Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ROQUE NOGUEIRA | ||
Descritores: | PENHOR RECUSA ABUSO DE DIREITO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/30/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | N | ||
Texto Parcial: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDÊNCIA | ||
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Sumário: | I – O penhor de valores mobiliários, onde se incluem as unidades de participação (U.P.) em instituições colectivas, constitui uma modalidade do penhor de títulos de crédito, o qual, por seu turno, constitui uma modalidade de penhor de direitos, já que, no penhor de títulos de crédito, a garantia real não recai sobre o título em si, mas sobre o crédito por ele representado. II - Tendo as U.P. sido dadas em penhor, a ré, como credora pignoratícia, tinha o direito de manter o penhor na sua totalidade, enquanto a obrigação a que servia de garantia não fosse totalmente extinta, uma vez que, como resulta do disposto no art.671º, al.c), aplicável ex vi do art.679º, o credor pignoratício só é obrigado a restituir a coisa, depois de extinta aquela obrigação. III – Assim, a recusa do resgate antecipado não foi ilegítima, não tendo a ré violado o disposto no art.1185º, do C.Civil, que não tem aplicação ao caso. IV - O abuso de direito só pode funcionar em situações de emergência, para evitar violações clamorosas do direito, sendo que, no caso dos autos, não se vê que a ré, ao recusar o referido resgate, nas condições e circunstâncias consideradas provadas, tenha excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé ou pelo fim económico do direito, e que, assim, tenha exercido o direito ilegitimamente. (Sumário do Relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: 1 – Relatório. Na 5ª Vara Cível de Lisboa, M… e… – Compra e Venda de Imóveis, Ld.ª, interpuseram acção declarativa com processo ordinário contra Banco …, S.A., onde concluem: l. Deve ser decidido que os débitos descriminados no n°. 111º, desta petição não têm fundamento, pelo que devem ser anulados, como já fora admitido pelo R. em relação a todos esses débitos, com excepção do débito de € 12.000. 2. Assim, deve considerar-se que o crédito do R. é ilíquido por facto imputável ao credor, pelo não há mora do 2º. A., nos termos do nº3. do art.805º. do Código Civil. 3. Portanto, não são devidos juros a partir da data em que o crédito se tomou ilíquido, seja a partir de 31/12/2008. 4. Do que resulta que à divida reclamada pelo R., de € 2.007.950,69 (supra, n°. 83 - doc. 25), deve ser deduzida a quantia de € 15.202,79, respeitante aos débitos indevidos (supra nº 111°) e a quantia de € 99.062,57, respeitante a juros, imposto de selo sobre os juros e despesas de cobrança de juros, descriminados no supra nº114º, não devidos nos termos do nº3 do art.805º do Código Civil. 5. Pelo que o crédito do R., depois de se tornar líquido, deve ser fixado em € 1.893.685,33. 6. Deve ser decidido que, nos termos do n°. l do artigo 638°. do Código Civil, o R. não tem legitimidade para utilizar os bens dos fiadores, designadamente, o fundo de investimento de que o 1°. A. é titular, no pagamento da dívida do 2°. A., sem a prévia excussão dos bens do devedor, nomeadamente, os bens imóveis onerados com hipoteca a favor do R. 7. Assim, devem ser considerados nulos e de nenhum efeito os resgates daquele fundo de investimento, que o R. diz já ter efectuado e utilizado no pagamento da divida do 2°. A, cujos valores unitários e globais o 1°. A desconhece. 8. Deve ser decidido que o R. não tinha fundamento para não dar cumprimento às instruções dadas pelo 1°. A, por suas cartas de 14/5/2007 (supra - doc. 10), e 15/12/2007 (supra doc. 15) no sentido de, sem sujeição a quaisquer condições, serem resgatadas as 50.000 unidades de participação no citado "Fundo de Investimento … Acções P…" cujo valor em Maio de 2007 era de 2.172.955,00 euros, conforme extracto exarado pelo R. (doc. 11), e do respectivo produto, pagar a divida total do 2°. A. 9. Por consequência, o R. deve ser condenado a creditar ao 1°. A. a quantia de 2.172.955,00 e, deste montante, retirar 1.893.685,33 para o pagamento da divida total do 2°. A, após se tornar liquida pela dedução dos débitos, juros e despesas de cobrança de juros, indevidamente efectuados na conta do 2°. A 10. O R. deve ser condenado a, após este pagamento, cancelar a hipoteca que onera 24 imóveis pertencentes