Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
51/15.0YLPRT.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
NEGÓCIO JURÍDICO
TRANSACÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A sentença homologatória da transacção é uma sentença de mérito, porque absorve o conteúdo do negócio jurídico em que se traduz a transacção, condenando e absolvendo nos termos exactamente pretendidos e resultantes das concessões recíprocas das partes em que aquela se traduz.
II - Não é do negócio jurídico em que se traduz a transacção que resulta a extinção da instância mas da sentença que a homologa que, por outro lado, confere autoridade de caso julgado aos efeitos substantivos decorrentes daquele negócio jurídico.
III - Como qualquer outro negócio jurídico, e nos termos gerais destes, a transacção pode ser declarada nula ou anulada.
IV - Se além dessa anulação a parte pretender também que o processo em que foi proferida a sentença homologatória da transacção veja reaberta a respectiva instância para vir a ser julgado em função do direito, terá que interpor recurso de revisão, só podendo fazê-lo no prazo de 60 dias a partir do momento em que teve conhecimento do fundamento de nulidade ou anulabilidade do negócio em que se traduz a transacção e no prazo de cinco anos sobre o trânsito da sentença homologatória - art 697º/2 CPC.
V - O recurso que a parte, ou mais naturalmente, terceiro que seja afectado com o caso julgado decorrente da sentença homologatória, interponha desta, só pode ter como fundamento vício da própria sentença homologatória, entendido este como a inexistência das condições necessárias para a mesma ter sido proferida – disponibilidade das partes relativamente ao objecto do litigio, idoneidade do objecto do negócio, capacidade e legitimidade dos intervenientes na transacção para se ocuparem desse objecto, coincidência do objecto da transacção com o pedido deduzido
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – No procedimento especial de despejo queJosé, intentou contra Inês e Filipe Lda, pedindo a resolução de determinado arrendamento e o consequente despejo relativamente a duas fracções autónomas, e que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 8.800,00 de rendas em atraso a que acresce a de € 122,99 de juros vencidos, e ainda os juros vincendos até efectivo pagamento, tendo a R. contestado e pedindo a respectiva absolvição do pedido e, à cautela, tendo  procedido ao depósito das rendas nos termos do art 1048º CC, na data designada para julgamento, estando presente a legal representante da R. e os Exmos mandatários das partes, ambos dispondo de poderes especiais para transigir, declararam estes que as partes pretendiam pôr termo ao presente processo através de transacção, nos seguintes termos:

 1º) O autor José desiste do pedido de despejo.

 2º) Por força da quantia depositada à ordem dos autos, no montante de € 13.822,99 (treze mil oitocentos e vinte e dois euros e noventa e nove cêntimos), o autor considera que se encontram pagas todas as rendas reclamadas nos autos e até ao mês de Setembro de 2015, inclusive, não tendo a reclamar da ré outras quantias vencidas até à presente data.

 3º) A ré «Inês e Filipe, Ld.ª» autoriza a transferência da quantia que depositou, no indicado valor de € 13.822,99 (treze mil oitocentos e vinte e dois euros e noventa e nove cêntimos), para a conta do Ilustre mandatário do autor, com o NIB 003300004542814395805 do BCP.

4º) O autor compromete-se a enviar para a Ilustre mandatária da ré, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas a cópia da Notificação Judicial Avulsa que dirigiu à «Caixa Geral de Depósitos», a comunicar o arrendamento dos autos.

 5º) As custas serão pagas a meias pelo autor e pela ré.

De seguida foi proferida sentença homologatória nos seguintes termos:

“Neste procedimento especial de despejo que José moveu contra «Inês e Filipe, Ld.ª», vêm as partes pôr fim ao processo, através de transacção, nos termos precedentemente exarados.

 Cumpre apreciar:

A transacção foi celebrada pelos Ilustres Mandatários das partes, ambos com procurações com poderes especiais para transigir (fls. 15 e 83), bem como pela legal representante da ré, aqui presente.

