Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
163/09.0TTLSB-A.L1-4
Relator: JOSÉ FETEIRA
Descritores: TRANSACÇÃO
EXECUÇÃO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: I- A alteração anormal das circunstâncias, na abrangência do artigo 437º n.º 1 do Código Civil, corresponde a uma modificação insólita ou inabitual da base negocial em que as partes tenham fundado a celebração do contrato, sendo que essa base negocial, no domínio da alteração das circunstâncias, assume caráter objetivo e deve respeitar simultaneamente a ambos os contraentes;
II-Essa alteração deve, por outro lado, ser significativa, ou seja, deve assumir proporções tais que subvertam a própria economia do contrato, tornando-o lesivo para uma das partes contratantes ao ponto de, caso o contrato se mantenha nos termos em que foi celebrado, a exigência das obrigações por ela assumidas, sem se mostrar coberta pelos riscos próprios do contrato, afete gravemente os princípios da boa-fé;
III- A resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias depende, portanto, da verificação dos seguintes requisitos cumulativos: - (i) que haja uma alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal e que; - (ii) a exigência da obrigação à parte lesada afete gravemente os princípios da boa-fé contratual, não estando cobertos pelos riscos do próprio negócio.
(Elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório

AAA, na sua qualidade de Executado, deduziu, por apenso aos autos de execução de sentença que lhe foi movida pela Exequente BBB e que corre termos pela Comarca de Lisboa sob o n.º 163/09.0TTLSB.1, oposição à execução por embargos e oposição à penhora, alegando, em síntese, que a mesma se funda em sentença homologatória de transação judicial (transitada em julgado em 14.06.2010), sendo que esta resultou de acordo estabelecido entre os aqui Exequente e Executado realizado no gabinete da Mma. Juíza de Direito que presidiu à diligência e incidiu sobre três aspetos essenciais; a) o montante de uma compensação, b) o modo e o prazo de pagamento da mesma, c) a desistência de pedido reconvencional e de queixa-crime que o Executado havia intentado contra a Exequente.

Quer o montante da compensação acordado, quer o modo e o prazo de pagamento, tiveram como pressuposto essencial e “sine qua non” a circunstância de o Executado ser Advogado com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, bem como a circunstância de o mesmo se encontrar igualmente inscrito, na qualidade de estagiário, no primeiro estágio de agente de execução, prevendo-se a conclusão desse estágio no início do ano de 2011.

Nas conversações realizadas no gabinete da Mma. Juíza de Direito (que culminaram no referido acordo e transação), o Executado deixou claro que acordava no montante de compensação de € 10.000,00, bem como no modo e prazo de pagamento constantes do ponto 3 desse acordo, na condição de estar convicto de que seria apenas a sua atividade complementar de futuro agente de execução, cumulativamente com a de advogado, que lhe permitiria ter capacidade financeira para pagar aquele montante nos moldes e prazo ali estabelecidos, sendo que a Exequente ficou ciente de tal condição que afirmou compreender e aceitar.

Sucede que o Executado acabou por não poder concretizar a sua inscrição como agente de execução, o que se ficou a dever a circunstâncias anómalas e não previstas no momento em que se celebrou a referida transação.

Na verdade, logo no mês de julho de 2010 (18.07.2010) a CPEE (Comissão Para a Eficácia das Execuções) emitiu um comunicado através do qual determinou que o regime legal de incompatibilidades e impedimentos passava a ser aplicável ao agente de execução estagiário no segundo período de formação de estágio, desta forma alterando drasticamente o planeamento anteriormente feito pelo Executado no que diz respeito à adaptação do seu escritório de advocacia ao dito regime de incompatibilidades, o que constituiu impedimento para que pudesse frequentar o aludido período de formação e para que pudesse terminar o estágio e inscrever-se como agente de execução.

A aprovação do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução através da Lei 154/2015 de 14-09 veio a considerar incompatível o exercício do mandato judicial com as funções de agente de execução.

Esta alteração drástica e anormal de tão importantes circunstâncias em que o Executado e a Exequente fundaram a sua transação judicial não era, de todo, previsível e impossibilitou que aquele viesse a dispor da capacidade financeira para proceder ao pagamento do referido montante de compensação nos moldes e prazos acordados.

