Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10571/2003-5
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
ALVARÁ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário: Constitui contra-ordenação a execução de uma obra sem a emissão do respectivo alvará haja ou não deferimento expresso ou tácito da licença de construção.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
I
1 -  O recorrente não se conformou com a sentença que confirmou a decisão do Presidente da Câmara Municipal de Sesimbra, que lhe aplicou a coima de Esc.: 200 000$00 (€ 997,59), pela contra-ordenação prevista e punível nos termos das disposições combinadas dos artigos 1.º, n.º 1, alínea a), 21.º, n.º 2 e 54.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 445/91 (Regime do Licenciamento de Obras Particulares)[1], tendo interposto recurso daquela sentença.
Por não ter a motivação, nas respectivas conclusões, observado integralmente o disposto no n.º 2 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, foi o recorrente convidado a aperfeiçoá-la, o que veio fazer nos seguintes termos:
A)  A douta sentença recorrida não fez a adequada e justa ponderação dos factos nem a boa aplicação do direito competente;
B)  Para a eficácia e validade do acto não é determinante o pagamento de qualquer taxa;
C)  O n.º 2 do art. 21 do Dec. Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, ao contrário do que foi valorado e considerado e devia ter sido por uma interpretação hermenêutica, apenas se reporta e refere a uma condição de eficácia positiva quando haja notificação da deliberação e mesmo quando haja;
D)  O pagamento ou não das taxas engloba-se e tem a ver com o cumprimento de obrigações e deveres contributivos, uma vez que neste sentido, e assim deve ser interpretado o n.º 3 do art. 20 do Dec. Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, quando prescreve que a deliberação do deferimento do pedido de licenciamento consubstancia a licença de construção e incorpora a aprovação de todos os projectos.
Finalizando, pede a revogação da sentença.
2 -  O Exmo. Magistrado do Ministério Público, na primeira instância, apresentou resposta, na qual, após suscitar a deficiência formal das conclusões da motivação e a necessidade do convite ao aperfeiçoamento, argumentou, com brilho, no sentido da confirmação da decisão impugnada.
Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto considerou não ter a nova motivação dado cabal cumprimento às exigências do n.º 2 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
No exame preliminar, o relator, embora considerando que a nova motivação satisfaz os requisitos formais mínimos, emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso, por manifesta improcedência.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
1 -  A sentença impugnada está, no que agora interessa, assim redigida:
(...)
Factos provados com relevância para a decisão.
1) Em 28.Fev.2000, o arguido levou a efeito a construção de uma vedação, com pilares de betão, com dois metros de altura e com aproximadamente 350 m. de comprimento em rede metálica de 2 metros de altura.
2) Para o efeito da construção referida, abriu e encheu fundações.
3) Colocou, ainda, armaduras de ferro, de um muro de suporte, com aproximadamente 20 metros de comprimento.
4) O arguido apresentou requerimento entrado na Câmara Municipal de Sesimbra, no dia 24.Fev.1999, onde solicitava a aprovação de licença para a obra descrita.
5) Até à data referida em 1), a Câmara Municipal não se pronunciou sobre o requerimento do arguido.
6) Devido à falta de resposta por parte da Câmara, o arguido deu início à construção acima descrita.
7) O arguido não requereu a emissão de alvará de licença de utilização ou outra licença que permitisse tais obras.
(...)
À data dos factos encontrava-se em vigor o DL 445/91 de 20Nov (alterado pelo DL 250/94 de 15Out).
Segundo o art. 1.º, n.º 1, al. a) do referido diploma, todas as obras de construção civil estavam sujeitos a licenciamento municipal.
A forma de se obter a necessária licença resultava do disposto no art. 20.º do citado diploma.
Aí se fixa que a licença é solicitada à Câmara Municipal competente, a qual delibera sobre o pedido de licenciamento no prazo de 30 dias, devendo a deliberação ser notificada ao requerente no prazo de 8 dias.
A falta de decisão, aprovação ou autorização, nos prazos fixados, corresponde ao deferimento tácito da respectiva pretensão, nas exactas condições propostas pelo requerente (arts. 20.º, n.º 8 e 61.º, n.º 1, do citado diploma).
Uma vez obtida a licença, quer de forma expressa quer de forma tácita, o requerente deve requerer a emissão de alvará de licença de construção nos termos previstos no art. 21.º do citado diploma.
Este documento (alvará) implica o pagamento de determinadas taxas (art. 21.º, n.º 2 do citado decreto) e contém a descrição dos elementos essenciais da obra, tais como, a área de construção, o prazo de validade da licença e para a conclusão da obra (Cfr. art. 22.º do mesmo diploma).
A execução de obras de construção civil com a falta de emissão de alvará de construção constituía contra-ordenação prevista no artigo 54.º, n.º 1, al. a) do referido diploma.
