Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6942/05.0TBALM.L1-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: ARRENDAMENTO
NATUREZA COMERCIAL
ARMAZENAGEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. Não relevam para a discussão da causa, nomeadamente sobre a natureza comercial do arrendamento, os factos que se apresentem como indiferentes para afastar tal natureza.
II. A finalidade do contrato de arrendamento pode resultar expressamente do seu conteúdo ou, então, do contexto da sua celebração, através de variados indícios susceptíveis de a identificar, com segurança e certeza.
III. A partir de certas circunstâncias que rodearam a outorga do contrato, designadamente como a formalização através de escritura pública e de nesta se ter previsto o trespasse, assim como a fruição contínua e permanente retirada pela arrendatária, integrada na respectiva actividade comercial da sociedade, ainda que em termos meramente acessórios ou complementares, é de inferir que o arrendamento, de um local destinado a armazém, tem natureza comercial.
IV. Por isso, o regime jurídico desse contrato de arrendamento não se insere no âmbito do disposto na alínea e) do n.º 2 do art. 5.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro.
(sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
A. Lda., instaurou, em 7 de Novembro de 2005, no 2.º Juízo Cível da Comarca de Almada, contra G Lda., acção declarativa, sob a forma de processo sumário, pedindo que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade sobre o espaço com entrada pelo n.º 2-F do prédio urbano, sito em Almada, na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada, e que a Ré fosse condenada a restituir-lhe esse espaço, devoluto de pessoas e bens.
Para tanto, alegou, em síntese, que é proprietária do referido prédio, cujo espaço com entrada pelo n.º 2-F foi dado de arrendamento, destinado a armazém, pelos anteriores proprietários, através da escritura de 26 de Abril de 1967; por meio de notificação judicial avulsa, a A. denunciou o contrato de arrendamento, com efeitos a partir de 1 de Novembro de 2005, a qual não foi aceite pela R.; desde aí a R. encontra-se a ocupar o imóvel sem título e em contrário à vontade da A.
Contestou a Ré, alegando manter-se o contrato de arrendamento em vigor e a A. continuar a aceitar as rendas, e concluindo pela sua absolvição do pedido.
A A. respondeu ainda à contestação.
Depois de frustrada a tentativa de conciliação das partes, foi proferido, em 22 de Março de 2007, despacho saneador-sentença, o qual, julgando parcialmente procedente a acção, reconheceu o direito de propriedade da A. e absolveu a R. do pedido de restituição do referido espaço.

Inconformada com a parte absolutória da decisão, a Autora recorreu e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:
a) O alegação de que o locado não tem casa de banho deve ser considerada como provada, por confessada pela R. na contestação.
b) Os espaços não habitáveis estão sujeitos ao regime da locação civil e não do RAU.
c) Do texto do contrato não consta qualquer menção de onde se depreenda que o armazém se encontra em relação de acessoriedade ou funcionalidade directa com o estabelecimento que a Apelada diz possuir na Av. Cristo Rei, em Almada.
d) Os pedidos de avaliação fiscal extraordinária justificam-se, no preenchimento de uma lacuna legal, pela aplicação do regime do RAU, não obstante o contrato de arrendamento não tenha a natureza comercial.
e) A decisão recorrida violou, entre outros, por má interpretação e aplicação da lei, o artigo 5.º, n.º 2, alínea e), do RAU.

Pretende a Autora, com o provimento do recurso, que a Ré seja condenada a restituir o locado devoluto de pessoas e bens.

Contra-alegou a Ré, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está essencialmente em causa a natureza comercial do contrato de arrendamento.


II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Pela 1.ª instância, foram dados como provados, os seguintes factos:
1. A A. é dona e legítima possuidora do prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida do Cristo Rei, em Almada, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada.
2. O prédio encontra-se dividido em três zonas distintas e independentes entre si, com entradas autónomas pelo n.º s …da Avenida do Cristo Rei.
3. A R., desde há cerca de 40 anos, exerce a actividade de restauração e hotelaria, no imóvel sito na Avenida do Cristo Rei, em Almada, onde tem a sua sede.
4. Por escritura pública, outorgada a 26 de Abril de 1967, constante de fls. 18 a 22, a anterior proprietária do prédio deu de arrendamento à R. o espaço do prédio referido, com entrada pelo n.º 2-F.
5. O arrendamento foi feito pelo prazo de seis meses, prorrogáveis nos termos da lei, com início a 1 de Maio de 1967.
6. Nos termos do contrato celebrado, o arrendado foi destinado a armazém.
7. A R. sempre utilizou o locado como armazém de apoio ao estabelecimento de café e restaurante que explora no n.º … da Avenida do Cristo Rei.
8. Em 17 de Janeiro de 2001, a A. requereu junto da 1.ª Repartição de Finanças de Almada a avaliação fiscal extraordinária do locado, “ (…) nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 330/81, de 4 de Dezembro (…) ”.
9. Na decorrência desse requerimento, a comissão de avaliação fixou uma nova renda para o locado.
10. Após a avaliação extraordinária, a A. tem vindo a pedir as sucessivas actualizações de renda, com base nos coeficientes para os arrendamentos comerciais.
11. Em 14 de Junho de 2005, a A. requereu a notificação judicial avulsa da R., “(…) no sentido de lhes notificar a denúncia do contrato de arrendamento no termo do prazo do contrato, ficando estes obrigados, até ao dia 31 de Outubro de 2005, a entregar o locado devoluto de pessoas e bens”.
12. O sócio da R. recusou-se a receber e assinar a notificação referida.
13. Por carta, datada de 8 de Julho de 2005, a A. enviou à R. uma cópia da aludida notificação judicial avulsa, informando-a de que a recusa não afasta os efeitos e que deve entregar o locado devoluto de pessoas e bens até ao dia 31 de Outubro de 2005.
14. Por carta, datada de 19 de Julho de 2005, a R. declarou à A. que não entregava o locado e que não aceitava a denúncia do contrato.
15. A R. não entregou o locado à A., tendo continuado a pagar-lhe as rendas.

