Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
777/18.7YRLSB-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: CERTIFICADO COMPLEMENTAR DE PROTEÇÃO
PATENTE
PRAZO DE DURAÇÃO
PROCEDIMENTO CAUTELAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE / REVOGADA
Sumário: I. O certificado complementar de proteção (CCP) é um mecanismo de prorrogação do prazo de duração da patente, admitido para os medicamentos e para os produtos fitofarmacêuticos.

II. Nos termos do art.º 3.º do Regulamento (CE) n.º 469/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho de 6 de maio de 2009, relativo ao certificado complementar de proteção para os medicamentos, “o certificado é concedido se no Estado-Membro onde for apresentado o respetivo pedido e à data de tal pedido:

a) O produto estiver protegido por uma patente de base em vigor;
b) O produto tiver obtido, enquanto medicamento, uma autorização válida de introdução no mercado [AIM], nos termos do disposto na Directiva 2001/83/CE ou na Directiva 2001/82/CE, conforme o caso;
c) O produto não tiver sido já objecto de um certificado;
d) A autorização referida na alínea b) for a primeira autorização de introdução do produto no mercado, como medicamento.”

III. É nulo o CCP que for concedido em violação do art.º 3.º do Regulamento CCP.

IV. A“summaria cognitio” exigida no procedimento cautelar, não pode ignorar que o direito invocado pela Requerente está judicialmente posto em causa, através de acção declarativa destinada a reconhecer a sua invalidade e, inclusivamente, já foi julgado improcedente por tribunais europeus, o que só por si é motivo suficiente para concluir não existir o “fumus boni iuris.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
               
I-RELATÓRIO

GILEAD SCIENCES, INC., com sede em 333 Lakeside Drive, Foster City, CA 94404, Estados Unidos da América intentou procedimento cautelar não especificado contra:
MYLAN SAS, com sede em 117, Allée des Parcs, 69800 Saint Priest, França, por apenso à acção arbitral necessária que a primeira moveu à segunda.
               
