Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19652/13.5YYLSB.L1-7
Relator: GOUVEIA BARROS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DENÚNCIA
NRAU
EXECUÇÃO PARA ENTREGA DE COISA IMÓVEL
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Tendo o senhorio, na vigência da Lei nº31/2012, denunciado o contrato de arrendamento no âmbito do processo negocial tendente à transição para o NRAU e atualização da renda, não pode instaurar execução para entrega de coisa imóvel arrendada com base em tal denúncia, pois a mesma não constitui título executivo bastante.

(Sumário do Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

I., S.A. requereu execução para entrega de coisa certa contra S., Lda, com base na denúncia do contrato de arrendamento relativo a uma loja sita na P…, rés-do-chão, em …, denúncia feita ao abrigo da alínea a) do nº5 do artigo 33º do NRAU, na redação introduzida pela Lei nº31/2012, de 14 de Agosto indicando ser o título executivo decorrente do disposto no artigo 15º, n.º 1, al. E) do NRAU.

Conclusos os autos foi, na circunstância, proferido despacho a indeferir liminarmente o requerimento com o seguinte fundamento (transcreve-se a parte nuclear do despacho):

 “A execução para entrega de imóvel arrendado podia ter por base diferentes títulos executivos: a sentença e títulos extrajudiciais.

Além da sentença e da certidão judicial, prevista no n.º 5 do artigo 14º da Lei 6/2006, pode ter por base os títulos extrajudiciais criados por disposição especial do artigo 15º da Lei 6/2006.

Este artigo veio criar uma série de novos títulos executivos, procurando, assim, um caminho mais célere para a efectiva desocupação de imóvel arrendado.

Na primeira hipótese, o título era integrado pelo contrato de arrendamento e pelo acordo revogatório.

Nas três hipóteses seguintes, o título era integrado pelo contrato e pelos documentos comprovativos das comunicações enviadas pelo senhorio ao arrendatário.

Na alínea b) do artigo 15º prevê-se um título executivo simples, que é apenas o contrato de arrendamento escrito desde que dele conste a respectiva data de caducidade.

Contudo, a Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto (com entrada em vigor a 12 de Novembro de 2012 – artigo 15º) introduziu alterações ao NRAU, designadamente alterando as supras citadas disposições, no sentido de os documentos elencados deixarem de poder servir de base à execução para entrega de coisa certa para passarem a pode servir de base ao procedimento especial de despejo.

Em consequência, os documentos em questão deixaram de constituir título executivo para a entrega de coisa certa, passando assim o senhorio a poder recorrer ou ao procedimento especial decorrente dos artigos 15º a 15º S do NRAU, na actual redacção, ou à acção declarativa de despejo prevista no artigo 14º do NRAU.

Desta forma, à data da instauração da execução – 5/11/2013 - os documentos juntos com o requerimento executivo, já não constituíam títulos executivos nos termos legalmente previstos”.

                                                                                ***

          Inconformada com o teor do despacho, recorreu a exequente para pugnar pela sua revogação e consequente prosseguimento dos termos da execução, louvando-se nas seguintes razões com que encerra a alegação oferecida:

1 - O despacho de indeferimento ora sob censura de Vossas Excelências, encontra-se viciado de vários erros judiciais, uma vez que à questão em apreço não é aplicável o procedimento especial de despejo que decorre dos art.ºs 15 a 15 S do N.R.A.U., nem a ação declarativa prevista no art.º 14 do NRAU.

2 - O procedimento especial de despejo é «APENAS» aplicável às 6 situações previstas no n.º 2 do art.º 15 do NRAU – e nenhuma delas se encontra tipificada no requerimento inicial da presente ação executiva.

3 - A ação de despejo consignada no art.º 14 do NRAU visa atualmente, a resolução de contratos de arrendamentos, pelo que não é aplicável à questão «sub judice», que se fundamenta na denúncia de um contrato de arrendamento pela senhoria, ora apelante.

4 - A presente execução tem como títulos executivos a correspondência trocada entre a apelante e a executada, nos termos do disposto nos art.ºs 50, 51 e 52 do N.R.A.U. e cujas cópias  constam dos presentes autos de fls 14 a 18.

5 - E pela correspondência trocada, a apelante denunciou o contrato de arrendamento então em vigor, ao abrigo da alínea a) do n.º 5 do art.º 33 do N.R.A.U. (cfr. fls 16 e 18).

