Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
274/15.2YLPRT.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)

A requerida que beneficie de isenção de custas judiciais não está, para o efeito de deduzir oposição ao procedimento especial de despejo, dispensada de prestar a caução a que se refere o art.º 15.º-F n.º 3 do NRAU.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 23.01.2015 Luís (…) Lda instaurou no Balcão Nacional de Arrendamento procedimento especial de despejo contra R (…) Lda, requerendo o despejo do imóvel sito na Rua (…), Sintra.
Como fundamento alegou a resolução de contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas.
Juntou contrato de arrendamento e comunicação de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas.
Em 17.3.2015 a requerida apresentou oposição. Invocou encontrar-se em processo especial de recuperação de empresa, pelo que beneficiava de isenção do pagamento prévio de taxa de justiça.
Não prestou caução.
Distribuído o processo, em 26.3.2015 foi proferido despacho em que, por falta de prestação de caução, se declarou a oposição não deduzida e se ordenou a comunicação ao Balcão Nacional de Arrendamento nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 15.º-E, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 6/2006, de 27.02.
A requerida apelou desta decisão, recurso esse que foi admitido, após deferimento da reclamação apresentada perante esta Relação de despacho de não recebimento do recurso.
Na sua alegação a apelante formulou as seguintes conclusões:
A) Entende a Recorrente, que se tendo apresentado a PER, está isenta do pagamento prévio da taxa de justiça (art.º 4.º, n.º 1, al. u) do RCP).
B) Nos casos de apoio judiciário, ao contrário do entendido na douta Sentença recorrida, o requerido está isento quer do pagamento da taxa de justiça quer da prestação de caução (n.º 3 do art.º 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro).
C) De facto, não poderia ser de outra forma, pois se não tem condições económicas para proceder ao pagamento da taxa de justiça, naturalmente não terá condições para proceder ao pagamento da caução.
D) O entendimento contrário conduziria a uma frontal limitação do direito à justiça e ao acesso aos tribunais, por razões económicas, ainda que de forma indireta, o que não se pode aceitar.
E) A isenção de custas prevista para as sociedades comerciais que se encontrem em situação de insolvência ou processo de recuperação de empresa, assenta numa presunção de insuficiência económica daquelas, para fazer face às custas do processo (alínea u) do n.º 1 do art.º 4.º do RCP).
F) Deve ser entendido, ainda que por interpretação extensiva do n.º 3 do art.º 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que a exclusão de prestação de caução se aplica igualmente às sociedades que por se encontrarem em situação de insolvência ou em processo de recuperação, sejam isentas de custas.
G) Assim, a douta Sentença recorrida ao ter julgado a oposição não deduzida, preconizou uma errónea interpretação das disposições legais aplicáveis, padecendo de erro de julgamento, não podendo em consequência permanecer na ordem jurídica.
A apelante terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada, com as consequências legais daí advindas.
A apelada contra-alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:
A) Por sentença proferida pelo Tribunal a quo, viu a recorrente indeferida a sua pretensão em deduzir oposição em procedimento especial de despejo, porquanto não ter procedido ao pagamento de caução.
B) Entende a Recorrente que, o facto de se encontrar em Processo Especial de Revitalização gera uma isenção quer do pagamento de taxa de justiça, quer do pagamento de caução.
C) Conforme resulta do artigo 3.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP) que, (...) As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte, pelo que, a caução não se encontra incluída no conceito de custas, não podendo a recorrente socorrer-se desta isenção — que é objectiva -, para fazer valer uma pretensão infundada;
D) Na verdade, resulta do n.º 3 do artigo 15º F da Lei n.° 5/2006, de 27 de Fevereiro, que "Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos n°s 3 e 4 do artigo 1083° do Código Civil, ao pagamento de urna caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça." (sublinhados e negritos nossos).
E) Conforme consta, de forma clara e inequívoca, da Portaria 9/2013, de 10 de Janeiro, mais precisamente no seu artigo 10º, "1 — O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n.° 3 do artigo 15°-F da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, é efectuado através dos meios electrónicos de pagamento previstos no artigo 17º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, após a emissão do respectivo documento único de cobrança."
F) Acrescentando ainda no n.º 2 que "O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário." (sublinhado e negrito nossos).
G) Pelo que, independentemente de o arrendatário ser beneficiário de apoio judiciário ou estar no âmbito de uma isenção, tal facto não o liberta de prestar a necessária caução.