 De acordo com o que vem estabelecido no art.º 283.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, as partes podem, em qualquer estado da instância, transigir sobre o objecto da causa, desde que a transacção não incida sobre direitos indisponíveis (art.º 289.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Considerando a disponibilidade do objecto processual configurado nos autos e a qualidade dos intervenientes na transacção, julgo-a válida e eficaz, em consequência do que a homologo integralmente, condenando nos seus precisos termos (art.ºs 45.º, n.º 2, 283.º, n.º 2, 284.º, 289.º, n.º 1 a contrario sensu, e 290.º, n.º 4, do Código de Processo Civil; art.ºs 1248.º e 1249.º, do Código Civil).

 As custas serão pagas conforme entre as partes ficou convencionado – art.º 537.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.  Registe e notifique.

Em consequência da decisão que antecede, fica sem efeito a realização do julgamento. Notifique e desconvoque.

Autoriza-se a realização da transferência no montante das rendas depositadas nos autos, nos moldes constantes da transacção que antecede. Notifique

II - Do assim decidido, apelou a R. que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:

a) Pese embora a transacção que se alcançou em sede de audiência de julgamento a Ré não concorda com o teor da mesma.

b) A Ré entende que devem ser analisadas profundamente as questões dos contratos em causa na acção de despejo, bem como não pode deixar de discordar que o valor depositado à ordem dos autos a título de rendas e indeminização por mora no pagamento das mesmas (art. 1048º e 1041 do CC).

c) Alegou o Autor que, por contrato celebrado a 21 de Outubro 2012, deu de subarrendamento à Ré, a fracção autónoma sita na Rua... na freguesia da Arrentela, Concelho do Seixal, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art 4183C e 4183D e  descritas na Conservatória do Registo Predial do Seixal sob o n.º 5770C e 5770D. E, que, o contrato teve início no dia 21 de Outubro de 2012.Sucede que,

d) A Ré formalizou contrato quanto a estas fracções efectivamente em Outubro de 2012, com a sociedade “Desabrochar Soc. de Investimentos Imobiliários, S.A.”,cfr. documento junto aos autos.

e) Sempre realizou os pagamentos das rendas atempadamente e para a conta bancária indicada por aquela sociedade ou quem a representava, cfr. Também documentos junto aos autos.

f) Surpreendentemente em Julho de 2013 recebeu a visita do Autor que informou a Ré que a partir daquele mês, se arrogava através do contrato de subarrendamento como outorgante e doravante como senhorio, exigindo que a Ré assinasse outro contrato (o de subarrendamento) com data anterior, ou seja, datado de 21 de Outubro de 2012, documento junto aos autos no requerimento inicial.

g) Recebeu também naquela altura, carta da sociedade “Desabrochar Lda.” com alteração de conta bancária onde deveriam efectuar os pagamentos das rendas, tudo conforme documentos junto aos autos.

h) Também em Julho, foi exibido á Ré um contrato entre Autor e a sociedade supra mencionada, onde aquele teria alegadamente tomado de arrendamento o espaço composto pela duas fracções, com data de 2010.

i) Nas Finanças não consta qualquer contrato de arrendamento registado em 2010.

j) Passou a Ré a fazer os pagamentos devidos das rendas ao Autor, até Fevereiro de 2014.

k) Em Março de 2014, por mera coincidência, tomou conhecimento que a fracção designada pela letra D, teria sido licitada para compra por parte da CGD S.A.

l) Posteriormente, pelo que se pode apurar, aquela entidade bancária adquire a fracção por via de compra em sede de execução, registo apresentado em 06/02/2015, anotada em 19/02/2015.

m) Sendo agora a CGD S.A. a proprietária do imovel arrendado.

n) Até porque, a penhora supra mencionada foi registada em data anterior à formalização do contrato de arrendamento entre Ré e primeiramente com a sociedade Desabrochar-Soc. de Investimentos S.A., e até anterior á data que figura no contrato entregue pelo Autor no requerimento inicial de despejo.