6 - Pelo que nos termos do disposto no n.º 7 do art.º 33 do NRAU, o arrendamento cessou em 5 de Setembro p.p. e a inquilina, A3I-Serviços Integrados de Saúde, Ld.ª, ora executada, deveria ter entregado as chaves das lojas com os n.ºs de polícia 60 e 61 da P…, em ..., até 5 de Outubro p.p.

7 - O não cumprimento pela inquilina do disposto no n.º 7 do art.º 33 do N.R.A.U., segundo a redação conferida pela Lei 31/2012, confere à apelante o direito de intentar contra aquela, a presente execução, para entrega de coisa imóvel arrendada, nos termos do disposto no artº 862 do NCPC .

    8 - A utilização da correspondência realizada entre o senhorio e o inquilino para fins de cessação de contrato, encontra-se consagrada na Lei, designadamente, na alínea f) do n.º 2 do artº 15º da Lei 6/2006, para a utilização do procedimento especial de despejo, em caso de denúncia pelo arrendatário.  

                                                                     ***

Em resposta a recorrida pugna pela confirmação do despacho, ancorada nos seguintes argumentos:

1.ª O despacho objeto do presente recurso alicerça-se no argumento de que, aquando da  instauração da acção executiva pela Recorrente (o que sucedeu em 28.10.2013), os  documentos juntos com o requerimento executivo já não constituíam título nos termos legalmente previstos; 

2.ª A documentação que instruiu a peça processual em análise – a saber, a troca de comunicações entre as partes ao abrigo dos artigos 50.º e seguintes do NRAU – nunca constituiu título executivo nos termos da Lei; 

3.ª O mecanismo de actualização de renda e transição contratual de que a Recorrente lançou mão (previsto nas disposições referidas no parágrafo antecedente), foi introduzido no NRAU pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto;    

4.ª Antes da aprovação daquele complexo normativo, e com relevância para o caso sub iudice, o NRAU (redação aprovada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro) continha um artigo – 15.º - sob a epígrafe “ Título executivo ”, cujo teor aqui se dá por reproduzido; 

5.ª Da referida disposição não constava – nem poderia, aliás, constar, pois que tal mecanismo apenas foi introduzido no NRAU pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto – como título executivo para efeitos de entrega de coisa certa, a referida troca de comunicações, maxime a denúncia pelo Senhorio efectuada no âmbito de processo de actualização de renda e transição contratual previsto nas referidas disposições; 

6.ª Com a sobredita alteração legislativa, disposição de teor muito idêntico foi inserida em nova Subsecção do NRAU – artigo 15.º, cujo teor também se dá por reproduzido - intitulada “Procedimento especial de despejo ”; 

7.ª A par com a criação do Balcão Nacional do Arrendamento (“...”), também resultante daquela Lei, foi introduzido um novo meio processual destinado a efectivar a cessação do arrendamento, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na Lei ou na data fixada por convenção entre as partes, o qual tem uma tramitação simplificada e iminentemente extrajudicial; 

8.ª Com aquela alteração, foi retirada força executiva imediata aos documentos que outrora serviam de base à acção executiva para entrega de coisa certa (vide anterior redação do artigo 15.º supra) e que, genericamente e com as necessárias adaptações decorrentes das alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, e a previsão de circunstâncias adicionais em casos pontuais, configuram assim, agora, elementos base para recurso ao ...; 

9.ª Contudo, os documentos que instruíram o Requerimento Executivo – a saber, a troca de comunicações entre a Recorrente e a Recorrida ao abrigo do disposto nos artigos 50.º e seguintes do NRAU – nunca configuraram título executivo para entrega de coisa locada, nem passaram, agora, a configurar; 

10.ª A este respeito, importa atentar no n.º 1 artigo 703.º do CPC;   

11.ª Assim, e não estando aqui manifestamente em causa nenhum dos documentos referidos nas alíneas a) a c) do referido preceito, veio a Recorrente invocar que os mesmos cairiam no escopo da alínea d), ou seja, teriam força executiva atribuída por disposição especial (que, curiosamente ou talvez não – em parte alguma das Alegações de recurso vem mencionada); 

12.ª Ora, compulsado o NRAU, necessariamente se constata que em parte alguma se confere à documentação trocada entre Senhorio e Arrendatário no âmbito da actualização de renda e transição contratual aquela natureza; 