A apelada terminou pedindo que o recurso fosse julgado improcedente e consequentemente a sentença recorrida fosse mantida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão a apreciar neste recurso é se a apelante estava dispensada de prestar caução, para que a oposição deduzida fosse recebida.
O factualismo a levar em consideração é o que consta supra no Relatório.
O Direito
O procedimento especial de despejo é, conforme o define o art.º 15.º n.º 1 do NRAU, revisto pela Lei n.º 31/2012, de 14.8, um “meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes”.
Os documentos e comunicações privados enunciados no art.º 15.º n.º 1 do NRAU, na versão primitiva, perderam o valor de títulos executivos, passando apenas a “servir de base” ao requerimento de instauração do procedimento especial de despejo (n.º 2 do art.º 15.º do NRAU), por se entender que criam uma aparência de direito do senhorio que é suficiente para justificar a notificação do arrendatário para desocupar voluntariamente o locado e fundar a imediata efetivação da desocupação do locado, no caso de inércia do arrendatário, sem necessidade de intervenção de um juiz (vide Rui Pinto, “Manual da execução e despejo”, Coimbra Editora, 2013, páginas 1166 e 1167, 1160).
Trata-se, seguindo a terminologia de Rui Pinto (obra citada, páginas 1160 e 1169), de um “processo especial sincrético”, isto é, declarativo e executivo, que se inicia com uma fase injuntória a que poderá seguir-se uma fase contenciosa, tendo em vista a formação de um título executivo, prosseguindo, se for o caso, com uma fase executiva, destinada à realização coativa do direito à entrega do locado.
Deduzida válida oposição ao requerimento de despejo, segue-se a fase contenciosa, que é “uma fase declarativa pura perante um juiz” (Rui Pinto, obra citada, pág. 1191) e que constitui, pois, um processo declarativo especial, a que se aplicarão, nos termos do art.º 549.º n.º 1 do CPC, no que não estiver especialmente regulado, as regras gerais e comuns do Código do Processo Civil e, se for o caso, as regras do processo comum (Rui Pinto, obra citada, pág. 1191).
Tal fase declarativa inicia-se, pois, com a dedução, pelo requerido, de oposição, que não carece de ser articulada, e deve ser acompanhada do pagamento de taxa de justiça e, em certos casos, da prestação de uma caução (art.º 15.º-F n.ºs 1, 2 e 3 do NRAU).
Se não se mostrar paga a taxa de justiça ou caução que forem devidas, a oposição tem-se por não deduzida (n.º 4 do art.º 15.º-F), pelo que o Balcão Nacional do Arrendamento (BNA), que é uma secretaria judicial com competência exclusiva para a tramitação do procedimento especial de despejo em todo o território nacional (art.º 2.º do Dec.-Lei n.º 1/2013, de 07.01), converterá o requerimento de despejo em título para desocupação do locado (alínea b) do n.º 1 do art.º 15.º-E do NRAU), abrindo-se o caminho para a fase executiva do procedimento. Porém, caberá ao juiz a análise dos requisitos da oposição (n.º 2 do art.º 9.º do Dec.-Lei n.º 1/2013, de 07.01), pelo que, ainda que o BNA constate que não se mostram reunidas estas condições de admissibilidade da oposição, deverá apresentar os autos à distribuição (n.º 1 do art.º 15.º-H).
Recebidos os autos, o juiz proferirá despacho liminar, que poderá consistir, como ocorreu no caso ora sub judice, na recusa da oposição, por falta de algum dos pressupostos supra referidos.
Temos, pois, que o recebimento da oposição depende da junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida (n.º 3 do art.º 15.º-F do NRAU) e, se a resolução do contrato de arrendamento se fundar, nomeadamente, na falta de pagamento de rendas (como é o caso destes autos), do pagamento de uma caução no valor das rendas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas (n.º 3 do mesmo artigo). Trata-se, quanto à prestação de caução, de uma medida protetiva dos interesses do senhorio, ainda assim sujeita a um limite máximo (seis vezes o valor em dívida), que se revela justificada atendendo à ponderação dos interesses em presença (neste sentido, cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 09.7.2015, processo 2684/14.3YLPRT.L1-7, acessível in www.dgsi.pt). Porém, o n.º 3 do art.º 15.º-F do NRAU, após enunciar as obrigações de pagamento de taxa de justiça e, em certos casos, de caução, logo de seguida prevê a seguinte ressalva: “salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento” mais se acrescentando, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça”.