o) A Ré ainda naquela altura encetou de imediato contactos com aquela entidade, a fim de apurar da viabilidade da manutenção do contrato de arrendamento agora com a nova adquirente, se fosse caso disso.

p) A Ré nunca se eximiu ao pagamento de rendas, tão-somente a partir de Março de 2014 não sabia a quem efectuar os devidos pagamentos.

q) A Ré aceitou arrendar as fracções tendo celebrado contrato para esse efeito.

 r) Com este contrato formalizado a Ré tomou como certo que a fracção estaria livre de ónus e encargos, tanto assim foi que investiu com bastante sacrifício na reparação e no melhoramento das fracções que se encontravam totalmente degradadas, gastando mais de € 5000 em obras.

s) O direito ao arrendamento resulta do contrato de arrendamento, é um contrato fortemente vinculístico, o que tem especial incidência sobre a estabilidade do arrendatário (prorrogação automática do contrato, estabilidade da renda, limitação dos casos de denúncia e de resolução pelo locador e fixação dos casos de caducidade).

t) A Ré deixou de liquidar as rendas por não ter conhecimento a quem de direito deveria efectuar os devidos pagamentos.

    Da subsistência do contrato de arrendamento após a venda executiva

u) Efectuada a venda do imóvel penhorado, adjudicado à CGD, S.A., da fracção D, transferiram-se para esta os direitos que competiam ao Autor na acção de despejo.

v) Aquela na qualidade de adquirente de direitos alheios, não pode arrogar-se senão aqueles que pertenciam ao transmitente, isto é, de acordo com o princípio doutrinário de que ninguém pode transmitir a outrem mais direitos do que aqueles que o próprio tem, a que corresponde a formulação latina originária do «nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet».

w) Efectivamente, estipula o artigo 824°, n°1, do Código Civil (CC), que “a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a  coisa vendida”, acrescentando o respectivo nº 2 que "os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo”.

x) A venda em processo executivo importa a transmissão da propriedade, como efeito de natureza real, mas, também, vínculos obrigacionais, que consistem no dever do Tribunal, ainda que através de um representante, entregar a coisa ao comprador, e este de pagar o preço correspondente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 879º, a), b) e c) e 824º, nº 1, do CC.

y) Por outro lado, por força dos princípios registrais do trato sucessivo e da prioridade, o registo do adquirente, na venda executiva, tem por base o registo da penhora, arresto ou qualquer garantia real invocada e efectivada no processo, gozando de primazia perante alienações ou onerações do bem que o executado faça a favor de terceiros.Também na lei verificamos que,

 z) A posição jurídica do arrendatário pode ser concebida como um direito real de gozo, como um direito com eficácia meramente obrigacional ou pessoal, ou, preferencialmente, como um direito com um regime dualista ou misto, real e obrigacional, e não sendo decisiva a qualificação legal, que o artigo 1682º-A, do CC, denomina como um direito pessoal de gozo é inaplicável à venda de coisa locada, em processo executivo, o estipulado pelo artigo 1057º, por se tratar de uma hipótese que deve considerar-se incluída, no âmbito do disciplinado pelo artigo 824º, nº 2, ambos do CC, sendo, consequentemente, inoponíveis ao comprador as relações locativas constituídas após o registo de qualquer arresto, penhora ou garantia, e ainda as constituídas, em data anterior, na medida em que a respectiva eficácia perante terceiros dependa de registo e este não haja sido efectuado.

aa) O que, seja qual for o entendimento ou posição que venha a ser tomada pela CGD, S.A. deixa sempre a Re numa posição fragilizada. Outrossim existem opiniões que,

bb) Os contratos de arrendamento não sujeitos a registo só não caducam com a venda executiva, se a constituição da relação locativa for anterior à data do registo de penhora, arresto ou garantia invocada na execução.

