Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2044/16.1T8SNT-B.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: PESSOA COLECTIVA
CITAÇÃO POSTAL
SEDE SOCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–O novo Código de Processo Civil, em matéria de citação de “pessoas coletivas”, abandonou a anterior alternativa sede estatutária/sede de facto, admitindo apenas a citação na primeira.
 II–Tratando-se da citação de uma sociedade anónima, como tal sujeita a inscrição obrigatória no FCPC (ficheiro Central de Pessoas Coletivas), a expedição de carta para citação dirigida a morada que, tendo sido a sede estatutária inscrita, da sociedade comercial citanda, já deixou de o ser há vários anos à data de tal expedição, de acordo com o constante do FCRNPC, é situação equiparável à da completa omissão do ato de citação.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


I–C e C requereu a declaração de insolvência de P, S. A., que veio a ter lugar por sentença de 03-06-2016.

Inconformada recorreu a declarada insolvente, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
“1.O presente recurso tem por objeto a sentença proferida em 03.06.2016, pelo Tribunal de Comarca de Lisboa Oeste - Sintra - Instância Central - Secção Comércio - J2, no âmbito do Processo n.º…, nos termos do qual o Tribunal a quo declarou a insolvência da ora Apelante.
2.Esta decisão deverá ser revogada porque a pretensa "citação" da Apelante configura uma grave violação disposto nos art. 29° do CIRE, bem como do disposto nos art. 187° a), 188° n.º 1, aI. e) e 246° todos do CPC aplicáveis ex vi art. 17° do CIRE.
3.Estabelece o art. 225° n.º 2 do CPC que a citação pessoal é feita mediante (i) transmissão eletrónica de dados, (ii) entrega de carta registada com aviso de receção ou (iii) contacto pessoal do agente de execução ou do funcionário judicial com o citando.
4.Resulta do art. 223° n.º 1 que as pessoas coletivas são citadas na pessoa dos seus legais representantes, esclarecendo ainda o n. ° 3 da mesma disposição que as sociedades e as pessoas coletivas consideram-se ainda pessoalmente citadas na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração.
5.Estabelece o art. 246° do CPC que a citação de pessoas coletivas é realizada por via postal, através de carta registada com aviso de receção (art. 228°, n° 1), feita por carta endereçada para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas (art. 246°, n.º 2) e não na sede de facto, conceito que a lei não reconhece, cfr. Ac. do TRL datado de 12.05.2015 e Ac. TRE datado de 26.03.2015 disponíveis em www.dgsi.pt.
6.A sede da Apelante que se encontra inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas situa-se na Rua …Porto e não em …Carnaxide.
7.A citação da Apelante foi efetuada mediante carta registada remetida para uma morada antiga que não corresponde à atual sede da Apelante.
8.Não tendo a citação sido efetuada na sede da Apelante que se encontra inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas não pode a mesma considerar-se corretamente válida, o que equivale a dizer que não foi efetuada a citação da Apelante, por não terem sido observadas as formalidades prescritas por Lei.
9.Estipula o art. 188° n.º 1 e) do CPC que "Há falta de citação quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável."
10.Concretiza o art. 187° a) do CPC que "É nulo tudo o que se processe depois da petição inicial, salvando-se apenas esta quando o réu não tenha sido citado."
11.A omissão ou falta de citação da Apelante configura a existência de nulidade processual cfr. previsto no art. 187° a) do CPC, nulidade essa que é de conhecimento oficioso (cr. art. 196°) e que determina a anulação do processado posterior à petição, nomeadamente da sentença de prolação de insolvência.
12.Procedendo a invocada nulidade, conforme se espera, deverá ser dado sem efeito todo o processado posterior à petição, nomeadamente o despacho de fls. (...citação da Apelante em …Carnaxide, a citação efetuada na referida morada e a sentença de insolvência proferida.
13.A citação da Apelante está inquinada de nulidade, tendo a Apelante arguido esta nulidade na qualidade de interessada, ao abrigo do disposto nos art. 29° do CIRE, 187° aI. a), 188° aI. e), 196° e 246° do C.P.C., motivo pelo qual a mesma não se poderá considerar sanada e deverá ser julgada verificada (e, consequentemente, procedente), pelo Tribunal ad quem.
14.Caso assim não se entenda (o que não se concede), sempre esta nulidade deverá ser julgada procedente, nos termos do disposto no art. 187° aI. a) e 188° aI. e) do CPC, na medida em que, perante o exposto, é manifesto que a irregularidade cometida influiu no exame e na decisão da causa, ao permitir que se considere citada a Apelante numa morada antiga que não corresponde à atual sede.
15.Resulta, assim, do exposto, que a sentença recorrida violou e interpretou erroneamente o disposto nos art. 29° do CIRE, bem como do disposto no art. 187° a), 188° n.º 1, aI. e) e 246° todos do CPC aplicáveis ex vi art. 17° do CIRE, impondo-se, portanto, a sua revogação.
16.Deve, portanto, ser dada à Apelante a oportunidade, tal como resulta da legislação em vigor, de alegar e provar, no processo instaurado, que está solvente e é capaz de honrar os seus compromissos!”.

