Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7290/2008-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
ELEMENTOS ESSENCIAIS DA INFRACÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – No que respeita à matéria de facto provada e não provada, a sentença só é nula se o tribunal deixar de se pronunciar sobre factos alegados na acusação ou na contestação.
II – A sentença só padece da nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal se a omissão se referir a uma questão em sentido técnico, não enfermando desse vício se ela apenas não tiver tomado em consideração um fundamento para decidir essa questão num ou noutro sentido.
III – De acordo com o n.º 1, alínea vvv), do artigo 113º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro (Lei das Comunicações Electrónicas), constitui contra-ordenação «o incumprimento das ordens ou mandados legítimos da ARN regularmente comunicados aos destinatários».
IV – O tipo objectivo desta infracção decompõe-se em três elementos distintos, a saber:
- A existência de uma ordem ou mandado legítimos emanados da Autoridade Reguladora Nacional (ICP - ANACOM);
- A regular comunicação dessa ordem ou desse mandado ao destinatário;
- A falta de cumprimento pelo destinatário.
Decisão Texto Integral: TEXTO INTEGRAL:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1 – Por deliberação do Conselho de Administração do “ICP – ANACOM”, datada de 26 de Setembro de 2007, a “X... , S.A.” foi condenada pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 113º, n.ºs 1, alínea vvv), e 2, da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, numa coima de 50 000 € (fls. 135 a 148).
A arguida impugnou judicialmente essa deliberação (fls. 195 a 227).
O Tribunal de Comércio de Lisboa[1], por sentença de 26 de Março de 2008, julgou integralmente procedente esse recurso, tendo decidido absolver a arguida da prática daquela contra-ordenação (fls. 295 a 306).
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:
«2.1.1. Em acção movida pela DECO, a “X..., SA” foi judicialmente condenada a restituir as quantias cobradas a título de taxa de activação de chamada no ano de 1999.
2.1.2. A X...  e a DECO celebraram entre si um acordo relativo à execução da referida decisão judicial, abrangendo igualmente a restituição da taxa cobrada em 1998.
2.1.3. Na sequência desse acordo e após recolher informações sobre os termos do mesmo, o conselho de administração da ANACOM deliberou, em 18/03/04:
“1. A ANACOM tomou conhecimento, pela comunicação social, da celebração de um acordo entre a X... e a DECO relativo à suposta indemnização dos consumidores pela cobrança de uma “taxa de activação” de chamada, nos anos de 1998 e 1999.
Este acordo surge na sequência da condenação da X... em processo judicial no qual a empresa ficou obrigada a restituir as quantias cobradas a título de “taxa de activação” no ano de 1999 (sentença do Supremo Tribunal de Justiça de 7.10.2003).
2. Tendo a X... então anunciado que iria proceder ao reembolso voluntário do valor da “taxa de activação” e após preocupações manifestadas por operadores e consumidores quanto às condições e forma de reembolso, a ANACOM, em 3.12.2003, solicitou àquela empresa esclarecimentos sobre a matéria para averiguar se o comportamento da X... seria lesivo dos direitos e interesses dos utilizadores e operadores.
A X... informou nessa ocasião que a restituição seria efectuada aos clientes residenciais que lhe facultassem os dados necessários para o apuramento do respectivo valor, através de crédito na factura do serviço telefónico e, nos casos em que o cliente não fosse já da X..., em vales de compras nas suas lojas ou em cheque.
3. Posteriormente foi publicamente anunciado o acordo celebrado com a DECO visando uma forma de compensação dos consumidores.
Este acordo, nos termos em que foi divulgado, estabelece, a título de indemnização da cobrança indevida daquela taxa, os seguintes benefícios para os consumidores:
- Chamadas não cobradas no dia 15 de Março, Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, entre as 19:00 e as 24:00;
- Chamadas não cobradas na rede fixa durante 13 domingos, a iniciar a 21 de Março e a terminar em 13 de Junho, entre as 0:00 e as 24:00 horas. As chamadas terão origem e destino na rede fixa X... (chamadas nacionais, regionais e locais);
- Assinatura mensal grátis no mês de Setembro aos consumidores beneficiários do plano de descontos para pensionistas e reformados;
- Atribuição de um crédito de 25 euros aos consumidores que pretendam aderir ao serviço Internet ADSL, por qualquer prestador de serviço, durante um período que terá início no dia 15 de Março e termo no dia 15 de Outubro.