A Requerente pede que o procedimento cautelar seja julgado procedente e, consequentemente, sejam decretadas as seguintes providências cautelares:
« 1-Intimação da Requerida para suspender imediatamente a oferta e /ou fornecimento dos medicamentos Emtricitabina + Tenofovir Mylan ao hospital dos Lusíadas, Hospital de Santa Maria e Hospital de Setúbal e bem assim qualquer outra conduta nos termos do art.º 101.º n.º2 do Código da Propriedade Industrial que esteja a ser praticada junto de qualquer hospital, público ou privado, ou qualquer autoridade pública responsável por processos centralizados de aquisição de medicamentos, tais como o SPMS;
2-Intimação da Requerida para retirar imediatamente do mercado português, a suas expensas, os medicamentos Emtricitabina + Tenofovir Mylan que já tenham sido fornecidos;
3-Intimação da Requerida para informar qualquer hospital a quem tenham sido oferecidos e/ou fornecidos os medicamentos Emtricitabina + Tenofovir Mylan de que esses oferta e /ou fornecimento são ilícitos;
4-Intimação da Requerida para se abster de oferecer e /ou fornecer Emtricitabina + Tenofovir Mylan a qualquer outro hospital ( mediante participação em concursos públicos ou outros) bem como de, no território português, ou com vista à comercialização naquele território, importar, oferecer, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou usar o medicamento Emtricitabina + Tenofovir Mylan ou, sob qualquer outro nome comercial, qualquer outro medicamento que contenha a associação de princípios activos tenofovir disoproxil ( ou sal do mesmo) e emtricitabina enquanto os direitos de propriedade industrial da GILEAD decorrentes do CCP 202 se encontrarem em vigor, i.e., até 24 de fevereiro de 2020,
5-Intimação da Requerida para prestar a informação solicitada nos artigos 74 a 77[1].
Com vista a garantir o exercício dos direitos da Requerente, deve ser a Requerida intimada a não transmitir a terceiros as AIMs identificadas no artigo 68 do presente requerimento inicial, ou quaisquer AIMs ou pedidos de AIM relativos a produtos que contenham a associação dos princípios activos tenofovir disoproxil (ou sal do mesmo) e emtricitabina, enquanto o CCP202 se encontrar em vigor.
Mais se requer, nos termos do art.º 829.º-A do CC que seja fixada uma sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a € 145.000,00, a ser paga por cada dia de atraso no cumprimento das intimações que lhe vierem a ser feitas nos termos do acima requerido.»
Para tanto, alega, em síntese, o seguinte:
A GILEAD é uma empresa de investigação biofarmacêutica sediada na Califórnia, investigando e desenvolvendo produtos farmacêuticos inovadores, no que despende quantias avultadas. O investimento da GILEAD em investigação e desenvolvimento, no ano de 2016 foi de 5,1 mil milhões de dólares norte-americanos.
A protecção de patentes no que diz respeito às invenções resultantes das actividades da GILEAD referidas é crucial para a obtenção dos meios financeiros para manter esta actividade de inovação e para disponibilizar as vantagens à saúde pública daí decorrentes. Desde que foi fundada, uma das preocupações da GILEAD foi contribuir para o tratamento da infecção por HIV em todo o mundo. Além de outros medicamentos, a Requerente desenvolveu um tratamento farmacêutico para o HIV comercializado sob a designação comercial de TRUVADA. Este é um medicamento inovador que contém como substâncias activas o tenofovir disoproxil sob a forma do seu sal de ácido fumárico (“TDF”) e emtricitabina (“FTC”).
A Requerente é titular da Patente Europeia n.º 0915894 (designada por “EP 894” ), a qual protege qualquer composição farmacêutica compreendendo tenofovir disoproxil (ou um seu sal).
A GILEAD é ainda titular do Certificado Complementar de Protecção n.º 202 (“CCP 202”), concedido pelo Instituto de Propriedade Industrial, em 30 de setembro de 2005, nos termos do Regulamento (CEE) n.º 1768/92 do Conselho, de 18 de Junho de 1992.O CCP 202 foi concedido com base na patente de base EP 894 e na autorização de introdução no mercado concedida para o medicamento TRUVADA que contém a associação de substâncias activas FTC e TDF.
O CCP 202 entrou em vigor imediatamente após a caducidade da patente de base, a EP 894, no passado dia 25 de Julho de 2017 e caducará a 24 de Fevereiro de 2020.
Uma patente e um CCP consistem num direito exclusivo o que significa que terceiros ficam legalmente impedidos, sem o consentimento do seu titular, de explorar a invenção patenteada, sob qualquer das formas previstas no art.º 101.º , n.º5 do CPI.
Sucede que a 4 de maio de 2017, o INFARMED publicitou na lista “Medicamentos centralizados – Publicação para efeitos do art.º 15.º-A do Decreto- Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, de medicamentos genéricos aprovados por procedimento centralizados (actualizada)”, disponível na sua página electrónica,  pedido de registo para medicamentos contendo tenofovir disoproxil maleato,  autorização concedida à MYLAN, em 16 de dezembro de 2016.
A concessão de uma AIM constitui condição legal para a comercialização de qualquer medicamento, nos termos do art.º 14.º do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto de 2006.
Vendo-se na posse de uma AIM, a Requerida começou a oferecer o seu medicamento genérico que contém os princípios activos FTC e tenofovir disoproxil ( sob a forma do seu sal maleato), com o nome “ Emtricitabina + Tenofovir Mylan”, a hospitais públicos e privados.
A Mylan não solicitou nem obteve, de modo algum, o consentimento da GILEAD para explorar o medicamento protegido pelo CCP 202.
Deste modo, a GILEAD tem o direito de impedir a MYLAN de fabricar, oferecer, armazenar, introduzir no mercado ou utilizar quaisquer medicamentos que contenham a associação de substâncias activas de FTC e tenofovir disoproxil ( ou qualquer um dos seus sais, incluindo maleato), bem como  de importar ou tomar posse dos mesmos para qualquer dos fins referidos, nos termos do art.º 101.º n.º2 do CPI.
A Requerida MYLAN SAS deduziu OPOSIÇÃO, peticionado que o procedimento cautelar seja julgado totalmente improcedente.
Invoca para tanto e, em síntese, o seguinte:
O presente procedimento cautelar tem por fundamento legal o disposto no art.º 338.º-I do CPI. Ora, para que seja decretada uma procidência cautelar ao abrigo do referido artigo é necessário que o Requerente faça prova do seguinte:
-Titularidade de um direito de propriedade industrial; e
-Uma violação actual ou iminente desse direito.
Neste âmbito, a Requerente invocou que é titular do CCP 202 ( relativo á patente base EP 894) e que a Requerida está a violar esse direito porque está a oferecer o seu produto emtricitabina + tenofovir disoproxil a alguns hospitais no território nacional.
Acontece que, por um lado o CCP 202 é nulo (por violação da alínea a) do art.º 3.º do Regulamento (CE) n.º 469/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho de 6 de maio de 2009 relativo ao certificado complementar de protecção para os medicamentos (doravante “Regulamento CCP”) e não confere quaisquer direitos à Requerente e, por outro lado, a Requerida não praticou qualquer acto que constitua uma violação desse direito. Encontra-se pendente no Tribunal da Propriedade Intelectual acção na qual foi peticionada declaração de nulidade do CCP 202, a qual corre termos no 1.º juízo desse tribunal sob o n.º 384/16.9YHLSB.
Também no Reino Unido, uma empresa do grupo MYLAN à qual pertence a Requerida, em conjunto com outras empresas, intentou uma acção perante o High Court of Justice com vista à declaração de nulidade do certificado complementar de protecção inglês n.º SPC/GB05/041 relativo ao medicamento TRUVADA e que tem por base a EP 894.
A causa de pedir dessa acção no Reino Unido assenta igualmente na alegação de que o produto presente no medicamento TRUVADA (associação das substâncias activas tenofovir disoproxil e emtricitabina) não está protegida pela patente EP 894, sendo o correspondente certificado complementar de protecção nulo em virtude do disposto no art.º 3.º, alínea a) do Regulamento CCP.
No passado dia 13 de janeiro de 2017, o  High Court of Justice do Reino Unido, decidiu nessa acção proceder a um novo reenvio prejudicial para o TJUE para se saber quais são os critérios para se decidir se o produto está protegido por uma patente de base em vigor, na acepção do art.º 3.º, alínea a) do Regulamento CCP.