O texto da lei aponta no sentido de que a concessão de apoio judiciário liberta o arrendatário/oponente tanto do ónus de pagamento da taxa de justiça como da prestação de caução (cfr. Rui Pinto, obra citada, pág. 1187). E, não se lobrigando outros elementos interpretativos que imponham interpretação diversa (n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil), mantém-se intocada a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil).
Ora, a portaria em causa é a Portaria n.º 9/2013, de 10.01, em cujo art.º 10.º, sob a epígrafe caução, se prevê o seguinte:
1 – O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n.º 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, é efetuado através dos meios eletrónicos de pagamento previstos no artigo 17.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, após a emissão do respetivo documento único de cobrança.
2 – O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.”
Ou seja, nos termos da Portaria, a concessão de apoio judiciário não isenta o arrendatário da prestação da caução prevista no n.º 3 do art.º 15.º-F do NRAU. O que contraria a dita norma da Lei n.º 31/2012, de 14.8.
Ora, em caso de conflito de duas normas de direito infraconstitucional, prevalece a norma de superior hierarquia, ou seja, in casu, o n.º 3 do art.º 15.º-F do NRAU, enfermando de ilegalidade a norma preterida (vide, neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 19.02.2015, processo n.º 4118/14.4TCLRS.L1.-2, e acórdão, também desta Relação, proferido em 28.4.2015, no processo n.º 1945/14.6YLPRT-A.L1-7, ambos consultáveis in www.dgsi.pt.).
Porém, a situação invocada pela apelante, de isenção da taxa de justiça, não é idêntica à de concessão de apoio judiciário, considerada na lei como exoneradora da obrigação de prestação de caução. A isenção de taxa de justiça não pressupõe, necessariamente, impossibilidade económica de pagamento dos encargos judiciais, pelo que não há necessária equiparação entre essa isenção e a concessão de apoio judiciário, sendo certo, aliás, que o apoio judiciário admite diversas modalidades, que não passam necessariamente pela total dispensa do pagamento de taxa de justiça (vide art.º 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29.7, que aprova o Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais).
Mais, a requerida, enquanto sociedade comercial, não tem direito a apoio judiciário.
Com efeito, o n.º 3 do art.º 7.º do Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais estipula que “as pessoas colectivas com fins lucrativos e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada não têm direito a protecção jurídica”.
Reportando-nos à garantia do acesso à Justiça, invocada pela apelante, recorda-se que o Tribunal Constitucional tem defendido, em posição maioritária que obteve consagração no acórdão do Plenário n.º 216/2010, de 01.6.2010, proferido a propósito da exclusão do regime de proteção jurídica a que a Lei n.º 34/2004, de 29.7, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28.8, votou as pessoas coletivas com fins lucrativos e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada (art.º 7.º n.º 3), pronunciando-se pela constitucionalidade de tal norma, que “o direito de acesso aos tribunais como direito fundamental, radica essencialmente na dignidade humana como princípio estruturante da República (artigo 1.º da Constituição), reconhecido no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e igualmente acolhido no artigo 6.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Não são comparáveis as situações de concessão de apoio a pessoas singulares e a pessoas colectivas, pelo que a promoção das condições positivas de acesso aos tribunais nos casos de insuficiência económica não tem o mesmo significado quanto a pessoas singulares e quanto a pessoas colectivas com fim lucrativo, que devem, por imposição legal, integrar na sua actividade económica os custos com a litigância judiciária que desenvolvem, assim assegurando a protecção dos interesses patrimoniais da universalidade dos credores e do próprio interesse geral no desenvolvimento saudável da economia.” Para o Tribunal Constitucional, “não faz sentido, com efeito, que a existência das pessoas colectivas com fins lucrativos implique a absorção de proveitos económicos gerados globalmente pela comunidade. Caso contrário, o legislador coloca a cargo dos contribuintes uma parte dos custos da actividade das pessoas jurídicas que têm como fim obter lucros, o que dificilmente é sustentável.
Ou seja, a apelante, pese embora a isenção de custas que invoca, não está dispensada de prestar a caução a que o NRAU condiciona a oposição ao procedimento especial de despejo, a qual se destina a acautelar os interesses do senhorio, sem que tal ónus acarrete a ofensa de princípios constitucionais.
A apelação é, pois, improcedente.
DECISÃO
Pelo exposto julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
Sem custas, atendendo à isenção de que o apelante beneficia.
Lisboa, 17.12.2015


Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Olindo dos Santos Geraldes