Ou seja, no caso concreto, mesmo a considerar-se que existiu deferimento tácito sobre a requerida licença, existiu o preenchimento da contra- -ordenação prevista no referido artigo 54.º, n.º 1, al. a), pelo qual o recorrente foi sancionado.
(...)
Tendo em conta que a Câmara nada decidiu no prazo legal, sendo certo que tal conduzia ao deferimento tácito da pretensão do ora arguido, a este apenas restava solicitar a emissão do respectivo alvará.
Porque o arguido nada fez no sentido de ser emitido o competente alvará de licença de construção, iniciando a obra apenas porque a Câmara não se pronunciou no prazo legal, é de se concluir que este agiu com negligência.
Com efeito, a falta de pronúncia da entidade administrativa no prazo legal já tem a cominação legal adequada (deferimento tácito), não existindo perante tal contexto qualquer justificação para iniciar a obra, sem primeiro diligenciar no sentido de obter o competente alvará, constituindo tal omissão por parte do cidadão um comportamento censurável, porque demonstra uma atitude de leviandade perante o Direito.
No diploma actualmente em vigor e que rege esta matéria (DL 555/99, de 16Dez), a construção em causa, porque não abrangida pelo art. 6.º do novo diploma, sempre estaria sujeita a licenciamento ou a autorização, sendo certo que estes actos carecem de ser titulados por alvará (Cfr. arts. 2.º, al. j), 4.º, 6.º e 74.º). De acordo com este novo regime, a construção ou edificação sem alvará constitui contra-ordenação, punível com coima de Esc.: 100.000$00 a Esc.: 40.000.000$00.
Ou seja, nem em face do actual regime, a conduta levada a cabo pelo ora recorrente deixou de ser contra-ordenação, sendo certo que a coima actualmente aplicável é mais gravosa, pelo que o regime anterior é mais favorável.
(...)
2 -  No parecer emitido pelo relator, observou-se:
(...)
2 -  Na motivação aperfeiçoada, embora as conclusões não especifiquem, claramente, as normas que terão sido violadas, está, nelas, implícita a violação dos artigos 20.º, n.º 3 e 21.º n.º 2, do referido Decreto-Lei, indicando, outrossim, o sentido em que tais normas deveriam ter sido interpretadas e aplicadas, por isso que, com todo o respeito por diferente opinião, não será de rejeitar o recurso, por falta de requisitos formais, que se afiguram, minimamente, observados.
3 - No que agora interessa, dispunha o Regime Jurídico do Licenciamento Municipal de Obras Particulares:[2]
Artigo 1.º
Objecto de licenciamento
1 – Estão sujeitos a licenciamento municipal:
a) Todas as obras de construção civil, designadamente novos edifícios e reconstrução, ampliação, alteração, reparação ou demolição de edificações, e ainda o trabalhos que, não possuindo natureza exclusivamente agrícola, impliquem a alteração da topografia do local;
(...)
Artigo 9.º
Publicitação do alvará de licença de construção
1 – O titular da licença de construção deve, no prazo de oito dias, dar publicidade à emissão do respectivo alvará, mediante a afixação de aviso, de forma bem visível, no prédio abrangido pela licença.
(...)
Artigo 20.º
Licença de construção
1 – A câmara municipal delibera sobre o pedido de licenciamento no prazo de 30 dias, devendo a deliberação ser notificada ao requerente no prazo de 8 dias.
(...)
3 – A deliberação do deferimento do pedido de licenciamento consubstancia a licença de construção e incorpora a aprovação de todos os projectos apresentados.
4 – A câmara municipal fixa, com o deferimento do pedido de licenciamento, as condições a observar na execução da obra e o prazo para a sua conclusão.
5 – O prazo para a conclusão da obra começa a correr da data da emissão do alvará, ou, se for o caso, do termo do prazo fixado para a sua emissão em sentença transitada em julgado sem que o mesmo tenha sido emitido; o prazo para a conclusão da obra é fixado em conformidade com a calendarização da mesma e apenas pode ser distinto do proposto pelo requerentes por razões devidamente justificadas.
(...)
8 – Em caso de deferimento tácito do pedido de licenciamento, presume-se a aceitação das condições propostas pelo interessado no seu requerimento inicial.
Artigo 21.º
Alvará de licença de construção
1 – O requerente deve, no prazo de um ano a contar da data da notificação da deliberação referida no artigo anterior apresentar os elementos identificados em portaria conjunta dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e das Obras Públicas Transportes e Comunicações para efeitos da emissão do alvará de licença de construção, da qual é condição de eficácia.
2 – A competência para a emissão do alvará de licença de construção é do presidente da câmara, com a faculdade de delegação nos vereadores ou nos directores de serviço, emissão que deve ter lugar no prazo de 30 dias a contar da apresentação dos elementos referidos no número anterior e desde que se mostrem pagas as taxas devidas nos termos da lei.