13.ª De facto, da análise do NRAU, na redacção actualmente em vigor, encontramos um único caso de título executivo de carácter “imediato”, o qual, contudo, serve de base à execução para pagamento de rendas, encargos ou despesas (cfr. artigo 14.º-A do NRAU); 

14.ª Impõe-se, pois, concluir que, para efeitos de recuperação, pelo Senhorio, da posse de imóvel dado em arrendamento, haverá agora que recorrer, ou a acção judicial declarativa ou, nos casos em que a Lei o permita (e que, como veremos, não tem aplicação no presente), ao procedimento especial de despejo junto do ..., 

15.ª Procedimentos em resultado dos quais, e em função dos correspondentes desenvolvimentos, poderá efectivamente vir a obter-se, no primeiro caso, título executivo stricto sensu e, no segundo, título para entrega coerciva do locado; 

16.ª Do acima exposto resulta evidente que o legislador não quis conferir força executiva, nem à troca de comunicações entre o Senhorio e o Arrendatário no âmbito do processo de actualização de rendas e transição contratual previsto no NRAU, 

17.ª Nem – e neste ponto a Recorrida diverge do Tribunal a quo – incluir no leque de circunstâncias que permitem o recurso ao procedimento especial de despejo junto do ... aquela documentação, maxime, a denúncia efetuada pelo Senhorio nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 52.º, alínea a) do n.º 5 e n.º 7 do artigo 33.º, todos do NRAU, na sua redação atualizada; 

18.ª De facto, as únicas situações de denúncia por parte do Senhorio que podem servir de base ao procedimento especial de despejo são as que, conforme resulta da actual alínea d) do artigo 15.º do NRAU, se encontram previstas na alínea c) do artigo 1101.º e no n.º 1 do artigo 1103.º, ambos do Código Civil, 

19.ª E que correspondem, respectivamente, (i) aos casos de denúncia mediante comunicação com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação e (ii) aos casos de denúncia por necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau ou para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado, 

20.ª Situações que, como se viu, não estão aqui em causa; 

21.ª A alínea d) do artigo 15.º do NRAU, na sua redacção inicial (conferida pela Lei n.º 6/2006, de Fevereiro), apenas previa como título executivo a comunicação de denúncia prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 1101.º, acompanhada da comunicação prevista no artigo 1104.º, ambos do Código Civil, também na sua redacção anterior (e que, naquela altura, previam o envio de uma comunicação inicial com um pré-aviso mínimo de 5 anos e de uma confirmação subsequente, com antecedência máxima de 15 meses e mínima de 1 ano, relativamente à data da sua efetivação, sob pena de ineficácia); 

22.ª Dito de outro modo: apesar de expandir os casos de comunicação de denúncia por parte do Senhorio que servem agora de base ao procedimento especial de despejo, por comparação com aqueles que constituíam antes título executivo (pois passa a incluir a comunicação de denúncia por necessidade de habitação ou para efeitos de realização de obras de remodelação), o legislador não previu expressamente como título para recurso ao ... a denúncia pelo Senhorio operada no âmbito do procedimento de actualização de renda e transição contratual; 

23.ª E nem se diga que tal “lacuna” se terá tratado de um mero lapso do legislador, traduzido na omissão (no novo artigo 15.º do NRAU) a qualquer referência à documentação trocada entre Senhorio e Arrendatário no âmbito do procedimento de actualização de renda e transição contratual que, como se viu, é um mecanismo recente, tendo sido introduzido no NRAU pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, 

24.ª Pois foi expressamente incluída na alínea f) daquele artigo, como documento base do processo especial de despejo junto do ..., “o comprovativo da comunicação da iniciativa do senhorio e o documento de resposta do arrendatário ”, “ em caso de denúncia pelo arrendatário, nos termos (…) dos artigos 34.º e 53.º da presente lei ” (sublinhados nossos); 

25.ª Deverá, antes, concluir-se que, tendo tido oportunidade de o fazer, o legislador optou por afastar a possibilidade de recurso a um mecanismo simplificado de despejo, nos casos de denúncia pelo Senhorio no âmbito do procedimento previsto nos artigos 50.º e seguintes do NRAU, na sua redacção actualizada, 

26.ª Pelo que, e seguindo a mesma lógica, acaso existisse ainda no NRAU a figura do “título executivo para entrega de coisa certa”, o legislador não incluiria a acima referida documentação, em particular a comunicação de denúncia no conjunto de documentos com força executiva para esse efeito, nem tal inclusão poderia admitir-se feita por interpretação analógica do artigo 15.º, alínea d), do NRAU (pois a mesma constitui norma especial em relação ao citado artigo 703.º, alínea d), do CPC, não permitindo, assim, tal exercício); 

27.ª Por fim, importa atentar no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil. 

