Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3125/2007-7
Relator: DINA MONTEIRO
Descritores: VALOR DA CAUSA
PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS
MINISTÉRIO PÚBLICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: O Ministério Público não carece de indicar o valor da acção no processo judicial de promoção e de protecção referenciado na Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro)

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal de Família e Menores e Juízos Cíveis de Sintra requereu a abertura de processo judicial de promoção e protecção a favor do menor R.[…], nascido a 13 de Maio de 1994 e residente na área da comarca de Sintra, pedindo a aplicação de uma medida de protecção que afastasse o menor da situação de perigo em que se encontrava, protegendo-o e permitindo o seu desenvolvimento harmonioso.

Para o efeito invocou, sumariamente, que o R.[…] vive num agregado familiar composto pela progenitora, uma irmã e um irmão mais velho, maior, sendo que este último inflige maus tratos físicos, violentos e habituais ao menor, que determinaram já a aplicação de uma medida provisória de internamento institucional.

Por a mãe do menor se ter comprometido a impedir a continuação desta situação, nomeadamente através da proibição do seu filho mais velho continuar a viver em sua casa, foi determinada a cessação da medida antes aplicada, que foi substituída por uma outra, no caso, de apoio junto da progenitora.

Durante a execução desta última medida comprovou-se que o irmão mais velho do R.[…] continuava a habitar a mesma casa que aquele e que a progenitora comum não impediu que o menor continuasse a ser vítima dos maus tratos por parte do seu outro filho maior que, aliás, também agredia fisicamente todos os outros elementos do agregado familiar.

Concluiu, assim, pela impossibilidade de manutenção de tal situação e pela urgente intervenção do Tribunal para proteger o menor R.[…] da situação de perigo em que se encontrava.

Após a abertura da instrução, o Sr. Juiz proferiu despacho a convidar o Mº Público a indicar o valor da acção, sob expressa cominação legal, convite a que o mesmo não acedeu, tendo sido proferido despacho a determinar a extinção da instância.

Inconformado, o Mº Público interpôs recurso desta decisão no âmbito do qual formulou as seguintes conclusões:

1. O Processo Judicial de Promoção e Protecção não é uma acção cível.

2. O PPP tem normas próprias e só lhe são aplicáveis, subsidiariamente as normas do processo civil, na fase de debate judicial e de recursos, mas “com as devidas adaptações”.

3. Os interesses em jogo no âmbito do LPCJP não são compatíveis com os critérios gerais fixados para as acções cíveis.

4. A lei não determina a contabilização dos interesses do menor, no âmbito da promoção dos seus direitos e da sua protecção.

5. A atribuição de valor ao requerimento de abertura do processo de Promoção e Protecção não tem qualquer utilidade, por estarem definidos e reguladas as regras de competência do tribunal, bem como a instância de recurso, quer a forma de processo, quer a ausência de tributação das custas e demais encargos legais com o processo.

6. Porque se mostram violados os arts. 1º, 3º, 4º a), c), 6º, 11º, 72º, 73º, nº 1 b), 100º, 102º nº 1 e nº 2, 106º, 107º e 126º da LPCJP, deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.

O Sr. Juiz sustentou a decisão em recurso.

Atenta a natureza urgente do processo, foram dispensados os vistos e entregues aos Exmos. Sr. Desembargadores Adjuntos cópia de todo o processado.  

Cumpre apreciar e decidir.



II. FACTOS PROVADOS

1. Em 24.Julho.2006, e ao abrigo do art. 68º/b da LPCJP, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Sintra Ocidental remeteu aos Serviços do Ministério Público do Tribunal de Família e Menores e Juízos Cíveis de Sintra o processo relativo ao menor R.[…], face ao incumprimento do acordo de promoção e protecção por parte da progenitora deste.

2. No dia 22.Dezembro.2006 o Mº Público deu entrada em Tribunal de requerimento para abertura de processo de promoção e protecção a favor do menor R.[…], nascido a 13.Maio.1994.

3. No dia 22.Dezembro.2006 o Sr. Juiz de Turno do Tribunal de Família e Menores e Juízos Cíveis de Sintra declarou aberta a instrução, determinou a realização das diligências requeridas pelo Mº Público e a apresentação do processo ao Juiz Titular após férias, a 04.Janeiro.2007, para agendamento da também solicitada inquirição.

4. A 04.Janeiro.2007 o Sr. Juiz Titular do processo proferiu despacho em que convidou o Ministério Público a, em 10 dias, indicar o valor da acção sob pena de se julgar extinta a instância.