cc) E que, efectivamente, só as relações locatícias constituídas antes do registo de qualquer penhora, arresto ou garantia, e bem assim como aquelas cuja eficácia, perante terceiros, dependa do registo e este haja sido efectuado, é que subsistem, ocorrendo a venda da coisa locada, em processo de execução

dd) Aqui chegados ficamos com a certeza de que o Autor não teria legitimidade, face aos documentos junto aos autos, para exigir da Ré o valor das rendas nem a desocupação do locado como fez na acção de despejo.

ee) Seja qual for o entendimento perfilhado deixa a Ré numa posição desprivilegiada, alias como sempre esteve desde o início da acção de despejo.

ff) Não se concorda com a entrega ao Autor do valor depositado pela Ré, por não existir a erteza jurídica de que será legítimo aquele recebe-lo.

gg) A qualificação de uma acção como sendo de despejo tem implicações, desde logo, quanto aos pressupostos processuais.

hh) A falta de verificação de um dos pressupostos  esulta numa excepção dilatória inominada e como tal de conhecimento oficioso, que reconhecida impõe a absolvição da instância de quem tenha sido demandado com aquele fundamento – vide art. 278º, n.º1, al. e); 576º, n.º2; 577º e 578º do CPC.

ii) Quanto à legitimidade activa e passiva das partes, parece-nos que, no sentido do art. 30º do CPC, o autor embora esteja na posição de senhorio, não teria tal legitimidade.

jj) Pelas questões já trazidas aos autos e ora expostas e em oposição à pretensão  o senhorio em receber um valor (rendas em atraso) entendemos que aquele não legitimidade quer para receber as rendas exigidas na acção de despejo ou outras rendas que entretanto se vençam.

Nestes termos e nos melhores de Direito, com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve conceder-se integral provimento ao recurso, revogando-se o douto acórdão recorrido e substituindo-o por outro nos termos da antecedente motivação e conclusões

O A. apresentou contra alegações, nelas concluindo nos seguintes termos:

1.º A Ré/Recorrente carece de legitimidade para a interposição do presente recurso.

2.º A legitimidade é o pressuposto subjectivo que, quando não verificado, conduz necessariamente ao indeferimento do requerimento de interposição de recurso.

3.º Como decorre do n.º 1 do artigo 631.º do CPC, apenas pode recorrer quem “sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido”.

4.º Ora, a Ré/Recorrente não foi parte vencida, uma vez que os autos foram objecto de transacção entre as partes.

5.º Ou seja, a instância extinguiu-se por transacção (al. d) do artigo 277.º do CPC) e não pelo julgamento (al. a) da mesma disposição legal).

6.º A Ré/Recorrente não recorre do conteúdo da sentença homologatória, mas sim de matéria que não foi – nem podia ser – apreciada pelo tribunal “a quo”.

7.º Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da Ré/Recorrente, é manifesto que a sentença homologatória não admite recurso tal como se encontra configurado por esta.

8.º Devendo, pois, ser liminarmente indeferido, o que se requer.

9.º O requerimento de recurso apresentado pela Ré/Recorrente não cumpre com o estatuído no n.º 1 do artigo 637.º do CPC, conquanto não indica a espécie, o efeito e o modo de subida.

10.º Contudo, a correcção de tais omissões implicam um prejuízo para o regular

andamento da causa (cfr. n.º 2 do artigo 146.º do CPC),

11.º Razão pela qual se considera o presente recurso ordinário de apelação, com

subida nos próprios autos e sem efeito suspensivo.

            III – Cumpre decidir tendo presente o circunstancialismo fáctico processual acima relatado.

IV – Resultando o objecto do recurso das conclusões das alegações, a questão nelas colocada é a de saber se deve ser revogada a sentença por não ter apreciado os  factos invocados na contestação – factos esses, que a R/apelante reproduziu in totum nas alegações –  e fazer-se prosseguir a acção.

Vejamos se este resultado pode ser alcançado pelo presente meio processual.