                                                                        ***

Factos Provados:

1 - Em 5 de Novembro de 1924, foi dado de arrendamento por A. à Companhia ..., Limitada, uma loja sita no ..., em ...

2 - A ora apelante adquiriu em 6 de Abril de 2004, o prédio urbano onde tal loja se situa.

3 - A executada adquiriu por trespasse, em Dezembro de 2005, o estabelecimento comercial instalado na referida loja;

4 - Em 29 de Janeiro de 2013, a apelante enviou à inquilina uma carta cuja cópia consta dos autos a fls 14 e pela qual e ao abrigo do disposto no art.º 50 da Lei 6/2006, segundo a redação conferida pela lei 31/2012, propôs o seguinte:

a) O valor da nova renda seria de €10.000,00 mensais;

b) A finalidade do arrendamento continuaria a ser «não habitacional»;

 c) E o prazo de duração inicial seria de cinco anos, renováveis por períodos de dois anos, caso não fosse denunciado por qualquer das partes no prazo legal. 

5 - A inquilina, ora executada, enviou à apelante, em 26 de Fevereiro de 2013, uma carta cuja cópia consta dos presentes autos a fls 15 e na qual contrapropôs o seguinte:

a) A nova renda mensal seria de € 2.000,00;

b) O prazo inicial de vigência do arrendamento seria de 20 anos.

6 - Em 4 de Março de 2013, a apelante enviou à inquilina uma carta cuja cópia consta dos presentes autos a fls 16 e 18, pela qual comunicou o seguinte, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 33 do N.R.A.U., aplicável por força do artigo 52º do mesmo diploma legal, segundo a redação conferida pela Lei 31/2012:

a) Não aceitamos a proposta da carta constante na carta de fls 15 dos presentes autos;

b) Denunciamos pela presente carta o contrato de arrendamento em referência, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 5 do art.º 33 do N.R.A.U., segundo a redação conferida pela Lei 31/2012;

c) A denúncia produzirá os seus efeitos no prazo de 6 meses a contar da receção da carta;

d) Pelo que nos termos do disposto no n.º 7 do artigo 33 do N.R.A.U., segundo a redação conferida pela Lei 31/2012, o rés-do-chão em casa deveria ser desocupado, no prazo de 30 dias, após ter decorrido o prazo de seis meses;

e) A indemnização legal prevista na alínea a) do n.º 5 do artigo 33 do N.R.A.U., no montante de trezentos e sessenta mil euros, será paga em observância do disposto no n.º 9 do mesmo normativo – aquando da entrega das chaves; 

7 - A inquilina recebeu a carta acima mencionada em 5 de Março de 2013, conforme se prova pelo documento de fls 19 dos presentes autos.

                                                                 ***

Análise do recurso:

        A única questão a dilucidar neste recurso é o meio processual para o senhorio obter a entrega do locado no termo do prazo estabelecido no nº7 do artigo 33º da Lei nº6/2006, na redação introduzida pela Lei nº31/2012, de 14 de agosto, após ter denunciado o contrato de arrendamento, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 5 do mesmo artigo.

Como assinala Maria Olinda Garcia (Arrendamento Urbano Anotado, Regime Substantivo e Processual, pág. 134) “a Lei nº31/2012 veio introduzir profundas alterações em matéria de correção extraordinária das rendas nos contratos mais antigos por iniciativa do senhorio, estabelecendo também amplas possibilidades de tais contratos deixarem de ter impedimentos ao direito de livre denúncia do senhorio (o que a lei designa como transição para o NRAU), conferindo ainda a este sujeito o direito de denunciar o contrato mediante o pagamento de uma indemnização (…) quando as partes não cheguem a acordo quanto ao valor de uma nova renda”.

      Tal regime legal aplica-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU e aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do DL nº257/95, de 30 de setembro (artº27º).

No caso vertente o litígio reporta-se a um contrato de arrendamento não habitacional, cujo início ocorreu em 1924 e que foi transmitido à apelada no âmbito de um trespasse que teve lugar em Dezembro de 2005, sendo-lhe por isso aplicável o disposto nos artigos 50 a 54º, nomeadamente o disposto no artigo 33º, com exceção do seu nº8, ex vi do artigo 52º.