5. Notificado, o Ministério Público nada disse no prazo fixado.

6. Por despacho de 15.Fevereiro.2007 o Sr. Juiz proferiu despacho a julgar extinta a instância e a solicitar à ECJ que vigiasse a situação do menor R.[…] e providenciando, se necessário fosse, pela aplicação do art. 91º da LPCJP.

7. Por fax de 21.Fevereiro.2007 a Coordenadora do ECJ de Sintra informou o Tribunal que a situação do menor parecia estar acautelada, sugerindo a aplicação de uma medida de promoção e protecção ao R.[…] de apoio junto da sua progenitora com a imposição de determinadas regras de assiduidade e pontualidade do menor na escola, acompanhamento médico e proibição de actos de violência sobre o mesmo, por parte do seu irmão mais velho, Luís Carlos.

III. FUNDAMENTAÇÃO

Sob o ponto de vista estritamente jurídico a questão colocada no presente recurso tem inteira relevância. Encontramo-nos, porém, perante um processo cuja natureza extravasa os contornos jurídicos – trata-se de um processo de promoção e protecção que, visando acudir a situações de perigo em que um menor se encontre, deve antes de mais estar direccionado para a defesa imediata dos seus interesses.

Estas considerações, embora pertinentes, não resolvem a questão de fundo colocada no âmbito deste recurso. Com efeito, antes de mais, cumpre delinear a natureza deste tipo de processos para se poder responder à questão que concretamente é colocada neste recurso: no requerimento inicial apresentado pelo Ministério Público para dar início a um processo judicial de promoção e protecção deve ser indicado o valor da acção?  Entendendo-se que sim, e não tendo sido satisfeito tal requisito, mesmo depois de formulado convite nesse sentido, deve ser declarada a extinção da instância?

Analisando a primeira destas questões há que ter presente que logo no art. 100º da LPCJP é afirmado que o processo de promoção e promoção “é de jurisdição voluntária”.  

Entende-se, porém, que com esta afirmação o legislador não quis dizer que estávamos perante um processo de jurisdição voluntária no sentido de ter de ser observada a tramitação prevista nos arts. 1409º/ss, 302º a 304º e 463º/1 do CPC, mas sim, que neste tipo de processos devem ser observadas os mesmos princípios que presidem à apreciação, tramitação e julgamento de qualquer processo de jurisdição voluntária, no caso, respeito pelo princípio do inquisitório, predomínio da aplicação do princípio da equidade sobre o da legalidade, a livre modificabilidade das decisões, a inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e a dispensa de forma articulada (entre outros, ALBERTO DOS REIS, Processos Especiais, Coimbra Editora, Reimpressão, 1982, pág. 397/ss e MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 71).

Diga-se, aliás, que o processo de promoção e protecção tem tramitação própria, perfeitamente delineada no diploma que o disciplina – Lei 147/99, de 01.Setembro – e que prevê as seguintes fases processuais: instrução, debate judicial, decisão e execução da medida – art. 106º do LPCJP.

Aos processos de promoção e protecção, em qualquer destas fases processuais, são aplicáveis as normas expressamente previstas pela Lei 147/99, de 01.Setembro e na aplicação de tais dispositivos estão sempre presentes os princípios orientadores do processo de jurisdição voluntária.

Na fase de debate judicial e de recursos são ainda subsidiariamente aplicáveis, com as devidas adaptações, as “normas relativas ao processo civil de declaração sob a forma sumária” – art. 126º da LPCJP.

E diz-se subsidiariamente uma vez que o próprio diploma (Lei 147/99), tem normas expressas para regular cada uma destas fases processuais sendo certo que tal subsidiariedade também não determina, automaticamente, a aplicação das disposições do CPC ali referidas uma vez que tal aplicação tem de realizar-se “com as devidas adaptações” o que não pode deixar de ser articulado com os princípios orientadores da LPCJP que, por se tratar de lei especial, prevalecem sobre estes últimos.

A questão colocada neste recurso coloca-se cronologicamente com a entrada em juízo do processo de promoção e protecção a favor do menor R.[…], através da apresentação de um requerimento subscrito pelo Ministério Público, a quem compete a iniciativa processual – arts. 73º e 105º da LPCJP.