Uma empresa do grupo MYLAN à qual pertence a Requerida, em conjunto com outras empresas, intentou igualmente uma acção perante o Tribunal Federal Alemão de patentes para a declaração de nulidade do certificado complementar de protecção alemão n.º 12 2005 000 041.8 relativo ao medicamento TRUVADA e que tem por base a EP 894.
A causa de pedir dessa acção na Alemanha assenta também na alegação de que o produto presente no medicamento TRUVADA (associação das substâncias activas tenofovir disoproxil e emtricitabina) não está protegida pela patente EP 894, sendo o correspondente certificado complementar de protecção nulo em virtude do disposto no art.º 3.º, alínea a) do Regulamento CCP.
Por opinião preliminar de 9 de Agosto de 2017, o Tribunal Federal Alemão de Patentes considerou que o Certificado Complementar de Protecção relativo ao medicamento TRUVADA é inválido, porquanto a patente de base ( EP894) não identifica de forma suficiente a emtricitabina como objecto da invenção ou como componente da composição farmacêutica de acordo com a reivindicação 27 da EP894.
A acção de anulação pendente no Tribunal da Propriedade Intelectual, a decisão do reenvio prejudicial para o TJUE pelo High Court of Justice do Reino Unido e a opinião preliminar emitida pelo Tribunal Federal Alemão de Patentes assumem relevo por si só na apreciação do presente requerimento de providências cautelares, atendendo a que existe uma possibilidade muito séria, não negligenciável, de que o CCP 202 seja brevemente decretado nulo.
Sendo o CCP 202 nulo, não confere quaisquer direitos à Requerente e deverá ser inoponível à Requerida nos presentes autos.
A Requerida não ignora o disposto no n.º1 do art.º 35.º do CPI, nos termos do qual a declaração de nulidade ou anulação de uma patente ou CCP – só podem resultar de decisão judicial. Todavia, no presente processo arbitral, a Requerida não vai pedir ao Tribunal Arbitral que declare a nulidade do CCP 202. O que vai pedir é que o Tribunal Arbitral conheça a falta de preenchimento pelo CCP 202 de uma das condições exigidas pelo art.º 3.º do Regulamento CCP com a finalidade única de absolver a Requerida do pedido.
O Tribunal Arbitral, por acórdão datado de 8 de novembro de 2017, veio a julgar parcialmente procedente o procedimento cautelar e por consequência:
1-Intimou a Requerida a abster-se de fornecer ou propor fornecer directa ou indirectamente, designadamente através de sociedades integradas no mesmo grupo económico, como é Mylan. Lda -, ao  abrigo da AIM de que é titular, Emtricitabina + Tenofovir Mylan a hospitais sitos em Portugal e ainda de, no território português, ou com vista à comercialização naquele território, oferecer, introduzir no comércio ou vender – directa ou indirectamente, designadamente através de sociedades integradas no mesmo grupo económico, como é a Mylan, Lda - , ao abrigo da mesma AIM, o medicamento Emtricitabina + Tenofovir Mylan, enquanto os direitos de propriedade industrial da Gilead decorrentes do CCP n.º 202 se encontrarem  em vigor ou enquanto esta providência não for revogada.
2-Condenou a Requerida a pagar uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 10.000,00 por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de não comercializar – por si ou por intermédio de terceiro – o sobredito medicamento genérico.
3-Indeferiu os demais pedidos formulados pela Requerente.
Inconformada com o acórdão arbitral de procedimento cautelar, dele veio interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Lisboa, formulando as seguintes conclusões:
1.O presente recurso vem interposto do Acórdão Arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral ad hoc, constituído nos termos da Lei n.º 62/2011 de 12 de dezembro, no procedimento cautelar que corre por apenso à ação arbitral necessária em que é Demandante Gilead Sciences Inc., aqui Recorrida, na parte em que (i) intimou a Recorrente Mylan SAS a abster-se de fornecer ou propor fornecer – direta ou indiretamente, designadamente através de sociedades integradas no mesmo grupo económico, como é a Mylan Lda. -, ao abrigo da AIM de que é titular, Emtricitabina + Tenofovir Mylan a hospitais sitos em Portugal e ainda de, no território português, ou com vista à comercialização naquele território, oferecer, introduzir no comércio ou vender – direta ou indiretamente, designadamente através de sociedades integradas no mesmo grupo económico, como é a Mylan, Lda. -, ao abrigo da mesma AIM, o medicamento Emtricitabina + Tenofovir Mylan, enquanto os direitos de propriedade industrial da Gilead decorrentes do Cerificado Complementar de Proteção n.º 202 (“CCP 202”) se encontrarem em vigor ou enquanto a providência não for revogada, e (ii) condenou a Recorrente a pagar uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 10.000,00 por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de não comercializar – por si ou por intermédio de terceiro – o sobredito medicamento genérico.
2. Tendo o Mmo. Tribunal a quo considerado que é competente para conhecer, perfunctoriamente, com meros efeitos inter partes, da matéria de exceção relativa à
invalidade do CCP 202 pelos motivos elencados no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 251/2017, de 24 de maio, não andou bem o Mmo. Tribunal a quo ao recusar a produção de prova testemunhal quanto a essa matéria.
3. Por requerimento de 14 de setembro de 2017, a Recorrente informou o Tribunal Arbitral que não prescindia da produção de prova testemunhal em audiência quanto a toda a matéria da Oposição, incluindo a prova quanto à invalidade do CCP 202.
4.No Despacho n.º 2, ao indeferir a produção de prova testemunhal sobre a invalidade do CCP 202, e cabendo à Recorrente o ónus da prova da referida exceção por força da presunção iuris tantum prevista no n.º 2 do artigo 4.º do Código da Propriedade Industrial, o Mmo. Tribunal a quo violou o princípio da igualdade das Partes e o princípio do contraditório, previstos respetivamente na al. b) e na al. c) do n.º 1 do artigo 30.º da Lei da Arbitragem Voluntária (“LAV”), aplicáveis ex vi artigo 3.º n.º 8 da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, impedindo a produção de prova relevante pela Recorrente.
5. Ao indeferir a produção de prova testemunhal relativa à invalidade do CCP 202, o Mmo. Tribunal a quo violou igualmente o princípio da proibição de indefesa previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com o seu artigo 18.º, n.º 2.
6. A produção de prova testemunhal pela Recorrente na presente arbitragem, através
de três testemunhas indicadas para o efeito, não é incompatível com a natureza e celeridade do procedimento cautelar, porquanto a complexidade da matéria em discussão é equivalente ou até mesmo menor do que a de qualquer arbitragem iniciada ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro.
7. No caso de patentes e de CCP relativos a medicamentos, a discussão reveste sempre a complexidade técnica inerente à matéria química e farmacêutica, e na asserção da defesa por impugnação os tribunais arbitrais estão obrigados a apreciar perfunctoriamente todos os factos alegados pela Requerida, nomeadamente a putativa não infração do direito invocado.
8. A apreciação sumária ou perfunctória da matéria de prova relativa à exceção de invalidade do CCP 202 não deve confundir-se com a ablação de meios de prova, in casu, com a ablação da prova testemunhal relativa à matéria de excepção invocada na oposição.
9.A recusa de produção de prova testemunhal relativa à invalidade do CCP 202 é suscetível de influir no exame ou na decisão da causa na medida em que, na eventualidade da mesma ser considerada antes da prolação da decisão final, tal poderia ter determinado um resultado diferente.
10. Por conseguinte, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 30.º. n. 1 al. b) e al. c), e 46.º n.º 3 al. a) subalínea ii) da LAV, ex vi artigo 3.º n.º 8 da Lei 62/2011, e 195.º, 1 e 2 do CPC, deve ser considerada nula a decisão do Tribunal Arbitral que não admitiu a produção de prova testemunhal relativa à invalidade do CCP 202, comunicada no Despacho n.º 2, sendo substituída por outra que o admita e, por consequência, devem ser anulados todos os termos subsequentes ao ato viciado, ordenando a produção de prova testemunhal quanto à matéria da invalidade do CCP 202, e subsequente renovação da elaboração do Acórdão Arbitral com a análise do teor do depoimento das testemunhas indicadas para depor quanto à invalidade do CCP 202.
11. Tendo o Mmo. Tribunal a quo considerado que é competente para conhecer, com meros efeitos inter partes, da exceção relativa à invalidade do CCP 202 com base “nos documentos juntos pelas Partes para verificação do requisito de fumus boni juris, indispensável para decidir a providência cautelar”, verifica-se na sentença recorrida que o Tribunal Arbitral não conheceu efetivamente da matéria da exceção nem verificou o requisito de fumus boni juris com base nos documentos juntos ao processo.
12. Compulsada a sentença recorrida, verifica-se mesmo que não foi sequer abordada pelo Mmo. Tribunal a quo a matéria de facto e a questão jurídica sob apreciação!
13. Na decisão recorrida, o Mmo. Tribunal a quo limita-se a referir que “a Requerente está numa situação privilegiada, na medida em que não tem de fazer prova da validade do seu direito, na medida em que essa validade decorre da Patente e CCP”, e que “resulta da prova testemunhal originariamente arrolada e da inúmera prova documental junta pela própria Requerida que a análise da eventual invalidade do CCP 202 é uma questão complexa, que requer conhecimentos técnicos e elementos só passíveis de serem efetivamente obtidos com o recurso a meios de prova não compagináveis com a natureza deste procedimento”.
14. Por conseguinte, o Acórdão Arbitral é nulo porquanto o Tribunal Arbitral deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, nos termos e para os efeitos do artigo 46.º n.º 3 al. a) subalínea v) da LAV, ex vi artigo 3.º n.º 8 da Lei 62/2011, devendo ser substituído por outro que conheça da exceção relativa à invalidade de patente com base nos documentos juntos e, por consequência, devem ser anulados todos os termos subsequentes ao ato viciado, ordenando-se a renovação da elaboração do Acórdão Arbitral com a análise da matéria de exceção relativa à invalidade do CCP 202, que, repita-se, o Mmo. Tribunal a quo decidiu conhecer.
15. O Mmo. Tribunal Arbitral andou mal ao indeferir o pedido de intervenção do Ministério Público formulado pela Recorrente nos autos, tendo considerado que o
mesmo carece de fundamento porque a referida intervenção apenas está prevista para os Tribunais Estaduais, não ocorrendo nos Tribunais Arbitrais, por não integrarem a jurisdição estadual.
16. Nas arbitragens iniciadas ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, a ratio da participação dos Tribunais estaduais na arbitragem ultrapassa, em muito, a
participação que lhe competiria no âmbito de uma arbitragem voluntária, o que impõe a aplicação aos autos do preceituado nos artigos 325.º e 326.º do Código de Processo Civil.
17. Ao Ministério Público advém legitimidade para intervir neste processo tendo em
conta o disposto no artigo 35º nº 2 do Código da Propriedade Industrial, no qual se estabelece expressamente que Ministério Público encabeça a lista das entidades com legitimidade para apresentar ação visando a declaração de nulidade ou anulação de direitos de propriedade industrial, entre os quais se encontram os CCP.
18. O eventual não reconhecimento, a título de exceção, da nulidade do CCP 202 no âmbito do presente procedimento cautelar afeta profundamente o interesse público, considerando que (i) o Estado Português suporta 100% do preço do medicamento TRUVADA da Recorrida, (ii) o valor de vendas alegado do medicamento TRUVADA em 2015 e 2016 foi de € 121.277.000,00 (cento e vinte e um milhões, duzentos e setenta e sete mil euros), e o (iii) preço de venda ao público dos medicamentos genéricos é sempre inferior, no mínimo, em 30% do preço de venda do TRUVADA.
19. A intervenção do Ministério Público, oral ou escrita, é suscetível de influir no exame ou na decisão da causa na medida que, na eventualidade da mesma ser considerada antes da prolação da decisão final, tal poderia ter determinado um resultado diferente.
20. Ao não aceitar a intervenção do Ministério Público, o Acórdão Arbitral é nulo porquanto o processo arbitral não foi conforme com a lei, tendo essa desconformidade influência decisiva na resolução do litígio – artigo 46.º n.º 3, al. a),
subalínea iv) da LAV, ex vi artigo 3.º nº 8 da Lei 62/2011, com as necessárias adaptações.
21. Por consequência, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 325.º e 326.º do CPC, e do artigo 46.º n.º 3, al. a), subalínea iv) da LAV, ex vi artigo 3.º nº 8 da Lei 62/2011, com as necessárias adaptações, deve ser considerada nula a decisão do Tribunal Arbitral que não admitiu a intervenção do Ministério Público, comunicada no Despacho n.º 2, sendo substituída por outra que o admita e, por consequência, devem ser anulados todos os termos subsequentes ao ato viciado, ordenando a notificação ao Ministério Público da pendência da ação, sua subsequente intervenção, e a renovação da elaboração do Acórdão Arbitral em conformidade.
22. Em face da prova documental produzida em audiência, o CCP 202 é manifestamente nulo porquanto o produto TRUVADA, objeto desse CCP, não está protegido pela patente de base EP ‘894 nos termos do artigo 3.º, al. a) do Regulamento CCP, para os efeitos da al. a) do n.º 1 do artigo 15.º do Regulamento CCP.
23. Os Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia Medeva (C-322/10), Eli Lilly (C-493/12) e Actavis v Boehringer (C-577/13), e o recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de março de 2017 (Rel. JORGE LEAL) no Proc. n.º 225/16.7YHLSB.L1-2, apontam de forma clara para a conclusão de que um produto de um CCP só se considere protegido por uma patente de base na aceção da al. a) do artigo 3.º do Regulamento CCP, quando (i) as reivindicações visem, implícita, mas necessariamente, os princípios ativos em causa de forma específica, e (ii) esses princípios ativos incorporem o avanço inventivo da patente de base.
24. O CCP 202 foi concedido com base na patente EP ’894 e na autorização de Introdução no Mercado do medicamento TRUVADA, que contém a associação de dois princípios ativos: (i) tenofovir disoproxil fumarato e (ii) emtricitabina.
25. A reivindicação relevante da EP’894 em que a Requerente se baseia para sustentar a alidade do CCP 202 é a reivindicação 27, que contém a seguinte redação: “27. Composição farmacêutica que compreende um composto de acordo com qualquer uma das reivindicações 1-25, juntamente com um veículo farmaceuticamente aceitável e opcionalmente outros ingredientes terapêuticos”.
26. O princípio ativo tenofovir disoproxil [fumarato] é um dos compostos enquadráveis na definição de “composto de acordo com qualquer uma as reivindicações 1-25”, mas a emtricitabina não o é, nem tão pouco é referida na EP ‘894 pelo seu nome, nome químico, ou estrutura química.
27. Adicionalmente, os “outros ingredientes terapêuticos” mencionados na reivindicação 27 da EP ‘894 não se referem necessariamente e de forma específica à emtricitabina, ou a qualquer outro ingrediente antirretroviral, nem constituem em nenhum caso o cerne inventivo da patente EP ‘894, já que a sua presença é meramente opcional.
28. Adicionalmente, a EP ‘894 não faz referência em lado algum à combinação de tenofovir disoproxil e emtricitabina, nem providencia quaisquer elementos ou dados
sobre uma possível vantagem terapêutica dessa combinação, os quais seriam indispensáveis para justificar a inventividade da combinação.
29. No sentido da nulidade manifesta do CCP 202, a Requerida juntou aos autos decisões muito recentes de Tribunais especializados nesta matéria.
30. Por opinião preliminar de 9 de agosto de 2017, o Tribunal Federal Alemão de Patentes – Bundespatentgericht - considerou que o certificado complementar de proteção relativo ao medicamento TRUVADA é inválido, porquanto a patente de base EP ’894 não identifica de forma suficiente a emtricitabina como objeto da invenção ou como componente da composição farmacêutica de acordo com a reivindicação 27 – cf. Doc. 10 e 11 da Oposição.
31. Por decisão de 17 de agosto de 2017, o Tribunal Distrital de Munique – Landgericht München I - indeferiu uma providência cautelar intentada pela aqui Recorrida em relação a um litígio igual ao dos presentes autos nos termos da qual refere que “(…) não consegue concluir que a combinação de tenofovir disoproxil e emtricitabina esteja identificada na reivindicação 27 dentro do sentido da decisão Eli Lilly do TJUE de forma necessária e específica.” – Doc. 2 e 3 do requerimento de 11.09.2017 da Recorrente, e Doc. 1 junto com as Alegações Finais da Recorrente.
32. Por decisão de 5 de setembro de 2017, o Tribunal de Grande Instance de Paris
indeferiu uma providência cautelar intentada pela aqui Recorrida em relação a um
litígio igual ao dos presentes autos, confirmando, mesmo em sede cautelar, a nulidade evidente do CCP quanto à combinação de emtricitabina e tenofovir disoproxil, decisão da qual consta a seguinte conclusão: (…) nenhuma combinação específica foi reivindicada, nenhum elemento relevante foi relatado de forma a induzir o especialista na técnica a selecionar emtricitabina, especialmente porque não há indicação direcionando uma pessoa para selecionar um segundo agente antiviral como o "outro ingrediente terapêutico", e muito menos um agente antiviral anti-HIV. Como consequência, os argumentos contra a validade do SPC no 05 C 0032 da empresa Gilead Sciences Inc. são credíveis nos termos do artigo 3.º-A do regulamento e permitem afirmar que o SPC é, com toda a probabilidade, inválido e que, como uma consequência disso, a infração não é, evidentemente, provável, de modo que todos os pedidos e pedidos das empresas GILEAD sejam rejeitados.” – Doc. 4 do requerimento de 11.09.2017 da Recorrente.
33. Por decisão de 20 de outubro de 2017, o Tribunal de Comércio de Barcelona - Juzgado Mercantil de Barcelona - revogou uma providência cautelar intentada pela aqui Recorrida em relação a um litígio igual ao dos presentes autos, da qual consta a
seguinte conclusão:“(…) concluímos que o princípio ativo emtricitabina carece de uma determinação funcional como objeto da invenção e elemento da composição farmacêutica de acordo com a reivindicação 27 da patente de base, o que comporta que careça da proteção requerida do produto pela patente de base segundo o art. 3.a) do Regulamento CCP (…)” –cf. Doc.1 junto aos autos com o Requerimento de 26-
10-2017.
34. Por decisão 26 de outubro de 2017, o Tribunal Superior Marítimo e de Comércio da Dinamarca indeferiu uma providência cautelar intentada pela aqui Recorrida em
relação a um litígio igual ao dos presentes autos, concluindo que a emtricitabina não
está definida estrutural ou funcionalmente na patente de base, tendo por referência
a jurisprudência relevante do TJUE nos casos C-322/10 Medeva e C-493/12 Eli Lilly – tudo cf. Doc. 2 junto aos autos com o Requerimento da Recorrente de 26.10.2017.
35. No dia 13 de janeiro de 2017, numa ação para a declaração de nulidade do certificado complementar de proteção inglês n.º SPC/GB05/041 relativo ao medicamento TRUVADA e que tem por base a EP ’894, o High Court of Justice do Reino Unido decidiu proceder a um novo reenvio prejudicial para o TJUE para se saber quais são os critérios para se decidir se o produto está protegido por uma patente de base em vigor, na aceção do artigo 3.º, alínea a) do Regulamento CCP – cf. Doc. 9 da Oposição.
36. Não obstante, nessa mesma decisão, o Senhor Justice Arnold claramente sugere que a resposta a dar à questão deve ser a de que a reivindicação 27 da EP ’894 não protege a combinação de tenofovir e emtricitabina para os efeitos do artigo 3.º, alínea a) do Regulamento CCP, uma vez que tal combinação não constitui o avanço inventivo da patente - cf. os parágrafos 23 e 97 da decisão.
37. O entendimento do TJUE foi recentemente seguido pelos Estados Membros da União Europeia – Reino Unido, Holanda e Grécia - que se pronunciaram em sede de reenvio prejudicial por referência à decisão do High Court of Justice, que declararam que se o produto se referir a uma combinação de princípios ativos, o que cumpre aferir para verificação da al. a) do artigo 3.º do Regulamento CCP é se essa combinação encarna o avanço inventivo central da patente de base –Cf. Docs 6 a 8 do requerimento de 11-09-2017 apresentado pela Recorrente.
38. Tendo presente o exposto, decorre à saciedade que o CCP 202 não preenche o requisito previsto no artigo 3º, al. a) do Regulamento CCP, o que evidencia a inexistência de qualquer fundamento jurídico para sustentar uma condenação da Recorrente nos pedidos formulados pela Recorrida, não se verificando os pressupostos legais de que depende a sua condenação, pelo que deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que absolva a Recorrente de todos os pedidos formulados contra si.
Nestes termos e nos mais de Direito:
a)Deve ser considerada nula a decisão do Tribunal Arbitral que não admitiu a produção de prova testemunhal relativa à invalidade do CCP 202, comunicada através do Despacho n.º 2, sendo substituída por outra que o admita, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 30.º. n. 1 al. b) e al. c), e 46.º n.º 3 al. a) subalínea ii) da LAV, ex vi artigo 3.º n.º 8 da Lei 62/2011, e 195.º, 1 e 2 do CPC e, por consequência, devem ser anulados todos os termos subsequentes ao ato viciado,
ordenando a produção de prova testemunhal quanto à matéria da invalidade do CCP 202, e subsequente renovação da elaboração do Acórdão Arbitral com a análise do teor do depoimento das testemunhas indicadas para depor quanto à invalidade do CCP 202.
b)Deve o Acórdão Arbitral ser considerado nulo porquanto o Tribunal Arbitral deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, nos termos e para os efeitos do artigo 46.º n.º 3 al. a) subalínea v) da LAV, ex vi artigo 3.º n.º 8 da Lei 62/2011, devendo ser substituído por outro que conheça da exceção relativa à invalidade de patente com base nos documentos juntos e, por consequência, devem ser anulados todos os termos subsequentes ao ato viciado, ordenando-se a renovação da elaboração do Acórdão Arbitral com a análise da matéria de exceção relativa à invalidade do CCP 202;
c) Deve ser considerada nula a decisão do Tribunal Arbitral que não admitiu a intervenção do Ministério Público, comunicada através do Despacho n.º 2, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 325.º e 326.º do CPC, e do artigo 46.º n.º 3, al. a), subalínea iv) da LAV, ex vi artigo 3.º nº 8 da Lei 62/2011, com as necessárias adaptações, sendo substituída por outra que o admita e, por consequência, devem ser anulados todos os termos subsequentes ao ato viciado, ordenando a notificação ao Ministério Público da pendência da ação, sua subsequente intervenção e a renovação da elaboração do Acórdão Arbitral em conformidade.
Subsidiariamente,
d)Deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se a mesma por acórdão que determine absolvição da Recorrente de todos os pedidos formulados.
Foram apresentadas contra alegações pela Apelada GILEAD SCIENCES; INC, pronunciando-se esta, em resumo, nos seguintes termos:
O Tribunal ad quem deverá absolver a GILEAD dos pedidos a), b) e c) por corresponderem todos a uma acção de anulação e não a um recurso, sendo que quanto aos pedidos a) e c) deverá ainda absolver a Requerida por falta de recurso quanto ao Despacho n.º2.
Pronuncia-se ainda pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
São os seguintes os factos relevantes para a decisão:
1-A Requerente GILEAD SCIENCES, INC. é titular  da Patente Europeia EP n.º 0915894 ( adiante designada por “EP’ 894”), a qual protege diversos intermediários para análogos de nucleótidos fosfonometoxi (ou análogos fosfonometoxi de nucleótidos), em especial pró-fármacos, e os seus sais adequados para uso na administração oral eficaz desses análogos ( cuja cópia constitui o documento n.º1 cujo teor aqui se dá por reproduzido.
2-A EP’894 protege igualmente composições farmacêuticas que incluem os compostos referidos com outros ingredientes terapêuticos.
3-A EP’894 foi pedida junto do Instituto Europeu de Patentes (“IEP”) em 25 de Julho de 1987 e a menção de concessão da patente foi publicada no Boletim Europeu de Patentes em 14 de maio de 2003.
4-A tradução da EP’894, tal como concedida, foi apresentada junto do Instituto nacional da Propriedade Industrial (“INPI”) em conformidade com o art.º 65.º da Convenção sobre a Patente Europeia e com os artigos 79.º e 80.º do Código da Propriedade Industrial (“CPI”).
5-A EP’894 permaneceu em vigor até 25 de julho de 2017.
6-As reivindicações da EP’894, tal como concedida, são as que se encontram indicadas no documento apresentado como Doc. n.º1, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
7-A GILEAD é ainda titular do Certificado Complementar de Protecção n.º202 (“CCP 202”), concedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial em 30 de Setembro de 2005, nos termos do Regulamento (CEE) n.º 1768/92 do Conselho, de 18 de junho de 1992, conforme documento n.º2, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8-O CCP 202 foi concedido com base: (i) na patente de base EP’894 e (ii) na autorização de introdução no mercado (AIM) concedida para o medicamento TRUVADA que contém a associação de substâncias activas FTC e TDF.
9-A primeira autorização de introdução no mercado (AIM) para o TRUVADA – Emtricitabina/ Tenofovir Disoproxil” foi concedida a 21 de fevereiro de 2005 e notificada a 24 de fevereiro de 2005.  

III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, nos termos do disposto nos artigos 635.º n.º4, 637.º n.º2, 639.º n.º1 e n.º2 do CPC, as questões a apreciar são as seguintes:
1-Questão prévia: Admissibilidade do recurso do despacho n.º2 e do pedido de anulação do acórdão arbitral.
2- Nulidade do acórdão por falta de pronúncia.
3- Aferir da existência dos requisitos para o decretamento das providências cautelares requeridas, o que pressupõe a análise da questão da vigência/ nulidade do CCP202 titulado pela Requerente

1-A Recorrida GILEAD SCIENCES, INC, vem dizer que não deve ser considerado o recurso do despacho n.º2, dado que no requerimento de interposição de recurso, a Recorrente apenas refere que o mesmo vem interposto “do Acórdão Arbitral da Providência Cautelar”. Como é sabido, os recursos interpõem-se por meio de requerimento. E é desse requerimento que constam as informações necessárias à apreensão dos seus contornos – o seu objecto, a sua espécie, o seu efeito e seu modo de subida. E continua a Recorrida: “ o requerimento de interposição de recurso não é um mero adorno das alegações que lhe são depois juntas: o requerimento de interposição de recurso é o documento que veicula a intenção recursória do recorrente.” E assim, continua a Apelada a argumentar, não é licito à Recorrente alargar o âmbito do recurso cujo objecto definiu no requerimento de interposição.
Quid juris?
Não há dúvida que é o requerimento de interposição de recurso que define o âmbito e o objecto do recurso.
No requerimento de interposição do recurso, a Apelante diz: “ Mylan SAS, Requerida nos autos de procedimento cautelar que correm por apenso à acção arbitral necessária acima identificada, tendo sido notificada do Acórdão Arbitral da providência Cautelar e com o mesmo não se conformando, vem ao abrigo do disposto no (…) dele interpor recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual é de apelação (…)”. E mesmo já no corpo das alegações, a Apelante começa por fazer o enquadramento do recurso referindo: “ O presente recurso vem interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral”.
Não pode, pois, o Recorrente ampliar nas conclusões de recurso os limites traçados no requerimento de interposição de recurso, limites esses reafirmados no corpo das alegações[2]. Assim, não tendo sido interposto recurso do despacho que indeferiu a produção de prova testemunhal relativamente à invalidade do CCP 202, bem como do despacho que indeferiu a intervenção do Ministério Público, não poderá este Tribunal reapreciar tais decisões.
Consequentemente, têm de ser desde já declarados indeferidos os pedidos de anulação das decisões, constantes das alíneas a) e c) dos pedidos formulados pela Recorrente MYLAN.
A Recorrente pede ainda que seja declarado nulo o acórdão arbitral por ter deixado de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, devendo ser substituído por outro que conheça da excepção relativa à invalidade da patente com base nos documentos  juntos.
Ora, tal como é referido pela Apelada e bem, o pedido de anulação de sentença arbitral deve seguir a forma prevista no art.º 46.º da LAV (Lei  n.º 63/2011 de 14-12) que constitui uma acção especial a propor no tribunal estadual competente, e com os fundamentos previstos naquele art.º 46.º.
Como resulta dos termos do processo estamos perante um recurso de apelação e não perante uma acção de anulação de decisão arbitral pelo que tem necessariamente de ser indeferido o pedido constante da alínea b).
Do exposto resulta necessariamente o não conhecimento da matéria constante das conclusões 1.º a 21.ª.
2-Porém, o facto de os presentes autos consubstanciarem um recurso de apelação e não uma acção de anulação de sentença arbitral, nos termos do art.º 46.º da LAV, tal não impede que não possam ser invocadas nulidades processuais, designadamente que se integrem no elenco previsto no art.º 615.º n.º1 alíneas b) a e) do Código de Processo Civil. E no caso em apreço, a Apelante invoca a nulidade por omissão de pronúncia, prevista na alínea d) daquele preceito legal.
Vejamos o que a propósito se escreveu no acórdão arbitral:
resulta da prova testemunhal originariamente arrolada e da inúmera prova documental junta pela própria Requerida que a análise da eventual invalidade do CCP202 é uma questão complexa que requer conhecimentos técnicos e elementos só passíveis de serem efectivamente obtidos com o recurso a meios de prova não compagináveis com a natureza desse procedimento.”
Importa verificar se estará verificada tal nulidade.
É certo que o tribunal deve conhecer “de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e de todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer. O não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade.”[3] Porém, já não existirá nulidade no caso de o tribunal não considerar “linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes tenham invocado”.[4]
Ora, se é verdade que a questão da invalidade do CCP202, suscitada pela Requerida/Apelante, tem a natureza de excepção e nessa medida estaria incluída nas matérias sobre as quais o Tribunal teria de se pronunciar, sob pena de nulidade, também é certo que o mesmo Tribunal justificou a razão jurídica pela qual entendeu que tal questão não devia ser apreciada em sede de procedimento cautelar. Para o Tribunal a quo, para justificar a tutela cautelar foi bastante que a Requerente tivesse alegado e demonstrado que era titular “de um Certificado Complementar de Protecção emitido pela entidade competente, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial”.
Considerou o Tribunal Arbitral que, feita a prova sumária da aparência do direito que a Requerente invocou como causa de pedir para sustentar o seu pedido de medidas cautelares, não seria necessário analisar a questão da validade do CCP 202.           Cremos que, independentemente de sufragarmos ou não o entendimento plasmado no acórdão arbitral, este não enferma de nulidade. À luz do entendimento jurídico nele desenvolvido, a questão suscitada pela Requerida não cabia no âmbito de apreciação do Tribunal, atentas as características próprias do processo em apreço.
Tão pouco se vislumbra no acórdão qualquer violação dos princípios basilares do nosso sistema processual civil como o contraditório, da imparcialidade, ou da igualdade das partes.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da Apelante a este propósito.
3-Importa agora analisar a questão fulcral do litígio e que constitui o cerne deste recurso. Importa efectivamente saber se, perante os elementos fácticos e jurídicos disponíveis, deveriam ter sido decretadas as providências cautelares, tal como ocorreu por força do acórdão arbitral ora em apreço.
Estava em causa saber se a Requerente preenchia os requisitos de que depende o decretamento das requeridas providências cautelares.
Estamos no âmbito da lesão de um direito de propriedade industrial (a patente e o respectivo CCP), integrando-se na previsão do art.º 338.º-I n.º1 do Código de Propriedade Industrial (CPI), norma especial que consagra os requisitos do decretamento das providências cautelares nesta área. Lembremos, em matéria de direito de patentes industriais a especial protecção que a estas é conferida pelo art.º 101.º do CPI, ao estabelecer, no seu n.º2, que “ a patente confere ainda ao seu titular o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no comércio ou a utilização de um produto objecto de patente ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados”. E no n.º3 dispõe que “ o titular da patente pode opor-se a todos os actos que constituem violação da sua patente, mesmo que se fundem noutra patente com data de prioridade posterior, sem necessidade de impugnar os títulos ou de pedir a anulação das patentes em que esse direito se funde”.
Portanto, a providência deve ser decretada, sempre que se esteja ante uma lesão grave, atenta a importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide e que está em risco de ser sacrificado[5].
Ora bem, para que fosse possível decretar as requeridas providências cautelares, impunha-se antes de mais que a Requerente fosse titular de um direito de propriedade industrial cujo exercício estivesse em risco em consequência da actuação da Requerida. E, assim, o Tribunal a quo entendeu que “o fumus boni iuris resulta de uma análise perfunctória, com prevalência da forma sobre a substância, porquanto a ponderação detalhada não é temporalmente compatível com a celeridade processual imposta a uma providência cautelar. Perante o periculum  in mora, resultante in casu de o medicamento Mylan estar a ser oferecido a hospitais portugueses, a demora na decisão causa prejuízo grave à Requerente, justificando-se que a decisão seja tomada com uma suposição de existência e validade do direito invocado”. E conclui “considerando a prova produzida e os limites da presente providência, apesar de se terem suscitado dúvidas quanto à validade do CCP n.º202, as mesmas não permitem retirar valor à tutela que a lei pretende conferir à situação jurídica publicitada na Patente ou Certificado, nos termos do transcrito n.º2 do art.º 101.º do CPI”.
Ora, aqui reside o cerne da questão. A Requerida veio, precisamente, defender-se alegando que o certificado complementar de protecção 202 titulado pela Requerente é nulo porque se refere a um medicamento que não está protegido pela patente de base. É o que decorre dos artigos 1.º alínea c) e 3.º  alínea a) do Regulamento CCP, nos termos dos quais os princípios activos do medicamento devem ser objecto da invenção coberta pela patente de base. Ou seja, o princípio activo ou a combinação dos princípios activos têm que constituir o cerne inventivo da patente para poderem ser considerados como protegidos pela patente base nos termos do Regulamento CCP.
Afigura-se-nos que esta questão da abrangência ou não do medicamento em causa na patente base que deu origem à emissão do CCP202 é essencial para aferir da probabilidade da existência do direito da Requerente e, por conseguinte, essencial para apurar da verificação dos requisitos para decretar as providências cautelares e perfeitamente consentânea com a natureza do processo em causa. Apesar de o julgador das providências cautelares se dever bastar com um fumus boni iuris, sendo suficiente a aparência do direito para justificar a tutela cautelar, esse juízo não deve ser “colocado num patamar tão baixo da escala gradativa da convicção do juiz que se tutelem situações destituídas de fundamento razoável”[6].
E por isso é necessário apreciar a questão supra identificada e que pressupõe efectivamente a interpretação do art.º 3.º do Regulamento (CE) n.º 469/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho de 6 de maio de 2009 relativo ao certificado complementar de protecção para os medicamentos (CCP).
Existe jurisprudência do TJUE que nos pode dar algum auxílio na apreciação desta matéria.
Nas decisões proferidas no casos C-322/10, de 24.11.2011 (Medeva), C-630/10, de 25.11.2011 (University of Queensland) e C-6/11, de 25.11.2011 (Daiichi Sankyo),  declarou-se que só podem ser concedidos CCP para princípios ativos que estejam mencionados no texto das reivindicações da patente de base invocada, pese embora, conforme se declara nas duas primeiras decisões referidas, não haja que negar o CCP se o medicamento cuja autorização de introdução no mercado é apresentada em apoio do pedido de CCP compreende não apenas princípios ativos mencionados nas reivindicações da patente de base, mas igualmente outros princípios ativos.
No acórdão do TJUE proferido em 12.12.2013, no processo C-493/12 (Eli Lilly and Company Ltd), aquele Tribunal voltou a analisar esta matéria. Questionado sobre “se o artigo 3.°, alínea a), do Regulamento n.° 469/2009 deve ser interpretado no sentido de que, para se poder considerar que um princípio ativo está «protegido por uma patente de base em vigor» na aceção desta disposição, é necessário que o princípio ativo seja mencionado nas reivindicações desta patente, através de uma fórmula estrutural, ou se este princípio ativo também pode ser considerado como estando protegido quando está coberto por uma fórmula funcional contida nessas reivindicações.
A decisão do TJUE foi a seguinte:
O artigo 3.°, alínea a), do Regulamento (CE) n. 469/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de maio de 2009, relativo ao certificado complementar de proteção para os medicamentos, deve ser interpretado no sentido de que, para se poder considerar que um princípio ativo está «protegido por uma patente de base em vigor» na aceção desta disposição, não é necessário que o princípio ativo esteja mencionado nas reivindicações desta patente, através de uma fórmula estrutural. Quando este princípio ativo estiver coberto por uma fórmula funcional contida nas reivindicações de uma patente concedida pelo Instituto Europeu de Patentes, o mesmo artigo 3.°, alínea a), não se opõe, em princípio, à emissão de um certificado complementar de proteção para este princípio ativo, na condição, porém, de que, com base nessas reivindicações, interpretadas designadamente à luz da descrição da invenção, conforme previsto no artigo 69.° da Convenção sobre a concessão de patentes europeias e no protocolo interpretativo do mesmo, seja possível concluir que essas reivindicações visavam, implícita mas necessariamente, o princípio ativo em causa, de forma específica, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.
Assim, o TJUE admite que um princípio ativo que não esteja expressamente mencionado nas reivindicações da patente de base seja protegido por um CCP. Mas, para isso, deve poder concluir-se, pelo teor das reivindicações, interpretadas designadamente à luz da descrição da invenção, que essas reivindicações visavam, implícita mas necessariamente, o princípio em causa, de forma específica.[7]
Ora, se bem analisarmos os documentos juntos, verificamos que a emtricitabina não se encontra mencionada em qualquer das reivindicações 1 a 32 da patente de base. Contudo, tal não é suficiente para se concluir que o medicamento em causa, contendo esse princípio activo, não está abrangido pela patente base que deu origem à emissão do CCP202.É necessário ainda que se conclua, pelo teor das reivindicações, que as mesmas reivindicações não visam ainda que de forma implícita, mas necessária, os princípios ativos em causa de forma específica, e que esses princípios ativos não incorporam o avanço inventivo da patente[8].
Ora a emtricitabina não só não se encontra mencionada nas reivindicações 1 a 32 da patente de base, como não se encontra mencionada na patente de base, como se verifica da leitura do documento junto.
Para um melhor esclarecimento e antes de avançar no raciocínio que levará à dilucidação da questão supra equacionada, importa clarificar os conceitos de que falamos, com referência às normas nacionais e europeias aplicáveis:
Uma patente de invenção é um título que confere um direito exclusivo de exploração de um invento (art.º 101.º n.º 1 do CPI), atribuindo-se ao respetivo titular o “direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no comércio ou a utilização de um produto objecto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados” (n.º 2 do art.º 101.º do CPI).
Às patentes europeias, reguladas pela Convenção Sobre a Concessão de Patentes Europeias – CPE – celebrada em Munique em 05.10.1973[9], reconhecem-se os mesmos efeitos e aplica-se o mesmo regime que o de uma patente nacional, a não ser que a Convenção disponha de outra forma (artigos 2.º n.º 2 e 64.º n.º 1 da CPE).
 De resto, o legislador nacional tem procurado conformar o direito de patentes nacional à imagem e semelhança do regime previsto na CPE, em domínios como o da definição do objeto da patente e o dos requisitos da patenteabilidade, acompanhando aliás o movimento nesse sentido ocorrido nos países da União Europeia[10].
Nos termos do art.º 97.º n.º 1 do CPI, “
o âmbito da protecção conferida pela patente é determinado pelo conteúdo das reivindicações, servindo a descrição e os desenhos para as interpretar.”
No n.º 4 do art.º 101.º do CPI afirma-se que “os direitos conferidos pela patente não podem exceder o âmbito definido pelas reivindicações.”
No art.º 69.º n.º 1 da CPE estipula-se que “o âmbito da protecção conferida pela patente europeia ou pelo pedido de patente europeia é determinado pelas reivindicações. Não obstante, a descrição e os desenhos servem para interpretar as reivindicações.”
Vejamos o que o legislador entende por “descrição” e “reivindicação”:
No que concerne ao processo de patente pela via nacional, o n.º 1 do art.º 62.º do CPI determina que ao requerimento do pedido de patente devem juntar-se os seguintes elementos:
a)-Reivindicações do que é considerado novo e que caracteriza a invenção;

b)-Descrição do objecto da invenção;
c)-Desenhos necessários à perfeita compreensão da descrição;
d)-Resumo da invenção.
Nos termos do n.º 3 do art.º 62.º, “as reivindicações definem o objecto da protecção requerida, devendo ser claras, concisas, correctamente redigidas, baseando-se na descrição e contendo, quando apropriado:
a)-Um preâmbulo que mencione o objecto da invenção e as características técnicas necessárias à definição dos elementos reivindicados, mas que, combinados entre si, fazem parte do estado da técnica;
b)-Uma parte caracterizante, precedida da expressão «caracterizado por» e expondo as características técnicas que, em ligação com as características indicadas na alínea anterior, definem a extensão da protecção solicitada.”
Nos termos do n.º 4 do art.º 62.º do CPI, “a descrição deve indicar, de maneira breve e clara, sem reservas nem omissões, tudo o que constitui o objecto da invenção, contendo uma explicação pormenorizada de, pelo menos, um modo de realização da invenção, de maneira que qualquer pessoa competente na matéria a possa executar.”
Por sua vez o art.º 78.º da CPE estipula que o pedido de patente europeia deve conter:
a)-Um requerimento para a concessão de patente europeia;
b)-Uma descrição da invenção;
c)-Uma ou mais reivindicações;
d)-Os desenhos a que se referem a descrição ou as reivindicações;
e)-Um resumo.
No art.º 83.º da CPE, sob a epígrafe “Descrição da invenção” estipula-se que “a invenção deve ser descrita no pedido de patente europeia de forma suficientemente clara e completa para que um perito na matéria a possa executar.
E no art.º 84.º, sob a epígrafe “Reivindicações”, estabelece-se que “as reivindicações definem o objecto da protecção pedida. Devem ser claras e concisas e apoiar-se na descrição.”
A patente pode ter por objeto produtos (art.º 51.º n.º 2 do CPI), processos (artigos 51.º n.º 3, 97.º n.º 2 do CPI) e, em especial na área da indústria químico-farmacêutica, novas utilizações de produtos eventualmente já conhecidos (artigo 54.º n.º 1 alínea a) do CPI, art.º 54.º n.º s 4 e 5 da CPE).
A patente confere, ao respetivo titular, durante 20 anos a contar do respetivo pedido (art.º 99.º do CPI, art.º 63.º n.º 1 da CPE), o exclusivo da exploração do invento patenteado, em qualquer parte do território português (art.º 101.º n.º 1 do CPI). Tal proteção tem como contrapartida a publicitação, pelo titular da patente, das caraterísticas da invenção, assim possibilitando que o avanço tecnológico por ela representado possa ser do conhecimento generalizado da comunidade e futuramente utilizado para o progresso da humanidade, seja após a caducidade da patente, seja ainda durante a sua vigência, quando o novo invento se situe fora dos seus limites de proteção ou, estando dentro do âmbito de proteção da patente, com o acordo do seu titular.
Posto isto, voltemos à questão fundamental de saber se a emissão do CCP 202 terá respeitado a alínea a) do art.º 3.º do Regulamento (CE) n.º 469/2009, do Parlamento Europeu e do Conselho de 6 de maio de 2009, relativo ao Certificado Complementar de Protecção, que, recorde-se estipula o seguinte:
“o certificado é concedido se no Estado-Membro onde for apresentado o respetivo pedido e à data de tal pedido:
a)O produto estiver protegido por uma patente de base em vigor;
b)O produto tiver obtido, enquanto medicamento, uma autorização válida de introdução no mercado [AIM], nos termos do disposto na Directiva 2001/83/CE ou na Directiva 2001/82/CE, conforme o caso;
c)O produto não tiver sido já objecto de um certificado;
d)A autorização referida na alínea b) for a primeira autorização de introdução do produto no mercado, como medicamento.”
Da análise ainda que perfunctória da Jurisprudência do TJUE, conforme já supra mencionado, resulta a conclusão de que um produto só se considera protegido por uma patente de base nos termos do art.º 3.º a) do Regulamento CCP quando as reivindicações visem, ainda que implícita, mas necessariamente os princípios activos em causa que compõem o medicamento objecto do CCP.
Ora, a verdade é que o ingrediente activo emtricitabina que compõe o medicamento comercializado com o nome TRUADA não é referido, sob qualquer forma nem na EP’894 nem em qualquer das suas reivindicações. De igual modo, a combinação dos ingredientes activos tenofovir disoproxil (ou um seu sal) e emtricitabina também não está identificada ou especificada na descrição e nas reivindicações da EP’894.
Assim, afigura-se-nos altamente viável a acção que aliás corre termos no Tribunal de Propriedade Intelectual na qual foi peticionada precisamente a declaração de nulidade do CCP 202 e corre termos no 1.º juízo daquele Tribunal sob o n.º 384/16.9YHLSB.
A ora Apelante refere que “ Na União Europeia, todas as decisões dos Tribunais que apreciaram a invalidade do CCP relativo ao TRUVADA por referência ao art.º 3.º alínea a) do Regulamento CCP, à excepção de Portugal, foram no sentido da sua invalidade”. Mais refere que “Todas as decisões que se pronunciaram no sentido da invalidade do CCP relativo ao TRUVADA foram proferidas por Tribunais Judiciais altamente especializados em matéria de patentes, à excepção de Portugal, onde a decisão foi proferida por Tribunal Arbitral ad hoc.”
A Apelada GILEAD contesta estes factos dizendo designadamente o seguinte:
“ a decisão do Juzgado Mercantil de Barcelona[11] contradiz a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de Madrid que concluiu, por decisão de 9 de Setembro de 2016 que a associação de TD+FTC se encontrava protegida pela reivindicação 27 da EP’984 nos termos do art.º 3.º, alínea a) do Regulamento do CCP.”
Ora bem, a verdade é que, tal como a Apelada reconhece, há decisões de tribunais europeus que julgaram procedimentos cautelares equivalentes àquele que está a ser julgado nestes autos e que se pronunciaram pelo seu indeferimento, com base precisamente na invalidade do CCP correspondente nesses Estados[12]. É certo que também há decisões em sentido oposto.
As partes invocam igualmente a decisão do UK High Court of Justice na qual foi feito um reenvio prejudicial para o TJUE onde se perguntou “quais são os critérios para decidir se o produto está protegido por uma patente de base em vigor, na acepção do art.º 3.º, alínea a) do Regulamento CCP.
Ora, se não nos podemos pronunciar com absoluta segurança pela invalidade do CCP 202, impõe-se concluir que essa invalidade é muito provável, dado o número de decisões judiciais que assim já o decidiram, ou pelo menos a questão é bastante controversa. Ora, estas circunstâncias sendo susceptíveis de gerar uma fundada dúvida sobre o direito da Autora dissipam o fumus boni iuris, ou seja, a probabilidade séria da existência do direito.
Com efeito, as providências cautelares são medidas destinadas “a garantir quem invoca a titularidade de um direito contra uma ameaça ou um risco que sobre ele paira, e que é tão iminente que o seu acautelamento não pode aguardar a decisão de um moroso processo declarativo(…)São seus pressupostos a instrumentalidade (hipotética – por presuntiva da instauração da lide principal – ou real) o “periculum in mora”, caracterizado pela iminência de grave prejuízo causado pela demora da decisão definitiva e que ponha em risco o direito a acautelar, o “fumus boni juris”, ou a aparência da realidade do direito invocado, a conhecer através de um exame e instrução indiciários (a “summaria cognitio”)”.[13]
Trata-se de uma decisão interina destinada a aguardar a definição do direito no processo principal, logrando assim evitar que da indecisão derivem danos irreparáveis para uma das partes.
Cremos, pois, que a “summaria cognitio” exigida no procedimento cautelar, não pode ignorar que o direito invocado pela Requerente está judicialmente posto em causa, através de acção declarativa destinada a reconhecer a sua invalidade e, inclusivamente, já foi julgado improcedente por tribunais europeus, o que só por si é motivo suficiente para concluir não existir o “fumus boni iuris”.
 E assim, faltando um requisito essencial para o decretamento da providência cautelar em causa, impõe-se concluir pelo seu indeferimento.
Procedem, as conclusões da Apelante a tal respeito.