        Nenhum vício vem assacado à iniciativa da senhoria tendente à transição para o NRAU e à atualização da renda, a qual veio a desembocar, perante a contraproposta da arrendatária, na denúncia do contrato de arrendamento, sob invocação do disposto na alínea a) do nº5 do artigo 33º do NRAU.

        Por aplicação do disposto no nº7 do mesmo artigo, a denúncia produziu efeitos no prazo de seis meses a contar da receção e o arrendatário devia desocupar o locado e entregá-lo à senhoria no prazo de 30 dias, o que vale por dizer, até 5 de Novembro de 2013.

         Mas, decorrido tal prazo sem que a desocupação tivesse sido feita, surge então a dúvida que é o tema deste recurso: qual o meio processual para o senhorio obter a entrega coativa do locado cujo contrato de arrendamento foi denunciado nos termos previstos na alínea a) do nº5 do artigo 33º do NRAU, introduzido pela Lei nº31/2012.

Como se sabe as formas de cessação do contrato de arrendamento são a revogação por acordo das partes, a resolução, a caducidade e a denúncia.

            Porém, e como refere Elisabeth Fernandez (Revista Julgar, nº19, pág. 63) “há que fazer uma distinção entre as formas de operar a cessação de um contrato de arrendamento e a forma de efectivar a desocupação do imóvel cujo arrendamento foi cessado”.

            No primeiro caso, o mesmo pode ser cessado com recurso a meios extrajudiciais (acordos, o mero decurso do tempo e comunicações entre os contratantes) e por formas processuais (as quais implicam o recurso a tribunal).

No caso vertente, apenas se cuida da forma de efetivar a desocupação do imóvel cujo contrato de arrendamento foi denunciado pelo senhorio e, como se colhe das conclusões acima transcritas, enquanto a recorrente sustenta que o meio processual adequado é a execução para entrega de coisa certa, a recorrida entende que tal entrega só pode ser feita em execução de sentença proferida em “ação judicial declarativa”.

           Estão por isso as partes em sintonia sobre a inaplicabilidade ao caso concreto do procedimento especial de despejo (doravante abreviadamente designado por PED), criado pela Lei nº31/2012, que defere a um órgão novo, o Banco Nacional de Arrendamento (...), dependente da Direção Geral da Administração da Justiça, a competência para, de um modo que se propõe ser célere e seguro, criar o título executivo para desocupação do locado.

            Na verdade, a Lei nº6/2006 que aprovou o NRAU veio criar diversos títulos executivos extrajudiciais, permitindo ao senhorio instaurar execução com base em documentos particulares, elencando no seu artigo 15º as situações em que tais documentos podiam servir de base à execução.

    Deixando de lado as restantes situações por não contribuírem para o esclarecimento que nos propomos, com tal diploma passou a ser possível instaurar execução para desocupação do locado, no caso de o arrendatário resolver o contrato por mora no pagamento da renda, por tempo superior a três meses (alínea e) do nº1 do artigo 15º).

      De igual forma, podia o senhorio intentar execução com base na denúncia feita ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 1101º do CC [alínea d) do nº1 do artigo 15º].

            Por fim, podia o senhorio promover execução, na sequência de iniciativa sua tendente à atualização da renda, nos termos previstos nos artigos 30º e segs, quando o arrendatário optasse pela denúncia facultada no nº5 do artigo 37º [alínea f) do nº1 do artigo 15º].

    Em qualquer dos casos enunciados o título executivo que servia de base à execução para entrega do locado tinha por base os documentos especificados nas alíneas citadas, o que vale por dizer que foi dispensada a intervenção do tribunal na formação do título executivo nas diversas situações inventariadas no citado artigo 15º, com o confessado propósito de agilizar o despejo e, por essa via, desenvolver o mercado de arrendamento.

     Todavia esse objetivo não terá sido alcançado (lembra-se que os próprios senhorios continuaram a recorrer a tribunal para obter a resolução dos contratos, mesmo no caso de falta de pagamento de rendas, faculdade que veio a ser reconhecida como alternativa válida por jurisprudência que se foi consolidando) e, face a tal insucesso, “logo no preâmbulo da proposta de Lei nº38/XII, se anuncia que a mesma concretiza as medidas vertidas no Memorando de Entendimento celebrado entre Portugal e a C. E., o BCE e o FMI, e se inscreve num amplo e profundo conjunto de reformas centrado na aposta clara do Governo na dinamização do mercado de arrendamento (…)”, como lembra a Desembargadora Albertina Pedroso, em artigo inserido na Revista Julgar, nº19, pág. 37.