Dispõe o art 1248º/1 CC que a «transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões», explicitando o art 1250º, que «a transacção preventiva ou extrajudicial constará de escritura pública quando dela possa derivar algum efeito para o qual a escritura seja exigida, e constará de documento escrito nos casos restantes».

Na situação dos autos a transacção que foi alcançada, constitui, obviamente, uma transacção obtida na pendência do litígio – por isso não preventiva - e que obedeceu à forma escrita, resultando formalizada na acta da audiência de julgamento como resultado de conciliação obtida pelo juiz – art 290º/4 CPC. Este, em obediência ao disposto neste preceito, tendo examinado se pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram a transacção era válida, e concluindo pela positiva, homologou-a «por sentença ditada para a acta, condenando nos respectivos termos».

A sentença homologatória da transacção constitui, também ela, uma sentença de mérito - e por isso condena e absolve nos seus precisos termos – mas, por vontade das partes expressa no negócio jurídico em que se traduz a transacção, não aplica o direito objectivo aos factos em causa na acção. È também em função da vontade das partes que tal sentença extingue a instância sem proceder a essa aplicação – art 277º al d) CPC- e que faz caso julgado material - art 291/2 CPC – pelo que, quando condenatória, forma título executivo.

A falta de poderes do mandatário judicial e a irregularidade do mandato não justificam a recusa de homologação, como resulta do regime estabelecido no nº 3 do art 291º CPC.

Como refere José Lebre de Freitas, «através (da desistência do pedido, da confissão do pedido e) da transacção, as partes dispõem da situação jurídica de direito substantivo afirmada em juízo (…). Estes actos dispositivos de direito civil determinam, assim, o conteúdo dos direitos e deveres das partes (…) que a subsequente homologação judicial vem tutelar, extinguindo o processo (tornado inútil pela supressão do litígio) e abrangendo-as na autoridade do caso julgado. No momento de proferir a sentença homologatória, o juiz encontra-se assim perante as situações jurídicas definidas pelas partes. A tutela judiciária é, ainda aqui, tutela de situações jurídicas dela carecidas, já não porque necessitadas duma definição, mas porque à definição feita pelas partes falta a força do caso julgado» [1].

A transacção constitui um negócio jurídico privado, com cujo intrínseco conteúdo material o juiz nada tem a ver, limitando-se, para conceder a respectiva homologação, à verificação de determinadas condições que se mostram extrínsecas àquele conteúdo.

Assim, a sentença homologatória só pode ser concedida se o objecto do litigio estiver na disponibilidade das partes - art 289º CPC -, tiver idoneidade negocial – 280º e 281º CC-, se as pessoas que intervêm na transacção tiverem capacidade e legitimidade para se ocuparem desse objecto – art 287º CPC -, devendo o juiz, no caso de transacção, «verificar também a pertinência do objecto do negócio para o processo, isto é, a sua coincidência com o pedido deduzido», sem prejuízo de ter em conta que «a transacção pode envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido» – cfr referido art 1248º/2 CC- podendo estas finalidades fazerem intervir terceiro para assegurar a disponibilidade subjectiva do direito [2] .

Por isso, a sentença homologatória não constitui «resposta» ao pedido formulado pelo autor na acção. Sendo uma sentença de mérito, não o é por ter conhecido do pedido do A. ou do do R., mas porque absorve o conteúdo do negócio jurídico em que se traduz a transacção, condenando e absolvendo nos termos exactamente pretendidos e resultantes das concessões reciprocas das partes em que aquela se traduz. Com o que, «havendo homologação, a sentença é proferida em conformidade com a vontade das partes e não mediante aplicação do direito objectivo aos factos provados, tutelando o direito subjectivo ou o interesse juridicamente protegido que, em conformidade, se verifique existir». [3] 

 Note-se que do negócio jurídico em que se traduz a transacção, não resulta, só por si, nem o caso julgado, nem a extinção do processo.

Estes dois efeitos processuais advêm da intermediação da sentença homologatória que só pode ser concedida, como acima se referiu, na ocorrência das referidas condições.