***
2.2. Descrita os factos provados, importa agora conhecer do objecto do recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, e cuja questão jurídica emergente já foi antes especificada.
Na delimitação da matéria de facto, a Apelante alega que deve ser considerado como provado que o locado não tem casa de banho e que a primitiva senhoria era médica.
Na verdade, como se depreende da descrição feita, tais factos não constam do elenco da matéria de facto considerada como provada.
Todavia, tais factos, na economia dos autos, não relevam para a discussão da causa, sendo indiferentes, nomeadamente, na perspectiva da Apelante, para afastar a natureza comercial do contrato de arrendamento identificado nos autos. E isso torna-se tanto mais evidente quanto é certo que a própria Apelante, nas suas alegações, nem sequer se serve desses factos, para fundamentar a natureza civil do contrato de arrendamento.
Por isso, improcede essa arguição da Apelante, mantendo-se, sem alteração, a matéria de facto decidida pela 1.ª instância.

2.3. A Apelante, na acção de reivindicação da propriedade instaurada, embora tivesse obtido a declaração do reconhecimento do direito de propriedade, não logrou obter, contudo, a condenação da Apelada no pedido da restituição do respectivo prédio urbano, por efeito da eficácia atribuída ao contrato de arrendamento, considerado como tendo natureza comercial.
É esta questão, da natureza comercial do contrato de arrendamento, que continua a suscitar a divergência das partes, insistindo a Apelante na caracterização do contrato como sendo de natureza civil.
O arrendamento de prédio urbano pode ter diversos fins, como a habitação, a actividade comercial e industrial, o exercício de profissão liberal e outra aplicação lícita do prédio, dependendo do acordo que os contraentes possam estabelecer.
A finalidade do contrato de arrendamento poderá, assim, resultar do seu conteúdo expresso ou, então, do contexto da sua celebração, disponibilizando variados indícios susceptíveis de a identificar, com segurança e certeza.
No contrato de arrendamento dos autos, constante de fls. 18 a 22, as partes não declararam, expressamente, a sua finalidade comercial, tendo sido exarado, simplesmente, que a loja se destinava a “armazém”. Essa circunstância, sem mais, poderia levar a concluir que o contrato não teria natureza comercial, por não se depreender no destino especificado qualquer relação directa com a actividade comercial desenvolvida pela arrendatária.
Contudo, quando foi celebrado o contrato de arrendamento, em Abril de 1967, a arrendatária exercia já a actividade comercial de restauração e hotelaria, em local muito próximo do prédio dado de arrendamento, onde aliás tinha a sua sede, como foi declarado na respectiva escritura pública, levando a admitir que a locadora conhecia a actividade comercial da arrendatária e o estabelecimento comercial que explorava.
Como se realçou na sentença recorrida, a escolha da forma do contrato, a escritura pública, também não é indiferente ao destino pretendido dar ao arrendamento, pois, não se tratando de um arrendamento sujeito a registo, dado o respectivo prazo não ser superior a seis anos, mas apenas de seis meses, ainda que prorrogável, foi porque os outorgantes tinham em vista um contrato de natureza comercial, para o qual, na altura, em Abril de 1967, se exigia a redução a escritura pública, nos termos da então alínea b) do n.º 1 do art. 1029.º do Código Civil (CC).
Essa vontade das partes encontra-se até reforçada pela circunstância de, no mesmo instrumento formal, se ter declarado que “o trespasse é permitido nos termos da lei” (fls. 21). Na verdade, a previsão do trespasse, neste caso, só podia fazer algum sentido tendo o contrato de arrendamento a natureza comercial, perante a delimitação negativa do conceito de trespasse prevista, então, no art. 1118.º do CC. Inexistindo um arrendamento de natureza comercial na mente dos contraentes, seria totalmente extravagante ou despropositada a declaração da permissão do trespasse.
De resto, e como a própria Apelante alegou e ficou provado, a Apelada sempre utilizou o locado como armazém de apoio ao estabelecimento de café e restaurante que explora no nº …da Avenida do Cristo Rei (n.º 7).
Pela utilização duradoura do armazém, servindo de apoio à actividade comercial desenvolvida pala Apelada, estabeleceu-se uma clara relação de acessoriedade ou de complementaridade. Efectivamente, a utilidade permanente do armazém integra-se no âmbito do exercício da sua actividade comercial, constituindo também um elemento do activo do respectivo estabelecimento comercial.
Desintegrar o armazém do estabelecimento comercial da Apelada, como pretende a Apelante, atomizando-o, equivaleria a desprezar, sem razão justificativa, a vontade real dos contraentes manifestada no contrato de arrendamento celebrado.