(...)
Artigo 22.º
Especificações do alvará de licença de construção
O alvará de licença de construção especifica obrigatoriamente, nos termos da licença, os seguintes elementos:
a) A identificação do titular da licença;
b) A identificação do prédio ou do lote onde se realizam as obras;
c) Os condicionamentos do licenciamento;
d) As cérceas e o número de pisos acima e abaixo da cota de soleira;
e) A área de construção e a volumetria dos edifícios;
f) O uso a que se destinam as edificações:
g) O prazo de validade da licença, o qual corresponde ao prazo para a conclusão das obras.
Artigo 54.º
Contra-Ordenações
1 – De acordo com o disposto no presente diploma, constituem contra-ordenações:
a) A execução de obras de construção civil, designadamente novos edifícios ou reconstrução, ampliação, alteração, reparação ou demolição de edificações, e ainda o trabalhos que, não possuindo natureza exclusivamente agrícola, impliquem a alteração da topografia do local, efectuados sem alvará de construção;
(...)
2 – A contra-ordenação prevista na alínea a) do anterior é punível com coima graduada de 100 000$ até ao máximo de 20 000 000$, no caso de pessoa singular, ou até 50 000 000$, no caso de pessoa colectiva.
(...)
Artigo 61.º
Actos tácitos
1 – A falta de decisão, aprovação ou autorização nos prazos fixados no presente diploma corresponde ao deferimento tácito da respectiva pretensão.
(...)
4 -  Como, bem, se refere na douta sentença impugnada, esta regulamentação não foi substancialmente modificada pelo Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação[3], em vigor desde 15 de Março de 2000.
Ora, resulta, claramente, sem qualquer margem de dúvida, dos textos que vêm de ser transcritos – e, particularmente, do preceituado nos artigos 9.º, n.º 1, 20.º, n.º 5, 21.º, n.os 1 e 2, 22.º e 54.º, n.º 1 – que, para além do deferimento da licença de construção, seja ele expresso ou tácito, o interessado está obrigado a requerer a emissão do respectivo alvará, cujas finalidades e requisitos, expressos na lei, são diferentes da licença que titula, sendo, por isso, condição de eficácia da mesma licença, não havendo qualquer dúvida, face ao texto do último dos referidos preceitos[4], que a execução da obra sem o alvará constitui contra-ordenação.
O recurso apresenta-se, por conseguinte, manifestamente improcedente, por ser patente a sem razão da recorrente, sem necessidade de mais detalhada discussão jurídica, já que ele vem baseado numa interpretação da lei que contraria os dizeres nela expressos, tendo-se, outrossim, em atenção os factos incontroversamente fixados na decisão impugnada[5] – designadamente que o arguido levou a efeito a construção de uma vedação, com pilares de betão, com dois metros de altura e com aproximadamente 350 m. de comprimento em rede metálica de 2 metros de altura, tendo, para o efeito da construção referida, aberto e enchido fundações, e Colocado armaduras de ferro, de um muro de suporte, com aproximadamente 20 metros de comprimento, sem ter requerido a emissão de alvará de licença de construção.
Deve, pois, o recurso ser rejeitado, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, 1.º segmento, do Código de Processo Penal.
(...)
c) Merecendo tal parecer inteira concordância, decide-se, pelos fundamentos nele expostos,
– Rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso;
– Condenar o recorrente na sanção prevista no artigo 420.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, cujo valor se fixa em 4 UC.

Lisboa, 23 de Março de 2004

Adelino César Vasques Dinis – com a seguinte declaração:
Condenaria o recorrente nas custas do recurso, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, 74.º, n.os 1 e 2, 87.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3, 89.º, n.º 1, alínea g), e 95.º, n.º 1, todos do Código das Custas Judiciais, fixando a taxa de justiça em 1 UC e a procuradoria em 1/3, pois, ao contrário da posição que fez vencimento, entendo que a sanção estabelecida no n.º 4 do artigo 420.º do Código de Processo Penal não afasta a responsabilidade por custas[6].


Manuel Cabral Amaral
Armindo Marques Leitão

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[1] Alterado pela Lei n.º 29/92, de 5 de Setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, e republicado em anexo a este último diploma.
[2] Constante do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, alterado pela Lei n.º 29/92, de 5 de Setembro e pelo Decreto-Lei n.º 254/94, de 15 de Outubro, e republicado em anexo a este ultimo diploma.
[3] Constante do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, que revogou, expressamente, o Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro.
[4] A que corresponde, no novo regime, a alínea a) do n.º 1 do artigo 98.º.
[5] Cfr. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 4.ª Edição, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2001, p. 101.
[6] Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 12.ª Edição, p. 805, Almedina, Coimbra, 2001, e Salvador da Costa, Código das Custas Judiciais Anotado e Comentado, p. 301, Almedina, Coimbra, 1997.