Acresce que devido a grave problema de saúde da mãe do Executado, este teve de lhe prestar assistência e acompanhamento diários, tendo, também por isso, sido forçado a interromper o estágio e a desistir da profissão de agente de execução, ao mesmo tempo que se viu forçado a diminuir, drasticamente, a atividade de advocacia com a consequente diminuição de rendimentos.

Entende o Executado que se deve proceder à modificação do contrato (transação) segundo juízos de equidade, propondo-se proceder ao pagamento dos €9.700,00 em dívida através de prestações mensais de €300,00.

Alega ainda ter havido abuso de direito da Exequente decorrente dos factos que enuncia nos artigos 34º a 57º do seu requerimento de oposição e que aqui se dão por reproduzidos, factos que têm a ver com a separação e divórcio que ocorreu entre si e sua ex-cônjuge, ambos pertencentes à Congregação das Testemunhas de Jeová e posterior relacionamento do Executado com uma outra companheira, de quem teve filhos, circunstâncias que foram alvo de ameaças, injúrias e agressões várias por parte dos membros daquela Congregação, sendo que grande parte dos clientes do Executado pertencia à mesma, os quais lhe retiraram o mandato, circunstância que criou ao Executado sérios problemas económicos.

Acresce que o senhor agente de execução procedeu à penhora de quinhão hereditário do Executado a herança indivisa, a qual tem motivações que ofendem os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, tratando-se de um abuso de direito, para além de que tal penhora não respeita os critérios impostos pelo artigo 751º do CPC, já que o bem penhorado é de muito difícil realização em comparação com outros bens do Executado.

Tal quinhão está em litígio judicial no Tribunal de Angra do Heroísmo desde 2009 e já foi objeto de uma outra penhora, sendo que o processo judicial de inventário não tem fim à vista e o Executado possui outros bens penhoráveis, designadamente os que identifica no artigo 67º do requerimento de oposição e que de forma mais expedita poderiam garantir o pagamento da quantia exequenda.

Conclui pedindo que:

I. Se considere procedente, com as legais consequências, a oposição à execução e, nomeadamente:
a) A modificação do contrato (transação) por alteração anormal das circunstâncias;
b) Sem prescindir, o manifesto abuso de direito por parte da Exequente.
II. Se considere procedente, com as legais consequências, a oposição à penhora e nomeadamente:
a) O manifesto abuso de direito por parte da Exequente.
b) A violação do artigo 751º do CPC, por parte da senhora agente de execução
III. Em consequência pede que se ordene o cancelamento da penhora do quinhão hereditário.

Por despacho proferido em 7 de novembro de 2016 foram indeferidos liminarmente os presentes embargos deduzidos pelo Executado e ora Embargante com base em manifesta improcedência dos mesmos.

Notificado desta decisão e inconformado com a mesma, dela veio o Executado/Embargante interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação, apresentando alegações que termina mediante a formulação das seguintes:

Conclusões.

I. Afirma-se da Douta Sentença recorrida que “o oponente limita-se a alegar circunstâncias desfavoráveis do seu próprio património não qualificáveis como alteração das circunstâncias como preceituado no art. 437º, nº1, do CPC”.
II. Ora, salvo o devido respeito (que é muito) a Douta Sentença do Tribunal a quo funda-se numa premissa factual errada.
III. Com efeito, não é de todo verdade que o ali oponente se tenha limitado a alegar circunstâncias desfavoráveis do seu próprio património.
IV. Nos artigos 3º (inclusive) a 20º (inclusive) o ali oponente invocou alterações de cariz legislativo geral que, por sua vez, alteraram por completo os pressupostos em que fundou o contrato (transacção).
V. E estas estão claramente contempladas no artigo 437º do Código Civil.
VI. Por outro lado, o aresto recorrido é completamente omisso relativamente a outro dos fundamentos invocados nos embargos, a saber: o abuso de direito, onde se alude nos artigos 34º (inclusive) a 58º (inclusive) do articulado do oponente.
VII. Esta omissão de pronúncia gera a sua nulidade - cfr. artigo 615º nº1 d) CPC.
VIII. E que igualmente se traduz em completa falta de fundamentação, também uma nulidade – cfr. 615º nº1 b) CPC.
IX. Termos em que deve a Douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que receba os embargos.
Assim farão Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, a verdadeira e costumada Justiça!

Não houve contra-alegação de recurso.

Admitido o recurso na espécie própria e com adequado regime de subida e efeito, o Mmo. Juiz do Tribunal a quo pronunciou-se sobre as invocadas nulidades da decisão recorrida, concluindo que a mesma delas não enferma.

Subindo os autos a esta 2ª instância e mantido o recurso, determinou-se que se desse cumprimento ao disposto no n.º 3 do art. 87º do CPT, tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitido o douto parecer de fls. 166 a 168 no sentido da improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.

Este parecer mereceu resposta discordante por parte do Apelante.

Pelas razões que figuram de fls. 171, foram dispensados os vistos dos Exmos. Adjuntos.

Cumpre, pois, apreciar e decidir o mérito do recurso em causa.

Apreciação

Dado que, como se sabe, são as conclusões de recurso que delimitam o seu objeto perante o Tribunal ad quem, no recurso em causa colocam-se, à apreciação deste Tribunal da Relação as seguintes:

Questões de recurso:

· Nulidades da decisão recorrida;
· Alteração de circunstâncias de cariz legislativo geral suscetíveis de modificar, por completo, os pressupostos da transação que constitui o título executivo e justificativas do recebimento dos embargos deduzidos.
Fundamentos de facto

Com relevo para a apreciação do mérito do recurso em causa, devem considerar-se os aspetos mencionados no precedente relatório e que aqui se dão por reproduzidos, bem como a decisão recorrida que é do seguinte teor:

«Nos presentes autos o executado AAA veio deduzir embargos de executado alegando nulidade ou anulabilidade da sentença apresentada como título executivo, nos termos do disposto no art.729º i) do C.P.C.

Como fundamento para o alegado vício argumenta a alteração das circunstâncias, descrevendo as vicissitudes que o impediram de aceder à carreira de agente de execução e as que afectaram a sua carteira de clientes.

No que à carreira de agente de execução se refere relata uma alteração legislativa que o impediu de aceder à mesma.

Já quanto à carteira de clientes relata o efeito que as mudanças de vida pessoal tiveram na sua clientela que partilhavam da mesma fé do ora oponente.

Cumpre apreciar

Compulsados os autos verifica-se que o título executivo é uma sentença homologatória de transacção transitada em julgado.

Nos termos do art.729.º, do CPC, a oposição à execução do presente título apenas poderá ter como fundamento:

a) Inexistência ou inexequibilidade do título;

b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;

c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;

d) Falta ou nulidade da citação para a ação declarativa quando o réu não tenha intervindo no processo;

e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;

f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;

g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;

h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;

i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.

No caso alega o oponente que as circunstâncias por si alegadas se subsumiriam em nulidade ou anulabilidade da transacção.

A alteração das circunstâncias como excepção ao princípio do cumprimento pontual dos contratos, encontra-se prevista no art. 437.º, do Código Civil. Nos termos do referido preceito admite-se que “Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”.

Este preceito é uma salvaguarda de equilíbrio contratual perante um modificação inesperada da base negocial.

Contudo, tal alteração não poderá atender a eventos pessoais de um dos contraentes.

Ao invés pretende prever eventos que alteram a base da generalidades dos negócios semelhantes.

Nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-01-2015, relatado por FONSECA RAMOS, processo n.º 876/12.9TBBNV-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt:

A alteração anormal é assim, não apenas a alteração extraordinária e imprevisível, mas ainda a alteração que desequilibra uma relação com particular intensidade. É este afinal o conteúdo útil do art. 437/1, ao prever que a exigência das obrigações afecte gravemente os princípios da boa fé.

A “exigência” e a “boa fé” vêm a despropósito como vimos, mas a “gravidade” não.

Só uma alteração significativa, grave portanto, leva a reconsiderar os termos do contrato. A alteração anormal é, não só a alteração extraordinária e imprevisível, como também uma alteração que afecta gravemente, manifestamente, a equação negocialmente estabelecida.”.

No muito recente Estudo publicado nos “Cadernos de Direito Privado”, nº47 Julho/Setembro 2014, da autoria do Professor Doutor Henrique Antunes “A alteração das Circunstâncias no Direito Europeu dos Contratos”, na pág. 13, sobre a anormalidade ou excepcionalidade da alteração, pode ler-se:

“A alteração das circunstâncias relevante tem de ser anormal. Na doutrina, distingue-se a anormalidade da imprevisibilidade, acolhendo à resolução ou modificação do contrato alterações que, embora previsíveis, sejam excepcionais, anómalas. É o caso dos cortejos reais […].

Mas pode não se justificar em outros casos, nos quais a boa fé obrigaria a outra parte a aceitar que o contrato ficasse dependente de determinada circunstância […].

É imprevisível a verificação de um evento, ou do seu alcance, quando, embora pudesse ser representado, em abstracto, pelas partes, a prevenção dos seus efeitos não lhes é imputável, em razão das circunstâncias contemporâneas da vinculação negocial, explicando, assim, que o bom pai de família acordasse, nos mesmos termos, o contrato.

A orientação proposta acolhe a exigência da imprevisibilidade e, também, o seu critério de densificação, o teste de razoabilidade, previstos nos Princípios Unidroit, nos PECL[5], no DCFR[6] e, por último, na Proposta de Regulamento relativo a um direito europeu comum da compra e venda.”

A circunstância pessoal de um contraente, no tempo histórico da celebração do contrato, releva para enquadrar objectivamente os motivos em que foi fundada a decisão de contratar, mas a alteração meramente pessoal superveniente, [ainda que por motivos externos à negociação mas não imprevísiveis], não é subsumível à previsão do art. 437º, nº1, do Código Civil, por este postular a verificação conjunta de outros requisitos que afectem a generalidade de negócios jurídicos do mesmo tipo; o que se pode afirmar é que a obrigação pecuniária do fiador ficou mais onerosa, onerosidade que não surgiu de forma imprevisível, anómala a todas as luzes.”

Ora, no caso em apreço o oponente limita-se a alegar circunstâncias desfavoráveis do seu próprio património não qualificáveis como alteração das circunstâncias como preceituado no art.437.º, n.º1, do CPC.

De resto, sendo a sua obrigação meramente pecuniária como resultante de um negócio judicial, que teve como contrapartida a composição do litígio no qual era parte, inexiste qualquer fundamento de alteração das circunstâncias que tenha tornado a exigibilidade da sua contraprestação atentatória da boa-fé.

Pelo exposto, e nos termos e para os efeitos do art.732.º, n.º1, al.c), do CPC, indefiro liminarmente os embargos por manifestamente improcedentes.

Custas a cargo do oponente.».

Fundamentos de direito.

· Nulidades da decisão recorrida.
Nas alegações e conclusões do recurso interposto invoca o Apelante a nulidade da decisão recorrida ao abrigo do art. 615º n.º 1 alíneas d) e b) do CPC, quer por omissão de pronúncia quanto a um dos fundamentos invocados nos embargos, mais precisamente o abuso de direito a que alude nos artigos 34º a 58º do articulado de oposição, quer por completa falta de fundamentação da mesma.

Vejamos!

Antes de mais, importa considerar o disposto no art. 77º n.º 1 do CPT ao estabelecer que «[a] arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso».

A consagração deste dispositivo legal prende-se com razões de celeridade e economia processuais de que se mostra imbuído o Código de Processo do Trabalho, sendo que a observância do mesmo permite que o juiz que proferiu a decisão recorrida possa, ele próprio, conhecer de eventuais nulidades de que a mesma possa estar afetada, sanando-as, antes mesmo da subida do processo em recurso.

O desrespeito ou inobservância de tal dispositivo legal por parte do Recorrente, tem merecido da parte dos Tribunais Superiores, designadamente o Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que a arguição de nulidades da sentença em desconformidade com o mesmo se deve considerar como extemporânea ou intempestiva e, consequentemente, deve enveredar-se pela sua não apreciação ou conhecimento (v. neste sentido e entre muitos outros, os doutos Acórdãos do STJ de 20/09/2006, de 05/07/2007, de 07/05/2009 e de 15/09/2010, respetivamente proferidos nos processos 06S574, 06S4283, 09S3363 e 245/05.4TTSNT.L1.S1).

No caso em apreço, o Apelante nada refere quanto a nulidades da decisão recorrida no requerimento de interposição de recurso e daí que, perfilhando nós também o mencionado entendimento jurisprudencial, entendemos ser extemporânea ou intempestiva a arguição das invocadas nulidades da decisão recorrida, não devendo delas conhecermos.