Em resposta às alegações da Recorrente, concluiu a Recorrida:

“A)Face à morada para qual a ora recorrente foi considerada citada, não corresponde à sede da mesma, requer-se a V. Exa. que declare nula a sentença de declaração de insolvência da ora recorrente.
B)Tendo em conta que a ora recorrente teve conhecimento da sentença de declaração de insolvência, deve considerar-se a mesma citada na data em que esta interveio no processo pela 1.ª vez.
C)Assim, adere a recorrida, através da presente contra-alegação de recurso, ao exposto nos presente autos pelo Senhor Administrador de Insolvência Dr…, requerendo a V. Exa. que conceda prazo para se pronunciar/deduzir oposição quanto ao teor da petição inicial que requereu a declaração de insolvência da ora recorrente.”.

Remata com a concessão de “prazo à ora recorrente para se pronunciar/deduzir oposição quanto ao teor da petição inicial que requereu a declaração de insolvência.”.

II-Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.

Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do Código de Processo Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal, a de saber se se verifica a nulidade de falta de citação da Requerida no processo de insolvência.
***

Com interesse resulta dos autos, para além do que se deixou referido em sede de relatório, que:

a)Por despacho de 14-03-2016, considerando-se que “Da certidão do registo comercial relativa à requerida, retira-se que a sede actual da mesma é …Carnaxide.”, ordenou-se a citação da “requerida em tal morada, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 29.° e 30.° do CIRE.”, conforme folhas 34, que aqui se dá por reproduzida.
b)Em 17-03-2016, foi expedida carta com A/R para citação da Requerida, “nos termos do disposto no artigo 228º do Código de Processo Civil”, com reporte à “Sede e Escritório –…Carnaxide”, conforme folhas 60 e 61, que aqui se dão por reproduzidas.
c)Em 31-03-2016, foi expedida uma segunda carta para citação da Requerida “Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 246º do Código de Processo Civil”, com reporte à “Sede e Escritório –…Carnaxide”, conforme folhas 63 a 65, que aqui se dão por reproduzidas, sendo nosso o grifado.
d)A Requerida P, S. A. consta no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, desde pelo menos 25-11-2010, como tendo sede na Rua…Porto, conforme documento de folhas 44 a 55 – maxime a folhas 54 – que aqui se dá por reproduzido.
e)Em 09-08-2016, a Requerida P, S. A., arguiu a falta de citação da sua pessoa, na 1ª instância, não tendo recaído despacho sobre o requerimento respetivo.
***

Vejamos.

1.Nos termos do disposto no artigo 187º, alínea a) do Código de Processo Civil, “É nulo tudo o que se processe depois da petição inicial, salvando-se apenas esta: “quando o réu não tenha sido citado.”.

Sendo que de acordo com o disposto no artigo 188º, do mesmo Código:
“1-Há falta de citação:
a)Quando o ato tenha sido completamente omitido;
b)Quando tenha havido erro de identidade do citado;
c)Quando se tenha empregado indevidamente a citação edital;
d)Quando se mostre que foi efetuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste, tratando-se de pessoa coletiva ou sociedade;
e)Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável.
2-(…)”.

No tocante à citação de “pessoas coletivas” – incorreção terminológica subsistente no atual Código de Processo Civil, e certo que pessoas coletivas são as designadas, no Código civil de Seabra, como “pessoas morais”, a saber, as fundações e associações, por contraponto às sociedades, sendo que se pretende regular a citação de todas elas – rege o artigo 246º do Código de Processo Civil:
“1-Em tudo o que não estiver especialmente regulado na presente subsecção, à citação de pessoas coletivas aplica-se o disposto na subsecção anterior, com as necessárias adaptações.
2-A carta referida no nº 1 do artigo 228º é endereçada para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.
3-Se for recusada a assinatura do aviso de receção ou o recebimento da carta por representante legal ou funcionário da citanda, o distribuidor postal lavra nota do incidente antes de a devolver e a citação considera-se efetuada face à certificação da ocorrência.
4-Nos restantes casos de devolução do expediente, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de receção à citanda e advertindo-a da cominação constante do nº 2 do artigo 230º, observando-se o disposto no nº 5 do artigo 229º
5-O disposto nos nºs 3 e 4 não se aplica às citandas cuja inscrição no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas não seja obrigatória.”.