    Foi em execução da tal propósito que surgiu a Lei nº31/2012 a criar o PED, definido como “um meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes” (nº1 do artigo 15º).

  Precisando conceitos, diremos, na esteira de Elisabeth Fernandez acima citada, que tal definição não é exata, porquanto confunde “as formas de operar a cessação de um contrato de arrendamento e a forma de efetivar a desocupação do imóvel cujo arrendamento foi cessado”.

    Ou seja, em face da redação do artigo 15º do NRAU, introduzida pela Lei nº31/2012, os documentos que antes serviam de base à execução perderam tal virtualidade e servem agora para instruir o requerimento dirigido ao ..., ao qual compete a constituição de título para desocupação do locado, a menos que seja deduzida oposição eficaz pelo inquilino, caso em que os autos são remetidos para distribuição, à semelhança do que sucede com o procedimento de injunção.

  Ou seja, a desjudicialização do despejo só funciona se o inquilino não deduzir oposição formalmente válida, o que legitima justificadas dúvidas sobre o efeito do PED na dinamização do mercado de arrendamento, sendo óbvio que, no tocante às situações elencadas na primitiva redação do artigo 15º do NRAU, a posição processual do senhorio ficou dificultada, pois ali tinha ao seu dispor um título executivo e agora passou a ter documentos que apenas o habilitam a requerer junto do ... a criação de título para desocupação do arrendado.

            Mas, cotejadas as situações elencadas na atual redação do artigo 15º, verifica-se que elas replicam no essencial os mesmos casos a que a primitiva redação conferia força executiva, onde obviamente não estava prevista a denúncia operada pelo senhorio no âmbito da negociação com vista à introdução de modificações objetivas do contrato, processo que a lei designa como “transição para o NRAU”.

          Ora, no quadro legal por que se rege tal mudança de regime, a lei prevê que o inquilino, quando confrontado com a proposta do senhorio, denuncie ele próprio o contrato de arrendamento [alínea d) do nº3 do artigo 31º], tendo esta denúncia sido acolhida na redação da alínea f) do nº1 do citado artigo 15º.

            Porém, o mecanismo tendente à “transição para o NRAU” também prevê a extinção do contrato por denúncia do senhorio, quando este não aceite o valor da renda proposto pelo arrendatário [alínea a) do nº5 do artigo 33º], faculdade igualmente aplicável no domínio do arrendamento não habitacional, por força da extensão operada pelo artigo 52º.

            Recorda-se que é precisamente esta a situação sub judicio.

            Sucede que o legislador, diversamente do que sucedeu com a denúncia do contrato pelo arrendatário comunicada no âmbito do incidente de transição para o NRAU, não acolheu tal denúncia no elenco das situações que legitimam o recurso ao PED.

     Sendo óbvio que tal exclusão não pode presumir-se imputável a lapso do legislador [que reiterou na alínea d) os casos de denúncia motivada e imotivada pelo senhorio], temos então de sufragar o entendimento das partes de que, em face do estrito teor literal do artigo, a comunicação de denúncia em análise não pode servir de base ao PED, ao contrário do que circunstancialmente foi referido no despacho recorrido.

            Mas então, se a comunicação da denúncia não permite ao senhorio socorrer-se do PED para “efetivar a desocupação do imóvel cujo contrato se extinguiu”, não será legítimo lançar mão do processo executivo para entrega de coisa certa como o senhorio pretendeu e aqui reitera?

 A Lei nº6/2006 que aprovou o NRAU alterou o CPC, aditando-lhe o artigo 930º-A com a epígrafe “Execução para entrega de coisa imóvel arrendada” (que a doutrina condensa na sigla EPECIA), acomodando por essa via a entrega coativa ancorada nos novos títulos executivos extrajudiciais previstos no já citado artigo 15º, bem como na ação de despejo e em qualquer título judicial impróprio.