A partir das circunstâncias de facto que rodearam a outorga do contrato de arrendamento, que antes se enunciaram, assim como da fruição contínua e permanente retirada pela arrendatária, integrada na actividade comercial da Apelada, ainda que em termos acessórios ou complementares, é de inferir que o arrendamento tem natureza comercial. Acompanha-se, assim, também o entendimento já seguido pelo acórdão do Tribunal da Relação, de 18 de Janeiro de 2007 (Processo n.º 10 589/2006-6, acessível em www.dgsi.pt).
Por isso, o regime jurídico do contrato de arrendamento celebrado não se insere no âmbito do disposto na alínea e) do n.º 2 do art. 5.º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, vigente ainda no momento da propositura da acção. Desse modo, não estando a situação exceptuada, aplicam-se-lhe os efeitos jurídicos previstos no RAU.
Aliás, a parte final daquela norma não deixa de contemplar essa possibilidade, designadamente quando o arrendamento do armazém é realizado em conjunto com arrendamentos de locais aptos para o exercício do comércio.
Como realçava ARAGÃO SEIA, a expressão em conjunto não pretendia “significar o mesmo momento temporal, mas sim a acessoriedade que pode acontecer em momentos distintos, desde que passe a integrar o mesmo todo” (Arrendamento Urbano, 6.ª edição, 2002, pág. 166).
Assim, levando em conta o sentido normativo do texto legal invocado, o arrendamento do armazém, sendo embora posterior ao estabelecimento comercial, passou, a partir do momento da sua constituição, a integrar-se na unidade jurídica representada pelo estabelecimento comercial.
Nessa decorrência, não é, pois, admissível retirar ao arrendamento a sua natureza comercial.
Era, nesse sentido, aliás, que se podia inscrever, com certa coerência, o pedido de avaliação fiscal extraordinária formulado, em 2001, pela Apelante, com fundamento expresso no “artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro” (n.º 8).
A alegação que, a esse propósito, se apresentou nos autos, baseada numa pretensa lacuna legal, mais não representa do que uma construção algo artificial, que a decisão recorrida desmontou com facilidade e total acerto, para tentar esconder uma eventual situação susceptível de ser qualificada como reveladora de má fé, mas que se excluiu, não carecendo a falta de validade da argumentação usada de mais acrescida justificação.
Nestes termos, tendo o contrato de arrendamento natureza comercial, dada a relação de acessoriedade e complementaridade que a fruição do respectivo prédio tem com a actividade comercial desenvolvida pela arrendatária, é juridicamente ineficaz a declaração de denúncia do contrato, para o termo do período da respectiva renovação, por não corresponder a qualquer caso admissível pela lei vigente.
Mantendo-se, portanto, a validade do contrato de arrendamento e, consequentemente a obrigação da locadora de assegurar o gozo do prédio para o fim a que foi destinado, nos termos da alínea b) do art. 1031.º do CC, tem de ser recusada a restituição do prédio, atento o disposto na parte final do disposto no n.º 2 do art. 1311.º do CC.
Em suma, a Apelada, como arrendatária, continua a dispor de título legítimo para a fruição do prédio identificado nos autos, pelo que improcede o pedido de restituição.
Nesta conformidade, não relevando as respectivas conclusões, improcede o recurso e é caso para se confirmar a sentença recorrida, a qual, mostrando-se bem fundamentada e em harmonia com a lei aplicável, não violou qualquer disposição legal, nomeadamente a especificada pela Apelante.

2.4. Em face da exposição precedente, pode extrair-se de mais relevante:
I. Não relevam para a discussão da causa, nomeadamente sobre a natureza comercial do arrendamento, os factos que se apresentem como indiferentes para afastar tal natureza.
II. A finalidade do contrato de arrendamento pode resultar expressamente do seu conteúdo ou, então, do contexto da sua celebração, através de variados indícios susceptíveis de a identificar, com segurança e certeza.
III. A partir de certas circunstâncias que rodearam a outorga do contrato, designadamente como a formalização através de escritura pública e de nesta se ter previsto o trespasse, assim como a fruição contínua e permanente retirada pela arrendatária, integrada na respectiva actividade comercial da sociedade, ainda que em termos meramente acessórios ou complementares, é de inferir que o arrendamento, de um local destinado a armazém, tem natureza comercial.
IV. Por isso, o regime jurídico desse contrato de arrendamento não se insere no âmbito do disposto na alínea e) do n.º 2 do art. 5.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro

2.5. A Apelante, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2) Condenar a Apelante (Autora) no pagamento das custas.
Lisboa, 25 de Junho de 2009
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)