ao 2°. A e a devolver a livrança assinada em branco pelos quatro gerentes do 2°. A. O réu contestou, concluindo que a acção deve ser julgada totalmente improcedente, por não provada. Os autores replicaram, formulando as seguintes conclusões: a) Deve a presente acção ser considerada improcedente em relação aos débitos de 379,70 e 397.49 cuja anulação foi pedida na petição inicial. b) Deve a presente acção ser considerada procedente em relação aos restantes pedidos constantes da petição inicial. c) Devem ser considerados não impugnados os 58 artigos da petição inicial, cuja contestação foi efectuada através de simples remissão numérica. d) Deve ser considerado que não há questões de facto controvertidos que relevem para a decisão, mas tão somente questões de direito controvertidas, pelo que deve ser proferida a decisão de mérito logo no despacho saneador. Os autores deduziram articulado superveniente, com ampliação do pedido, mas o primeiro não foi admitido e a requerida ampliação foi indeferida. O cônjuge do autor requereu a sua intervenção principal, na qualidade de co-autora, subscrevendo, na íntegra, quer os fundamentos invocados, quer os pedidos formulados. Entretanto, os autores desistiram dos débitos descriminados no art.111º da petição inicial, no montante de € 15.202,79 e dos juros impostos e despesas de cobrança descriminados no art.114º da petição inicial, no montante de €99.062,57. Tal desistência foi homologada por sentença, que absolveu o réu dos referidos pedidos. Designado dia para a audiência preliminar, foi aí admitida a intervenção principal do cônjuge do autor, seleccionando-se a matéria de facto relevante considerada assente e entendendo-se não haver matéria controvertida com relevo para a decisão da causa. De seguida, foi proferida sentença, julgando a acção totalmente improcedente. Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação daquela sentença. Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir. 2 – Fundamentos. 2.1. Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos: (…) 2.2. Os recorrentes rematam as suas alegações com as seguintes conclusões: (…) 2.3. A recorrida contra-alegou, concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente. 2.4. Como é sabido, o âmbito dos recursos determina-se face às conclusões da alegação do recorrente, só abrangendo as questões aí contidas, como resulta do disposto nos arts.685º-A, nº1 e 684º, nº3, do C.P.C.. Assim, no presente recurso, são as seguintes as questões que importa apreciar: 1ª - saber se, ao recusar a restituição do valor das unidades de participação que o autor detinha no Fundo … Acções P…, depositadas numa conta que aquele possuía no Banco …, S.A., ora ré, violou esta o art.1185º, do C.Civil; 2ª - saber se a recusa do resgate das 33.000 unidades de participação que o autor detinha naquele Fundo, que haviam sido dadas em penhor por aquele, para garantia de todas as dívidas e responsabilidades emergentes do contrato de empréstimo no montante de € 600.000,00, concedido pela ré à autora sociedade, constitui abuso de direito, por exceder os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico do direito de penhor. 2.4.1. Entendem os recorrentes que se a ré tivesse efectuado, em 14/5/07, o resgate das 50.000 unidades de participação (U.P.) do Fundo … Acções P…, de que o autor era titular, das quais 33.000 haviam sido dadas em penhor por aquele, para garantia do empréstimo de € 600.000,00 que a ré concedeu à autora sociedade, e 17.000 permaneciam livres de qualquer ónus, valendo estas últimas, naquela data, € 738.804,70, este montante seria suficiente para pagar o referido empréstimo, com a consequente extinção do penhor sobre as restantes 33.000 U.P.. Consideram, ainda, os recorrentes que o depósito de dinheiro ou valores mobiliários em bancos tem a natureza de contrato de depósito, pelo que, ao recusar a restituição do valor das U.P., a ré violou o art.1185º, do C.Civil (serão deste Código os demais artigos citados sem menção de origem). Vejamos, antes do mais, o que resulta da matéria de facto dada como provada. Em 19/1/07 foi formalizado entre a autora sociedade e a ré um contrato de empréstimo de € 600.000,00, tendo o autor constituído penhor sobre 33.000 U.P. do referido Fundo a favor da ré, para garantia do aludido empréstimo (pontos 3 e 5 da fundamentação de facto). Nos termos desse contrato, o pagamento antecipado dos € 600.000,00 só poderia ocorrer nas datas de vencimento das duas prestações estipuladas para amortização do capital – 10/1/09 e 19/1/10 (ponto 9 da fundamentação de facto). Nos termos do instrumento de penhor, a movimentação ou mobilização das U.P. implicava sempre expressa autorização da ré, tendo-se aí estipulado, ainda, que «havendo mora ou incumprimento de qualquer uma das obrigações garantidas que dure por mais de oito dias, fica o Banco com o direito de se fazer pagar, total ou parcialmente, com o produto da venda – ou, se for possível, do resgate – dos valores mobiliários empenhados necessários ao reembolso, ficando o Banco expressa e irrevogavelmente autorizado a promover, como melhor entender, a venda judicial ou extrajudicial», e também que «o penhor ora constituído poderá ser imediatamente executado desde que se verifique mora por parte do mutuário no cumprimento para com o Banco de qualquer obrigação para aquele emergente do contrato» (pontos 6, 7 e 8 da fundamentação de facto). Por carta de 26/2/07, a autora sociedade solicitou à ré um novo empréstimo de € 1.500.000,00, a garantir por hipoteca sobre 24 fracções autónomas, tendo a ré, em Fevereiro de 2007, procedido à avaliação daquelas fracções, concluindo que o seu valor comercial era de € 3.887.500,00 (pontos 10 e 11 da fundamentação de facto). Por carta de 14/5/07, o autor notificou a ré de que ficava sem efeito o pedido de empréstimo de € 1.500.000,00 e de que a ré devia resgatar a totalidade das 50.000 U.P., devendo do produto do resgate ser transferida a quantia de € 600.000,00 para a conta da autora sociedade, para pagamento antecipado da totalidade do empréstimo de € 600.000,00, sendo que, em Maio de 2007, o valor das 50.000 U.P. era de € 2.172.955,00, mas não tendo a ré cumprido tais instruções (pontos 12, 13 e 14 da fundamentação de facto). No dia 14/5/07, as partes formalizaram o designado contrato de abertura de crédito, junto a fls.60 a 65, mediante o qual a ré abriu a favor da autora sociedade uma linha de crédito de € 2.000.000,00, sendo € 1.500.000,00 de utilização imediata e € 500.000,00 de utilização futura e eventual, tendo nesse mesmo dia 14/5/07 (e não 17/5/07, como certamente por lapso se diz no ponto 16, já que o respectivo documento, junto a fls.66 e 67 dos autos, tem data de 14/5/07) o autor constituído penhor sobre 47.500 U.P. a favor da ré (pontos 15 e 16 da fundamentação de facto). Nos termos desse contrato, a ré entregou à autora sociedade a quantia de € 2.000.000,00, sendo € 1.500.000,00 nesse dia 14/5/07 e os restantes € 500.000,00 em 6/11/07, tendo-se a mesma obrigado a pagar esse capital de € 2.000.000,00 numa prestação, com vencimento em 14/5/10, o que não fez (ponto 17 da fundamentação de facto). Verifica-se, pois, que, em 14/5/07, o autor pretendeu resgatar a totalidade das 50.000 U.P., tendo em vista o pagamento antecipado da quantia de € 600.000,00, respeitante ao empréstimo contratado em 19/1/07. No entanto, nos termos desse contrato, o pagamento antecipado dessa quantia só poderia ocorrer nas datas de vencimento das duas prestações estipuladas para amortização do capital, ou seja, em 19/1/09 e 19/1/10. Acresce que, nos termos do instrumento de penhor, acessório do contrato de empréstimo de € 600.000,00, a movimentação ou mobilização das 33.000 U.P. dadas em penhor implicava sempre expressa autorização da ré, já que esta, por força do mesmo instrumento, ficou com o direito de se fazer pagar com o produto da venda ou do resgate dos valores mobiliários empenhados, estando autorizada a promover a venda judicial ou extrajudicial. Note-se que o instrumento de penhor consta do documento de fls.51 e 52, dado por reproduzido no ponto 5 da fundamentação de facto, o qual foi assinado pelos autores M… e B…, e também por procuradores da ré, que declararam tomar conhecimento da constituição, a favor desta, do referido penhor, que aceitaram. Não podiam, pois, os recorrentes ignorar que conferiram à ré, por via do penhor, os direitos atrás mencionados. Deste modo, foram os próprios autores do penhor que conferiram à ré, por contrato, o direito de disposição do objecto da garantia. Sendo que este direito, não resultando directamente da lei, só existe se e na medida em que seja conferido por aquela forma, o que é consentido pela al.b), do art.671º. Assim, no que respeita ao pretendido resgate das 33.000 U.P. dadas em penhor, parece não restarem dúvidas que a ré podia recusar a sua restituição. Quanto às restantes 17.000 U.P., se é certo que as mesmas estariam livres desse ónus, é igualmente certo que, na mesma data em que o autor notificou a ré de que as devia resgatar, juntamente com as referidas 33.000, ou seja, em 14/5/07, acabou por intervir no contrato de abertura de crédito atrás referido, como garante, constituindo a favor da ré penhor sobre 47.500 U.P., como consta do Anexo I àquele contrato (fls.66 e 67). Sendo que, neste Anexo, foram inseridas estipulações em tudo semelhantes às que constavam do instrumento de penhor constituído sobre as 33.000 U.P., para garantia do empréstimo de € 600.000,00. Assim, a movimentação ou mobilização das 47.000 U.P. dadas em penhor implicava sempre expressa autorização da ré, uma vez que esta, por força daquele Anexo I, ficou com o direito de se fazer pagar com o produto da venda ou do resgate dos valores mobiliários empenhados, estando também autorizada a promover a venda judicial ou extrajudicial. Tal Anexo, que é o instrumento de fls.66 e 67 a que se faz referência no ponto 16 da fundamentação de facto, foi assinado pelos autores M… e B…, e, ainda, por procuradores da ré, que declararam tomar conhecimento da constituição, a favor desta, do referido penhor, que aceitaram. Assim sendo, bem sabiam os recorrentes que, em 14/5/07, conferiram à ré, por contrato, o direito de disposição do objecto da garantia. Consequentemente, a pretensão dos recorrentes de ver resgatadas as restantes 17.000 U.P., formulada naquele mesmo dia, deixou de fazer sentido logo nessa altura, após a constituição do novo penhor e dados os termos em que este foi estabelecido. Como é sabido e é referido por Calvão da Silva, in Banca, Bolsa e Seguros, Tomo I, 3ªed., pág.207, as garantias têm por fim proteger os direitos de crédito, sendo o património do devedor a garantia geral dos seus credores (art.601º). No entanto, a este pode acrescer um especial reforço quantitativo ou qualitativo da massa de bens responsável pela dívida: reforço qualitativo através de garantia real dada pelo próprio devedor; reforço quantitativo mediante garantia pessoal ou real prestada por terceiro, que responderá pelo devedor, principalmente no primeiro caso, com todo o seu património, se não tiver limitado a responsabilidade a alguns dos seus bens (arts. 601º e 602º), e no segundo caso com a coisa certa e determinada objecto da garantia. Enquanto que nas garantias pessoais vale o princípio da igualdade dos credores (art.604º, nº1), as garantias reais são causas legítimas de preferência, objecto de satisfação privilegiada do credor (art.604º, nº2). Assim, por força deste último artigo, consideram-se causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção. Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol.I, 2ª ed., pág.609, o penhor continua a ser uma garantia real completa, que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito com preferência sobre os demais credores (daí o ser carácter real), pelo valor da coisa ou do direito empenhado, para o que tem o credor pignoratício a possibilidade de fazer vender judicialmente o objecto do penhor (cfr. os arts.666º e segs.). Acrescentam aqueles autores que o penhor se encontra industrializado e é de constituição rara como acto de direito civil, mas que a sua regulamentação geral não pode deixar de constar do Código Civil, suprindo-se, dessa forma, as lacunas de regulamentação dos vários regimes especiais previstos no art.668º, designadamente os respeitantes ao penhor mercantil (arts.397º a 402º, do Código Comercial) e ao penhor bancário (DL nº29833, de 17/8/1939 e DL nº32032, de 22/5/1942). Como referem Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, in Garantias de Cumprimento, 2ª ed., pág.108, o penhor mercantil pode assumir várias modalidades em função do objecto, distinguindo-se, nomeadamente, o penhor de títulos representativos de mercadorias, o penhor de títulos de crédito e o penhor de aplicações financeiras. O penhor de títulos de crédito (art.399º, do Código Comercial) é uma modalidade de penhor de direitos, previsto nos arts.679º e segs.. Na verdade, no penhor de títulos de crédito, a garantia real não recai sobre o título em si, mas sobre o crédito por ele titulado. Daí a qualificação como penhor de direitos. Por outro lado, como modalidades de penhor de títulos de crédito, temos, entre outros, o penhor de valores mobiliários, incluindo-se