Ora, se alguma das partes pretende no próprio processo em que foi proferida a sentença de homologação da transacção que esta seja revogada, e que, em consequência dessa revogação, seja reposta a situação anterior à mesma, de modo a que a causa venha a ser julgada em função dos factos nela alegados – como parece ser o caso da aqui apelante - apenas o poderá fazer se no recurso que dela interponha fizer valer a inexistência em concreto de algumas das acima referidas condições para a mesma ter sido proferida.

Quer dizer, haverá de demonstrar – pese embora a sua responsabilidade pelo resultado homologatório, pois que o pediu enquanto parte do negócio em que a transacção se analisa - que a fiscalização pelo juiz da regularidade e validade do acordo foi irregularmente realizada, já que, afinal, o objecto do litigio não estava na disponibilidade das partes, ou não tinha idoneidade negocial, ou as pessoas que intervieram na transacção não se apresentavam com capacidade e legitimidade para se ocuparem desse objecto.

O recurso da sentença homologatória da transacção há-de, pois, incidir sobre um vício da própria sentença homologatória, como se faz notar no Ac desta Relação 12/12/2013 [4], sendo que o normal é que, existindo tal vício, se apresente a fazê-lo valer em recurso dessa sentença terceiro que se mostre afectado pelo caso julgado que daquela decorre[5]

 Fora da situação referida – que as conclusões das alegações não reflectem minimamente – a parte interveniente na transacção para lograr o objectivo que a apelante parece pretender no presente recurso – que se reabra a discussão no processo, de modo a que venha a conhecer-se do pedido em função dos factos constantes do mesmo - tem que, fora deste, lograr, por um lado, a destruição dos efeitos substantivos da transacção e o processual resultante do caso julgado atribuído a esses efeitos pela homologação da transacção, e por outro, a destruição do efeito processual decorrente da extinção da instância no processo em que foi produzida a sentença homologatória.

A destruição daqueles efeitos substantivos obtê-la-á a parte, em processo autónomo, alegando e provando a existência de vícios da vontade nos outorgantes, ou vício no objecto do negócio jurídico em que se traduz a transacção  – cfr Ac RL  3/2/2009 [6] - e pedindo a declaração da nulidade ou a anulabilidade desse negócio jurídico (no caso desta, sem prejuízo da caducidade correspondente), servindo-se para o efeito do regime geral dos negócios jurídicos.

Por isso o nº 1 do art 291º CPC refere que «a (…) transacção pode ser declarada nula ou anulada como os outros actos da mesma natureza», querendo com isso tornar claro que se pretende neste particular remeter para o regime jurídico do negócio jurídico – arts 285/289º CC - como o salienta Lebre de Freitas [7].

A destruição do efeito de extinção da instância produzido pela sentença  homologatória só pode obtê-lo através da interposição de recurso de revisão.

Desde o DL 38/2003 - que no âmbito do aCPC deu ao então nº 2 do art 301º a redacção que hoje consta do nº 2 do art 291º do actual CPC [8] – que a parte que pretenda um e outro dos referidos objectivos os pode obter interpondo meramente recurso de revisão, e não já, como anteriormente, através da propositura de dois processos.

Referindo-se a essa situação referem Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[9]: «Esta duplicidade de meios (acção e recurso) fundava-se na distinção entre os efeitos (negociais) do acto de confissão do pedido, desistência ou transacção e os efeitos (processuais) da sentença que o homologa (…) Mas sendo desnecessariamente complexa, melhor seria um esquema, como o do CPC de 1939, que se contentasse com um único meio processual para a impugnação simultânea do acto das partes e do acto jurisdicional». Acrescentando: «Este esquema vigora de novo desde o DL 38/2003; a acção prévia ao recurso de revisão é dispensada (art 696-d); o recurso de revisão tem de ser interposto no prazo de 60 dias contado a partir do momento em que  a parte tem conhecimento do fundamento de nulidade ou anulabilidade do negócio de auto composição do litígio, mas não depois do prazo de cinco anos sobre o trânsito da sentença homologatória - art 697º/2. (…) O nº 2 prevê em alternativa ao recurso de revisão, a proposição de acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação da confissão, desistência ou transacção. Tem-se assim em conta a eventualidade de se pretender atacar apenas o negócio jurídico de auto composição e não também a sentença que o homologou, sem prejuízo da responsabilidade do autor pelas custas  - art 535º/1-d). O único prazo que a acção terá de respeitar é o da caducidade do direito à anulação».