Dos termos divulgados publicamente não resulta que os utilizadores, para beneficiarem desta designada compensação, devam demonstrar que eram clientes da X... à data da cobrança da “taxa de activação”. Pode assim configurar uma nova oferta da X..., a vigorar durante um período limitado de tempo.
4. A X..., nos termos do quadro regulamentar das comunicações electrónicas, encontra-se vinculada ao cumprimento de determinados princípios, em especial da não discriminação.
Designadamente, os preços aplicáveis às redes telefónicas fixas e ao serviço fixo de telefone devem obedecer aos princípios da igualdade, transparência e não discriminação – artigo 34º do Regulamento de Exploração do Serviço Fixo de Telefone, aprovado pelo Decreto-Lei nº 474/99, de 8 de Novembro, cujas obrigações se mantêm vigentes por força da alínea b) do n.º 2 do artigo 122º da Lei das Comunicações Electrónicas – Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro.
Nos termos das Bases da Concessão do Serviço Público de Telecomunicações, não deve a X... demonstrar preferência ou exercer discriminação relativamente a qualquer pessoa singular ou colectiva que requeira os serviços incluídos na concessão – alínea j) do artigo 6º.
Constitui, assim, direito dos utilizadores de redes e serviços acessíveis ao público, aceder, em termos de igualdade, às redes e serviços oferecidos – al. a) do n.º 1 do artigo 39º da Lei n.º 5/2004.
5. Em 1998 e 1999 a X... detinha o exclusivo da exploração do serviço fixo de telefone.
Com a liberalização do acesso ao mercado do SFT, alguns clientes da X... tornaram-se clientes dos novos prestadores.
Os termos e condições anunciados, no âmbito do acordo entre a X... e a DECO, violam claramente o princípio da não discriminação, ao atribuir os benefícios aí consignados exclusivamente aos actuais clientes da X..., excluindo todos aqueles que são clientes de outras empresas.
O tratamento diferenciado dos clientes que decidiram escolher um operador alternativo é discriminatório e, por esta via, prejudica o desenvolvimento da concorrência, nomeadamente podendo induzir um afluxo de clientes à X..., com o objectivo de usufruírem daqueles benefícios.
Alguns dos aspectos do acordo poderão também desvirtuar a concorrência no mercado dos serviços de acesso à Internet em banda larga ou noutros mercados de serviços de comunicações electrónicas.
Noutra perspectiva, importa desde já salvaguardar que a X... se encontra obrigada a garantir a integridade da rede bem como a realização de chamadas de emergência.
Por fim, os custos do acordo em causa, pela sua natureza, não devem ser ressarcidos através dos mecanismos regulamentares em vigor sob pena de a compensação se realizar através dos mecanismos de financiamento do serviço universal e dos preços futuros cobrados pela X....
Sem questionar a legitimidade das partes no processo judicial, e agora intervenientes no acordo, para concertarem os seus interesses, compete à ANACOM zelar pela aplicação dos princípios regulamentares e do quadro legal das comunicações electrónicas.
A intervenção da ANACOM é urgente uma vez que o período de aplicação dos benefícios acordados entre a X... e a DECO tem início no próximo dia 21.
6. A ANACOM apresentou à X... uma metodologia adequada a assegurar o tratamento não discriminatório dos utilizadores finais de SFT, sem prejuízo para a concorrência no mercado.
Assim o Conselho de Administração da ANACOM, no âmbito das atribuições previstas na alínea b), e), f), h) e n) do n.º 1 do artigo 6º dos Estatutos do ICP – ANACOM, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 309/2001, de 7 de Dezembro e no exercício das competências previstas nas alíneas c) e g) do artigo 9º dos referidos Estatutos, determina:
1. A X... não pode excluir do âmbito do acordo de reembolso da “taxa de activação” celebrado com a DECO, ou de outro que venha a celebrar com qualquer entidade, os clientes dos outros prestadores de SFT que se encontram em igualdade de circunstâncias com os utilizadores da X... aos quais se aplica aquele acordo.
2. Por forma a permitir que os clientes dos outros prestadores de SFT possam beneficiar de oferta equivalente sem prejuízo para a concorrência no mercado, a X... deve criar condições adequadas aos outros prestadores de SFT.
3. Durante o período definido para o benefício relativo à adesão ao serviço ADSL (15 de Março a 15 de Outubro), a X... garantirá a todos os prestadores de serviço de acesso à Internet condições adequadas para que estes possam assegurar benefícios equivalentes aos consumidores que adiram ao serviço ADSL através do lacete local.
4. Os benefícios relativos a chamadas não cobradas devem aplicar-se apenas aos clientes cujo pedido de acesso ao SFT da X... tenha ocorrido até 15.03.2004.
5. Os benefícios concedidos não devem ser contabilizados para efeitos da determinação de eventuais custos líquidos do serviço universal bem como não devem ser reflectidos no sistema de contabilidade analítica para efeitos regulamentares em sede do princípio de orientação para os custos.”
2.1.4. Com data de 19/04/04 foi enviado à X... o escrito de fls. 10 a 11 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido, enviando igualmente o texto da deliberação do conselho de administração da ANACOM de 14/04/04, constante de fls. 12 a 19 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, contemplando, nomeadamente, a documentação técnica de suporte ao sistema de contabilidade analítica (ponto 1), as alterações ocorridas no sistema de contabilidade analítica (ponto 2) e, no ponto 3:
“3. A documentação técnica referida no ponto 1. deverá ser remetida, semestralmente à ANACOM, simultaneamente com o envio dos resultados do SCA semestrais e anuais. Os documentos enviados devem reflectir a caracterização, classificação, condições, parâmetros e valores subjacentes ao apuramento desses resultados.
Complementarmente, deve ser remetida à ANACOM:
- uma apreciação crítica dos resultados do SCA para o exercício em questão, evidenciando as principais evoluções que se verificaram, as quais devem ser plenamente fundamentadas;
- um resumo, devidamente fundamentado, das principais alterações introduzidas no sistema, face ao período anterior.”
2.1.5. A X... enviou à ANACOM, com data de 30/06/05, o escrito de fls. 267 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, informando o envio dos resultados do sistema de contabilidade analítica relativos ao exercício de 2004 e que se encontra em preparação a informação complementar solicitada.
2.1.6. Com data de 29/07/05 a X... enviou à ANACOM o escrito de fls. 268 a 275 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, enviando outros elementos relativos ao exercício de 2004.
2.1.7. Com data de 05/08/05 a X... enviou à ANACOM o escrito de fls. 276 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, enviando reconciliação de balancetes, esclarecendo que determinada informação que estava a ser solicitada já havia sido enviada e solicitando uma prorrogação de prazo até 26/08/05 para o envio de determinada informação solicitada.
2.1.8. Com data de 19/08/05 a X... enviou à ANACOM o escrito de fls. 277 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, capeando o envio de informação na sequência da deliberação de 14/04/04, e enviando, relativamente ao ponto 2 desta (Síntese das principais alterações e resultados do modelo de custeio), o escrito de fls. 278 dos autos, do qual consta:
“PONTO 2 – SÍNTESE DA EVOLUÇÃO
Evolução dos resultados no exercício de 2004
Não se verificaram alterações relevantes nos resultados produzidos no exercício de 2004.
Alterações introduzidas no modelo
As alterações introduzidas no modelo resultaram de adaptação ao novo Plano de Contas da Empresa, que adoptou o PIC em substituição do POC, e dos ajustamentos introduzidos na estrutura de actividades de forma a replicar a estrutura de componentes de rede requerida, permitindo o apuramento imediato dos respectivos custos.”
2.1.9. Com data de 25/08/05 a X... enviou à ANACOM o escrito de fls. 279 a 288 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, capeando o envio de balanços por áreas de negócio e respectivos anexos relativos à desagregação dos valores de imobilizado, referentes ao exercício de 2004.
2.1.10. Com data de 02/09/05 a ANACOM enviou à X... o escrito de fls. 8 e 9 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual consta, nomeadamente:
“A X... Comunicações disponibilizou, entre 30/06/05 e 25/08/05, cinco cartas contendo informação relativa aos resultados do Custeio Regulatório (CR), referentes ao exercício de 2005.
Verifica-se que essa informação, disponibilizada de forma parcelar, prejudicando uma visão integrada do CR, não se encontra ainda formalmente completa. De facto, a X... Comunicações não remeteu à ANACOM, conforme solicitado na deliberação de 14/04/04, as demonstrações de resultados desagregadas, para os produtos "Páginas Brancas" e "Páginas Amarelas".
Por outro lado, e tendo também em conta o disposto na deliberação da ANACOM de 14/04/04, a documentação disponibilizada pela X... Comunicações carece de maior evidência e detalhe, não explicando ou fundamentando aspectos essenciais do CR, em particular no que respeita ao dicionário de produtos, drivers de recursos e actividades, custos do capital, custos comuns e apreciação crítica dos resultados. Em anexo, apresenta-se uma identificação, não exaustiva, de matérias que devem ser esclarecidas.
Por forma a considerar como terminado o reporte de informação relativa aos resultados do CR referentes ao exercício de 2004, solicita-se o envio, no prazo de 20 dias, da informação referida nos termos expostos, podendo a ausência de resposta ser enquadrada no previsto no artigo 108º da Lei n.º 5/2004 de 10/02.”
2.1.11. Em resposta ao escrito referido em 2.1.10., a X... remeteu à ANACOM, com data de 30/09/05, o escrito de fls. 26 a 74 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual consta, no Ponto 2 – Síntese da Evolução:
“Importa, finalmente, mencionar dois custos não recorrentes que integraram as contas da Empresa, explicitando o tratamento que sofreram no âmbito do modelo de custeio:
· Na conta “31913 – Custos Directos Serviços – Perdas Extraordinárias” foi contabilizado o custo de 9,87 ME relativo ao acordo com a DECO. Deste valor 8,11 M€ foram tratados como descontos e 1,76 M€ como custos de publicidade na divulgação do acordo, tendo sido imputados aos produtos envolvidos.”
2.1.12. A arguida tratou como custo, no sistema de contabilidade analítica para efeitos de custeio regulatório, o custo com a publicidade com a divulgação do Acordo X.../DECO.
2.1.13. A arguida tratou como desconto aos proveitos, no sistema de contabilidade analítica para efeitos de custeio regulatório, o montante relativo aos benefícios concedidos aos consumidores com o Acordo X.../DECO.
2.1.14. As quantidades associadas aos benefícios concedidos com o Acordo X.../DECO (volume de tráfego e mensalidades) não foram expurgados do custeio regulatório como custos.
2.1.15. A arguida, ao tratar, no sistema de contabilidade analítica, para efeitos de custeio regulatório, os custos e benefícios decorrentes do Acordo X.../DECO da forma descrita em 2.1.12. a 2.1.14., quis agir da forma por que o fez.
2.1.16. A arguida conhecia as regras relativas à forma de apresentação dos dados relativos ao exercício e à documentação técnica de suporte dos custeios regulatórios».
O tribunal considerou não provado:
«2.2.1. Que seja prática habitual da X... enviar informação insuficiente obrigando a que lhe sejam sucessivamente pedidos os elementos em falta.
2.2.2. Que a arguida, ao tratar, no sistema de contabilidade analítica para efeitos de custeio regulatório, os custos e benefícios decorrentes do Acordo X.../DECO da forma descrita em 2.1.12. a 2.1.14. da matéria de facto provada, soubesse que não podia incluir os custos do Acordo X.../DECO no custeio regulatório e soubesse que tal imposição se prendia com o facto de que, ao incluir esses custos, os mesmos seriam ponderados em futuras análises das suas ofertas, podendo, por isso mesmo, implicar a definição de preços relativamente mais elevados, com prejuízo para os consumidores.
2.2.3. Que a arguida, ao enviar informação insuficiente e dispersa por várias comunicações, remetidas após várias insistências do ICP-ANACOM tenha pretendido dificultar a compreensão dos elementos que tinha de submeter à aprovação do regulador e que não respeitavam as determinações a que devia obedecer».

2 – O “ICP – ANACOM” interpôs recurso dessa sentença[2] restringindo-o à questão do incumprimento da deliberação de 18 de Março de 2004[3] (fls. 314 a 334).
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
«1. A sentença que absolveu a arguida X..., SA, objecto do presente recurso fez uma errada interpretação e aplicação do artigo 113º, alínea vvv) da Lei n.º 5 /2004, por ter definido incorrectamente a matéria de facto.
2. Com efeito, no ponto 2.2.2 (matéria de facto não provada) considerou que arguida, ao tratar, no sistema de contabilidade analítica para efeitos de custeio regulatório, os custos do acordo X.../DECO no custeio regulatório e soubesse que tal imposição se prendia com o facto de que, ao incluir esses custos, os mesmos seriam considerados em futuras análises das suas ofertas, podendo, por isso implicar a definição de preços relativamente mais elevados, com prejuízo para os consumidores.
3. Fundamentou-se para concluir daquela forma na constatação de que texto da deliberação de 18.03.04 não resulta proibição da inclusão dos custos do acordo X.../DECO no sistema de contabilidade analítica, baseando-se para tanto, exclusivamente, no ponto 5. do parágrafo 6 daquela Deliberação que se unicamente se refere a "benefícios concedidos", o que deixa de fora todos custos.
3. Consequentemente considerou que os custos da publicidade necessária para dar a conhecer o acordo e a possibilidade do seu aproveitamento pelos consumidores, não obstante ter sido tratado como custo na contabilidade analítica não estavam abrangidos pela determinação por serem custos.
4. Considerou igualmente que a Arguida não tratou os benefícios como custos, mas antes como desconto que não afecta os custos mas unicamente a margem.
5. Apesar disso, no que toca ao serviço universal, onde há que ter em conta precisamente a margem, quer ela resulte de aumento dos custos quer da redução do proveitos, como decorre do disposto no artigo 20º do Decreto-Lei 31/2003, de 17 de Fevereiro, não teve em conta, contraditoriamente com a sua própria motivação, esse diploma legal e consequentemente não se pronunciou sobre a condenação da arguida nessa parte.
6. Todavia a interpretação da determinação em que se fundamentou conduz a conclusões diferentes em termos de matéria de facto.
7. Com efeito, daquela deliberação resulta claramente, se devidamente enquadrado o texto do preâmbulo com o n.º 5 do parágrafo 6, se interpretada como acto administrativo, e vista como um todo como é reconhecido na própria sentença, que se pretendeu impedir que os custos dos benefícios concedidos aos consumidores fossem inscritos na contabilidade analítica (C/R).
8. De resto a referência à orientação para os custos naquele n.º 5 não altera em nada os objectivos pretendidos, ao contrário do que se afirma na sentença, uma vez que essa referência a orientação para os custos a seguir a "efeitos regulamentares", é uma mera explicitação, precisamente, desses efeitos regulamentares.
9. O acordo beneficiando um número indeterminado de consumidores, em maior número do que aqueles a quem tinha sido cobrada a taxa de activação provocou necessariamente mais despesas e consequentemente custos para a X..., pelo que possibilitaram o aumento de tarifas a cobrar nos casos em que elas devem ser orientadas para os custos.
V. Normas violadas
1. Foi assim violado, por erro de aplicação dos factos ao direito art. 113°, alínea vvv) da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro.
2. Foi igualmente violados, mesmo que os factos apurados e não apurados fossem os descritos na sentença, o artigo 20º do DL 31/2003 e os artigos 95 a 98 da Lei n.º 5/2004, que vieram substituir o disposto no DL 458/99, para o qual aquele artigo 20º remetia.
3. Foi igualmente violado, no que toca ao serviço universal, a considerar-se não abrangido na definição da matéria de facto não apurada, a alínea c) do artigo 379º do Código de Processo Penal aplicável subsidiariamente.
Termos em que:
1. A sentença recorrida deve ser revogada e mantida a condenação da arguida na coima de 50.000 euros por violação do artigo 113º, alínea vvv) da Lei n°5/2004.
2 Subsidiariamente, anulado o julgamento por violação da alínea c) do artigo 379º do Código de Processo Penal.
Como nos parece de justiça!»

3 – A arguida “X... Comunicações, S.A.” respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 360 a 372).

4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 374.

5 – Neste tribunal, a Sr.ª procuradora-geral-adjunta, quando o processo lhe foi apresentado, apôs nele o seu visto.

II – FUNDAMENTAÇÃO
6 – Antes de apreciarmos o recurso interposto pelo “ICP – ANACOM” importa delimitar o seu âmbito.
O recurso interposto de uma sentença, sem prejuízo da possibilidade da sua limitação pelo recorrente[4], abrange toda a decisão[5], podendo, em princípio, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida[6].
Existem, porém, casos em que a lei restringe a cognição do tribunal “ad quem” ou os respectivos poderes.
É o que acontece, nomeadamente, quanto aos recursos interpostos das decisões judiciais proferidas na 1ª instância nos processos de contra-ordenação.
Neste caso, nos termos do n.º 1 do artigo 75º do RGIMOS[7], o Tribunal da Relação, salvo disposição em contrário, apenas conhecerá da matéria de direito.
Uma vez que não existe, nem na lei geral, nem nas que têm por objecto a regulação no sector das comunicações, qualquer norma que admita a impugnação da decisão de facto proferida em 1ª instância pelo Tribunal de Comércio, não se pode deixar de entender que o presente recurso, para além de ter sido limitado pelo recorrente, tem o seu âmbito restringido à matéria de direito.
Quer isto dizer que este tribunal não o pode apreciar na parte em que nele parece pretender-se impugnar a decisão de considerar como não provados os factos narrados no ponto 2.2.2. da sentença[8].

7 – Dito isto, apreciemos então o recurso interposto pelo “ICP – ANACOM” seguindo, com as necessárias adaptações, a ordem estabelecida no artigo 660º do Código de Processo Civil, isto é, começando por conhecer a nulidade suscitada.
Nesta sede, o recorrente sustenta que a sentença é nula porque não faz qualquer referência (no ponto 2.2.2., inserido na matéria de facto não provada, nem em qualquer outro) ao serviço universal.
Invoca, para tanto, o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal.
Se bem compreendemos o argumento, o recorrente defende que a sentença se devia ter pronunciado sobre o problema de saber se a arguida tinha ou não conhecimento de que o que lhe havia sido determinado pela deliberação de 18 de Março de 2004 se prendia também com o facto de a forma de contabilização dos custos do acordo por ela celebrado com a DECO poder levar a que eles viessem a ser ressarcidos através dos mecanismos regulamentares em vigor quanto ao financiamento do serviço universal.
Se é essa a sua pretensão, deveremos dizer que, no que respeita à matéria de facto provada e não provada, só poderia existir a indicada nulidade se o tribunal tivesse deixado de se pronunciar sobre factos alegados na acusação ou na contestação, o que não é o caso[9].
De qualquer forma, sempre convirá acrescentar que a falta de conhecimento dos fins tidos em vista com a imposição das obrigações não afecta o dever de lhe obedecer, razão pela qual esse facto é irrelevante para a aferição da tipicidade da conduta.
Se o recorrente, diferentemente, considera que a nulidade foi cometida por o tribunal não ter atendido ao argumento por ele utilizado, deveremos dizer que só existiria tal nulidade se a omissão se referisse a uma questão em sentido técnico e não, como seria o caso, a uma mera razão para decidir essa questão num ou noutro sentido.
É o que resulta da disposição invocada pelo recorrente, segundo a qual a nulidade da sentença existe «quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Improcede, portanto, nesta parte, o recurso interposto.

8 – Sendo assim, passemos agora a analisar a norma sancionadora para podermos autonomizar os elementos do tipo nela descrito e, por esta forma, para podermos verificar se a arguida praticou ou não a infracção pela qual tinha sido sancionada pela autoridade administrativa.
De acordo com o n.º 1, alínea vvv), do artigo 113º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, constitui contra-ordenação «o incumprimento das ordens ou mandados legítimos da ARN regularmente comunicados aos destinatários», conduta que, nos termos do n.º 5 desse mesmo preceito legal, também é punível quando for praticada por negligência.
Do n.º 2 dessa mesma disposição resulta que a coima aplicável pode variar, uma vez que o eventual agente é uma pessoa colectiva, entre 5 000 e 5 000 000 de Euros.
O tipo objectivo desta infracção decompõe-se, a nosso ver, em três elementos distintos, a saber:
- A existência de uma ordem ou mandado legítimos emanados da Autoridade Reguladora Nacional;
- A regular comunicação dessa ordem ou desse mandado ao destinatário;
- A falta de cumprimento pelo destinatário.

9 – Vejamos agora se, no caso dos autos, a arguida cometeu a mencionada infracção.
Ninguém põe em causa a legitimidade das determinações incluídas no ponto 6 da Deliberação do Conselho de Administração do “IPC – ANACOM”[10], nem a sua regular comunicação à “X... , S.A.”.
O que se discute, e foi esse o fundamento da decisão recorrida, é o problema de saber se essas determinações foram ou não acatadas pela arguida, o que pressupõe necessariamente a interpretação da deliberação uma vez que só assim se pode apurar qual foi efectivamente a ordem dada e, subsequentemente, se ela foi ou não cumprida.
Nesta sede tem razão a recorrente quando afirma que a 5ª determinação constante da Deliberação de 18 de Março de 2004 tem que ser interpretada no contexto em que se integra, ou seja, como elemento de um conjunto, um parágrafo de um texto mais extenso, assim como se aceita que a deliberação, enquanto acto administrativo que é, deva ser interpretada de acordo com os cânones do direito administrativo[11] [12].
Mas mesmo atendendo aos sete elementos referidos pelo Professor Freitas do Amaral e às três presunções por ele mencionadas, tendo em conta todo o texto[13] e não apenas o ponto 5 da deliberação, não vemos motivo para atribuir ao conceito de benefícios um sentido mais amplo do que aquele que lhe é dado pela própria ANACOM no ponto 3 dos considerandos dessa Deliberação.
O antepenúltimo parágrafo do ponto 5 desses considerandos, ao dizer que «os custos do acordo em causa, pela sua natureza, não devem ser ressarcidos através dos mecanismos regulamentares em vigor sob pena de a compensação se realizar através dos mecanismos de financiamento do serviço universal e dos preços futuros cobrados pela X...», tem de ser interpretado, como sustenta o Professor Freitas do Amaral, atendendo também «às leis aplicáveis».
Ora, desses normativos resulta que o pagamento de uma eventual compensação pela prestação do serviço universal[14] não decorre automaticamente dos custos líquidos das obrigações de serviço universal, exigindo um pedido do prestador e um pronunciamento favorável por parte da ANACOM.
E resulta também que o regulador só em casos limitados interfere no estabelecimento dos preços das empresas com poder de mercado significativo, podendo até, para tanto, «utilizar métodos contabilísticos independentes dos adoptados pelos operadores para efeitos do cálculo do custo da prestação eficiente dos serviços[15]».
 Não se pode, pois, interpretar aquele texto como se a contabilização como custos dos encargos provenientes do acordo implicassem, ipso facto, o pagamento de compensações e a elevação dos preços dos serviços prestados.

10 – Em função do que se disse, concluímos que da ordem emanada da ANACOM estavam, desde logo, excluídas as despesas com a publicidade, que foram, efectivamente, como se vê do ponto 2.1.12. da matéria de facto provada, incluídas na contabilidade analítica como custos.
O facto de a arguida ter tratado como desconto aos proveitos o montante dos benefícios[16] concedidos aos consumidores com o acordo celebrado com a DECO não contraria, pelos motivos expostos, a ordem dada.
Diga-se que, mesmo tendo em conta os invocados propósitos da autoridade reguladora, essa forma de contabilização não poderia interferir no cálculo de uma eventual compensação relativa ao serviço universal uma vez que o desconto aos proveitos, embora tenha idêntico efeito sobre a margem, não é um custo.
O facto de a operadora não ter expurgado do custeio regulatório eventuais e não quantificados custos provenientes do aumento de tráfego também não pode ser tido como incumprimento da Deliberação, ainda por cima quando, embora parcelar e diferidamente, se explicou o procedimento adoptado na informação prestada à reguladora.

11 – Assim, e pelo exposto, entendemos que o recurso interposto pelo “ICP – ANACOM” não pode proceder.

12 – Uma vez que decaiu no recurso que interpôs e o artigo 3º do Decreto-Lei n.º 309/2001, de 7 de Dezembro, se deve considerar revogado pelo artigo 4º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, é o recorrente responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 3 do artigo 87º do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre 1 e 15 UC.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 6 UC.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar improcedente o recurso interposto pelo “ICP – ANACOM” da sentença que absolveu a “X..., S.A.” da prática de uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 113º, n.º 1, alínea vvv), e n.º 2, da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro.
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 6 (seis) UC.
Lisboa, 24 de Setembro de 2008

 (Carlos Rodrigues de Almeida)
 (Horácio Telo Lucas)


[1] Cuja competência decorre do disposto no n.º 1 do artigo 13º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro.
[2] A legitimidade para recorrer autonomamente das decisões proferidas no processo de impugnação está consagrada no n.º 11 do artigo 13º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro.
[3] Ver, nesse sentido, o último parágrafo da motivação, anterior à formulação das conclusões.
[4] Nos termos previstos no artigo 403º do Código de Processo Penal.
[5] De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 402º do Código de Processo Penal.
[6] Ver o n.º 1 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
[7] Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, posteriormente alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro.
[8] Matéria que se nos afigura apenas poder ter relevância típica na parte em que, afastando o conhecimento por parte da arguida da proibição de incluir os custos do acordo X.../DECO no custeio regulatório, impede a afirmação da existência de dolo.
[9] Aproveitamos para registar que a forma como foi elaborada a decisão do Conselho de Administração da recorrente, não separando os factos imputados à arguida dos fundamentos dessa mesma imputação, dificulta sobremaneira a tarefa.
[10] Cujo Estatuto foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 309/2001, de 7 de Dezembro.
[11] De que nos dá conta, por exemplo, para mencionar apenas os autores citados pelo recorrente, AMARAL, Diogo Freitas do, in «Direito Administrativo», volume III, Lisboa, 1989, p. 280 a 284, e CAETANO, Marcello, in «Manual de Direito Administrativo», 10ª edição, Tomo I, Coimbra Editora, Lisboa, 1973, p. 488 a 491.
[12] A questão que por esta forma, indirectamente, se coloca é a de saber se a interpretação de um acto administrativo não é matéria de facto e, como tal, excluída dos poderes de cognição do Tribunal da Relação (ver, sobre a matéria, Freitas do Amaral, ob. cit. p. 283 e 284.
[13] Que, a nosso ver, tem como principal fim a alteração dos termos do acordo, para assegurar o respeito pelo princípio da não discriminação e garantir a concorrência, e não precaver os efeitos económicos por ele directamente provocados.
[14] Prevista nos artigos 95º a 98º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro.
[15] Ver os artigos 74º a 76º da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, e, em especial, o n.º 3 do seu artigo 75º.
[16] Aqui, julga-se, em sentido amplo, abrangendo o reembolso do valor da taxa de activação cobrada em 1998 e 1999.