Muito embora a LPCJP se reporte a várias aspectos deste tipo de processos, por regra, individuais e únicos (arts. 78º e 80º), de natureza urgente (art. 102º/1), de carácter reservado (art. 88º), indicando expressamente a competência do Tribunal (art. 101º), bem como o arquivamento do processo (art. 111º), não sujeitos a distribuição (art. 102º/2), a verdade é que não refere a forma que deve revestir a apresentação de tal articulado inicial em juízo. E tal justifica-se pelo facto de nos encontrarmos perante processos orientados para uma intervenção urgente, com um formalismo minimalista e destinado a adaptar-se à situação concreta do menor, visando a aplicação de uma medida, provisória ou não, mas sempre inadiável – arts. 4º, 6º/ss, 35º, 37º, 72º e 76º da LPCJP.

A estes processos não faz, assim, qualquer sentido, aplicar-se as regras de tramitação processual previstas nos arts. 1409º/ss, 302º a 304º e 463º/1 do CPC, com as cominação ali previstas, sob pena de os direitos dos menores em perigo que se visam acautelar com a aplicação da Lei 147/99, através da aplicação urgente de uma medida, serem irremediavelmente ultrapassadas pela aplicação de regras disciplinadoras de um processo civil, vocacionado para situações de diversa natureza.
 
O processo de promoção e protecção tem, pois, natureza especial, não sendo a sua índole estritamente civilista antes se revestindo de uma legitimação de intervenção do Estado na defesa de menores em perigo, traduzida numa acção que não é de partes, mas sim, apresentada a favor de um menor que se encontre numa das situações de perigo previstas pelos arts. 2º e 3º da LPCJP.

Destes contornos especiais de que se reveste a natureza de um processo de promoção e protecção pode concluir-se que o Ministério Público não tem de, nas acções apresentadas em juízo e destinadas a iniciar um processo de promoção e protecção, indicar o valor da causa, tal como o não tem de fazer em outras jurisdições especiais, como é o caso da LTE.

E com esta afirmação não se prejudica quer os direitos a proteger com a LPCJP quer quaisquer dos objectivos prosseguidos com a obrigatoriedade de indicação de valor nas acções, previsto pelo art. 305º do CPC, inserido em diploma subsidiariamente aplicável a esta legislação especial.

Com efeito, conforme é pacífico na doutrina e jurisprudência, a obrigatoriedade de indicação do valor das causas apresentadas em Tribunal tem por escopo os seguintes pontos:

- determinar a competência do Tribunal
- forma do processo comum
- relação da causa com a alçada do Tribunal

Compreendendo-se, assim, que a sua não indicação, sendo certo que não se trata de requisito que possa ser suprido oficiosamente pelo Tribunal, determine a cominação prevista no art. 314º/3 do CPC – extinção da instância – arts. 467º/1/f e 474º/e do CPC.

Porém, no âmbito da LPCJP esta situação não se verifica uma vez que, em relação a cada um dos pontos acima mencionados, há resposta expressa a solucionar cada uma dessas questões.

Assim, no que se refere à competência do Tribunal dispõem os arts. 101º e 79º/1 daquele diploma legal que para este tipo de processos é sempre competente o Tribunal de Família e Menores e, nas áreas em que tais Tribunais não se encontrem instalados, compete ao Tribunal da respectiva comarca que se constitui em Tribunal de Família e Menores, “da área de residência da criança ou do jovem no momento em que é recebida a comunicação da situação ou instaurado o processo judicial”.

Nos processos judiciais de promoção e protecção há uma única forma de processo a observar – a que vem identificada nos arts. 100º/ss da LPCJP – nada tendo o valor que ver com a determinação de qualquer tipo de forma de processo a observar (ordinária, sumária ou sumaríssima).

Por sua vez, também não se verifica qualquer relação da causa com a alçada do Tribunal uma vez que há disposição expressa a indicar as situações de recurso e, nos casos ali previstos, o recurso é sempre admitido, não estando condicionado à verificação de qualquer circunstancialismo, nomeadamente o do valor – arts. 123º e 124º da LPCJP.

Assim, mais uma vez que se conclui, que o escopo visado pelo legislador encontra-se assegurado pela aplicabilidade das disposições expressas da LPCJP, sem necessidade de recurso à indicação de valor da acção para a prossecução dos objectivos ali previstos.


IV. DECISÃO

Face ao exposto, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão agravada e determina-se o prosseguimento dos autos, com a urgência que assiste a processos desta natureza.

Sem custas.

Lisboa, 17 de Abril de 2007

Dina Maria Monteiro
Luís Espírito Santo
Isabel Salgado