Deverá fazer-se notar que quando deixe ser possível à parte servir-se do recurso  de revisão  - porque o não haja interposto no prazo de 60 dias após o conhecimento do fundamento da nulidade ou da anulabilidade do negócio jurídico em que se traduz a transacção e dentro dos cinco anos  sobre o trânsito da sentença homologatória – deve considerar-se haver ainda interesse processual na interposição da acção  para fazer valer a nulidade ou anulabilidade do negócio de auto composição do litigio, ou na defesa que para esse efeito a parte apresente na oposição à execução[10], por subjazer à parte que assim aja interesse directo e legítimo nesse sentido, como se o faz notar no Ac da R G 27/5/2010 [11].

            Evidentemente que não utilizando a parte o recurso de revisão – porque o não pretenda, ou porque já esteja fora do contexto temporal em que o teria de fazer - apenas vai obter a anulação da transacção, pelo que «a sentença que a havia homologado perde a sua eficácia, enquanto titulo executivo e enquanto acto que determina os direitos e obrigações das partes, já que nesta parte se deve considerar eliminada ou inutilizada pela decisão posterior que, em conformidade com a lei, declara nula ou anula a transacção que aquela havia julgado válida», e já não a reabertura da instância no processo em que foi proferida a sentença homologatória, efeito que só poderia alcançar através do recurso de revisão.

  O que se referiu destina-se a colocar em evidência o despropósito que representa o presente recurso, não sendo de descartar o tratamento processual que o apelado lhe deu – falta de legitimidade do apelante para recorrer nos termos em que o fez, por não ter ficado vencido.

Como se viu, querendo a apelante que a acção fosse afinal julgada, com a  reabertura da respectiva instância e a apreciação do litigio que nela estava em discussão, teria que ter eliminado os efeitos substantivos e os processuais da sentença homologatória nos termos acima referidos, ao invés de ter recorrido da sentença homologatória, meio processual este, aliás, que só poderia ter utilizado se quisesse valer vício da própria sentença homologatória.

A atitude do apelante é, pois, totalmente inconsistente e inconsequente, implicando, nesta fase, a improcedência da apelação.

V – Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Lisboa, 17 de Março de 2015                                                                      

      Maria Teresa Albuquerque                                       

     José Maria Sousa Pinto

         Jorge Vilaça

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[1]Introdução ao Processo Civil», Coimbra Editora, Coimbra, 1996, p. 36

[2] - «Código de Processo Civil Anotado», Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Vol I, 3ª ed, p 571
[3] - -«Introdução ao Processo Civil», Coimbra Editora, Coimbra, 1996, p. 35

[4] -  Relator Rui Vouga
[5] - Na situação do acórdão acima mencionado, o recurso da sentença homologatória é interposto pelos sócios da sociedade insolvente, sendo esta quem era parte no processo e estando nele representada pelo administrador da insolvência.
[6] Relatora Conceição Saavedra
[7] «Código de Processo Civil Anotado», Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, lugar citado

[8] - Redacção essa que é a seguinte: «O trânsito em julgado da sentença proferida sobre  a confissão, a desistência ou a transacção não obsta a que se intente acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação»
[9]-  «Código de Processo Civil Anotado», Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, lugar citado
[10]- Constitui fundamento de oposição à execução baseada em sentença (homologatória de confissão ou transacção), nos termos do art 729º al i), «qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses actos».
[11] - Relatora, Mª Catarina Gonçalves