leitão, “Cessão de Créditos”, pág. 329:
“é exacto que a confiança do garante se refere à capacidade do cumprimento do devedor, como ocorre em qualquer garantia, mas na garantia automática há um “plus” em relação à situação normal das garantias, que consiste na faculdade de ser exigida à primeira solicitação, sendo extremamente limitadas as excepções oponíveis pelo devedor (...) pelo que a concessão dessa faculdade deve considerar-se intuitu personae, não podendo assim essa faculdade ser transmitida sem o consentimento do garante, pelo que permanecerá sem esse consentimento na esfera do cedente”.

Nesta medida, o nº 1 do art. 424º do CC exige que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão.

Nos presentes autos não foi dado tal consentimento nem há sinais de que a transmissão haja sido comunicada à Seguradora antes do momento em que é desencadeada a solicitação do pagamento.

Mesmo enquanto mera cessão de crédito, no âmbito do art. 577º nº 1 do Código Civil, e atentas as considerações atrás referidas, há que reconhecer que o crédito, pela natureza da prestação, está ligado à pessoa do credor, ou seja, do beneficiário constante do seguro-caução.

Note-se que a seguradora não pode sequer invocar qualquer vício inerente ao negócio pressuposto do seguro-caução, incluindo a sua nulidade. E isso porque a garantia prestada pela seguradora é autónoma, e não meramente acessória ou subsidiária da obrigação não cumprida pelo devedor no contrato de empreitada (aqui a E...), o que, por outro lado, afasta a aplicação do art. 582º do Código Civil..

Refira-se ainda, a respeito da insistência da recorrente em que o processo prossiga os seus termos possibilitando-lhe a prova dos artigos 1º, 2º, 3º, 7º, 8º, 10º, 12º, 13º, 14º, 15º, 17º e 21º da p.i.

O Fundo, foi criado para efeitos de investimento imobiliário, nomeadamente a compra e venda de prédios urbanos. Era gerido por E... SA.

O que a Autora alega, no essencial, é que a partir de 15/12/2005, o Fundo passou a ter apenas dois participantes, a ora recorrente e a P... Lda. Em Setembro de 2006 foi efectuada a fusão por incorporação da P... na Autora, passando esta a deter 100% das unidades de participação no Fundo.

Daqui conclui que o Fundo a partir dessa altura passou a ser um património autónomo da Autora.

Em si, esta matéria não se nos afigura pertinente para a decisão do presente litígio: o Fundo continuava a ser gerido por uma sociedade que não era a Autora. Esta, enquanto participante do fundo, detinha os direitos constantes do art. 19º do respectivo Regulamento de Gestão, nomeadamente “a titularidade da sua quota-parte dos valores que integram o Fundo” e o direito a receber a sua quota-parte do Fundo em caso de liquidação do mesmo.

Assistia-lhe igualmente o direito de, em Assembleia de Participantes, deliberar a liquidação e partilha do Fundo, o que, de resto, veio a acontecer.

Antes, contudo, de tal deliberação, alega a Autora ter adquirido mediante escritura pública de compra e venda todo o património imobiliário do Fundo, ao mesmo tempo que, em consequência de tal compra e venda (ver fls. 94) lhe eram transmitidos todos os direitos e créditos inerentes à propriedade desses imóveis, bem como as respectivas garantias bancárias à primeira solicitação e seguros caução à primeira solicitação. 

O contrato de compra e venda mencionado pela Autora, transmitiu para esta, mediante o pagamento de um preço, o direito de propriedade sobre os imóveis mencionados na escritura de fls.75 e seguintes.

Mas mesmo que se aceitasse que foram igualmente transmitidos “os direitos e créditos inerentes à propriedade dos imóveis de que aquele Fundo era proprietário, nomeadamente os que resultam da qualidade de dono da obra nas empreitadas celebradas com a E... Lda bem como todos aqueles que resultem das garantias bancárias à primeira solicitação e seguros caução à primeira solicitação que foram entregues para garantia do bom e pontual cumprimento dos contratos de empreitada” o que tal poderia significar seria uma eventual transmissão da posição contratual ou uma cessão de créditos.

O problema que se coloca nos autos, assim, nada tem a ver com o saber-se se a Autora era detentora de todas as unidades de participação do fundo, é o de saber se a transmissão da posição contratual (ou eventualmente cessão de créditos) é válida face à Ré Seguradora no que toca ao seguro-caução on first demand.

E sobre isto já expressámos a nossa posição. A transmissão da posição contratual é em si aceitável na medida em que o contrato em que ocorre é sinalagmático: o tomador do seguro tem pagar os prémios à Seguradora, esta assegura o pagamento ao beneficiário Fundo à primeira solicitação, e o Fundo tem naturalmente de aceitar, mesmo que tacitamente, os termos do contrato, já que lhe serve de garantia quanto aos riscos de incumprimento pela E... (empreiteiro e tomador do seguro) do contrato de empreitada.
Só que enquanto transmissão da posição contratual seria exigível o acordo da Seguradora, o que não aconteceu.

Se olharmos a situação enquanto cessão de créditos, então não será aplicável o art. 582º do CC, já que o seguro-caução on first demand não constitui um garantia ou outro acessório do crédito transmitido, constituindo uma obrigação autónoma. E é exactamente por isso que a seguradora tem de pagar sem poder invocar qualquer vício no negócio que subjaz ao seguro caução, podendo invocar apenas os vícios inerentes ao próprio contrato de seguro-caução, nomeadamente a não alegação pelo beneficiário dos requisitos que podem despoletar a cláusula on first demand.

Acresce que, como já abordámos atrás,  ocorre aqui o intuito personae, ou seja, o crédito, “pela própria natureza da prestação, está ligado à pessoa do credor” - art. 577º nº 1 do CC.

Assim e pelo exposto conclui-se que:

-O seguro-caução à primeira solicitação (on first demand) implica que a seguradora pague a quantia garantida com base no mero pedido do beneficiário.
-Trata-se de uma garantia autónoma, em que não é lícito à seguradora invocar qualquer vício no negócio celebrado entre o tomador do seguro e o beneficiário.
-Tal garantia implica o intuitu personae, não podendo ser transmitida a terceiro pelo beneficiário, sem consentimento da seguradora.

Nestes termos julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.


Lisboa, 26/11/2015


António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Decisão Texto Integral: