Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
594/11.5TAPDL.L1-5
Relator: SIMÕES DE CARVALHO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DIREITOS DE DEFESA DO ARGUIDO
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA AUTO-INCRIMINAÇÃO
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DE PROVAS
PROVAS NULAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Iº As garantias próprias do processo penal têm vindo a ser paulatinamente adquiridas pelo processo contra-ordenacional e pelo direito sancionatório em geral;
IIº O princípio da não auto-incriminação surge como uma emanação do catálogo dos direitos de defesa consagrados para os ilícitos contra-ordenacionais no art.32, nº10 da Constituição da República Portuguesa, devendo prevalecer sobre o direito de, as autoridades administrativas, utilizarem elementos fornecidos pelos arguidos;
IIIº Não obstante o princípio nemo tenetur – seja na sua vertente de direito ao silêncio do arguido, seja na sua dimensão de “privilégio” do arguido contra uma auto-incriminação – não estar expressa e directamente plasmado no texto constitucional, a doutrina e a jurisprudência portuguesas são unânimes não só quanto à sua vigência no direito processual penal português, como quanto à sua natureza constitucional;
IVº Quando os poderes de supervisão e de aplicação de coimas estão concentrados na mesma entidade, há que distinguir cada um deles, como forma de assegurar os direitos constitucionalmente garantidos aos arguidos;
Vº Tendo a companhia aérea em causa, agindo de boa fé e em cumprimento do disposto no Contrato de Concessão de Serviços Aéreos Regulares que havia celebrado com o Estado Português para determinada rota, apresentado o Relatório de Execução, não podia a entidade administrativa, com poderes de supervisão e de aplicação de coimas, instaurar processo de contra-ordenação contra a mesma, com base naquele relatório, sem a advertência que tais elementos podiam servir para a instauração de um processo;
VIº O princípio da transparência e o respeito pelos direitos da arguida exigiria que, no mínimo, a entidade administrativa referisse à arguida que os elementos que remeteu podiam servir para a instauração de um processo de contra-ordenação;
VIIº Ao instaurar o processo de contra-ordenação, com base naquele relatório e sem aquela advertência, a entidade administrativa, recolheu elementos de prova de forma ilegítima, desse modo suprimindo o direito à não auto-­incriminação da arguida, violando o princípio da proporcionalidade (art.18, nº2 da C.R.P.), na sua vertente de necessidade, já que optou pelo meio de prova mais lesivo para os direitos fundamentais da arguida, sem curar de ponderar e optar por outros meios de obtenção de prova;
VIIIº A utilização daqueles meios enganosos, através dos quais se obteve a prova junto da arguida, perturbou a liberdade de os seus representantes decidirem, pelo que são ofensivos da integridade moral das pessoas, sendo, por isso, nulas as provas consubstanciadas no Relatório de Execução, o que, de acordo com o entendimento dominante, na esteira da chamada teoria dos frutos da árvore envenenada, projecta-se à distância, abrangendo as outras provas posteriores que se referem aos mesmos factos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:
 
No processo n.º 594/11.5TAPDL do 5º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, verifica-se que S… Aéreos, S.A. impugnou judicialmente a decisão do Instituto Nacional da Aviação Civil que lhe aplicou a coima única de € 12.500,00, pela prática de várias contra-ordenação previstas no Art.º 6°, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 138/99 de 23 de Abril, por referência ao disposto no n.º 1 do mesmo preceito legal e puníveis nos termos do Art°. 23°, n.° 1, alínea a) do mesmo diploma legal, designadamente por ter incumprido, no 4° trimestre de 2004, com as obrigações modificadas de serviço público impostas às rotas Lisboa/Ponta Delgada, por não ter atingido os mínimos impostos pela comunicação da comissão quanto aos lugares oferecidos nas semanas de 11 a 17 de Outubro e de 25 a 31 de Outubro, por não ter efectuado a frequência diária de ida e volta, entre as 8.00 e as 21.00 horas, na rota Ponta Delgada/Lisboa/Ponta Delgada e, ainda, por ter havido infracção do parâmetro horário.

         Por despacho, de 14-11-2011 (cfr. fls. 425 a 430 v.º), no que agora interessa, foi decidido:

«Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o recurso interposto pela recorrente S... Aéreos, S.A. e, em consequência:
1 - mantenho a condenação da recorrente pela prática de duas contra-ordenações previstas no artigo 6.°, nº 1 e 3, do Decreto-Lei nº 130/99, de 23 de Abril, por referência às obrigações assumidas e previstas na Comunicação da Comissão (2001/C 271/03), atenta a violação do parâmetro "capacidade mínima semanal oferecida garantida" nas semanas de 11 a 17 e de 25 a 31 de Outubro de 2004, na coima de € 2.500 por cada uma delas, tal como decidido pela autoridade administrativa;
2 - em cúmulo jurídico, condeno a recorrente S... Aéreos, S.A., na coima única de € 3.500 (três mil e quinhentos euros), mantendo-se a não aplicação da sanção acessória e no mais se revogando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando em 3 (três) UC a taxa de justiça.
Notifique e deposite.
Comunique ao INAC.»

         Inconformada com esta decisão, interpôs a sobredita arguida o presente recurso que, na sua motivação, traz formuladas as seguintes conclusões (cfr. fls. 434 a 445):

«1. A S… foi responsabilizada sem que nenhuma referência tenha sido feita à pessoa física ou órgão da empresa que perpetrou a acção sancionada em nome e no interesse da S..., ou mesmo se essa pessoa actuou dolosamente ou a título negligente;
2. Na ausência de descrição de quem, órgão ou representante da S..., à data dos factos, actuou dolosa ou negligentemente, nos termos apontados nos autos, falta o pressuposto essencial da punição, previsto no art. 7.º nº 2, do RGCO;
3. Só possuindo integral conhecimento de todos os factos que são imputados aos seus órgãos e/ou trabalhadores, poderia ter a S... exercido o direito ao contraditório, mediante a apresentação de uma boa defesa, pelo que, deverá o processo de contra-ordenação ser declarado nulo desde a Acusação, em virtude da violação do direito de defesa da S..., com consagração nos artigos 18.º, n.º 1 e 32.º, n.º 5 da C.R.P. e sob pena de violação do disposto nos artigos 8.º, 17.º, 18.º e 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;
4. Foi ainda preterido à S..., na qualidade de arguida, o direito fundamental de não se auto-incriminar porquanto foi essencialmente utilizado pelo INAC, para sustentar a matéria de facto constante da Acusação, o Relatório de Execução do 4.º Trimestre de 2004, apresentado àquele Instituto, pela S...;   
5. Além disso, o INAC recolheu elementos de prova de uma forma que não pode deixar de se reputar de ilegítima e pouco transparente, sendo exigível de acordo com o Princípio da Transparência e com o respeito pelos direitos do arguido, que, no mínimo, a S... tivesse sido informada de que os elementos que a mesma sujeitou a registo poderiam vir a servir para a instrução de um processo de contra-ordenação;
6. Nenhum arguido pode ser obrigado a entregar elementos que possam comprometê-lo ou incriminá-lo, sob pena de violação do Princípio da não auto-incriminação;
7. O Princípio da não auto-incriminação surge como uma emanação do catálogo dos direitos de defesa consagrados para os ilícitos contra-ordenacionais no artigo 32.º n.º 10 da C.R.P., devendo por isso prevalecer sobre o direito de utilizar elementos fornecidos, neste caso pela Arguida, por parte das autoridades administrativas, donde resulta que o INAC não podia ter utilizado como prova, para fundamentar a acusação à S..., os elementos fornecidos pela própria;
8. Verifica-se, ainda, que a decisão “a quo” padece do vício de insuficiência da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º/2/a) do Código de Processo Penal, em virtude de, no que concerne ao incumprimento, no mês de Outubro de 2004, no parâmetro “capacidade mínima a oferecer”, não constar dos factos dados como provados, a necessária correspondência entre os lugares não disponibilizados com os dias do mês de Outubro, as rotas e os percursos onde o incumprimento ocorreu, factos estes que se consideram essenciais à prova da existência do incumprimento imputado;
9. Além disso, e salvo o devido respeito, a ora recorrente entende que a conduta ilícita da S... encontra-se justificada face à existência de um conflito de deveres jurídicos, em que a S... optou pelo dever de gestão criteriosa, de igual valor, porque também se encontra previsto em lei, pelo que se encontra excluída a ilicitude da sua conduta, devendo a ora recorrente ser absolvida por estes factos, dado que os mesmos não lhe podem ser imputados;
10. Por último, e caso se entenda que a S... praticou alguma infracção, não deverá a sanção a aplicar exceder uma admoestação (artigo 51.º, n.º l do RGCO) face à diminuta gravidade da conduta, dado não ter existido qualquer lesão do interesse público ou para os passageiros que tenha resultado da actuação da S... e ao facto da S... não ter retirado qualquer benefício económico da situação em apreço;
11. A S... tem sempre pautado o seu comportamento pelo mais rigoroso cumprimento das disposições aplicáveis à sua actividade, tendo, inclusive, no caso dos autos, agido sempre convencida de que não estava a desrespeitar as normas legais, actuando com vista a superar dificuldades decorrentes de factores externos à empresa – nomeadamente à diminuição da procura e da taxa de ocupação – e no estrito cumprimento de um dever de gestão criteriosa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro;
12. E, não pode deixar de tomar-se em consideração a circunstância de a S... não ter sido condenada, por sentença transitada em julgado, pelo INAC na prática de qualquer infracção do tipo daquelas que estão em causa no processo de contra-ordenação, pelo que, seria a primeira vez que a S... seria condenada pelo INAC pela prática de uma infracção do tipo das que estão em causa, o que constitui um elemento de ponderação no momento da determinação da medida da sanção.
Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se que seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, seja:
a) Revogada a decisão recorrida e declarada a absolvição da arguida das contra-ordenações pelas quais foi condenada, com fundamento na ausência de identificação do agente da contra-ordenação, geradora da falta do pressuposto essencial de toda a punição, previsto no art. 7.º n.º 2, do RGCO;
b) Caso assim não se entenda, sempre deverá ser revogada a decisão recorrida e declarada a nulidade do processo de contra-ordenação desde a Acusação, com fundamento:
I. Na nulidade da Acusação do processo de contra-ordenação, por violação do direito da S... à não auto-incriminação, ou
II. Na preterição do direito de defesa da S..., com consagração nos artigos 18.º, n.º 1 e 32.º, n.º 5 da C.R.P.;
c) Caso assim não se entenda, o que apenas se admite para efeitos de mero raciocínio sem conceder, deverá a S... ser condenada na sanção de admoestação, nos termos do disposto no artigo 51.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações.»

Efectuada a necessária notificação, o Mº Pº nada disse.

         Veio, então, a ser admitido o presente recurso (cfr. fls. 449).   

Constata-se, ainda, que a arguida S... Aéreos, S.A., discordando do despacho proferido a fls. 406 e v.º, dele interpôs recurso (cfr. fls. 409 a 412), em que formula, na sua motivação, as seguintes conclusões:

«1. A dar-se como provados, os factos imputados à Recorrente configuram a prática de contra-ordenações aeronáuticas civis, às quais se aplica, na íntegra, o regime previsto no Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de Janeiro;
2. Incluindo o regime de prescrição previsto no artigo 17º do referido diploma legal;
3. Tal disposição prevê que o prazo de prescrição das contra-ordenações aeronáuticas civis é de 5 anos desde a prática dos factos, nada dispondo quanto ao regime de suspensão ou interrupção desse prazo;
4. Atendendo ao princípio de proibição de interpretação analógica e interpretativa quanto a factos que consubstanciem contra-ordenações, não é aplicável às contra-ordenações aeronáuticas civis o regime de suspensão e interrupção do prazo prescricional previsto nos artigos 27º e 28º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;    
5. Desta forma, tendo os factos imputados à Recorrente ocorrido no período compreendido entre 2 de Outubro e 27 de Dezembro de 2004, os mesmos prescreveram entre o período compreendido entre 2 de Outubro e 27 de Dezembro de 2009.
6. Por isso, deve a Recorrente ser absolvida da prática de tais factos, arquivando-se sem mais os presentes autos;
7. O despacho de que se recorre violou o disposto no n.º 1 do artigo 17º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de Janeiro, devendo ser, em sede deste recurso, substituído por outro que julgue procedente a excepção de prescrição deduzida pela recorrente,
Assim se fazendo Justiça!         
Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, devendo o despacho que julgou improcedente a excepção de prescrição arguida pela Recorrente ser revogado e substituído por decisão que considere tal excepção procedente e, em consequência, absolva a Recorrente da prática das infracções que lhe são imputadas.»
 
Efectuadas a necessária notificação, o M° P° não respondeu.

Foi tal recurso admitido, a subir conjuntamente com o também interposto da decisão final (cfr. fls. 449).

Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta teve vista no processo

         Exarado o despacho preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento em conferência, nos termos do Art.º 419º do C.P.Penal.
        
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
*
                   No que interessa ao recurso interlocutório, é do seguinte teor o despacho recorrido:

«… Questão prévia:
 S... Aéreos, S.A. pede seja declarado extinto por prescrição o procedimento contra-ordenacional.
Alega, em síntese, que tendo os factos que lhe são imputados ocorrido no período compreendido entre 2 de Outubro a 27 de Dezembro de 2004, já se encontra decorrido o prazo de 5 anos a que alude o artigo 17º, do Decreto-Lei nº 10/2004, de 09 de Janeiro, pelo que o procedimento contra-ordenacional se encontra prescrito.
O Ministério Público pronunciou-se nos termos de fls. 402, pugnando pela improcedência da prescrição invocada pela recorrente.
*
Cumpre, então, analisar da eventual prescrição do presente procedimento contra-ordenacional.
*
Os presentes autos encontram-se sujeitos ao regime aplicável às contra-ordenações aeronáuticas civis, regime esse previsto no Decreto-Lei nº 10/2004, de 09 de Janeiro, o qual entrou em vigor 30 dias após a sua publicação.
Nos termos do artigo 17º, nº 1, de tal diploma legal, “O procedimento por contra-ordenação extingue-se por efeito de prescrição, logo que sobre a prática da contra-ordenação tiver decorrido o prazo de 5 anos.”
Da simples leitura de tal artigo parece assistir razão à recorrente: tendo as infracções que lhe são imputadas ocorrido nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2004, as mesmas teriam prescrito em idêntico mês do ano de 2009.  
Contudo, dispõe o artigo 35º, do supra citado Decreto-Lei, que “Em tudo o que não for expressamente regulado no presente diploma, aplica-se o regime geral das contra-ordenações.”
Assim, apesar de não termos que atender aos prazos prescricionais previstos no artigo 27°, do RGCO, porque há uma norma expressa no regime aplicável às contra-ordenações aeronáuticas, já temos que atender às causas de suspensão e de interrupção da prescrição previstas nos artigos 27°-A e 28°, respectivamente, do RGCO, atendendo a que sobre tal matéria nada dispõe aqueloutro regime especial.
Ora, analisados os autos é manifesto que ainda não decorreu o prazo máximo de prescrição previsto no nº 3 do artigo 28°, o qual, no caso em apreço é de 8 anos (7 anos e 6 meses a que acrescem 6 meses de prazo máximo de suspensão); por outro lado, também é manifesto que não se verificou qualquer causa de suspensão da instância nos termos em que as mesmas se encontram previstas nas alíneas a) e b) do artigo 27°-A, do RGCO. Mas o mesmo já não sucede quanto à ocorrência de causas de interrupção da prescrição.
Vejamos.
Face ao disposto no supra citado artigo 28°, a prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se: a) com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomadas ou com qualquer notificação; b) com a realização de quaisquer diligências de prova (...); c) com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito; d) com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
A verificação de uma causa de interrupção da prescrição tem como consequência, como bem refere a Digna Procuradora Adjunta, que o tempo decorrido antes da causa de interrupção fica sem efeito, começando a correr novo prazo.
E como supra já havíamos antecipado, da análise dos autos decorre a verificação de actos que interromperam o prazo da prescrição:
- a recorrente foi notificada para exercer o seu direito de audição e defesa em 05.04.2007 (ctr. fls. 127-137);
- em 02.10.2009 foi inquirida a testemunha arrolada pela recorrente (fls. 278-279);
- o INAC proferiu decisão em 14.01.2011, a qual foi notificada à recorrente em 28.02.2011 (cfr. fls. 355).
Ora, entre cada um dos actos que interrompeu a prescrição não decorreu o prazo máximo de 5 anos para que o procedimento contra-ordenacional tivesse prescrito.
À luz do supra exposto, é manifesto que o procedimento contra-ordenacional não se encontra prescrito, pelo que improcede a excepção de prescrição invocada pela recorrente.             
Notifique. …».

         Ora, são as “conclusões” formuladas na motivação do recurso que definem e delimitam o respectivo objecto - Art.°s 403° e 412º do C.P.Penal.
         Como resulta das transcritas conclusões do mesmo, a questão que se nos coloca, fundamentalmente, é a seguinte:
         - Ocorreu a prescrição do procedimento contra-ordenacional, por não ser aplicável, in casu, o regime de suspensão e interrupção do prazo prescricional previsto no Regime Geral das Contra-Ordenações?

         Apreciando a mesma, verifica-se, desde logo, que o procedimento por contra-ordenação aeronáutica civil extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática da contra-ordenação tiver decorrido o prazo de cinco anos (Art.º 17º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 10/2004 de 9 de Janeiro).
         Por sua vez, é inequívoco que o Regime Geral das Contra-Ordenações regula a prescrição do procedimento em três vertentes: a do prazo, a dos factores da suspensão e a dos casos de interrupção (cfr. Art.ºs 27°, 27°-A e 28° do Decreto-Lei n.° 433/82 de 27 de Outubro).
         Ora, tratando-se do regime geral, inexistem dúvidas de que o mesmo se aplica em todo o domínio contra-ordenacional, só assim não sendo quando específica regulamentação o afasta ou exclui, na totalidade ou em parte, dispondo diversamente.
         É aqui que não pode deixar de relevar o Art.º 35° do Decreto-Lei n.º 10/2004 de 9 de Janeiro, que estabelece o regime das contra-ordenações aeronáuticas civis, estipulando que «em tudo o que não for expressamente regulado no presente diploma, aplica-se o regime geral das contra-ordenações».
         Por conseguinte, neste preciso âmbito, se nada de determinasse em relação à prescrição, naquelas suas três vertentes, certamente que ninguém ousaria pensar que se não iria aplicar o sobredito regime geral.
O que vale, também, para dizer que, quando tal não sucedesse, evidentemente que o desvio ao regime geral, e na sua precisa dimensão, seria o aplicável.
Sucede que, no que respeita à prescrição do procedimento, é o supra citado Art.º 17º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 10/2004 de 9 de Janeiro que se lhe refere, o que ocorre, tão-só, relativamente a uma daquelas vertentes: a do prazo.
         E não para como que confirmar o determinado naquele regime geral, mas para o configurar de modo diverso.
         Portanto, não "atingiu" as duas outras vertentes, o que impõe, em coerência, o entendimento de que, em relação a elas, não pode deixar de manter-se o apontado regime geral, sob pena de não as considerarmos quando a lei nada disse de diverso ou em contrário.
Sendo certo, ademais, que não conhecemos domínio contra-ordenacional onde tal (ao cabo e ao resto, a não valoração dos factores de interrupção e suspensão) suceda.
Desta forma, não vemos como possa ser diversamente entendido na situação concreta, até porque o efeito dissuasor pretendido pelo legislador, em matéria tão sensível como a aeronáutica civil, não podia ter sido levada a cabo com diferente perspectiva jurídica das normas.
Perante tudo o que acaba de se expender, importa concluir que o decurso do prazo de prescrição não decorreu, exactamente porque não corre sem interferência dos concretos factores de suspensão e interrupção que se encontram consagrados nos Art.ºs 27º-A, n.ºs 1, alíneas b) e c) e 2 e 28º, n.ºs 1, alíneas b), c) e d) e 3 do Regime Geral das Contra-Ordenações.
Aliás, tendo em conta que a prática de cada uma das contra-ordenações ainda em causa teve lugar entre 11 e 17 de Outubro de 2004 e entre 25 e 31 de Outubro de 2004, resulta inequívoco que a prescrição do inerente procedimento somente ocorreria, respectivamente, em 18-10-2012 e em 01-11-2012 (5 anos + 2 anos e 6 meses + 6 meses).
Nestes termos, cumpre, assim, afirmar que carece de fundamento o presente recurso no que à apreciada questão concerne.

         No que interessa ao restante recurso, é do seguinte teor o despacho recorrido:

«I- Relatório
S... Aéreos, S.A. com sede na Avª …, interpôs recurso da decisão do Instituto Nacional de Aviação Civil (doravante e abreviadamente INAC) que a condenou no pagamento de uma coima única de € 12.500 pela prática de contra-ordenação prevista no artº. 6°, nº. 3 do Decreto-lei nº. 138/99, de 23 de Abril, por referência ao disposto no nº. 1 do mesmo preceito legal e punível nos termos do art°. 23°, n°. 1, al. a), do mesmo diploma legal, por ter incumprido, no 4° trimestre de 2004, com as obrigações modificadas de serviço público impostas às rotas Lisboa/Ponta Delgada, por não ter atingido os mínimos impostos pela comunicação da comissão quanto aos lugares oferecidos nas semanas de 11 a 17 de Outubro e de 25 a 31 de Outubro; não ter efectuado a frequência diária de ida e volta, entre as 8.00 e as 21.00 horas, na rota Ponta Delgada/Lisboa/Ponta Delgada e, por último, ter havido infracção do parâmetro horário.
*
A recorrente, nas extensas conclusões que formula, e não pondo em causa a matéria de facto dada como provada na decisão administrativa, alega, em síntese, que:
- o procedimento contra-ordenacional se encontra prescrito por já ter decorrido o prazo de 5 anos a que alude o artigo 17°, nº 1, do Decreto-Lei nº 10/2004, de 9 de Janeiro;
- ainda que assim não se entenda, existem outras razões que tornam inexigível o cumprimento dos mínimos de capacidade e frequência que lhe são impostos nas Obrigações Modificadas de Serviço Público a que estava sujeita, designadamente, porque face à conjuntura de crise económica do sector de transporte aéreo de passageiros, a impugnante tinha o dever de gerir escrupulosamente os seus recursos, sendo que os "ajustes" por si realizados nas frequências dos voos se ficaram a dever à fraca procura dos mesmos;
- os mesmos tiveram por base uma melhor adequação da oferta à procura, revelando os índices de ocupação obtidos nas semanas em referência;
- em outros períodos do ano, a S... excede, em muito, as capacidades mínimas semanais impostas pelas obrigações de serviço público, chegando, mesmo, a ultrapassar a capacidade que se propusera oferecer no plano de exploração, de modo a responder positivamente às solicitações de tráfego;
- o facto de o Estado compensar financeiramente a S... pelos prejuízos decorrentes do cumprimento das obrigações de serviço público não pode levar a que a S..., uma empresa pública, efectue uma gestão danosa, duplamente prejudicial ao Estado, pois a circulação de um voo vazio implica, por um lado, que o Estado suporte as despesas resultantes do voo e, por outro lado, que o mesmo Estado comparticipe a transportadora aérea com base no menor dos dois valores seguintes: Deficit de exploração ou limite do montante da compensação financeira indicado na proposta da concessionária para cada ano de exploração;
- uma coisa é o parâmetro "horário" que diz respeito ao planeamento aprovado e publicado, coisa diferente é a "pontualidade" que está relacionada com a execução na hora do voo programado;
- tais desvios entre a hora publicada e a hora real de chegada a Lisboa respeitam ao voo diário S4 128, cujo horário programado de chegada a Lisboa é as 0h30, e resultaram de atrasos operacionais, cuja análise e apreciação só podem ser efectuadas ao abrigo do parâmetro "pontualidade e continuidade dos serviços";
- o parâmetro "horários" deve ser lido e interpretado em articulação com o parâmetro "pontualidade", que o complementa, porque salvaguarda atrasos superiores a 15 minutos, desde que tal só ocorra em 15% dos voos;
- só se consideraria existir violação do parâmetro "pontualidade", se tivesse sido feita prova de que o atraso era directamente imputável à S..., prova esta que o INAC não fez;
- a S... , na sua conduta, não agiu com dolo ou negligência, tendo cumprido com todas as regras de diligência exigíveis, além do que dos factos que lhe são imputados não resultou qualquer lesão do interesse público ou para os passageiros;
Conclui pela sua absolvição das contra-ordenações pelas quais vem acusada.
*
Recebido o recurso, foi apreciada e julgada improcedente a excepção de prescrição invocada pela recorrente.
Por não terem sido requeridas diligências de prova, foram Ministério Público e Recorrente notificados para declararem oposição à prolação de decisão mediante despacho, com a advertência de nada dizendo se entendia que concordavam, não tendo sido deduzida oposição.
*
Não se suscitaram nem existem nulidades ou quaisquer outras excepções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
*
II - Fundamentação de Facto
1 - Em 26 de Setembro de 2001 foi publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias a Comunicação da Comissão (2001/C 271/03), nos termos do procedimento previsto no n° 1, alínea a) do artigo 4º do Regulamento (CEE) n° 2408/92 do Conselho, contendo as obrigações modificadas de serviço público, designadamente na rota Lisboa/Ponta Delgada/Lisboa, que o Governo português decidiu impor a partir de 1 de Janeiro de 2002.
2 - Na sequência da citada decisão de imposição de obrigações modificadas de serviço público, o Governo Português, ao abrigo do n.º 1, alínea a), do artigo 4.° do Regulamento (CEE) n° 2408/92 do Conselho, de 23 de Julho, lançou os competentes concursos públicos para a adjudicação da exploração, em regime de concessão, dos serviços aéreos regulares na identificada rota, que foi, igualmente, objecto de publicação no Jornal Oficial das Comunidades Europeias.
3 - A exploração dos serviços aéreos regulares na rota Lisboa/Ponta Delgada/Lisboa, em regime de concessão, foi adjudicado à S..., em regime de exclusividade.
4 - No que se refere parâmetro "capacidade mínima a oferecer" na rota Lisboa/Ponta Delgada, verificou-se que durante o mês de Outubro de 2004 a S... incumpriu as obrigações modificadas de serviço público.
5 - Não cumprimento do mínimo semanal de 7.700 lugares impostos pela Comunicação da Comissão (2001/C 271/03) na semana de 11 a 17 de Outubro, e na semana de 25 a 31 de Outubro, a saber:
Ø na semana de 11 a 17 de Outubro 7.368 lugares (- 332 lugares);
Ø na semana de 25 a 31 de Outubro 7.498 lugares (- 202 lugares).
6 - Foram detectados movimentos operados para além do período entre as 06h30 locais da escala da partida dos voos e as 00h30 locais da escala de chegada dos voos, nas seguintes datas:
Ø No mês de Outubro: dias 2, 7, 11, 20 a 23, 29 a 31;
Ø No mês de Novembro: dias 2, 3, 4, 6, 11, 12, 14 e 26;
Ø No mês de Dezembro: dias 7, 9, 16, 18, 20 a 24 e 27.
7 - Foi realizada uma frequência de ida e volta entre as 8H00 e as 21H00, horas locais nas datas indicadas na listagem de fls. 212-214.
8 - Houve atrasos na operação nos voos S4129 de 20 de Outubro, de 01 de Novembro e de 25 de Novembro, tendo chegado ao destino 9, 3 e 63 minutos, respectivamente, após, as 21 horas locais.
9 - A S... tinha perfeito conhecimento que com aquelas suas condutas violava as obrigações de serviço público a que estava legalmente obrigada a cumprir, sabia de antemão que o seu comportamento preencheria um tipo legal de contra-ordenação, sendo que tal não a impediu de empreender a sua conduta.
10 - Nenhum passageiro ficou prejudicado, dada a oferta de voos alternativos que continuou a existir para as mesmas faixas horárias, voos esses cuja ocupação não atingiu os 100%.
11 - A S... tem averbado no seu registo individual as seguintes condenações, todas elas por violação do artigo 6°, nº 3, por referência ao disposto no nº 1 do mesmo artigo, do Decreto-Lei nº 138/99, de 23 de Abril:
Ø Processo de contra-ordenação n° 03-15, foi condenada pelo Conselho de Administração do INAC, em 2.11.2004, na coima de 5.000 €; tal montante veio a ser reduzido para 2.500 €, por decisão judicial proferida no âmbito do recurso de impugnação nº 201/05.5TBPDL, do 2° Juízo de Ponta Delgada, proferida em 18.07.2005, já transitada em julgado;
Ø Processo de contra-ordenação nº 05-19, foi condenada pelo Conselho de Administração do INAC, em 16.01.2007, na coima de 12.500 €; decisão essa confirmada por decisão judicial de 11.04.2008, proferida no âmbito do recurso de impugnação nº 1304/07.7TBPDL, do 3° Juízo de Ponta Delgada, já transitada em julgado.
12 - Tem ainda averbadas decisões administrativas condenatórias proferidas no âmbito dos processos de contra-ordenação nº 05-012, 05-035, 05-066, 05-018, pela prática do mesmo tipo de infracção, mas que ainda não transitaram em julgado, encontrando-se sob recurso.
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Motivação de Facto:
A factualidade constante da decisão impugnada não foi posta em causa pela recorrente, sendo certo que essa mesma factualidade decorre do teor dos diversos documentos juntos aos autos, designadamente os "relatórios de verificação do cumprimento das obrigações modificadas de serviço público" e relativos ao último semestre de 2004.
Os antecedentes contra-ordenacionais da recorrente decorrem do teor da certidão emitida pelo INAC e que consta de fls. 404-405.
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III – Fundamentação de Direito:
Sendo o objecto do recurso definido e limitado pelas conclusões extraídas pela recorrente a partir da respectiva motivação, resulta que, no caso presente, as questões que incumbe apreciar resumem-se a saber se existiu qualquer causa de justificação nos incumprimentos da recorrente (isto é, se estamos perante um caso de conflito de deveres capaz de excluir a ilicitude da infracção cometida), se os atrasos devem ser enquadrados no parâmetro "horário" (como decidiu o INAC) ou no parâmetro "pontualidade" (como entende a recorrente).
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Do incumprimento do parâmetro “capacidade mínima”:
Quanto àquela primeira questão, diremos que a mesma não é nova, tendo já sido suscitada pela recorrente no âmbito dos recursos referidos no ponto 12 dos factos provados, onde foi decidida de modo correcto e que merece a nossa concordância, pelo que iremos seguir de perto a fundamentação ali expendida.
Feita esta pequena nota, começaremos por dizer aquilo que é pacífico: as obrigações de serviço público e as ajudas do Estado aplicadas e prestadas no âmbito dos serviços aéreos regulares entre o continente e as Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, encontram-se reguladas no Decreto-Lei n.º 138/99, de 23 de Abril.
Em causa está a violação pela recorrente do disposto no artigo 6°, do supra citado diploma legal. Ora, dispõe tal norma que:
"1 - As obrigações de serviço público são fixadas para rotas específicas, com indicação da data da sua entrada em vigor, e com termo certo ou por períodos mínimos, podendo revestir, entre outras, a forma de imposições quanto a continuidade, regularidade ou pontualidade dos serviços, requisitos mínimos operacionais e de equipamento, padrões mínimos de qualidade, frequência e horário de serviço, capacidade mínima de transporte, condições tarifárias ou preços máximos para determinadas categorias de tráfego.
2 - Nos casos em que não seja possível assegurar um serviço adequado e ininterrupto através de outras formas de transporte, o Estado poderá incluir na obrigação de serviço público a condição de todas as transportadoras aéreas que pretendam operar na rota apresentarem garantias de que o farão durante um determinado período.
3 - As obrigações de serviço público deverão ser escrupulosamente cumpridas por todas as transportadoras aéreas que explorem serviços aéreos regulares nas rotas abrangidas pelas referidas obrigações."
Obrigação de serviço público, por seu turno, é "qualquer obrigação imposta a uma transportadora aérea, em relação a qualquer rota para cuja exploração lhe tenha sido concedida uma licença por um Estado Membro da União Europeia, de adoptar todas as medidas necessárias para garantir a prestação de um serviço que satisfaça normas estabelecidas de continuidade, regularidade, capacidade e fixação de preços, normas essas que a transportadora aérea não respeitaria se atendesse apenas aos seus interesses comerciais" (cfr. art. 2.°, al. o), do Regulamento (CEE) n.º 2407/92 do Conselho, de 23 de Julho de 1992, relativo à concessão de licenças às transportadoras aéreas).
Com a fixação de obrigação de serviço ''pretende-se assim assegurar que as transportadoras aéreas garantam a regularidade e qualidade na exploração dessas rotas, sem que tal dependa estritamente dos seus interesses comerciais", sendo que “para alcançar esse desiderato, são previstos mecanismos de subsídio ou compensações que, respeitando claramente o ordenamento da União Europeia, permitem a prática de tarifários reduzidos junto dos interessados em termos de rentabilidade económica para as transportadoras". (cfr. preâmbulo ao Decreto-Lei n.º 138/99, de 23 de Abril).
Essa mesma possibilidade de estabelecimento de serviço obrigatório encontra-se expressamente previsto no artigo 4.º do Regulamento (CEE) n.º 2408/92 do Conselho, de 23 de Julho de 1992, onde se concede a possibilidade de "um Estado-membro pode[r] impor uma obrigação de serviço público, no que se refere aos serviços aéreos regulares, para um aeroporto que sirva uma região periférica ou em desenvolvimento do seu território ou numa rota de fraca densidade de tráfego para qualquer aeroporto regional do seu território, se a rota em causa for considerada vital para o desenvolvimento económico da região em que se encontra o aeroporto, e na medida do necessário para assegurar a prestação nessa rota de serviços aéreos regulares adequados que satisfaçam normas estabelecidas de continuidade, regularidade, capacidade e fixação de preços que as transportadoras aéreas não respeitariam se atendessem apenas aos seus interesses comerciais".
Ora, a comunicação da Comissão (2001/C 271/03) publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias em 26.9.2001, dispõe que o Governo Português decidiu aplicar as disposições do n.º 1, al. a) do art. 4° do Reg. (CEE) n.º 2408/92 do Conselho, a fim de impor, a partir de 1 de Janeiro de 2002, obrigações modificadas de serviço público aos serviços aéreos regulares explorados, entre outras, na rota Lisboa/Ponta Delgada/Lisboa.
Consta no seu art. 2° que as obrigações de serviço público na rota Lisboa/Ponta Delgada/Lisboa, são, no que ora interessa atento o período em causa, as seguintes:
a) 16 frequências mínimas semanais de ida e volta (podendo uma ser combinada com o Porto) durante os meses de Outubro a Maio com, pelo menos, duas frequências diárias durante todo o ano;
b) a capacidade semanal mínima oferecida é de 7700 lugares durante os meses de Abril a Outubro, e de 5600 durante os meses de Novembro a Março;
c) Quando os coeficientes médios de ocupação numa estação IATA ultrapasse os 75%, a capacidade mínima a oferecer na estação homóloga seguinte será acrescida do diferencial mínimo que permita respeitar aquele coeficiente máximo;
d) Durante os períodos que correspondem às festas de Natal e de passagem de ano deverão ser oferecidas as capacidades adicionais mínimas de 2000 lugares, para cada um dos dois períodos festivos.
Da análise conjugada das normas supra citadas temos que concluir que o Estado Português impôs uma obrigação de serviço público relativamente aos serviços aéreos regulares para a região ultraperiférica dos Açores, tendo atribuído, em regime de concessão, a exploração exclusiva da rota Lisboa/Ponta Delgada/Lisboa à recorrente por forma a assegurar a exequibilidade e eficácia das obrigações de serviço público. Como contrapartida da concessão, é atribuída à concessionária – a ora recorrente – uma compensação financeira, a qual não pode exceder o défice de exploração dos serviços objecto da concessão devendo conter-se dentro do limite máximo dos valores constantes da proposta da transportadora concessionária apresentada a concurso.
Em suma, e como bem se refere na decisão proferida no âmbito dos autos de recurso de contra-ordenação 1304/07.7TBPDL, que correu termos pelo 3° Juízo deste Tribunal, e que passamos a transcrever, "(…) do cotejo das normas deixadas transcritas, logo se pode concluir que o contrato de concessão celebrado entre o Estado Português e a recorrente se pauta por normas por demais específicas, as quais fazem preponderar o interesse público das obrigações assumidas sobre os interesses económicos da transportadora aérea", o que não é despiciendo para a questão colocada pela recorrente de conflito de deveres entre o cumprimento das obrigações de serviço público e uma gestão criteriosa da recorrente, que é também uma empresa pública.
Com efeito, como se decidiu na decisão supra referida, "É que para a ponderação do alegado conflito de deveres que, eventualmente pudesse estar aqui subjacente, sempre seria causa de apurar se a recorrente se encontrava vinculada a outro valor de ordem igual ou superior àquele que mostrou sacrificar.
E, efectivamente, a resposta (atento o expressamente preceituado nas normas que antecedem) tem de ser negativa, ou seja, a sujeição das empresas públicas a critérios de eficiência e eficácia de gestão (cfr. art. 12.º do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro), tem de ceder perante o dever do cumprimento das obrigações de serviço público que aqui estão em causa (quando, obviamente. não seja possível a compatibilização de um e outro deveres).
Isto decorre não só do âmbito do especial contrato de concessão que aqui está subjacente (cfr. art. 14.º e ss. do Decreto-Lei n.º 138/99) - o qual, aliás, foi adjudicado à recorrente em regime de exclusividade - mas, essencialmente, do interesse que está por detrás da celebração deste contrato.
Na verdade, ao prejudicar-se o cumprimento deste serviço público com a justificação de que se estão a poupar dinheiros ao erário público, incorre-se potencialmente numa falácia, visto que os custos do não desenvolvimento da região que se vê privada do serviço em causa será projectado para o futuro.
Diga-se, de resto, que nem sequer cabe à recorrente, por falta de legitimidade, interferir na política nacional, de sorte a definir quando interessa ou não o cumprimento do serviço público numa lógica de gestão custo/benefício (como parece assentar a sua defesa).
Tal comportamento, além de extravasar o conteúdo do predito contrato de concessão, acaba por usurpar competências do domínio político e legislativo para o qual, e salvo o devido respeito, a recorrente não foi eleita.
Diga-se, de resto, que, quando se candidatou ao contrato de concessão a cujas obrigações se sujeitou, tinha conhecimento (por um lado) do teor das mesmas, sendo ainda (por outro lado) que nem sequer o acordo a que se vinculou é gratuito.
Antes, no regime da concessão em causa está prevista (e como bem reconhece a recorrente) uma compensação financeira associada ao défice de exploração dos serviços objecto da concessão (cfr. art. 16.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 138/99), sem prejuízo de existirem níveis máximos de compensação (estes sim, que servem para estimular a tal gestão eficiente, mas apenas quando tal for compatível: nunca à custa da falta de cumprimento das obrigações, sob pena de se deixar entrar pela janela o que se não quis fazer entrar pela porta!)."
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Da factualidade provada decorre que nas semanas de 11 a 17 de Outubro e de 25 a 31 de Outubro a recorrente não cumpriu o mínimo semanal de 7.700 lugares impostos pela Comunicação da Comissão (2001/C 271/03), tendo garantido 7.368 lugares (- 332 lugares) naquela 1ª semana e 7.498 lugares (- 202 lugares), na 2ª semana.
Assim sendo, não há dúvida que a S... incumpriu a obrigação de assegurar a capacidade mínima prevista para aquelas duas semanas do mês de Outubro de 2004. A circunstância de exceder, em outras semanas e outros períodos do ano, e em muito, as capacidades mínimas impostas pelas obrigações do serviço público, em nada afecta aquele incumprimento. O que importa é a constância da oferta em cada uma das semanas e meses contidos nesse período e não a média global apurada anualmente. Isto porque o que se pretende é assegurar a regularidade e a continuidade na prestação do serviço aéreo.
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Do incumprimento do parâmetro “horário”:
A segunda questão colocada pela recorrente prende-se com o enquadramento dos atrasos dados como provados nos factos 6 e 8 no parâmetro "horário" e que no seu entender devem ser enquadrados no parâmetro "pontualidade".
Relativamente a tal matéria dispõe-se no ponto 2 Comunicação da Comissão (2001/C 271/03), no que ora interessa, que:
“Em termos de horários:
Salvo limitações no horário de funcionamento dos aeroportos:
- as frequências deverão ser iniciadas e concluídas entre as 6h30 locais da escala de partida dos voos e as 00h30 locais da escala de chegada dos voos, respectivamente, devendo pelo menos uma frequência diária nas rotas entre Lisboa e Ponta Delgada e Lisboa e Terceira ser operada entre as 8h00 e as 21h00, bem como, pelo menos três dias por semana, uma dessas frequências ser operada até às 13h00.
(…)
As frequências deverão ser repartidas, de forma regular, pela globalidade dos períodos horários supra citados, sempre que tenham de ser exploradas diversas frequências diárias."
“Em termos de continuidade e pontualidade dos serviços
Salvo em caso de força maior, o número de voos anulados por razões directamente imputáveis à transportadora não deve exceder, por cada estação IATA, 2 % do número de voos previstos.
Salvo em caso de força maior, os atrasos superiores a 15 minutos directamente imputáveis à transportadora não devem afectar mais de 15 % dos voos. 
Os serviços devem ser garantidos durante, pelo menos, um ano civil e, salvo no caso da excepção mencionada anteriormente, apenas podem ser interrompidos após um pré-aviso de seis meses.”
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Ou seja, a lei distingue entre as obrigações de horário, impondo os limites temporais em que as frequências de voo devem ser iniciadas e concluídas, e as obrigações de continuidade e pontualidade dos serviços, que estabelece os termos em que são admissíveis atrasos nos voos.
Perante esta dualidade de obrigações, entendeu o INAC que todos os movimentos operados para além do período entre as 06h30 locais da escala da partida dos voos e as 00h30 locais da escala de chegada dos voos – e que ocorreram nos dias 2, 7, 11, 20 a 23, 29 a 31 de Outubro; 2, 3, 4, 6, 11, 12, 14 e 26 de Novembro e 7, 9, 16, 18, 20 a 24 e 27 de Dezembro -, bem como os atrasos na operação nos voos S4 129 de 20 de Outubro, de 01 de Novembro e de 25 de Novembro, tendo chegado ao destino 9, 3 e 63 minutos, respectivamente, após, as 21 horas locais – integram a violação do parâmetro horário.
Para fundamentar tal entendimento refere, e bem, que estamos no âmbito da análise de parâmetros distintos. Mais refere que estamos ao nível do parâmetro horários, e não ao nível do parâmetro continuidade e pontualidade dos serviços (parâmetro este que está relacionado com a cada estação IATA e com o número de voo programados, diferentemente do parâmetro em causa; pois este constitui a delimitação temporal global, no âmbito da qual devem ser cumpridas as obrigações de serviço público, incluindo-se as frequências mínimas e os voos programados no plano de exploração.
Acrescenta que no texto da supra citada Comunicação da Comissão no que concerne ao parâmetro pontualidade nada é referido se o mesmo, para efeitos de verificação de seu cumprimento, é analisado anualmente ou por estação IATA. Sendo que, segundo informação prestada pela DRE este parâmetro é analisado por estação IATA.
Ora no caso em apreço, é objecto de análise, somente os incumprimentos verificados aquando do relatório de verificação do cumprimento das obrigações modificadas de serviço público, para os serviços aéreos regulares relativos à exploração da rota Lisboa/Ponta Delgada/Lisboa, referentes ao 4° Trimestre de 2004.
Conclui que no âmbito da presente informação, não é possível conseguir apurar se os atrasos nas referidas operações têm, efectivamente, reflexos no parâmetro “pontualidade”. Pois, para que haja incumprimento do mencionado parâmetro é necessário o preenchimento cumulativo de três requisitos: a) Atraso superior a 15 minutos; b) Directamente imputável à transportadora, e superior a 15% dos voos permitidos pela já referida Comunicação da Comissão.
Contudo, as razões invocadas pelo INAC para integrar os atrasos no parâmetro horário e para dai retirar a consequência do incumprimento daquele parâmetro, não se nos afiguram correctas.
De facto, todos os desvios horários encontrados reportam-se ao voo diário S4 128, cujo horário programado de chegada a Lisboa era às 00h30m. Ou seja, aquela frequência diária de voo obedece aos limites horários definidos pela comunicação da Comissão, pois o seu horário de chegada a Lisboa é às 00h30m. Situação diversa se verificaria se a S... decidisse efectuar uma frequência de voo com partida, por exemplo, às 5h00m, e uma outra frequência de voo com chegada prevista às 1h30m. A estipulação de frequências de voo como as que exemplificamos incumpre manifestamente as obrigações de serviço público no parâmetro “horários”.
Mas não é disso que se trata nos presentes autos. O que aqui foi detectado – e expressamente reconhecido pela S... – é que a uma frequência de voo cujo horário de chegada está estipulado (previsto) para as 00h30m – dentro do parâmetro “horário” definido pela comunicação da Comissão – por vezes sofre atrasos, que podem ser mais ou menos significativos.
Ora, tais atrasos não podem ser enquadrados no parâmetro “horário” - pois a frequência em que se verificaram está planeada dentro dos horários ali definidos -, mas já podem, e devem, ser no parâmetro “pontualidade”, pois o que está em causa é o atraso de um determinado voo. Voo esse que estava previsto cumprir um determinado horário, e que por uma miríade de factores, que podem ou não ser imputáveis à transportadora, acaba por chegar depois da hora prevista, ou seja, chega atrasado.
Seguindo o entendimento defendido pelo INAC na decisão sob recurso teríamos uma de duas: o voo diário S4 128 nunca podia ter atrasos (no sentido de falta de pontualidade), e como tal nunca violaria o parâmetro pontualidade, mas violava sempre que esse atraso se verificasse o parâmetro “horário”, apesar de ser um voo planeado com hora de chegada dentro dos limites horários definidos legalmente; ou, para além de violar o parâmetro “horário”, por chegar depois das 00h30m, violava igualmente o parâmetro “pontualidade” precisamente pela mesma circunstância: chegar depois das 00h30m.
Ora, não se nos afigura que seja essa a teleologia subjacente à definição daqueles dois parâmetros. Os parâmetros foram definidos para operarem em momentos diversos: o “horário” na fixação do período temporal em que devem ser fixadas as frequências de voo pela transportadora aérea; a “pontualidade” para aferir se cada voo, em concreto, cumpre o horário previamente estabelecido para aquela frequência de voo.
Em suma, pelo que supra fica exposto, entendemos que assiste razão à recorrente quando afirma que “uma coisa é o parâmetro “horário” que diz respeito ao planeamento aprovado e publicado, coisa diferente é a “pontualidade” que está relacionada com a execução na hora do voo programado”. Nessa medida os atrasos verificados nos pontos 6 e 8 dos factos provados devem ser enquadrados no parâmetro “pontualidade” e não no parâmetro “horário”.
E aqui chegado temos igualmente que concluir, em consonância com a recorrente S..., que apesar de se verificarem atrasos nos dias ali referidos, não resultam provados factos que permitam concluir que os atrasos superiores a 15 minutos detectados (pois só esses assumem relevância nos termos da comunicação da Comissão), afectam mais de 15% dos voos e são directamente imputáveis à recorrente S..., condições cumulativas exigidas para que a recorrente S... pudesse ser sancionada pela violação do parâmetro “pontualidade”.
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Por último, sempre se dirá que o facto de não ter havido prejuízo para os utentes em nada contende com a verificação do incumprimento por parte da S..., na medida em que não se exige a verificação do resultado – isto é, que o utente tenha sofrido um dano na sua esfera jurídica – para que haja a violação das disposições do Decreto-Lei n.º 138/99, de 23 de Abril. Basta-se o perigo causado com o incumprimento.
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Por tudo o exposto, e ainda que proceda parcialmente o recurso interposto pela recorrente S..., dúvidas não restam em como a recorrente infringiu o disposto no artigo 6.º, n.° 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 130/99, de 23 de Abril, por referência às obrigações assumidas e previstas na Comunicação da Comissão (2001/C 271/03):
Ø nas semanas de 11 a 17 e de 25 a 31 de Outubro de 2004 no que concerne à capacidade mínima semanal oferecida.
A recorrente incorreu, por isso, na prática de duas contra-ordenações, por violação do estatuído na supra citada disposição legal.                                                       
Tendo cometido tais infracções deve ser condenada pelas mesmas, pois não resultaram apuradas causas que excluíssem a ilicitude ou a culpa da sua actuação.
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IV. Da medida das coimas:
Cada uma das contra-ordenações cometidas pela recorrente S... é punível com uma coima de € 499 a € 44.892, atento o disposto no artigo 23.°, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 138/99.
Face ao que se apurou quanto à culpa da recorrente relevando especialmente a razão de que a recorrente agiu desta forma no sentido de tornar mais eficiente a gestão da rota em causa, atendendo a que com o seu comportamento não lesou os interesses dos passageiros, é correcta a decisão da autoridade administrativa de punir a recorrente S... com uma coima no valor de € 2.500 por cada uma das contra-ordenações cometidas.
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Do cúmulo Jurídico:
Dispõe o n.º 1 do artigo 19.º do RGCO, aplicável às contra-ordenações aeronáuticas ex vi artigo 35.°, do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 09 de Janeiro, que “quem tiver praticado várias contra-­ordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em concurso”: acrescentando-se no n.º 2 que "a coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso".
Assim, no caso concreto, a coima única aplicável à recorrente S... não pode ser inferior a € 2.500 nem superior a € 5.000.
Considerando os critérios em que assentou a definição de cada uma das coimas aplicadas à recorrente S..., entendemos ser justo e adequado fixar a coima única em € 3.250, mantendo-se a não aplicação da sanção acessória. …».

         E, por isso, foi proferida a decisão judicial que se transcreveu no início do presente acórdão.

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            Vejamos:

         Nas conclusões formuladas, que balizam o objecto do recurso -- Art.°s 403º e 412°, n.° l do C.P.Penal --, já que “o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação” (Acórdão do S.T.J. de 13-3-91, Proc. 41.694/3ª, citado em anotação ao Art.° 412° no “Cód. Proc. Penal Anotado”, de Maia Gonçalves; entre muitos outros também, cfr. Ac. do S.T.J. de 22-05-95, a págs. 127 do B.M.J. 445°; aliás, “se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que suscitou na motivação, como vem entendendo o STJ, o tribunal superior só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no Art.° 684.º, n.º 3 do CPC. Com efeito, nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.” - in “Cód Proc. Penal Anotado”, II vol., pág. 555, de Simas Santos, Leal-Henriques e Borges de Pinho), a recorrente suscita, unicamente, as seguintes questões de direito, até porque o conhecimento deste Tribunal se encontra limitado a essa matéria, na medida em que somente funciona como tribunal de revista (cfr. Art.º 75º, n.º l do Decreto-Lei n.° 433/82 de 27 de Outubro):
         1 - Eventual falta do pressuposto essencial de punição previsto no Art.º 7º, n.º 2 do Regime Geral das Contra-Ordenações, o que se revela susceptível de acarretar a nulidade do presente processo de contra-ordenação, desde a acusação, em virtude da violação do exercício do direito ao contraditório, mediante a apresentação de uma boa defesa;
2 - Pretensa violação do princípio da não auto-incriminação, donde resulta que, no caso concreto, não podiam ter sido utilizados, como prova contra si, os elementos pela mesma fornecidos;
3 - Suposta ocorrência do vício de insuficiência da matéria de facto provada previsto no Art.º 410º, n.º 2, alínea a) do C.P.Penal;
4 - Possível verificação de um conflito de deveres jurídicos susceptível de conduzir à exclusão da ilicitude da respectiva conduta;
5 - Eventual aplicação de uma sanção que, in casu, não exceda a admoestação.
        
.        Ora, por razões de lógica processual, há que começar pela apreciação da questão suscitada em segundo lugar.
Assim, no que a ela diz respeito, torna-se forçoso, de imediato, referir que, desde o início da década de oitenta do século passado, principalmente a partir da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra-Ordenações), que o Direito Contra-Ordenacional se diferenciou face ao Direito Penal e Processual Penal, desenvolvendo autonomia em três planos distintos: o dogmático, o sancionatório e o processual.
Nesta conformidade, dir-se-á, pois, que o processo contra-ordenacional segue uma tramitação simplificada, mas não deixa de consignar algumas das garantias constitucionalmente consagradas para o processo penal.
O processo penal é, de resto, o direito subsidiário do processo contra-ordenacional, tal como, inequivocamente, se retira do Art.º 41º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações.
As exigências que, no último par de décadas, o desenvolvimento tecnológico, económico e social veio impor ao Direito de Mera Ordenação Social, justificam uma crescente autonomização deste ramo do Direito.
Todavia, se este é um desiderato pretendido por muitos, o certo é que o legislador não tem dado muitos sinais nesse sentido, mantendo em vigor, no essencial, o procedimento nascido há mais de 25 anos, no qual, por exemplo em matéria de regulação da audiência, ainda se aplicam subsidiariamente as normas do processo de transgressões, com referências à não “redução da prova a escrito”, quando no processo penal na última reforma introduzida já se prevê que a documentação das declarações prestadas oralmente em audiência possa ser feita através da gravação magnetofónica ou audiovisual[1].
Paralelamente, agravaram-se as sanções aplicáveis neste ramo do Direito, através de um alargamento do leque das sanções acessórias e de um aumento considerável dos montantes das coimas – v.g. no caso sub judice estão em causa contra-ordenações puníveis com coimas máximas de € 250.000,00.
Por outro lado, «o legislador tem procurado equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal. (...)
Entre a garantia e a eficácia o legislador tem optado, talvez correctamente, por privilegiar a primeira.»[2]
Esta componente garantística é, a nosso ver, indispensável para buscar o equilíbrio necessário, sem o qual se violará o n.º 2 do Art.º 18º da C.R.P..
O legislador não pode, por um lado, estatuir sanções altamente gravosas como, in casu, a suspensão da licença de transporte aéreo ou a privação do direito ao subsídio ao preço do bilhete ou à compensação financeira, nem fixar coimas de valores muito elevados e, por outro lado, não conceder aos visados as garantias de defesa adequadas a um sistema fortemente punitivo como já é actualmente o Direito Contra-Ordenacional.
É certo que as garantias dos arguidos têm como reverso da medalha uma perda de eficácia da Administração (da Justiça), mas não pode deixar de ser assim, sob pena de nos aproximarmos de sistemas autoritários e de nos afastarmos da matriz democrática em que se funda a nossa Lei Fundamental.
A solução, como sempre, há-de encontrar-se no equilíbrio entre o poder ordenador e sancionatório que o legislador decidiu atribuir à Administração e as garantias dos arguidos.
Destarte, torna-se imperioso apurar a amplitude dos direitos processuais fundamentais, nomeadamente no âmbito contra-ordenacional.
Inexistem dúvidas de que as garantias próprias do processo penal têm vindo a ser paulatinamente adquiridas pelo processo contra-ordenacional e pelo direito sancionatório em geral.
Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, acerca da norma consagrada no Art.° 32°, n.° 10 da C.R.P., “trata-se de uma simples irradiação para esse domínio sancionatório de requisitos constitutivos do Estado de direito democrático” (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Edição de 2007, Pág. 526).
Num Estado de Direito democrático os cidadãos e as pessoas colectivas devem poder contar com processos sancionatórios céleres e eficazes mas justos e pautados pela equidade. E devem, também, poder contar com uma actuação leal das autoridades judiciárias e administrativas.
Tanto uma interpretação de acordo com o espírito do legislador, constituinte e ordinário, como uma interpretação actualista da C.R.P., permitem asseverar a bondade da afirmação dos supra mencionados Professores sobre a norma do Art.º 32°, n.º 10 da Lei Fundamental.
Aliás, importa consignar que o S.T.J. tem avançado, de forma inequívoca, no sentido de aproximar o processo contra-­ordenacional do processo penal, designadamente no que toca às garantias dos arguidos.
E dizemos isto porque, no Assento 1/2003, publicado no D. R., I-A Série de 25-01-2003, se entendeu que "Quando, em cumprimento do artigo 50.º do regime geral das contra-­ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade (...)".
Este aresto acolhe definitivamente uma interpretação ampla da sobredita norma constitucional, sublinhando a necessidade de o arguido ser confrontado com todos os elementos que lhe são imputados e que o acusador pretende que sirvam a sua condenação.
Verifica-se, pois, que, perante a redacção algo ambígua - mas com uma razão de ser histórica - do Art.º 32°, n.º 10 da C.R.P., o Assento 1/2003 tomou uma opção clara no sentido de considerar que as garantias do processo penal se deverão estender ao processo contra-ordenacional.
É que, na verdade, a utilização das expressões "direitos de audiência e de defesa" resulta da génese do direito contra-­ordenacional e das influências quer do direito administrativo onde é próprio falar-se em "direito de audiência", quer do direito processual penal, onde é próprio falar-se em "direitos de defesa"
Por sua vez, o INAC tem por finalidade supervisionar, regulamentar e inspeccionar o sector da aviação civil (cfr. Art.º 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 133/98 de 15 de Maio), que são reconhecidamente poderes de Administração Pública.
Dispõe, também, de poderes sancionatórios, cuja natureza é claramente de Administração da Justiça, em sentido impróprio (cfr. Art.º 10º, n.º 1, alínea c) dos Estatutos do INAC constantes do sobredito diploma legal, alterado pelo Decreto-Lei n.º 145/2002 de 21 de Maio).
Para além das competências definidas nos Art.ºs 6º e 7º dos supra mencionados Estatutos, o INAC tem, ainda, poderes de regulação estabelecidos no subsequente Art.º 8º.
Mais podia o predito Instituto, de acordo com o n.º 1 do Art.º 9º dos mesmos Estatutos, proceder a inquéritos sobre qualquer matéria, no âmbito das suas competências.
Sendo que, por força do n.º 2 de tal norma, sempre que o interesse público o justificasse, podia, também, exigir a quaisquer pessoas ou entidades que exercessem actividades no seu âmbito de competências a prestação de informação relativa à respectiva actividade.
Competia-lhe, outrossim, no exercício do seu poder de fiscalização; a) promover a aplicação e fiscalizar o cumprimento das leis, regulamentos, normas e requisitos técnicos aplicáveis no âmbito das suas atribuições; b) aceder e inspeccionar, a qualquer hora e sem necessidade de aviso prévio, equipamentos e serviços das entidades sujeitas a sua inspecção e controle e c) instaurar e instruir os processos de contra-ordenação  resultantes da violação das disposições legais e regulamentares, assim como aplicar aos infractores coimas e outras sanções previstas na lei (cfr. Art.º 10º, n.º 1 dos Estatutos do INAC constantes do sobredito diploma legal, alterado pelo Decreto-Lei n.º 145/2002 de 21 de Maio).
A S... alega ter-lhe sido preterido, na qualidade de arguida, o direito fundamental de não se auto-incriminar, dado que foi essencialmente utilizado pelo INAC, para sustentar a matéria de facto constante da Acusação, o Relatório de Execução do 4.º Trimestre de 2004, por a mesma apresentado a tal Instituto.
Além disso, o INAC recolheu elementos de prova de uma forma que não pode deixar de se reputar de ilegítima e pouco transparente, sendo exigível de acordo com o Princípio da Transparência e com o respeito pelos direitos do arguido, que, no mínimo, a S... tivesse sido informada de que os elementos que a mesma sujeitou a registo poderiam vir a servir para a instrução de um processo de contra-ordenação.
É que nenhum arguido pode ser obrigado a entregar elementos que possam comprometê-lo ou incriminá-lo, sob pena de violação do Princípio da não auto-incriminação.
Destarte, resulta que o INAC não podia ter utilizado como prova, para fundamentar a acusação à S..., os elementos fornecidos pela própria.
Pelo que, deve ser revogada a decisão recorrida e declarada a nulidade do processo de contra-ordenação desde a acusação.
Ora, compulsados os autos, verifica-se que os elementos que serviram para o INAC formular as suas conclusões resultam essencialmente do Relatório de Execução Trimestral (4º Trimestre de 2004) apresentado pela arguida àquele Instituto.
Tendo sido também com base neste documento que o INAC efectuou o Relatório de Verificação do Cumprimento das Obrigações Modificadas de Serviço Público.
Na verdade, agindo de boa fé, e em cumprimento do disposto no Contrato de Concessão de Serviços Aéreos Regulares que havia celebrado com o Estado Português para a rota Lisboa/Ponta Delgada/Lisboa, a arguida procedeu, conforme supra se enunciou, à apresentação do Relatório de Execução do 4º Trimestre de 2004.    
E foi com base neste documento fornecido pela S... que o INAC veio instaurar processo de contra-ordenação contra a mesma (cfr. fls. 2 e 3 e 42 a 49).
Recolheu, pois, o INAC elementos de prova de uma forma que não pode deixar de se reputar de ilegítima e pouco transparente.
Com efeito, o princípio da transparência e o respeito pelos direitos do arguido exigiria que, no mínimo, fosse referido à arguida que os elementos que a mesma sujeitou a registo pudessem vir a servir para a instrução de um processo de contra-ordenação.
E dizemos isto porque, de facto, nenhum arguido pode ser obrigado a entregar elementos que possam comprometê-lo ou incriminá-lo.
Além disso, depois de ter tido acesso ao relatório fornecido pela S..., verifica-se que o INAC interpretou-o como entendeu, utilizando esses elementos para tentar demonstrar exclusivamente a sua perspectiva do comportamento da arguida.
Ora, sendo certo que o supra mencionado Instituto tem o poder de deliberar no sentido de exigir o cumprimento das obrigações de serviço público, também não pode deixar de se considerar que os arguidos gozam do especial estatuto de arguido, no âmbito do qual se encontram os direitos constitucionalmente consagrados ao silêncio e à não auto-incriminação.
O princípio da não auto-incriminação surge como uma emanação do catálogo dos direitos de defesa consagrados para os ilícitos contra-ordenacionais no já supra mencionado Art.º 32º, n.º 10 da C.R.P., devendo por isso sempre prevalecer sobre o direito de utilizar elementos fornecidos, neste caso, pela arguida, por parte das autoridades administrativas, tal como acertadamente defende a arguida.
Nesta conformidade, torna-se forçoso referir, de todo em todo, que se revela impossível conceber o direito à não auto-­incriminação, ou qualquer outro direito ou princípio fundamental, como absoluto.
E dizemos isto até porque uma noção de direitos fundamentais de alcance absoluto parece ser inconcebível nos nossos dias, quer no plano da ciência jurídica, quer mesmo no plano da vida.
Desta forma, afigura-se-nos, também, que os princípios (direitos) fundamentais constituem imperativos de optimização, que não admitem verdadeiras excepções mas, antes, quando conflituantes, apenas restrições ou compressões.
Na realidade, o direito à não auto-incriminação é um direito que integra a nossa constituição material.
A verdadeira questão está em descortinar quais os seus corolários, qual o seu alcance e quais os seus limites, sobretudo no confronto com outros direitos ou princípios de índole constitucional.
É que, não obstante o princípio nemo tenetur – seja na sua vertente de direito ao silêncio do arguido, seja na sua dimensão de “privilégio” do arguido contra uma auto-incriminação – não estar expressa e directamente plasmado no texto constitucional, a doutrina e a jurisprudência portuguesas são unânimes não só quanto à vigência daquele princípio no direito processual penal português, como quanto à sua natureza constitucional (cfr. Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Podres de Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova in Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Edição de 2009, Pág. 39).
Importa, portanto, determinar em que medida poderá o direito à não auto-incriminação valer em processo contra-ordenacional e, ainda, com que extensão e limites.
Desconsiderando aqui a realidade da regulação e se nos ativermos apenas aos fins e efeitos do processo contra-ordenacional, por um lado, e ao regime do Regime Geral das Contra-Ordenações, por outro, notamos que inexistem razões para excluir, à partida, o direito à não auto­-incriminação (e, bem assim, os direitos ao silêncio e à presunção da inocência dos arguidos) do catálogo de garantias dos arguidos em processo contra-ordenacional.
Se o artigo 41°, n.º 1 do supra mencionado Regime manda aplicar subsidiariamente as normas do processo penal ao processo contra-ordenacional e se uma análise, mesmo que perfunctória, demonstra que aquele diploma legal não regula a questão, não se nos afigura existir motivo para excluir a vigência do direito ao silêncio e do direito à não auto­-incriminação deste domínio.
O que, aliás, decorre mesmo da circunstância do Art.º 35º do Decreto-Lei n.º 10/2004 de 9 de Janeiro determinar que, em tudo o que não for expressamente regulado no presente diploma que estabelece o regime aplicável às contra-ordenações aeronáuticas civis, aplica-se o Regime Geral das Contra-Ordenações. 
Por conseguinte, não se vislumbra qualquer impedimento à concessão aos arguidos em processo contra-ordenacional daqueles direitos surgidos primeiramente no foro da jurisdição penal.
De qualquer modo, considerando o que se referiu sobre a necessidade de compatibilizar os diversos direitos, princípios e interesses constitucionalmente protegidos, caberá verificar se, no caso dos processos contra-­ordenacionais investigados, instruídos e decididos pelo Instituto Nacional de Aviação Civil, existem razões que determinem a supressão ou a mera restrição do direito à não auto-incriminação, sempre em obediência ao princípio da proporcionalidade (cfr. Art.° 18°, n.° 2 da C.R.P.).
E, nesta perspectiva, importa salientar que, de facto, não se encontra qualquer argumento que permita a extrapolação de que os poderes que lhe estão literalmente atribuídos deverão prevalecer no domínio dos processos contra-ordenacionais a seu cargo, sob pena de se desvirtuarem os interesses constitucionais que visam concretizar.
Outrossim, nem sequer se fale em supervisão sancionatória, pois que supervisão e poderes sancionatórios são âmbitos distintos que deverão ser claramente demarcados.
Aliás, não se nos afigura que o presente caso, maxime o do INAC e dos seus poderes, seja especialmente diferente dos demais em que a Administração Ordenadora (Reguladora e Supervisora) possui simultaneamente poderes sancionatórios.
Sendo que, por outro lado, também não se alcança que o sacrifício do direito à não auto-incriminação seja a medida necessária e adequada a concretizar os interesses prosseguidos pelo predito Instituto e porque não pode este deixar de actuar como a generalidade das demais autoridades administrativas: exercendo os seus poderes ordenadores e supervisores de acordo com o que a lei lhe atribui e exercendo o poder sancionatório com os limites impostos pelos princípios essenciais de um Estado de direito democrático.
Haverá, assim, que procurar a solução que implique uma menor restrição dessas garantias, assegurando-lhes uma adequada protecção mediante a concretização do princípio da proporcionalidade na sua vertente ou máxima de necessidade.
De todo o modo, o INAC, para o cabal prosseguimento das suas atribuições, não necessita de utilizar "meios enganosos" para instruir, investigar e decidir processos contra-­ordenacionais, pois não só possui todos os poderes associados à regulação e previstos, entre outros, nos supra referidos artigos dos seus Estatutos, como dispõe de todos os poderes previstos no Regime Geral das Contra-Ordenações.
Recorde-se que, designadamente, para efeitos das alíneas a) e b) do número anterior, tem o mesmo competência para, directamente ou através de pessoas ou entidades qualificadas, por si credenciadas, proceder às necessárias inspecções, exames e verificações (cfr. Art.º 10°, n.º 2 dos respectivos Estatutos constantes do Decreto-Lei n.º 133/98 de 15 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 145/2002 de 21 de Maio).
Em face do que acaba de se expender, torna-se imperioso extrapolar que o Instituto Nacional de Aviação Civil dispunha de outros meios de obtenção de prova que lhe permitiam exercer cabalmente os seus poderes sancionatórios.
Deste modo, mais nada nos resta senão concluir que a supressão do direito à não auto-­incriminação da S... Aéreos, S.A. violou o princípio da proporcionalidade (cfr. Art.º 18°, n.º 2 da C.R.P.), na sua vertente de necessidade, já que aquela autoridade administrativa optou pelo meio de prova mais lesivo para os direitos fundamentais da arguida, sem curar de ponderar e optar por outros meios de obtenção de prova.
Mais importa reflectir sobre se os elementos obrigatoriamente fornecidos no âmbito da actividade supervisora podem ser utilizados contra a arguida num processo de contra-ordenação.
Principalmente em matérias como esta em que a supervisão e a aplicação de coimas está concentrada na mesma entidade, surge alguma confusão entre estes dois poderes, que são distintos.
É que, enquanto um tem uma natureza claramente administrativa, o outro, ao englobar a instrução dum processo de contra-ordenação e a aplicação duma coima, assume uma parte do poder jurisdicional, de administração da justiça, pelo menos em sentido impróprio.
A confusão entre estes dois poderes não é saudável para o sistema, por isso a linha divisória deveria ser claramente marcada.
Para sabermos, então, se os elementos obrigatoriamente fornecidos no âmbito da actividade supervisora podem ser utilizados contra a arguida num processo de contra-ordenação, interessa determinar se neste processo vigora ou não o princípio da presunção de inocência[3], e com que dimensão, para de seguida se apurar se com aquele modo de actuação por parte do INAC houve ou não a violação daquele princípio constitucional.
Em primeiro lugar, a jurisprudência tem admitido pacificamente a aplicação do princípio da presunção de inocência ao processo de contra-ordenação – vide, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-12-2006, in www.dgsi.pt/jstj, e o Acórdão da Relação do Porto, de 14-06-2006, in www.dgsi.pt/jtrp. Trata-se de um princípio fundamental num Estado de direito democrático, pelo que não se vê como não o aplicar a um ramo de direito sancionatório.
O princípio da presunção de inocência está consagrado no Art.º 32º, n.º 2 da C.R.P., no Art.º 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no Art.º 6º, n.º 2 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, também conhecida pela designação de Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A dimensão primeira deste princípio é no plano probatório. Dele decorre a inexistência de um ónus da prova da inocência por parte do arguido, o qual não é um mero objecto ou meio de prova.
Corolário deste, é o princípio in dubio pro reo.
Como salienta Rui Patrício[4], «...decorre do princípio da presunção de inocência do arguido que este não é um mero objecto ou meio de prova, mas sim um livre contraditor do acusador, com armas iguais às dele, devendo frisar-se que daqui decorre – e em ligação com o princípio da preservação da dignidade pessoal – que a utilização do arguido como meio de prova é sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisão de vontade; ou seja, o arguido, em matéria de prova, não pode ser obrigado a colaborar com o Tribunal, além de que a sua confissão (por si, já um acto espontâneo de colaboração) se acha rodeada de especiais cuidados
O facto de a arguida ser uma pessoa colectiva não a impede de beneficiar da aplicação deste princípio ao processo contra-ordenacional.
Quando o Art.º 12º, n.º 2 da C.R.P., estatui que uma pessoa colectiva goza dos direitos e está sujeita aos deveres compatíveis com a sua natureza, está a referir-se a direitos dos quais ela nunca poderia ser titular dada a sua natureza de pessoa não física. Não se concebe por que razão uma pessoa colectiva, só por o ser, estaria obrigada a provar a sua inocência e a colaborar com a autoridade administrativa no sentido de apurar factos que a incriminassem.
Nos termos do Art.º 18º, n.º 1 da C.R.P., os preceitos constitucionais que dizem respeito a direitos são directamente aplicáveis.
Logo, o princípio da presunção da inocência, sendo um direito dos arguidos em processo contra-ordenacional, é directamente aplicável e vincula qualquer entidade pública, mormente o INAC quando exerce o seu poder de instruir o processo e decidir em matéria de contra-ordenações.
Por conseguinte, não podiam ter sido utilizados como prova para fundamentar a decisão condenatória, elementos fornecidos pela própria arguida no âmbito do cumprimento de um dever enquanto supervisionada, sem que a mesma tivesse sido previamente advertida de que os mesmos poderiam vir a servir para a instrução de um processo de contra-ordenação.
Esta questão assume ainda maior relevância, porquanto é inequívoco que a prova produzida durante a fase administrativa dum processo de tal natureza, pode ser utilizada na decisão judicial proferida em recurso.
Portanto, não faz qualquer sentido que os arguidos apenas tivessem direito ao silêncio e à não auto-inculpação tão-somente a partir do momento em que entravam na sala de audiências.
É que, se os arguidos não têm direito ao silêncio e à não auto-inculpação perante a entidade supervisora, in casu, o INAC, mal se compreenderia que, já perante o Tribunal, os arguidos poderiam ficar calados e não fornecer elementos que os pudessem prejudicar.
O que seria, aliás, por demais absurdo, tanto que isso de nada lhes serviria, pois já tinham sido obrigados a contribuir para a sua condenação no decurso (ou mesmo antes) da fase administrativa do processo.
Destarte, se o princípio da presunção de inocência é aplicável a todo o processo contra-ordenacional, também terão de ser aplicáveis os meios processuais que permitem a obtenção dos resultados que tal princípio visa assegurar[5].
Mormente, deverão ser aplicáveis as proibições de prova previstas no Art.º 126º do C.P.Penal.
Nos termos do n.º 1 deste artigo, as provas obtidas mediante coacção ou ofensa da integridade moral das pessoas são nulas.
Sendo que o n.º 2 especifica que serão ofensivas da integridade moral das pessoas, as provas obtidas mediante perturbação da liberdade da vontade ou de decisão através, designadamente, da utilização de meios enganosos.
O Prof. Costa Andrade, depois de reconhecer que a matéria dos meios enganosos nos transporta para um domínio indefinido e inseguro, tenta esclarecer que “...por princípio, apenas deverão ter-se como proibidos os meios enganosos «susceptíveis de colocar o arguido numa situação de coacção idêntica à dos demais» métodos proibidos de prova. Este deverá ser, pelo menos, o critério privilegiado para a equacionação e superação dos casos mais duvidosos.
(...) a doutrina e a jurisprudência propendem hoje, de forma praticamente pacífica, para fazer valer a distinção entre o erro por acção e por omissão.
Por um lado, entende-se que «são, sem excepção, proibidas tanto a falsa informação sobre questões de direito como a comunicação consciente de factos que não correspondem à verdade ou a sua deturpação». (...)
Por outro lado, o regime será já diverso em caso de mera omissão...,” neste domínio “...só nas hipóteses de existência de um dever jurídico de agir, sc., de informar e de esclarecer, poderão ocorrer casos de meios enganosos a tratar como métodos proibidos de prova”[6].
O mesmo Autor dá como exemplos de erros de direito fraudulentamente induzidos, os casos em que o arguido «responde a perguntas da autoridade judiciária erroneamente convencido de que está a ser interrogado como testemunha, de que está a obrigado a responder e a falar a verdade, de que o silêncio será valorado como prova da sua culpabilidade.»
No caso dos autos, os elementos fornecidos pela própria arguida, foram obtidos sem que lhe tivesse sido transmitido pelo INAC que tinha o direito ao silêncio e à não auto-inculpação, desde logo, porque se vislumbra que o mesmo parece entender que, no âmbito deste processo, a arguida não tem esses direitos.
Com muita pertinência para o caso em apreço, atente-se no que nos diz o Prof. Augusto Silva Dias[7]: «De salientar que a entrega voluntária de elementos por parte das pessoas visadas terá como consequência a admissibilidade da sua utilização como prova em processo contra-ordenacional ou mesmo penal. Isso exige, contudo, que seja comunicado aos visados que têm o direito de recusar a colaboração, sempre que da mesma decorra a revelação de factos auto-incriminatórios, sob pena de os elementos probatórios fornecidos não poderem ser valorados.» E acrescenta[8]: «Tal comunicação poderá ter uma fórmula semelhante àquela conhecida por Miranda Warning no direito norte-americano (…), por exemplo: “Fica por este meio notificado, nos termos dos artigos…, que deve fornecer os seguintes elementos: …, sob pena de punição a título de … A obrigação de entrega cessa se da mesma decorrer a revelação de qualquer facto passível da punição como crime ou contra-ordenação, devendo, neste caso, ser requerida a constituição de arguido, que dará lugar à instauração do competente procedimento. Fica ainda informado de que, procedendo à entrega dos elementos solicitados, poderão estes ser utilizados contra si em processo de natureza contra-ordenacional ou penal.»
Na perspectiva do que acaba de se expender, a arguida foi, pois, levada a pensar que estava a fornecer elementos estritamente para o efeito da supervisão, o único para o qual, efectivamente, tinha esse dever, sem saber que os mesmos poderiam vir a ser, e foram, utilizados para efeitos de instrução do processo contra-ordenacional.
Desta forma, impõe-se concluir que a utilização destes meios enganosos, através dos quais se obteve a prova junto da arguida, perturbou a liberdade de os seus representantes decidirem, pelo que são ofensivos da integridade moral das pessoas, sendo, por isso, nulas as provas consubstanciadas no Relatório de Execução do 4º Trimestre de 2004 pela mesma apresentado.
O que, desde logo, decorre, não só do disposto no Art.º 126º, n.ºs 1 e 2, alínea a) do C.P.Penal, ex vi do Art.º 41º, n.º 1 do Regime Geral das Contra Ordenações, e nos Art.ºs 32º, n.º 2 e 18º, n.º 1 da C.R.P., mas também da aplicação do Art.º 32º, n.º 8 da C.R.P.
Por sua vez, nos termos do Art.º 122º, n.º 1 do C.P.Penal, também ex vi do Art.º 41º, n.º 1, do Regime Geral das Contra Ordenações, as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.
De acordo com o entendimento dominante, na esteira da chamada teoria dos frutos da árvore envenenada, a invalidade referida projecta-se à distância, abrangendo as outras provas posteriores que se referem aos mesmos factos.
Assim, declaram-se nulas não podendo ser valoradas, as provas consubstanciadas nos diversos documentos juntos aos autos, designadamente os "relatórios de verificação do cumprimento das obrigações modificadas de serviço público" e relativos ao último semestre de 2004, a que se faz referência na motivação de facto da decisão judicial ora em crise.
O que, sem mais, implica que tenha de se considerar como não provada, no que para o presente caso releva, a matéria fáctica constante dos pontos n.ºs 4 e 5 e 9 da fundamentação de facto da mesma.
Nesta perspectiva, impõe-se salientar que, ao entender-se agora não ter ficado provada a factualidade que se deixou apontada, só se pode acolher, no que a esse aspecto é atinente, a pretensão da recorrente.
Daí que os pontos da matéria de facto, em que houve alteração relativamente à decisão do Tribunal a quo, importem, só por si, modificação da qualificação jurídico-contra-ordenacional da conduta da arguida S... Aéreos, S.A. e que originou a respectiva condenação.
Na verdade, vindo a recorrente condenada pela prática de duas contra-ordenações previstas no Art.º 6°, n.ºs 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 130/99, de 23 de Abril, tem de concluir-se que, agora, os factos provados não permitem, por si, manter essa qualificação.
É que, se se quedou por provar o atrás apontado acervo de factos, inquestionável se torna que não se provaram os elementos essenciais do referido tipo contra-ordenacional.
Deste modo, a condenação da arguida S... Aéreos, S.A. relativamente às supra mencionadas contra-ordenações não se pode manter e tem, portanto, a mesma de delas ser absolvida, com as consequências daí decorrentes.
Flui do expendido que o recurso merece, pois, provimento, sendo a decisão sub judice alterada nos termos aludidos.
Nesta perspectiva, pode, pois, afirmar-se que o recurso alcançou provimento, encontrando-se, por este motivo, prejudicadas as outras questões suscitadas pela recorrente.
 
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Assim, em face de tudo o que vem de ser exposto, acorda-se em:
I - Negar provimento ao recurso interlocutório e, em consequência, confirmar-se integralmente o despacho proferido a fls. 406 e v.º;
II - Conceder provimento, nos termos sobreditos, ao recurso principal da arguida S... Aéreos, S.A. e, em consequência, alterando-se a decisão recorrida nessa parte, absolve-se a mesma das duas contra-ordenações previstas no Art.º 6°, n.ºs 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 130/99 de 23 de Abril, pelas quais havia sido condenada no Tribunal a quo.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC quanto ao recurso interlocutório.
Sem custas, por não serem devidas, no que diz respeito ao recurso principal.

Lisboa, 17 de Abril de 2012

Relator: Simões de Carvalho;
Adjunto: Margarida Bacelar;
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[1] Veja-se a redacção dada ao Art.° 364° do Código de Processo Penal pela Lei n.° 48/2007 de 29 de Agosto.
[2] Frederico de Lacerda da Costa Pinto, “O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal”, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Volume I – Problemas Gerais, Págs. 209 e Segs., citado no Assento n.° 1/2003, de 16 de Outubro de 2002, publicado no D. R. I Série-A, de 25-01-2003.
[3] Vide Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, “O Direito à não auto-inculpação (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-ordenacional português”. Coimbra Editora. 2009, p. 15: «No que respeita aos fundamentos constitucionais do princípio [do nemo tenetur] podem distinguir-se dois, segundo uma divisão oriunda da doutrina germânica: um fundamento material ou substantivo e um fundamento processual. Na doutrina portuguesa prevalece a corrente que atribui ao nemo tenetur natureza processual. Dentro desta, podem distinguir-se várias nuances, configurando a maioria dos autores o direito ao silêncio como projecção da estrutura acusatória do processo [penal] e das garantias de defesa. Outros relacionam aquele direito com aspectos particulares destas garantias, tais como a presunção da inocência, e outros ainda, sem afastar as garantias de defesa, reconduzem-no ao princípio do processo equitativo. Embora preconize um fundamento processual para o nemo tenetur, a doutrina portuguesa não deixa de referir que o princípio protege igualmente, de forma mediata, a dignidade da pessoa e direitos fundamentais com ela relacionados como os direitos à integridade pessoal e à privacidade.
Na jurisprudência, merece destaque a posição do TC [Tribunal Constitucional] plasmada desde logo no Acórdão n.º 695/95 (…). Parece indiscutível que para o TC o direito ao silêncio é uma componente das garantias de defesa asseguradas no n.° l do art.° 32.° da CRP, cujo objectivo último é a protecção da posição do arguido como sujeito do processo.»  
[4] Na sua obra “O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português (Alguns problemas e esboço para uma reforma do processo penal português)”, AAFDL, Lisboa, 2000, pág. 94.
[5] «A presunção de inocência do arguido (…) é um direito do arguido – e, por conseguinte (como todos os direitos), um comando, dirigido ao legislador ordinário, impondo-lhe que legisle no sentido de que não saia diminuído, directa ou indirectamente, o princípio da presunção de inocência do arguido…» Rui Patrício, Idem, pág. 95.
[6] “Sobre proibições de prova em processo penal”, Coimbra Editora, 1992, pp. 236 e 237.
[7] Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, “O Direito à não auto-inculpacão (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-ordenacional português”, Coimbra Editora, 2009, p. 77.
[8] Ver nota 135, na mesma página da obra citada.