Tratando-se “A carta referida no nº 1 do artigo 228º”, de carta registada com aviso de receção, de modelo oficialmente aprovado, dirigida ao citando.

E sendo que a referida carta incluirá os elementos referidos no artigo 227º do Código de Processo Civil, ex vi daquele artigo 228º, n.º 1.

Também, nos termos do artigo 6.º do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 129/98, de 13 de Maio:

Estão sujeitos a inscrição no FCPC (ficheiro Central de Pessoas Coletivas) os seguintes actos e factos relativos a pessoas colectivas:
a)Constituição;
b)Modificação de firma ou denominação;
c)Alteração do objecto ou do capital;
d)Alteração da localização da sede ou do endereço postal, incluindo a transferência da sede de e para Portugal;
e)A alteração do código de actividade económica (CAE);
f)Fusão, cisão ou transformação;
g)Cessação de actividade;
h)Dissolução, encerramento da liquidação ou regresso à actividade.” (grifado nosso).

2.Ora, isto visto, temos que com as cartas expedidas para citação da sociedade anónima P, S. A., por reporte ao endereço “…Carnaxide”, não se deu cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 246º supracitado.

Com preterição do que José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1] designam de “sede estatutária”, constante do ficheiro central do Registo Nacional de pessoas coletivas.

O que não pode deixar de se considerar como integrando situação de efetiva falta de citação.

Nesse sentido indo os sobreditos Autores, quando anotam que se justifica o tratamento como falta de citação, “quando a carta para citação tenha sido enviada para local que não corresponde à residência ou local de trabalho do citando (cf. LEBRE DE FREITAS, em nome da Ordem dos Advogados, Parecer cit., p. 625) ou este tenha sido dado erradamente pelo funcionário judicial como residente ou trabalhando no local da citação com hora certa (cf. art. 232-1).”.[2]

Na verdade, determinando a lei de processo que a citação de “pessoa coletiva” se faça por reporte à sede constante do ficheiro central do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, assim abandonando a consideração da sede de facto – e não estando agora aqui em causa a hipótese de domiciliação convencionada para efeitos de citação, previsto no artigo 229º, do Código de Processo Civil – fica estabelecida, sendo tal inscrição obrigatória, como é o caso, a irrelevância, no plano da citação, da expedição de carta para citação dirigida a morada que, tendo sido a sede da sociedade comercial citanda, já deixou de o ser há vários anos à data de tal expedição, de acordo com o constante do FCRNPC.

Tratando-se de situação equiparável à de completa omissão do ato de citação, na medida em que na perspetiva da transmissão ao citando dos elementos referidos no artigo 227º do Código de Processo Civil, nada acrescenta àquela.
*

Procedem destarte as conclusões da Recorrente, impondo-se a anulação de todo o processado depois da petição inicial, incluída a sentença declaratória da insolvência daquela.

Com efetivação da citação da Requerida, na estrita conformidade do disposto no artigo 246º do Código de Processo Civil, para os termos da ação respetiva.

III–Nestes termos, acordam em julgar a apelação procedente, e anulam todo o processado depois da petição inicial, incluída a sentença declaratória da insolvência daquela, devendo proceder-se à citação da Requerida, ora Recorrente, nos definidos termos.

Sem custas, por a elas não haver dado causa a Recorrente/recorrida.
***

Em observância do disposto no n.º 7 do art.º 663º, do Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, da responsabilidade do relator, como segue:
“I–O novo Código de Processo Civil, em matéria de citação de “pessoas coletivas”, abandonou a anterior alternativa sede estatutária/sede de facto, admitindo apenas a citação na primeira. II–Tratando-se da citação de uma sociedade anónima, como tal sujeita a inscrição obrigatória no FCPC (ficheiro Central de Pessoas Coletivas), a expedição de carta para citação dirigida a morada que, tendo sido a sede estatutária inscrita, da sociedade comercial citanda, já deixou de o ser há vários anos à data de tal expedição, de acordo com o constante do FCRNPC, é situação equiparável à da completa omissão do ato de citação.”.
*


Lisboa, 2016-12-07



(Ezagüy Martins)
(Maria José Mouro)
(Maria Teresa Albuquerque)



[1]In “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014.
[2]In op. cit. págs. 366, 367.