nestes as unidades de participação em instituições colectivas (cfr. o art.1º, al.d), do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo DL nº486/99, de 13/11). Refira-se que, no caso dos autos, em ambos os instrumentos de penhor, atrás mencionados, constantes de fls.51 e 66, se diz expressamente: «ficando o Banco irrevogavelmente mandatado para proceder ao registo do penhor em conformidade com o disposto no art.81º do Código dos Valores Mobiliários». Sendo que, nos termos do nº1, desse artigo, «O penhor de valores mobiliários constitui-se pelo registo na conta do titular dos valores mobiliários, com indicação da quantidade de valores mobiliários dados em penhor, da obrigação garantida e da identificação do beneficiário». Estamos, assim, perante uma situação em que, tendo as U.P. sido dadas em penhor, a ré, como credora pignoratícia, tinha o direito de manter o penhor na sua totalidade, enquanto a obrigação a que servia de garantia não fosse totalmente extinta. Como resulta do disposto no art.671º, al.c), aplicável ex vi do art.679º, o credor pignoratício só é obrigado a restituir a coisa, depois de extinta aquela obrigação. Por conseguinte, encontrando-se o penhor associado a um direito de crédito e ao serviço deste, bem se compreende que se extinga caso desapareça a obrigação garantida, como manda o art.677º, por remissão para o art.730º. Não tem, pois, aplicação ao caso o disposto no art.1185º, respeitante ao contrato de depósito. Na verdade, embora o credor pignoratício deva guardar e administrar a coisa empenhada, nos termos do art.671º, al.a), essa obrigação é sempre secundária, acessória ou instrumental, enquanto no depósito ela tem carácter final. Não tem sentido constituir-se um penhor para que certa coisa seja guardada, mas para outros fins (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol.II, 2ª ed., pág.671). Fins esses que, como já vimos, implicam que o credor esteja obrigado a restituir a coisa empenhada logo que esteja extinta a obrigação a que serve de garantia. Refira-se, a propósito, que, no caso dos autos, resulta da matéria de facto dada como provada que, apesar de a ré ter executado o penhor em 16/3/10 (1.190 U.P.) e em 16/6/10 (48.810 U.P.), apenas recebeu, por via de tais operações, o total de € 1.122.890,50, quando, em 18/5/10, reclamava o pagamento da dívida de € 2.007.950,69 (cfr. os pontos 26, 27 e 28 da fundamentação de facto). Entendem os recorrentes que, valendo as 50.000 U.P. € 2.172.955,00 em Maio de 2007 (cfr. o ponto 13 da fundamentação de facto) e tendo sido resgatadas posteriormente, em 2010, pelo valor de € 1.122.890,50, a recusa ilegítima de restituição causou-lhe um prejuízo de € 1.050.064,50. No entanto, já vimos que tal recusa não foi ilegítima, pelos motivos atrás referidos. Logo, não tem o autor – recorrente direito a ser indemnizado por aquele valor, como pretende. O que poderia, eventualmente, caso em Maio de 2007 houvesse receio fundado de que as U.P. se viessem a desvalorizar no futuro, era exercer a faculdade de proceder à sua venda antecipada, mediante prévia autorização judicial, nos termos do art.674º. Todavia, tratando-se de venda antecipada, não podia a ré, nesse caso, fazer-se pagar pelo produto da venda, antes ficando este a substituir as U.P., como resulta do disposto no nº2, do citado art.674º. Haverá, deste modo, que concluir que, ao recusar a restituição do valor das U.P. que o autor detinha no Fundo … Acções P…, não violou a ré o disposto no art.1185º. 2.4.2. Entendem os recorrentes que a recusa de resgate das 33.000 U.P. dadas em penhor, não obstante o oferecimento do pagamento dos € 600.000,00 a que serviam de garantia, se traduziu no ilegítimo exercício do direito de recusa de autorização de movimentação, constituindo um abuso de direito, por exceder os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico do direito de penhor, sendo assim violado o art.334º. No entanto, como já resulta do atrás exposto, foi dado como provado que, nos termos do contrato de mútuo de 19/1/07, o pagamento antecipado dos € 600.000,00 só poderia ocorrer nas datas de vencimento das duas prestações estipuladas para amortização do capital – 19/1/09 e 19/1/10 (cfr. o ponto 9 da fundamentação de facto). Ora, o autor pretendeu efectuar esse pagamento logo em 14/5/07, isto é, fora das condições estipuladas no contrato em que também interveio, como garante, e mediante o pretendido resgate da totalidade das 50.000 U.P. (cfr. o ponto 12 da fundamentação de facto). Acresce que, nesse mesmo dia 14/5/07, o autor voltou a intervir, como garante, num outro contrato – de abertura de crédito até € 2.000.000,00 – onde constituiu, a favor da ré, novo penhor sobre as suas unidades de participação no Fundo … Acções P…, desta feita sobre 47.500 U.P., isto é, incluindo aí a maior parte das 17.000 que seriam suficientes para pagar o primeiro empréstimo de € 600.000,00 (cfr. os pontos 15 e 16 da fundamentação de facto). Desconhecem-se as circunstâncias e as razões que estiveram na base deste segundo contrato, já que a matéria de facto considerada provada nada revela nesse sentido. Assim, o que é certo é que, face aos factos apurados nos autos, não pode deixar de se deduzir que o autor, ao intervir no contrato de abertura de crédito, nos termos do qual a ré entregou à autora sociedade, logo nesse dia - 14/5/07 - € 1.500.000,00, e os restantes € 500.000,00 em 6/11/07 (cfr. o ponto 17 da fundamentação de facto), desistiu da sua pretensão de obter o resgate das 50.000 U.P., já que, na mesma data, como garantia de todas as responsabilidades emergentes daquele contrato, deu em penhor 47.500 U.P.. Ora, do disposto no art.405º resulta, além do mais, que o princípio da liberdade contratual implica a possibilidade de as partes contratarem ou não contratarem, conforme os seus interesses, bem como a faculdade de, contratando, fixarem livremente o conteúdo dos contratos. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., vol.I, pág.331, «O princípio da liberdade contratual ou da autonomia da vontade é uma aplicação aos contratos do princípio da liberdade negocial, só limitado, em termos gerais, nas disposições dos arts.280º e segs. (cfr. o art.398º), e, em termos especiais, na regulamentação de alguns contratos». Mas será que a recusa de resgate das 33.000 U.P. dadas em penhor, nas circunstâncias atrás referidas, constitui um abuso de direito, por exceder os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico do direito, como pretendem os recorrentes? A nosso ver, atenta a matéria de facto dada como provada, a resposta não pode deixar de ser negativa. Na verdade, daquela matéria de facto nada resulta que aponte nessa direcção. A doutrina do abuso do direito, segundo o Prof. Manuel de Andrade, tem a função de obstar a «injustiças clamorosas» a que poderia conduzir, em concreto, a aplicação dos comandos abstractos da lei, pelo que haverá abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido em tese geral, surge, num determinado caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida segundo o critério social dominante. A figura do abuso do direito, consagrada no art.334º, surge, pois, como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites da lei não contemplam. Mas exige-se que o excesso cometido seja manifesto, embora não seja necessária a consciência do abuso, pois que o citado art.334º consagrou uma concepção objectiva ou objectivista. Deste modo, o abuso de direito só pode funcionar em situações de emergência, para evitar violações clamorosas do direito. No caso dos autos, não se vê que a ré, ao recusar o referido resgate, nas condições e circunstâncias consideradas provadas, tenha excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé ou pelo fim económico do direito, e que, assim, tenha exercido o direito ilegitimamente. Improcedem, destarte, as conclusões da alegação dos recorrentes, devendo, pois, manter-se a sentença recorrida. Não tem, portanto, a ré que ser condenada nos termos pretendidos pelos recorrentes nas als.a), b) e d) da conclusão 17ª da sua alegação, nem tem o Tribunal que notificar a 2ª Conservatória do Registo Predial de C…, como se requer na al.c) da mesma conclusão. No que respeita à pretensão de verem anulada a «coima» de 2 Ucs, aplicada aos autores por despacho de 17/5/12 (al.e) da referida conclusão), dir-se-á que tal despacho condenou os autores em 2 Ucs de taxa de justiça, pelo incidente a que deram causa, e que o mesmo não foi objecto de recurso, tendo transitado em julgado, pelo que não há que conhecer dessa questão. 3 – Decisão. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada. Custas pelos apelantes. Lisboa 30 de Abril de 2013) Relator: Roque Nogueira Adjuntos: Pimentel Marcos Tomé Gomes | ||
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Decisão Texto Integral: |