IV-DECISÃO
Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o recurso na parte correspondente ao pedido subsidiário, ou seja, revogando-se a sentença recorrida por falta de verificação dos requisitos da providência cautelar.

Custas pela Apelada.

Lisboa, 21 de junho de 2018

Maria de Deus Correia
Nuno Sampaio
Maria Teresa Pardal

[1] Nos termos do artigo 338.ºH, n.º1 do Código da Propriedade Industrial, vem a Gilead requerer  a este Tribunal  se digne ordenar a Mylan que preste informação completa e detalhada, relativamente ao seguinte:
Lista de hospitais contactados pela Mylan oferecendo o seu produto Emtricitabina+ Tenofovir Mylan;
Condições oferecidas;
Quantidades disponibilizadas;
Encomendas feitas (preços, quantidades);
Contactos feitos com o SPMS e eventual oferta de venda a esta entidade enquanto representante dos hospitais do serviço Nacional de Saúde nos processos de contratação pública, com vista à aquisição de medicamentos.
[2] Vide neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-1986, Processo 073928, in www.dgsi.pt.
[3] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol.2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, p.704.
[4]Idem”.
[5] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-03-2010, disponível em www.dgsi.pt
[6] António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, Almedina, 1998, p.75.
[7] Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-03-2017, Processo 225/16.7YHLSB-L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Idem.
[9] Aprovada em Portugal, para ratificação pelo Decreto n.º 52/91, de 30.8 e entrou em vigor no nosso país em 01.01.1992 – aviso n.º 198/91, de 21.12 -, tendo sido alvo de alterações e estando atualmente em vigor a versão revista em 2000 e que entrou em vigor em 13.12.2007, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 60-A/2007, de 12.12 e ratificada pelo Decreto n.º 126-A/2007, de 12.12.
[10] Luís Couto Gonçalves, Manual de Direito Industrial, 4.ª edição, 2013, Almedina, pág. 78, nota 168.
[11] Julgou improcedente causa equivalente àquela de que tratam os presentes autos.
[12] Cfr. em Espanha sentença do Juzgado Mercantil de Barcelona e na Dinamarca, Tribunal Marítimo e Comercial..
[13] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1-03-2007 , Processo 07A4669, disponível em www.dgsi.pt.