            Obviamente que, após 12/11/2012, com o início da vigência das normas introduzidas pela Lei nº31/2012, o senhorio que resolver o contrato a coberto do nº2 do artigo 1084º do CC, não pode instaurar execução a coberto do disposto na alínea e) do nº2 do artigo 15º do NRAU, pela singela razão de que os documentos ali previstos apenas lhe permitem que requeira ao ... a constituição de título para a desocupação do locado.

           Do mesmo modo, se após ter desencadeado a transição para o NRAU, o inquilino denuncia o contrato mas não entrega o arrendado, ao senhorio apenas resta requerer procedimento especial de despejo junto do B… para formação de título de desocupação, pois a comunicação da denúncia não constitui título executivo.

Assim sendo, em que título pode basear-se a E… no caso de ter sido o senhorio a denunciar o contrato nos termos previstos na alínea a) do nº5 do artigo 33º, sabendo-se que tal denúncia nem sequer lhe aproveita para requerer tal procedimento?

Pronunciando-se sobre a controvérsia em torno do carácter vinculativo ou opcional da revogação do arrendamento aludida na alínea a) do nº1 do artigo 15º do NRAU na sua primitiva redação, dizia Elisabeth Fernandez (obra citada, pág. 64) que “se vier a ser aprovada tal como está a proposta de lei de revisão do CPC, a alternatividade cessa, restando apenas a opção pelo PED se a revogação constar apenas de documento particular”.

E assim veio a suceder, pois o novo CPC aprovado pela Lei nº41/2013, de 26 de Junho, suprimiu pura e simplesmente tais documentos particulares do elenco dos títulos executivos, dado que a Comissão Revisora entendeu que ofereciam um diminuto grau de segurança e, por essa razão, eram aqueles que estavam mais sujeitos à dedução de oposição à execução, sob os mais variados fundamentos.

Ou seja, a revogação por mútuo acordo do contrato de arrendamento não dispensa o senhorio de lançar mão do procedimento especial de despejo para obter a entrega coativa do locado, pois tal documento deixou de ser título executivo, com a exclusão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos e, por outro lado, foi eliminada a lei especial (a anterior redação do artigo 15º do NRAU) que conferia força executiva ao acordo aludido na alínea a) do seu nº1.

Qual então a via procedimental para o senhorio obter a restituição do locado decorrido o prazo de sete meses (nº7 do artigo 33º), contados desde a receção da comunicação da denúncia?

Por falta de título executivo já vimos que não pode ser instaurada execução para entrega de coisa certa, mas tem também razão a recorrente quando refere (conclusão 3ª) que “a ação de despejo consignada no artº 14º do NRAU visa atualmente, a resolução de contratos de arrendamento, pelo que não é aplicável à questão «sub judice»”.

Como se sabe a operacionalidade do ... só alguns meses depois da sua criação foi alcançada, o que levantou dúvidas sobre a possibilidade de instauração de execução com base nos documentos a que se referia o artigo 15º do NRAU, após a entrada em vigor da lei nº31/2012 (ver sobre o tema Ac. R. L. de 30/1/2014, Luís Mendonça).

Porém, tal dúvida, judiciosamente resolvida no acórdão citado, nada tem a ver com a questão que nos ocupa e que se resume a saber a via procedimental para “tornar efetiva a desocupação do imóvel cujo arrendamento foi cessado por denúncia do senhorio”.

Ora se a recorrente não dispõe de título executivo, nem pode obtê-lo por recurso ao PED, é incontornável a conclusão de que tal desocupação só pode ser alcançada em execução de sentença que condene a inquilina a entregar o imóvel, ainda que porventura tal via processual se apresente desalinhada dos desígnios da Troika e do propósito do legislador.

E mesmo que possa sustentar-se que, partilhando ambas a finalidade teleológica enunciada no nº1 do artigo 15º, não há justificação para o tratamento diferenciado da denúncia no procedimento de transição para o NRAU, conforme é da iniciativa do inquilino ou do senhorio e se estenda a esta última a possibilidade de recurso ao PED, nenhum proveito daí resulta para a posição processual do recorrente, pois o objeto do recurso está confinado à dilucidação da exequibilidade dos documentos juntos com o requerimento inicial e não à inventariação das situações que se adequam a tal procedimento.  

Assim e em suma, a apelação não merece provimento.

                                                            ***

Decisão:

Em face do exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se o indeferimento liminar da execução requerida pela recorrente.

            Custas pela exequente/recorrente.

..., 3 de Junho de 2014

(Gouveia Barros)

(Conceição Saavedra)

(Cristina Coelho)