Ainda assim, porque o Mmo. Juiz do Tribunal a quo, no despacho de admissão do recurso em causa se pronunciou no sentido da não verificação de qualquer das aludidas nulidades, dir-se-á que relativamente à invocada nulidade por omissão de pronúncia quanto à apreciação de abuso de direito por parte da Exequente, a mesma efetivamente não ocorre, porquanto a apreciação dessa questão ficou prejudicada pela decisão de indeferimento liminar da oposição por manifesta improcedência da mesma face à lei.

Por outro lado, também se não verifica a nulidade da decisão recorrida decorrente de falta de fundamentação, já que como se pode atentar do seu teor, a mesma mostra-se fundamentada de facto e de direito e para que ocorresse uma tal nulidade forçoso seria que a decisão recorrida se apresentasse destituída de qualquer fundamentação.

Improcede, pois e nesta parte, o recurso interposto.

· Alteração de circunstâncias de cariz legislativo geral suscetíveis de modificar, por completo, os pressupostos da transação que constitui o título executivo e justificativas do recebimento dos embargos deduzidos.
Relativamente a esta questão de recurso, insurge-se o Apelante contra o indeferimento liminar da oposição que deduziu através dos presentes autos de embargos à execução movida pela Exequente e que constitui o processo principal e à penhora aí levada a efeito, entendendo que a decisão recorrida, ao referir que “o oponente limita-se a alegar circunstâncias desfavoráveis do seu próprio património não qualificáveis como alteração das circunstâncias como preceituado no art. 437º, nº1, do CPC”, se funda numa premissa factual errada, já que desconsiderou toda a matéria alegada nos artigos 3º a 20º, inclusive, do requerimento de oposição e da qual decorre que não se tratou apenas de uma alteração meramente pessoal do oponente, mas sim de alterações de cariz legislativo geral que, por sua vez, alteraram, por completo, os pressupostos em que se fundou o contrato (transação) em causa e estas estão contempladas no art. 437º do Código Civil.

Entende, portanto, que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que receba os embargos.

Vejamos!

Dispõe o art. 729º do Código de Processo Civil que «[f]undando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes:

a) Inexistência ou inexequibilidade do título;

b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;

c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;

d) Falta ou nulidade da citação para a ação declarativa quando o réu não tenha intervindo no processo;

e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;

f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;

g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;

h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;

i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.»

No caso em apreço e porque a execução movida pela Exequente BBB contra o Executado AAA se funda em transação judicial celebrada entre ambos no âmbito de um outro processo, transação homologada por sentença transitada em julgado, o Executado e ora Embargante, deduziu os presentes embargos com base na alínea i) do mencionado preceito legal, aduzindo como causas de anulabilidade dessa transação as diversas razões de facto e de direito que invoca na oposição deduzida e a que sumariamente aludimos no precedente relatório, com base nas quais assenta a invocada alteração anormal das circunstâncias que estiveram na base da celebração da referida transação judicial.

A decisão recorrida, por seu turno, fundando-se no disposto no n.º 1 do art. 437º do Código Civil e no entendimento de que o Embargante se limitara a alegar circunstâncias desfavoráveis do seu próprio património, que o Mmo Juiz entendeu não qualificáveis como alteração das circunstâncias, indeferiu liminarmente a oposição por aquele formulada.

Vejamos se o fez com acerto.

Estabelece o art. 437º n.º 1 do Código Civil que «[s]e as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato».

Em face deste preceito legal, verifica-se que a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos: - (i) que haja uma alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal e que; - (ii) a exigência da obrigação à parte lesada afete gravemente os princípios da boa-fé contratual, não estando cobertos pelos riscos do próprio negócio (Ac. do STJ de 10.10.2013 proferido no processo n.º 1387/11.5TBBCL.G1.S1).

A alteração anormal das circunstâncias, na abrangência do preceito em causa, corresponde, portanto, a uma modificação insólita ou inabitual da base negocial em que as partes tenham fundado a celebração do contrato, sendo que essa base negocial, no domínio da alteração das circunstâncias, assume caráter objetivo e deve respeitar simultaneamente a ambos os contraentes.

Essa alteração deve, por outro lado, ser significativa, ou seja, deve assumir proporções tais que subvertam a própria economia do contrato, tornando-o lesivo para uma das partes contratantes ao ponto de, caso o contrato se mantenha nos termos em que foi celebrado, a exigência das obrigações por ela assumidas, sem se mostrar coberta pelos riscos próprios do contrato, afete gravemente os princípios da boa-fé.

A propósito da alteração das circunstâncias, enquanto causa de resolução ou modificação do contrato a que se alude no referido preceito legal, escreveu Ana Prata no seu “Dicionário Jurídico” Vol. I, 5ª Edição, pág.ª 106. «Significa isto que: - a) se as circunstâncias constitutivas da base negocial objectiva, isto é, os pressupostos, expressos ou não, em que ambas as partes fizeram assentar a decisão de celebrar aquele contrato e de o concluir naqueles moldes vierem, posteriormente a essa conclusão, a sofrer uma alteração que, com a informação e prudência razoáveis, nenhuma das partes pudesse ter previsto; b) se essa alteração superveniente se reflectir no equilíbrio – máxime económico – formalizado no contrato de tal modo que o respectivo cumprimento nos termos convencionados constituiria para uma das partes um sacrifício tão desrazoável que a sua exigência poderia qualificar-se como violadora da boa fé, ou se tal modificação privar o contrato da possibilidade de realizar a finalidade económica ou social que tinha ou que tinha para um dos contraentes; c) se a alteração daquelas circunstâncias e consequente distorção do contrato não se contiverem dentro dos riscos próprios daquele tipo contratual (e isto quer ele seja aleatório quer não o seja) – isto na medida em que qualquer contrato, máxime de execução não instantânea, comporta riscos que as partes não podem ignorar – então a parte lesada tem direito a requerer a resolução do contrato ou a respectiva modificação, de modo a adequá-lo ao novo quadro económico e/ou social em que vai ser cumprido».

Posto isto e revertendo ao caso em apreço, verifica-se que o Embargante, no seu articulado de oposição à execução que lhe foi movida pela Exequente, mormente no que concerne à matéria de facto aduzida nos artigos 3º a 20º e que, muito em síntese, se mencionou no precedente relatório, descreve as circunstâncias objetivas e bem específicas em que, entre ambas as partes, terá sido celebrada a transação judicial que constitui título executivo, transação que por elas foi efetivada em outro processo como forma de porem termo a litígio entre elas existente, bem como factos atinentes à alteração ou modificação de tais circunstâncias que, pelo menos em parte, terão constituído a base negocial em que assentou a referida transação, factos que decorreram de posição assumida em julho de 2010 (18.07.2010) pela CPEE (Comissão Para a Eficácia das Execuções), bem como da aprovação do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução através da Lei n.º 154/2015 de 14-09, alteração ou modificação de circunstâncias com que, alegadamente, as partes contratantes não poderiam contar no momento da celebração de tal transação.

Ora, perante tal alegação de factos e circunstâncias no requerimento de oposição deduzido pelo Executado/Embargante à execução que lhe fora movida pela Exequente/Embargada e tendo em consideração o direito aplicável ao caso, afigura-se-nos, de algum modo, ousado que, ab initio e sem que se permita qualquer posterior produção de prova sobre os mesmos, se conclua pela verificação de uma manifesta improcedência dos embargos em causa e se decida indeferir liminarmente a deduzida oposição com base no disposto no art. 732º n.º 1 al. c) do Código de Processo Civil.

Deste modo e com todo o respeito por opinião diversa, afigura-se-nos que, perante a matéria de facto alegada pelo Embargante no seu requerimento de oposição, o Mmo Juiz do Tribunal a quo melhor teria andando se, na ausência de qualquer outra razão que a tal obstasse, tivesse feito prosseguir os presentes autos no âmbito da sua normal tramitação.

Decisão

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogando a decisão recorrida, deve a mesma ser substituída por outra que, na ausência de qualquer outra razão que a tal obste, faça prosseguir os presentes autos no âmbito da sua normal tramitação.

Sem custas.

Lisboa, 2017/06/14

José António Santos Feteira (relator)

Filomena Maria Moreira Manso

José Manuel Duro Mateus Cardoso